¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, março 16, 2014
 
SE PORTO ALEGRE UM
DIA JÁ FOI PARIS



No blog do Prévidi, leio artigo de Sérgio Jockyman, afirmando que, em priscas eras, Porto Alegre já foi uma Paris. O que só evidencia que Jockyman jamais foi a Paris. Para ser Paris, Porto Alegre precisaria, para começar, ter uns mil anos. Continuando, precisava estar situada em uma cultura também milenar, com tudo o que tempo traz e acumula. Ocorre que Jockyman era escritor dos bons, e escritor assim convence qualquer leitor até do inverossímil.

Não sei bem de que Porto Alegre Jockyman fala, se da dos anos 50 ou 60. Eu conheci a de meados dos 60, e sei que a cidade já havia sido melhor. Na rua da Praia, só havia um restaurante decente, cujo nome já nem lembro, lá no alto da rua. Havia algumas biroscas perto dos quartéis, mas não mereciam esse nome. Perto da Ladeira havia um bar, o Olé, e mais ou menos em frente, um outro, situado num segundo andar. Mas no centro ainda havia locais memoráveis, entre eles o Chalé da Praça XV – que elegi como meu escritório – e o Dona Maria, ambos geridos por Herr Moser, para quem fora do bar não há salvação. Um restaurante e dois cafés no centro é muito pouco para fazer de uma cidade Paris.

Havia ainda a confeitaria Rocco, na Riachuelo, se bem me lembro, mas de notável só havia isso. No Mercado, havia o Treviso, muito frequentado por jornalistas. Desta época também era o Copacabana, outro reduto de jornalistas, na praça Garibaldi.

Na Riachuelo, havia um outro refúgio ameno, a Rottisserie Pelotense, modesta mas com mesinhas de mármore, onde muito li e namorei, e tinha mesa cativa. Certo dia, sei lá por quê, sentei de costas para a rua, na cadeira do lado oposto ao qual sentava. Não demorou muito para que caísse um pesado ventilador de teto, que reduziu minha cadeira a cacos. Só pode ter sido obra do bom deus dos ateus, o do Acaso. Ou não estaria hoje escrevendo estas linhas. Garçons e habitués me fizeram festa e a Pelotense não me cobrou os chopes daquela noite.

Last but not least, havia ainda o Gambrinus, que creio ser hoje o único restaurante centenário da cidade. Sim, há o Chalé também. Mas o Chalé de hoje não é mais o Chalé.

Jockyman fala em algumas confeitarias que não conheci, como a Jam, na Floriano, “onde se dava o golpe de misericórdia na virgindade renitente da namoradinha, pondo uma fatia de torta na sua frente. No dia em que começaram a pedir torrada americana, senti que a Schramm estava com os dias contados. Não levou nem seis meses para começarem a tirar as cerejas da cobertura das tortas”.

E passa a desfilar uma catilinária contra os ianques:

“Foram americanos, esses glutões sem paladar, que acabaram com o centro das cidades. Downtown, dizem eles, e isso já define o que eles pensam sobre o centro. Como passam Ketchup até na consciência, não sabem comer qualquer coisa que não tenha gosto de tomate. Para se empanturrar de hambúrgueres, foram fechando os cafés e restaurantes e colocando bancos em seu lugar. Fizeram essa indignidade no mundo inteiro, mas foi Porto Alegre que se ressentiu mais, porque ela estava tomando um jeitinho de cidade de respeito”.

Admiro os americanos por seus feitos, mas não gosto de sua cultura, particularmente a gastronômica. Isso de hotdogs, beber em copos de plástico, quando não no bico da garrafa. Certamente há alguma influência, na opção pela cidade vertical, ao contrário da Europa, onde as cidades, de modo geral, se expandem na horizontal. Já culpá-los pela destruição dos centros, em função da culinária, é argumento que não procede. Os centros de quase todas as grandes cidades morreram em nome da especulação imobiliária. Com o aumento do preço do metro quadrado, bares e restaurantes se tornaram inviáveis.

Lá por 76 ou 77, escrevi uma crônica na Folha da Manhã, "Bancos matam ruas". Nela, eu mostrava que, com o potencial de compra de um banco, que pode pagar o que pedirem pelo metro quadrado, não sobrava mais espaço para cafés, bares, casas de chá ou cinemas. Ora, bancos fecham às seis da tarde. Um quarteirão de bancos, quando cai a noite, torna-se um deserto sinistro, propício à cultura do crime e da bandidagem. Não é preciso ser urbanista para constatar isto. Colegas de jornalismo me olhavam como a um insano. "Estás louco. Queres expulsar os bancos do centro da cidade?"

A verdade é que a idéia nem sequer me ocorrera. Eu fizera apenas um diagnóstico. Mas ocorreu a um vereador que, com minha crônica em punho, propôs projeto de lei proibindo a instalação de bancos nos andares térreos do centro. Já era tarde. A Rua da Praia estava morta. O resto do centro seguia pelo mesmo caminho. Os bancos encontraram uma fórmula para burlar a postura municipal. Compravam prédios antigos, deixavam o térreo vazio e instalavam-se no mezanino. O centro, com suas belas edificações, como o prédio dos Correios, da Alfândega, do então Banco do Comércio, do Correio do Povo, do Theatro São Pedro, começava a morrer.

