¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, março 27, 2014
 
LOBATO ANTECIPA INTERNET *


A revolução operada pela Internet, que hoje faz parte de nosso dia-a-dia, foi prevista já em 1926 (no Brasil, quem diria?) por um visionário de Taubaté. Falamos de Monteiro Lobato, é claro, e de sua obra mais premonitória, O Presidente Negro.

O escritor angustiava-se com o desperdício de energia e "os milhões de veículos atravancadores de espaço" necessários para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Em época na qual nem sequer se falava em computador ou fax/modem, o autor via a salvação na "fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins". O trabalho, o teatro, o concerto passam então a vir ao encontro do homem. As condições do mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais e comerciais, começam a ser feitas de longe pelo "rádio-transporte".

Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e a rotina de qualquer redação neste final de milênio. Cada colaborador do "Remember", jornal criado na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa o seu artigo e imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes. Se substituirmos rádio-transporte por fax/modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há sete décadas, um jornal que já existe. Seus correspondentes há muito enviam seus "caracteres luminosos" para suas redações. Daí ao leitor recebê-los numa tela em casa basta uma decisão administrativa, já tomada por centenas de empresas no Brasil e no mundo.

Pela voz de seus personagens, Lobato anuncia também a morte de uma era. "A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé? O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância." As ruas serão "amáveis, limpas e muito mansas de tráfego". Nelas ainda deslizam veículos, "mas raros, como outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. (...) Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda".

O autor fala em rádio, o "must" dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de "terabytes" diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela Internet, intuiu muito bem suas consequências. O comércio eletrônico já envolve bilhões de dólares e o trabalho à distância -"radiado" para o escritório, como diria Lobato - é um fenômeno em expansão. O teletrabalho ocupa, hoje, cinco milhões de pessoas nos Estados Unidos, 12 milhões na Europa e está em ascensão na América Latina. Qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações não constituem mais novidade. Mas intuir esta nova realidade em 1926 é privilégio de visionário. Aliás, o voto também é "radiado" em O Presidente Negro, e as eleições se realizam em questão de horas. Nas últimas eleições, o país de Lobato inaugurou o voto eletrônico.

Também ao sul do Equador, um vizinho nosso, situado às margens do Prata, imaginava um acervo que hoje começa a tomar corpo com a Internet. Falava de uma biblioteca em forma de esfera, cujo centro cabal é qualquer hexágono. Sua circunferência é inacessível. Existe "ab aeterno" e nela não há dois livros idênticos. É ilimitada e periódica.

Assim definia Jorge Luis Borges em um conto datado de 1941, a "Biblioteca de Babel". Em alguma prateleira de algum hexágono existiria um livro que era a chave e o compêndio de todos os demais. "Algum bibliotecário o terá percorrido e é análogo a um deus".

Na Babel de Borges há um grave problema de comunicação. A Biblioteca abarca todos os livros. Todo conhecimento humano está disperso pelos hexágonos, o problema é encontrar o que se busca. Milhares de funcionários lutam, se estrangulam e morrem em busca dos livros nos corredores da biblioteca, muitas vezes derrubados por homens de hexágonos remotos. Outros enlouquecem. O autor exagera, o que é direito de todo ficcionista. Mas em muitas bibliotecas contemporâneas os funcionários já usam bicicletas ou patins para atender os consulentes.

Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos buscadores desta ficção de Borges bastaria digitar um endereço eletrônico e teriam em segundos os livros desejados, sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou patinar, subir escadas ou cair em poços sem fundo. Já podemos, de qualquer parte do mundo, acessar centenas de bibliotecas, entre elas a "Congress Library" (Biblioteca do Congresso), em Washington, ou a Bibliothèque Nationale (Biblioteca Nacional), em Paris.

Se ainda não temos a biblioteca total de Borges, teoricamente já se pode pensar nela. Chegar lá é uma questão de tempo. A biblioteca faraônica iniciada por François Mitterrand (Tontonkhamon, para os inimigos íntimos) em Paris, concebida para armazenar acervos futuros, com seus quatro prédios mastodônticos em forma de livro, já nasce mais ou menos obsoleta. Seu design pertence ao passado.

Como para sonhar não se paga imposto, Borges vai mais longe em seu desejo de futuro. Em "Aleph", conto publicado em 1949, nos fala do peculiar poeta Carlos Argentino, que se propõe nada menos que "versificar toda a redondez do planeta". Carlos, que está construindo sua obra a partir de seu quarto, entra em pânico quando lhe noticiam a demolição de sua velha casa na Calle Garay. Pois nela, em algum ponto de uma escada no porão, existe um "aleph", "o lugar onde estão, sem confundir-se, todos os lugares do mundo". A partir daquela pequena esfera, de dois ou três centímetros de diâmetro, Carlos Argentino perscrutava o mundo, a fonte de seu poema colossal.

Hoje não falaríamos em "aleph", mas em "webcams", a rede incipiente de câmeras onde, se não vemos o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar alguns de seus pontos mais longínquos. De minha mesa de trabalho, já posso ver (em tempo real) o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte em Liljestrom, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa na escuridão, no norte da Noruega, e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel em construção.

Para consultar o futuro, Lobato cria em O Presidente Negro um aparelho semelhante, o porviroscópio, uma espécie de globo cristalino por meio do qual perscruta o mundo do século 23. A forma como descreve o universo vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica à descrição do Aleph. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se consideramos que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da publicação de El Aleph, é bastante pertinente supormos que o ilustre argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Vejamos a descrição do aleph, feita por Borges em 1949.

O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto rompido (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi racimos, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi um sítio em Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando criança, eu me maravilhava com o fato de que as letras de um volume fechado não se misturassem e se perdessem no transcurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-de-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em uma praia do mar Cáspio vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha, enviando cartões postais, vi em uma vitrine de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, maremotos e exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma caixa do escritório (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação da morte, vi o Aleph, desde todos os lados, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem mirou: o inconcebível universo.

Contemporaneamente, não falaríamos em aleph, mas em webcams, a rede incipiente de câmeras onde, se não podemos ver o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar cada vez mais seus pontos mais longínquos. Hoje, de minha mesa de trabalho, posso ver o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte em Liljeström, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa na escuridão no norte da Noruega e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel em construção.

Vejamos o porviroscópio de Lobato. O professor Benson obtém, neste aparelho,

(...) uma corrente contínua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixe que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem apanhados pela água tépida do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor do pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucócito a envolver um micróbio malévolo que penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota d’água que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...

A forma como o visionário de Taubaté descreve o universo vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica à descrição do Aleph, publicada 23 anos mais tarde. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se considerarmos que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da publicação de El Aleph, é bastante pertinente supormos que o autor argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Enquanto os sedizentes modernistas de 22 papagueavam Marinetti, Marx e outros doutrinadores totalitários europeus, Lobato, o escritor excluído do universo intelectual pelos seus contemporâneos, olhava meio século adiante.

* Este artigo foi publicado na Folha de São Paulo, sob o título "Borges leitor de Lobato', em 28/06/1998