¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, maio 30, 2014
 
AVE, IA!


Quem não domina pelo menos três línguas, hoje, não entende a época em que vive. E já nem falo do espanhol. A meu ver, todo brasileiro minimamente culto deveria trafegar com aisance na língua de nuestros vecinos. Portunhol é preguiça mental de quem não lê. Há pouco, alguém me perguntava qual a melhor tradução do Quixote. Não tenho idéia. Adolescente, li Cervantes no original. Com dificuldade, é bom dizer. Mas com prazer e de dicionário em punho.

Mas os tempos são medíocres. Nestes dias em que até Machado precisa ser traduzido ao português, esperar que alguém saiba dizer muito obrigado em espanhol é milagre. Já conheci uma fazendeira da fronteira que dizia “mucho obrigado” e “buenas noites”.

O aprendizado do espanhol nem senti. Foi minha língua de cuna – como se dice allá. Eu tinha uma ama uruguaia, Doña Catulina, que só falava espanhol comigo. Havia ainda os versos de Fierro. E muito tango e mariachis, de Carlos Gardel a Miguel Aceves Mejía. Em verdade, sou muito mais platino que brasileiro.

No curso ginasial, o trote mudou. Costumo afirmar que no ginásio tive uma educação que hoje não temos nem na universidade. Dom Pedrito teria uns 13 mil habitantes na época. Mas no Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, dirigido por padres oblatos da Alemanha, tínhamos latim, inglês e francês. Em outros colégios estudava-se também o grego. Concluí o curso arranhando um bom latim, com um inglês que me foi suficiente para a vida e com um francês excelente. Português, impecável. Há tempos, achei em meus baús um mural manuscrito que fiz na época. Erros, nenhum.

Ainda há pouco, um bobalhão qualquer cujo nome já nem lembro, dizia nos jornais que o ensino não piorou, sempre foi ruim. Não sei a serviço de quem ou de quê está este senhor. Deve ser jovem, nascido já nos dias de decadência do ensino. Não viveu a época em que a escola secundária formava potenciais poliglotas.

Quando passei a lecionar na universidade, senti o abismo em que havíamos caído. Aconteceu na UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, na primeira reunião que participei no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas. Duas alunas, quartanistas de Letras, pediam ao Departamento um professor para explicar-lhes o que era sujeito e predicado, que até então elas desconheciam o que fosse. Perplexo, eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo, nem como elas haviam sido admitidas na universidade. Pior ainda, estavam se formando e já praticamente habilitadas a exercer o magistério. Que se pode esperar desta geração de professores?

Nestas ocasiões, sempre costumo evocar meus dias de dias de ginásio em Dom Pedrito e os excelentes professores que tive quando adolescente, professores que não encontramos mais nas escolas. Quando comecei a estudar línguas no ginásio, não imaginava para que me serviriam. Meu ecúmeno era diminuto, iria talvez de Dom Pedrito a Porto Alegre. Mas me agradava pronunciar outros sons. Era como se fosse outro que não eu. E a língua que mais me aprouve – e mais me foi útil na vida – foi o francês.

Anos mais tarde, quando tive uma entrevista com o cônsul francês em Porto Alegre para uma bolsa em Paris, ele quis saber onde eu aprendera tão bem o francês. Fora com a Maria Veiga Miranda, em Dom Pedrito. Isso já faz mais de meio século.

Há dois anos, revisitei a cidade em que me criei. Na primeira foto, a estação nova de trens de Dom Pedrito, hoje jogada ao léu, assim como foram as ferrovias. Lá morava Maria, seu pai era o chefe da estação. Nas salas do segundo andar, à esquerda, muito pratiquei as guturais da nova língua. No Patrocínio, ela criou uma boutique, onde só se entrava falando francês.

O Patrocínio foi encampado pelo Estado, os oblatos sumiram, o ensino decaiu, trens e trilhos morreram, o ensino do francês desapareceu do secundário. Maria, obstinada, até hoje continua seu apostolado, apostando em jovens que aspiram a horizontes além do rio Santa Maria. O aprendizado que me foi de mais valia entre todos foi o de línguas. Uma língua a mais é mais uma janela aberta para o mundo. Maria abriu – a mim e aos de minha geração – a mais charmosa das janelas. Ao chegar às margens do Sena, tudo me pareceu um déjà vu.

Quando defendia minha tese na Sorbonne Nouvelle, há 34 anos – e parece que foi ontem –não deixei de evocar a mais decisiva de minhas professoras. Que hoje, sempre jovem e lépida, brisa de Paris que se mantém constantesobre as margens do Santa Maria, cumpre gloriosos 80 anos.

É comum, nos dias que correm, reverenciarmos celebridades, que só são célebres porque a mídia decidiu que são. Enquanto isso, nem sempre notamos as pessoas realmente grandes, sempre discretas e geralmente ignoradas, que estão ao nosso lado. Ia, como carinhosamente é chamada, é um destes seres, que enobrecem uma cidade. Dom Pedrito ficará mais pobre no dia em que Ia partir.

Ave, Maria, cheia de jovialidade. Bendita és tu entre os pedritenses e aventurados são os frutos de teu magistério. Nesta data importante para os que contigo aprendemos a perscrutar o mundo, segue um presente do qual sei que vais gostar: o tumor sumiu.

Beijo carinhoso.