¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, fevereiro 26, 2014
 
FIERRO, DE RELANCINA


Tenho uma definição muito pessoal de gaúcho. Se interpelar alguém com os primeiros versos de Martín Fierro e se meu interlocutor não continuar a sextilha, não é gaúcho. Pode ser até rio-grandense, mas gaúcho não é. Não se pode confundir este personagem ligado à pampa e ao cavalo, com seres urbanos nascidos no asfalto.

Em algum final de noite dos anos 90 em Paris, encontrei uma uruguaia que vivia na Noruega, em Oslo, e se dizia gaúcha. Dei o santo:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,

Ela deu a senha:

que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.

Era gaúcha, sem dúvida alguma. O mesmo eu não poderia afirmar das centenas de pessoas que encontrei em meus dias de Porto Alegre. Pois o poema maior que o continente latino-americano deu à literatura universal, de um modo geral, é desconhecido pelos habitantes da capital de um Estado que se pretende gaúcho.

Alguns anos antes da reunificação alemã, estive em Berlim Ocidental, em plena "Semana Martín Fierro". Era hóspede de uma estudante de Letras de origem italiana, nascida no Rio Grande do Sul. Ela não sabia se José Hernández era açougueiro ou alfaiate. Quando soube que o poema começara a ser escrito no exílio do senador argentino em Santana do Livramento, achou que eu delirava. Foi consultar uma enciclopédia literária alemã, lá estaria a verdade. Pois lá estava a verdade: os dicionaristas concediam várias páginas a nosso vizinho e o comparavam – nada mais, nada menos – a Homero.

Em Paris, quando defendia uma tese de doutorado em Literatura Comparada, tive a honra de ter no júri M. Paul Verdevoye. A parte de ser um dos grandes divulgadores da literatura latino-americana na Europa, era o tradutor do poema de Hernández ao francês. Tradução a meu ver inviável. Mas - diz-se entre tradutores - se traduzir é impossível, traduzir também é necessário:

Ici je m'mets a chanter
aux accords de ma guitare.
L’homme que tient éveillé
une peine extrardinaire,
comme l’oiseau solitaire,
en chantant peut s’consoler.

E já que estamos falando do impossível, não resisto à tentação de reproduzir o esforço de Folco Testena. Por inusitado que soe, a tradução italiana parece ser uma das mais próximas do poema de Hernández:

Incomincio qui a cantare
pizzicando la mandola.
L'uomo, si anche di una sola
pena in cuor sente il rovello,
come solitario augello
con il canto si consola.

Tive ainda um outro reencontro com estes versos de minha infância lá no outro lado do Atlântico. Em Las Palmas de Gran Canaria, encontrei um professor universitário, arabista de renome, cuja pedra de toque era o conhecimento do poema argentino. Naquela ilha vulcânica, batida pelos ventos da África, tão estranha à pampa gaúcha, o homem deslumbrava platéias canarinas recitando a saga de Fierro.

Gaúcho de Livramento, nasci embalado pelas sextilhas hernandianas. Nas madrugadas lá da Linha, na fronteira seca entre Uruguai e Brasil, antes de buscar as vacas em meio à cerração, sempre se tomava um mate ao redor do fogo no galpão. Enquanto eu chorava com a fumaça de algum cavaco de madeira verde, meu pai recitava as coplas de Fierro.

Chamavam-no de Canário. Não era homem de Letras. Se lhe perguntassem onde ficava a Europa, meu pai diria sem vacilar: “é lá pras bandas de Passo Fundo”. No que não deixava de ter razão. Vista de um homem postado em Livramento, a Europa fica sem dúvida para os lados de Passo Fundo. No entanto, conhecia de cor centenas de versos de Fierro. Não sei se ouvira falar de Hernández. E aqui se revela o milagre da grande arte: como no Quixote, o personagem acaba por matar o autor. Fierro, para os gaúchos da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, era um índio vago que por ali havia passado, sempre lutando para defender seu pelego. Talvez até mesmo estivesse vivo, sempre fugindo de “la polecía”.

