¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, abril 26, 2014
 
ADELINO DOS SANTOS PARRACHO
E A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS *



Hegel, filósofo da História, afirmava ser a leitura dos jornais sua prece cotidiana, e via em suas páginas a manifestação do Espírito. Ao chegarmos a um país, se quisermos sentir o momento histórico presente, basta comprar um jornal qualquer, de preferência o mais lido. Em suas linhas ou entrelinhas, colunas ou lacunas, o observador atento poderá auscultar o povo inteiro.

Após uma fronteira, compro um jornal e leio:

Deu violenta cabeçada num portão e teve morte instântanea

Ilhavo — No lugar da Gafanha do Areão registrou-se um invulgar incidente, do qual resultou a morte de um indivíduo em condições invulgares.
Adelino dos Santos Parracho, de 35 anos, e seu tio, Manuel Nunes, discutiram por causa da demarcação de uma propriedade que este último se recusara a fazer. Palavra puxa palavra, os ânimos exaltaram-se de tal modo que Manuel Nunes recolheu-se à casa, fechando atrás de si o portão. O sobrinho, não gostando da atitude do tio, que não lhe permitiu a entrada, tentou forçá-la, para o que atirou uma violenta cabeçada no portão, que lhe causou morte instantânea.


Estamos, como o leitor já deve ter percebido, em Portugal.

Com sua brusca transição de meio século de ditadura salazarista, colonialismo, opressão política e proibição do pensamento, para um governo que se dirige ao socialismo, buscando para isso o consenso popular através do voto livre, Portugal sofreria traumáticas transformações em suas manifestações culturais.

Para evitar confusões de termos, começo definindo o que entendo por cultura: cultura é tudo o que homem faz. A meu ver, tanto Camões como Teixeirinha constituem cultura, como também é cultura um tacape, um automóvel ou a bomba de hidrogênio. Nesta conceituação, não cabem juízos éticos. Antes de ser boa ou má, cultura é algo que foi elaborado, que aí está. O bacalhau à Gomes Sá é cultura portuguesa, ao mesmo título que Fernando Pessoa. Nesta análise, quero deter-me apenas naquelas elaborações mais abstratas da cultura, ligadas ao jornalismo, literatura, artes, etc.

Como as páginas de um jornal, uma banca de revistas nos dá uma boa idéia do nível cultural de um povo. Na banca estão as publicações de consumo imediato, os livros e revistas que a maioria mais gosta de ler. Hoje, em Portugal, lê-se apenas, na expressão de um editor, P & P, ou seja, política e putaria. Nas bancas, ao lado de obras de Marx, Mao, Lênin, Trotsky, e cartazes de Che, Ho Chi Min, Fidel, estão livros de Cassandra Rios, publicações da Artenova, pornografia barata feita às pressas para satisfazer a demanda e pornografia mais requintada, com melhor know how, importada da Escandinávia. Ao lado, naturalmente, dessa pornografia familiar de Playboy, Lui, Penthouse, etc. A ironia da situação nos faz descrer de qualquer ideal mais nobre: os revolucionários das esquerdas de braços dados com Cassandra Rios, fazendo a fortuna de editores que se pretendem progressistas.

Nos meios mais intelectualizados, hoje não importa se um autor escreve bem ou mal. O que dará valor à sua obra será o fato de ter estado ou não preso sob o regime anterior. Num jornal, não interessa se o redator tem bom texto e espírito analítico. Pesará mais o fato de ser ou não militante. Não mais se informa, quer-se formar. Notícias e manchetes estão eivadas de adjetivos como fascista, antifascista, democrata, antidemocrata.

O que provocou um comentário irônico de um jornalista brasileiro, recebido com certo constrangimento por seus colegas lusos: “A pior coisa que poderia ter acontecido para vocês foi a eliminação da censura. Antes, os jornais não valiam nada, mas se jogava a responsabilidade à censura. Agora, a situação é a mesma e não mais existe a desculpa da censura”. Senão, vejamos:

Um jornal comenta os festejos carnavalescos. De alguma maneira se há de inserir na notícia as palavras fascismo e democrata:

“... o fascismo não suportava as liberdades carnavalescas (...) Este ano, com a nova situação política virada para o auxílio às classes menos favorecidas, as ruas de Lisboa ofereceram por vezes aspectos inusitados de foliões a conceder aos passeantes momentos de hilaridade mais são, agora sem receio da repressão policial. Enquanto se caminha para uma democracia que liberta o país definitivamente do fascismo, o Carnaval novo...”