Aí surgiu um prefeito, Telmo Thompson Flores, que ergueu viadutos e muros por todos os lados, transformando uma arquitetura amena em uma floresta brutal de concreto. Fez mais. Separou o porto de sua cidade, com um muro absurdo, também de concreto. A única solução viável para desmanchar o estrago seria destruir o muro. Mas prefeito algum teve até hoje esta coragem.

Prossegue Jockyman:

“Os que iam dormir preparavam o sono com uma canja no Treviso, onde os casais noturnos se separavam gentilmente, e o que estavam acordando iam em busca de um café com leite no Matheus. Ah, o pão! Todos eles pareciam ter sido multiplicados pelo Filho de Deus naquela madrugada. Brancos, quentes, perfumados. A manteiga se enlanguescia dentro deles e o queijo se derretia de puro prazer. Mesmo quando trovejava lá fora e a rua se transformava num rio, era tomar o café com pão e manteiga e o sol se abria e a vida ficava linda. Nunca vi, em mais de trinta anos de Matheus, uma só briga ao amanhecer. Nem mesmo a mais leve discussão jamais conspurcou aquela modorra que vinha do estômago e se espalhava pelo corpo inteiro”.

Bom, o Matheus eu conheci, e foi um de meus refúgios nos dias de universidade, quando tecíamos idéias sobre o homem e o mundo na Praça Popular e Democrática da Alfãndega, como dizíamos então. Era também habitat de outro noctívago, o Mário Quintana. Nele esperávamos, nas sextas-feiras, a saída do Correio do Povo, quentinho do forno, para ver o que trazia o Caderno de Sábado. Mas o Matheus era um misto de padaria e lanchonete vagabundas, sem nem mesmo mesas ou cadeiras para sentar no balcão. Consumia-se de pé. Ficava aberto a noite toda e era o que podíamos chamar de último recurso. Evocar o Matheus como um dos resquícios de Paris é algo como comparar o obelisco do Ponche Verde com a torre Eiffel.

Porto Alegre se degradou muito naqueles anos, e acredito que tenha sido, nos anos 40 e 50, cidade bem menos hostil ao ser urbano. Uma das coisas que me faltam na cidade de hoje, é um aprazível bordel que havia no coração da cidade, do qual esqueci o nome mas não suas mulheres, em um segundo andar, na esquina da Rua da Praia com a Ladeira. Era ornado de aquários e eu costumava ir lá mais para meditar entre os peixinhos e as belas do que para saciar minha fome de carne.

Morreu a Porto Alegre de Jockyman, como morreu a minha também. Brasileiro não gosta de preservar o passado. Se vou a Paris hoje, freqüento cafés e instituições centenárias. Aqui no Brasil, restaurante que tiver meio século já pode se considerar antigo. Mas isso de querer comparar Porto Alegre com Paris, o finado Jockyman me desculpe. É affonsocelsimo de gaúcho ufanista.

Faltam a Porto Alegre algumas coisinhas, como torre Eiffel, Champs Elysés, Quartier Latin, Louvre, Sorbonne, Collége de France, Notre Dame, boulevard Hausmann, Quartier Latin, Jardin Luxembourg, Place des Vosges, Faubourg Sainte Honoré, l’Opera, Rive Gauche e la Seine. Faltam ainda o Procope, Café de Flore, La Rotonde, Select Latin, Chez Lipp, Au Pied de Couchon, Aux Charpentiers... Y algunas cositas más.

Isso sem falar nos Balzacs e Prousts da vida, Camus e Sartres (vá lá, apesar de sua confusão mental. Há ainda o fator geográfico; Paris, situada no centro de um continente que formatou a cultura ocidental, continua séculos há frente de uma cidade cravada na ponta sul de um país que até hoje não tomou jeito.

Em sua crônica, Jockyman me lembra uma escritora,creio que carioca, que ousou afirmar, sem rubor algum, nas Jornadas Literárias de Passo Fundo: “pena que Platão não conheceu Passo Fundo”.

A MORTE DA RUA DA PRAIA

Assisti a morte da Rua da Praia. Nos anos 70, escrevi:

A Rua da Praia, mais que uma rua, é um estilo de vida do porto-alegrense. Um estilo que está, aos poucos, morrendo. Bancos, financeiras e novas construções estão substituindo bares e cinemas. A Coletânea, último refúgio de quem gosta de um papo entre lombadas de livros, tem seus dias contados. E o estilo de vida ameno e calmo, sem angústias, do habitante da Rua da Praia, vai aos poucos acabando. A Rua está morrendo. Não adianta calçadão. Só bares e mesas podem salvá-la.

Nestes últimos anos, a Rua da Praia recebeu um violento ataque de uma praga que vem do Oriente — a lancheria.(Em São Paulo diz-se lanchonete). A lancheria é uma máquina fantástica de reproduzir dinheiro. É investimento seguro. Altamente lucrativo. E econômico. Não exige muito espaço, dispensa garçons, o cliente não esquenta muito o assento, não fica conversando fiado e tirando o lugar de outros.

Mas o gaúcho urbano, o gaúcho a pé, esqueceu um detalhe. Deixou o cavalo no campo, livre e sem arreios, retouçando nas invernadas. E veio para a cidade para ser tratado como cavalo. Ao entrar numa lancheria não se dá conta de estar indo a trote largo para uma cavalariça. Entra e sai por um brete. Toma lugar na manjedoura e se debruça sobre o bornal.

Enfim, eu também faço isso. Mas como invejo, nessas ocasiões, aquele outro que ficou pastando nas coxilhas!