José Hernández, nuestro vecino, terá sido um dos raros poetas a sentir, ainda em vida, a ventura de ter sido morto pelo personagem que criou. Antes mesmo da publicação da segunda parte do poema, já era conhecido como Martín Fierro: “Soy un padre al cual le ha dado su nombre su hijo”, costumava dizer. Ao morrer, um jornal de La Plata deu-lhe a honra deste necrológio:

Ha muerto el senador Martín Fierro

Deslumbrados pelos brilhos teóricos emanados de Paris ou Moscou, os donos da cultura no Rio Grande do Sul, intelectuais porto-alegrenses que nada conheciam do homem do campo, ajoelharam-se em direção ao norte e deram as costas para o Prata. Pelo que ouvi em minhas universidades, raros são os acadêmicos que têm notícias deste poema maior da América Latina. A intelligentsia - ou talvez melhor disséssemos burritzia - da capital, arrinconada nos CTGs, preferiu criar uma caricatura, o “centauro dos pampas”, esse personagem ridículo e fanfarrão que nada tem a ver com o gaúcho, originalmente um pobre diabo do campo, esquecido, humilhado e massacrado pelo poder central.

Os rio-grandenses não são nada originais quando ignoram Martín Fierro, esta atitude é nacional. Ao norte do rio Uruguai, raras pessoas o conhecem. Em Florianópolis, ao propor um curso sobre o poema, os PhDeuses que me cercavam julgaram que eu estava falando grego. Hoje, em São Paulo, tenho fascinado não poucos amigos recitando as coplas de Hernández. Jamais haviam ouvido falar do homem ou da obra. Em algum momento da estruturação da literatura rio-grandense, almofadinhas da capital impuseram fronteiras culturais onde não há fronteiras: na pampa brasileira, uruguaia e argentina, geografia homogênea que produz o mesmo tipo de homem e o mesmo modo de sentir.

Com os mesmos argumentos com que Hernández foi expulso de nossa literatura, foi abafada a obra de outro grande escritor gaúcho, Aureliano Figueiredo Pinto. “Memórias do Coronel Falcão”, romance escrito em 1937 e só publicado postumamente em 1973, foi jogado às gavetas pelos donos da cultura de então, por “conter espanholismos”. Ora, se fossemos cortar do vernáculo todos os estrangeirismos adquiridos pelo português através dos séculos, ainda estaríamos falando galego.

Mas volto ao poema nascido nesta geografia de fronteira, esquecido e desprezado pelos intelectuais brasileiros, mas com prestígio nos mais importantes centros culturais do Ocidente. Em seu poema, em um castelhano rude e estropeado, Hernández canta valores eternos, pouco considerados neste século dominado por ideologias: o valor pessoal, a coragem física, a amizade, a confraternização no infortúnio. Mexe com a alma de todo homem livre o encontro de Fierro com o sargento Cruz. Quando a “polecía” o cerca, Fierro a enfrenta com a coragem da fera acuada. Cruz, que tinha a missão de aprisionar Fierro, troca de banda:

Tal vez en el corazón
lo tocó un santo bendito
a un gaucho, que pegó el grito
y dijo: “¡Cruz no consiente
que se cometa el delito
de matar ansí un valiente!

Não será fácil encontrar, na literatura universal, momento tão dramático de admiração mútua por dois homens que jamais se haviam visto e que, além disso, lutavam em campos contrários. As lutas de Fierro com o negro, com os índios e com a polícia sempre encantaram qualquer encontro que reunisse dois ou mais gaúchos. A luta com um negro em um baile é um dos momentos mais citados do poema: Fierro, embriagado - con la mamúa -, vê chegar ao baile um negro com uma negra na garupa do cavalo:

Al ver llegar la morena
Que no hacia caso de naides,
Le dije con la mamúa
"Va...ca...yendo gente al baile".

La negra entendió la cosa Y no tardó en contestarme - Mirandomé como a un perro - "Más vaca será su madre" Y dentró al baile muy tiesa
Con más cola que una zorra,
Haciendo blanquear los dientes
Lo mismo que mazamorra.

"Negra linda"... dije yo -
"Me gusta pa la carona"-
Y me puse a talariar
Esta coplita fregona:

"A los blancos hizo Dios,
A los mulatos San Pedro,
A los negros hizo el Diablo
para tisón del infierno".

