¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, maio 18, 2014
 
MAIS FÁCIL MANIPULAR
POVO INCULTO



Me escreve Jorge Lobo:

- Na opinião do articulista não existe nenhum grande escritor brasileiro? Será que se Machado de Assis tivesse nascido na França não seria um dos grandes?”

Quando cito meus autores diletos, meu caro, jamais citei um francês. Não que a França não tenha grandes escritores. Apenas não estão entre os meus preferidos. Estes são russos, suecos, espanhóis, irlandeses, ingleses e argentinos Não preciso sair de minha terra natal para citar uma grande obra. Martín Fierro é o poema que mais leio e releio, cito e recito, e que sempre me acompanhou em viagens mais longas. Hernández é argentino, mas seu poema começou a ser escrito em Santana do Livramento.

- Querido Janer – escreve-me Cris Fontana – se "em um universo em que existem Cervantes, Swift, Dostoievski, Kuprin, Orwell, Koestler, Huxley, Machado faz feia figura." No universo , ou melhor no inferno dantesco dos bestsellers paradidáticos que são enfiados compulsoriamente goela abaixo das crianças, Machado de Assis e José de Alencar são maravilhosos! Não entro nem no mérito do argumento , mas pelo menos tem bom português, boa gramática, linha condutora e estilo.

- Sabe qual é o universo subliterário das crianças e adolescentes de hoje?! É Lygia Bojunga e o horrível Bolsa Amarela. São as famigeradas Ana e Maria Clara Machado com seus enfadonhos Bisa Bia, Bisa Bel e o chatíssimo fantasminha Pluft. Uma lástima chamada Até mais verde, da sofrível escritora Julieta "de" Godoy. Um arrítmico Pedro Bandeira e seus livrecos insossos! Neste universo de escrevinhadores paupérrimos de tudo, mas bons ADA (amigos dos amigos), Machado de Assis é maravilhoso. José de Alencar é fantástico. E sim, pra quem lê um livro em bom português,inglês, alemão ou francês, o "pai dos burros" continua sendo o melhor e inseparável amigo!

Sem dúvida nenhuma, Cris. Jamais afirmei que Machado escreva mal. Apenas o julgo escritor menor e que nada tem a dizer aos leitores de hoje. Muito menos aos de sua época, que já tinham um acervo excelente de boa literatura. Que mania é essa de endeusar a literatura nacional? Cultive-se a grande literatura e o resto que fique na famosa lata de lixo da história. Não que deseje este destino para Machado, mas o fato é que seria autor esquecido não fosse sua literatura imposta nas escolas.

- As crianças de hoje lêem gibi, e olhe lá – continua Cris – . As provas, muitas delas, no primário são de interpretação de FIGURAS e exercício imaginativo, interpretação do texto passa a léguas de distância das carteiras escolares. A tal ponto dos jovens nem saberem o que é e como se faz uma interpretação de texto .É só exercício opinativo e imaginativo, interpretativo de acordo com o texto lido, que é bom, nadica de nada!

Vivo longe do universo das escolas e desconhecia esta barbaridade. Escritores escrevem para serem lidos, não para terem seus textos traduzidos em desenhos. Desenho é uma coisa, atende aos olhos. Palavras é outra completamente distinta. Palavras apelam à imaginação.

Foi em 2006 que o governo federal, por meio do Ministério da Educação (MEC), comprou e distribuiu para a rede pública, pela primeira vez, literatura em quadrinhos. "Com o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), as editoras puderam tirar os quadrinhos do underground e direcioná-los para um público maior", afirmou na ocasião Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM Editora.

Vê-se um esforço deliberado do governo em eliminar o que de bom um dia a escola teve, de nivelar por baixo a educação, em suma, de analfabetizar a juventude atual. Talvez este esforço não seja consciente. Mas instintivamente as autoridades do ensino sentem que povo inculto é povo manipulável.

- O gibi – acrescenta Cris – para as crianças/adolescentes /adultos que já consolidaram o processo de alfabetização, que já sabem ler, não tem problema se for uma leitura esporádica. Mas o que vejo HOJE é gibi como leitura exclusiva para leitores que são leitores de figuras não de textos. E muitos clássicos "gibizados" para facilitar a "leitura" dos inábeis letrados pelo construtivismo. Isso é ruim , mau e apocalíptico!

E analfabetizador, acrescentaria eu. Ilustrações podem facilitar a leitura, mas desestimulam o conceito, o pensamento abstrato. Fui leitor voraz de quadrinhos em minha adolescência. Eram os “livros” aos quais tinha acess. Não sei como, os gibis chegavam até os rincões onde nasci. Quando fui para a cidade, fiz a festa. Nas matinês de sábado, após algum seriado do Capitão Marvel ou de Hopalong Cassidy, havia um farto mercado onde trocávamos revistinhas. Era leitura garantida para a semana toda.

Às vezes, quando encontro alguém de minha idade, fazemos um torneio de erudição. Qual a identidade secreta do Capitão Marvel? Billy Batson, é claro. E a eterna namorada do Mandrake? Narda. E como era mesmo o nome do negrão aquele que parecia ter um caso com o mágico? Lothar. Como se chamava o cavalo do Zorro? Silver.

E o cachorro do Fantasma que Anda? Capeto. Em verdade, não era um cão. Mas um lobo. E sua noiva? Diana Palmer. Foi um dos noivados mais longos da história. Durou 40 anos antes que o Fantasma tomasse uma decisão. Morava na Caverna da Caveira e era imortal, graças a um truque: a cada geração, o filho retomava a identidade do pai. tom de respeito e seguindo uma longa tradição, a Caverna da Caveira conta com uma cripta, na qual estão os 20 antepassados da linhagem, aos quais ele apresenta sua esposa e, posteriormente, seus filhos. Sua marca registrada era o anel da caveira, que deixava sua impressão no rosto dos bandidos que derrotava.

Mas há obviamente tempo de ler quadrinhos e ler bom livros. Adulto, curti duas revistinhas – e ainda curto – as de Mafalda e as de Asterix. Mas aí não é mais quadrinho e sim boa literatura.

Em suma, Cris, a situação está osca, como dizíamos lá no campo. Conheço não poucas pessoas adultas – e ocupando cargos importantes na administração - que não conseguem ler um texto do tamanho desta crônica. Ler para quê, se um analfabeto conseguiu eleger-se presidente? Quando fatos como este demonstram que leitura não é necessária para o que se chama de sucesso, o caminho está amplamente aberto para o analfabetismo funcional.

Mas não desespere, Cris. A filha de uma sobrinha minha, com quatro anos, está aprendendo inglês e mandarim. E não é só ela. Aqui em São Paulo há muitas crianças aprendendo mais duas línguas além do português. O esquecido Nestor de Hollanda, em A Ignorância ao Alcance de Todos, dizia que as hostes dos alfabetizados avançavam, já havia até mesmo alguns infiltrados no Exército. Ainda há um núcleo diminuto – diminuto mas teimoso – que insiste, contra ventos e marés, em alfabetizar-se.