Anuncia-se em Lisboa Toute une vie, de Lelouch. Seu grande mérito, salientado pelos críticos e também na legenda final do filme: “este filme acabou de ser rodado no dia 23 de abril de 1974, dois dias antes do movimento antifascista em Portugal”. Dispenso comentários.

Um cineclube anuncia Alexandre Nevski, do grande cineasta antifascista Eisenstein. Quando o homem nem chegou a ter tempo de ser antifascista...

Um gajo estaciona mal o carro? É fascista. Uma senhora fura uma fila qualquer? É uma fascista do antigo regime. A rica e variada gama de palavrões da língua portuguesa está hoje resumida em Portugal a um só palavrão.

Festival da canção popular na Europa. Vejamos esta pérola que Portugal apresentou:

O Pecado Capital

Quem será que nos contratar no ano que vem?
Quem será que nos vai enganar no ano que vem?
Quem será que vai dizer que não tem dinheiro?
Quem será que vai chuchar no dedo o ano inteiro?
Quem será que nos vai encantar com tudo o que viu?
Quem será que vai falar de coisas que nunca viu?
Quem será que vai ser fuzilado no Chile?
Quem será que vai ser torturado no Brasil?

Quem está por cima afirma que a razão do mal
Só tem a ver com o pecado original
Mas diz o povo que o pecado essencial
É o capital.

Será desta vez que acaba o medo do comunismo?
Será desta vez que acabam com o analfabetismo?
Será desta vez que vai morrer a saudade
Será desta vez que vai nascer a liberdade
Será desta vez que o mundo assiste ao conflito atômico?
Quem será que desta vez resiste ao caos econômico?
Será que alguém desta vez vai ter salvação?
Quem será que vai aproveitar esta canção?


E assim por diante. Pelo que vemos, os compositores lusos estabelecem uma pequena confusão entre manifesto e canção. Vejamos, em O Primeiro de Janeiro, esta obra-prima:

Decorreu com entusiasmo
o Carnaval do Palácio
promovido pelo P.C.P.


No Palácio de Cristal decorreu na noite de sábado para domingo o Carnaval popular promovido pelo Partido Comunista Português. A festa teve a presença de milhares de comunistas e simpatizantes que alegremente conviveram até de madrugada, num Carnaval livre, de alegria transbordante, vivida sem equívocos.

Na verdade este carnaval-convívio, o primeiro após 48 anos em que comunistas se viram arredios de qualquer participação, constituiu iniludível expressão de sua força junto às camadas populares. Abrilhantaram a festa conjuntos musicais e ranchos folclóricos, Júlia Rabo, Manuel Freire e Ari dos Santos, tendo sido cantadas músicas de intervenção. Ari dos Santos disse alguns poemas de sua autoria, tendo merecido, no meio da alegria, uma pausa para repensar, aquela dedicada ao martirizado Povo do Chile.


A situação nos leva a uma pergunta: já que o PC português anda organizando o carnaval, não seria o caso de promover também a Páscoa?

Mas enquanto se desenvolve esta revolução, a cultura (suas manifestações mais abstratas) é traumatizada. O fenômeno não é novo. Só para citar um exemplo, pergunto que nomes nos ofereceu a literatura russa após 1917. Ao que tudo indica, se fechará este século e continuaremos preferindo Dostoievski, Kuprin, Chekov, Gorki. O único gênio elaborado pela língua portuguesa no transcurso dos séculos, Fernando Pessoa, começa a ser acusado de fascista pelas esquerdas de Portugal. (Aliás, falar de esquerdas portuguesas é pleonasmo, pois hoje todo português se proclama esquerdista. Se Espínola vencesse em sua última tentativa e quisesse banir as esquerdas do país, não teria quem governar). A acusação é temerária, pois Pessoa é gênio e foge a qualquer clichê.

Portugal terá seus 25 de Abril, 28 de Outubro, 11 de Março, as revoluções e golpes passarão. Pessoa ficará. Apressados em realizar a necessária distribuição do pão, os lusos estão jogando a um canto o homem que justifica a existência da língua e civilização portuguesas neste planeta.

Quero crer nos novos rumos de Portugal. Mas sempre me resta, no fundo, uma apreensão: a técnica de abrir portas de Adelino dos Santos Parracho.

* Porto Alegre, Correio do Povo, 12/04/75