Daí à luta com o negro é um passo e Fierro acaba por matá-lo. Desata as rédeas de seu cavalo e entra na noite da pampa. “Esforcei-me” - escreve Hernández - “sem saber se o consegui, em apresentar um tipo que personificasse o caráter de nossos gaúchos, concentrando o modo de ser, de sentir, de pensar e de expressar-se que lhes é peculiar; dotando-o com todos os jogos de sua imaginação cheia de imagens e de colorido, com todos os ímpetos de sua altivez, imoderados até o crime, e com todos os impulsos e arrebatamentos, filhos de uma natureza que a educação não poluiu”.

Hernández também canta a luta do indivíduo contra a adversidade, a solidão do gaúcho ante o verde da pampa, a rebelião do paisano contra as determinações da urbe. Fugindo do poder federal, Fierro, com seu súbito amigo Cruz, ao final do poema, se enfurna no deserto. É sofrida a travessia da fronteira pelos dois desertores:

Y cuando la habian pasao,
una madrugada clara,
le dijo Cruz que mirara
las últimas poblaciones;
y a Fierro dos lagrimones
le rodaron por la cara.
Y siguiendo el fiel del rumbo
se entraron en el desierto.

Estes “dos lagrimones” prometem, é claro, uma “Vuelta”, onde um Hernández mais maduro e filosófico, dará arremate ao poema. Temos então novos vultos, cada vez melhor delineados, entre estes o velhaco Viscacha, e Picardia, o filho do sargento Cruz. Se a obra começara como poema, assume agora novos personagens e sua característica definitiva de romance narrado em estrofes. Os conselhos do velho Viscacha, antes de chegar nos salões de Buenos Aires, terão aquecido as noites de muito peão de estância - o que restou do gaúcho - em torno a um fogo de chão:

El primer cuidao del hombre
es defender el pellejo;
lleváte de mi consejo,
fijáte bien lo que hablo:
el diablo sabe por diablo
pero más sabe por viejo.

Hacéte amigo del juez,
no le dés de qué quejarse;
y cuando quiera enojarse
vos te debés encojer,
pues siempre es güeno tener
palenque ande ir a rascarse.

Nunca le llevés la contra
porque él manda la gavilla;
allí sentao en su silla
ningún güey le sale bravo:
a uno le dá con el clavo
y a otro con la cantramilla.

No andés cambiando de cueva,
hacé las que hace el ratón:
conserváte en el rincón
en que empesó tu esistencia:
vaca que cambia querencia
se atrasa en la parición.

Y menudiando los tragos
aquel viejo como cerro,
“No olvidés, me decía, Fierro,
que el hombre no debe crer,
en lágrimas de muger
ni en la renguera del perro.”

“No te debés afligir
aunque el mundo se desplome:
lo que más precisa el hombre
tener, sigún yo discurro,
es la memoria del burro
que nunca olvida ande come.”

A naides tengás envidia;
es muy triste el envidiar;
cuando veás a otro ganar
a estorbarlo no te metas:
cada lechón en su teta
es el modo de mamar.

Si buscás vivir tranquilo
dedicáte a solteriar;
mas si te querés casar,
con esta alvertencia sea:
que es muy difícil guardar
prenda que otros codicean.

Nesta segunda parte do poema, Fierro trova com um moreno. Não por coincidência, seu adversário de payada é irmão do negro que há anos matara em uma pulperia. Neste nosso Brasil 97, a definição de lei proposta pelo contendor de Fierro, há mais de século, é de uma atualidade surpreendente:

La ley es tela de araña,
en mi inorancia lo esplico:
no la tema el hombre rico,
nunca la tema el que mande,
pues la rompe el bicho grande
y sólo enrieda los chicos.

Es la ley como la lluvia:
nunca puede ser pareja;
el que la aguanta se queja,
pero el asunto es sencillo,
la ley es como el cuchillo:
no ofiende a quien lo maneja.

Le suelen llamar espada,
y el nombre le viene bien;
los que la gobiernan ven
a dónde han de dar el tajo:
le cai al que se halla abajo
y corta sin ver a quien.

Este poema universal, tão próximo de nós - sejamos gaúchos ou apenas nascidos no Rio Grande do Sul - e ao mesmo tempo tão distante, é o cerne da reflexão que proponho hoje em uma mesa redonda em Cascavel, Paraná.

Yo sé el corazón que tiene
el que con gusto me escucha.