¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, junho 21, 2014
 
A COPA E A AMEAÇA ARGENTINA


Charles Pilger, gaúcho, escreve no FB:

“O que mais me entristece nessa história das gurias fazendo a festa com os turistas que aparecem na cidade é o fato de que parece que não houve uma revolução sexual a 50 anos atrás. Oi? Como assim só homem pode se divertir? Como assim a garota que pega um belo holandês é vadia e o cara que pega uma australiana é garanhão? Sério que isso ainda existe?”

Existiu, existe e sempre vai existir, Pilger. Enquanto o macho domina, só o macho tem direito à uma vida sexual livre. Se a mulher ousa tomar a mesma atitude, é puta e mais não se discute. Verdade que os tempos mudaram, e hoje, apesar de ser considerada puta, a mulher é aceita com suas putices e tudo em todos os meios sociais. Mas sempre fica a pecha. O gaúcho sempre vai preferir, para mulher de seus filhos, uma mulher casta e fiel. Se quer um sexo mais divertido, procura as putas.

Verdade que hoje não mais se exigem virgens no casamento. Mas como seria bom... Mas, uma vez casada, a mulher que se comporte. Isso de vida sexual farta continua sendo privilégio do marido.

Enquanto isso, pelo menos às solteiras é permissível a vida folgada. Nem poderia ser diferente. Depois dos anos 60, ficou difícil de controlar a vida sexual das moças.

A pílula libertou as mulheres do maior receio, a gravidez acidental. Antes disso, os prédios e os automóveis haviam dado sua contribuição à libertação sexual. Se em uma cidade pequena se podia controlar a vida das aldeãs, o mesmo não era possível numa cidade com prédios de dezenas de apartamentos e carros. A mulher entrava num carro e ninguém ficava sabendo para onde ia. Entrava num prédio e ninguém sabia quem ia visitar.

Vivi a Porto Alegre dos 70. Fui gravateado em bares e arrastado para a cama. Na rua ou no elevador, bastava um olhar mais eloqüente e dispensava-se quaisquer palavras. A Aids pode ter sido uma ducha de água fria para os mais entusiastas, mas foi algo contornável. Exorcizado o mal, logo se voltou ao bom esporte.

“E o que temos com essa história? – pergunta-se Pilger. “Mais uma prova do quão provinciana a mui leal e valorosa cidade de Porto Alegre é. O que os homens da cidade não estão entendendo é que com a Copa a cidade está passando dias de Rio de Janeiro, onde as mulheres podem ser sexualmente livres e não tem que aguentar fofoquinha e dedos apontados no dia seguinte...”

Os tempos podem ter mudado, Pilger. Mas o resíduo de machismo permanece. Até mesmo quando a mulher traz o de comer para casa. E não é só gaúcho. Isso de marido matando mulher, namorado matando namorada, se repete no país todo. Só nos últimos dias, ocorreram três ou mais casos. É a falência do macho, que eu comentava já nos anos 70. (Segue a crônica abaixo).

Quanto às gaúchas... sempre é bom trocar de cardápio. Naqueles mesmos anos 70, escrevi crônica na Folha que teve repercussão enorme e inesperada. Lembrei de duas ou três amigas que costumavam ir ao Rio em férias e voltavam sideradas. Eu estava sem assunto e generalizei. Escrevi crônica intitulada “As gaúchas e o Rio”.

O gaúcho nada entendia de mulher. Quem entendia era o carioca. O gaúcho era um bruto. O carioca, um princípe. O gaúcho era possessivo. O carioca, um liberal. O que as gauchinhas não se davam conta era que os amores de verão duravam o que duram as rosas. Não havia tempo para entediar-se, nem sequer para conflitos. Voltavam apenas com boas lembranças, já que as más nem tiveram tempo de ocorrer.

Aproveitei ainda para publicar pesquisa feita entre as cariocas que diziam que o carioca... era um bruto. Claro, as moças tinham de agüentar os conterrâneos o ano todo. As gaúchas, só o verão.

Pra quê, meu Deus! A redação foi inundada de telefonemas, de moças alegando que não era por isso que elas iam ao Rio. Ora, no “isso” eu nem havia falado. Sem sequer imaginar no formigueiro que havia mexido, descobri um fluxo subterrâneo no Portinho. Hoje, não é preciso mais ir ao Rio. Em Porto Alegre mesmo se pode aplacar os ardores. Continua Pilger:

“E é aquilo: se queriam mulherada vindo para a cidade que apoiassem outro evento, não uma Copa do Mundo! Chamam um bando de macho e depois reclamam? Oras!”

Mas talvez não seja bem isso, Pilger. E sim a proximidade do jogo da Argentina no Beira-Rio. Os porto-alegrenses nunca olharam com bons olhos nuestros vecinos. Perder uma percanta para um hincha de allá deve doer mais que perder a Copa.


FALÊNCIA DO MACHO *

Descobriu tudo e deu três tiros na mulher. Para bom entendedor, a manchete já disse tudo, nem é preciso ler a notícia. O crime ocorreu sexta-feira passada, na esquina da Sete de Setembro com a João Manoel. Entrei num edifício do centro, o porteiro comentava:
- Nesses casos, a culpa é sempre da mulher. O homem sempre tem razão.

A meu lado, estava o homicida potencial.

Em minha pasta de recortes, as notícias sobre maridos que matam mulheres já estão ocupando um espaço excessivo. Ora o marido mata a mulher que o traiu, ora mata o amante da mulher, quando não mata os dois. O fato comporta algumas variantes. Mas a decisão do júri é uma só: absolvição. Defesa da honra, pretextam. Mas que honra é essa que exige sangue para ser lavada?

Vejo algo de mais profundo e sintomático nessa atitude do marido e do júri. Não creio se trate apenas de defesa da honra. Mas sim medo do homem de nossa época ante a nova mulher que surge.

Houve um momento na História em que o Estado encarregava-se de vingar os brios do macho insultado. Antes do surgimento da roda e da máquina, era senhor quem tinha maior força física, ou seja, o homem. O homem erigiu o Estado e as leis eram um reflexo de sua vontade absoluta. A mulher era sua propriedade, o adultério era antes de mais nada um roubo. O Estado punia esse roubo. Jogava os adúlteros na fogueira. Ou pendurava-os no patíbulo.

Os tempos mudaram. Hoje, força física não alimenta ninguém, exceto ídolos do futebol ou campeões olímpicos. A máquina permite que uma mulher execute o mesmo trabalho de um homem. Não está mais em jogo sua força física, mas sua capacidade mental. Mesmo ainda inferiorizada, a mulher pode hoje prover o seu sustento, decidir, comandar.

Em outras palavras, equipara-se ao homem. Se nos primórdios da humanidade a subsistência dependia de músculos rijos, manejo do tacape ou machado, argúcia na caça, hoje subsistência depende de conhecimento, técnica, cultura. Sabemos como vive – ou melhor, sobrevive – quem só dispõe de força física para o trabalho.

A fêmea do homem evoluiu. O macho continua o mesmo.

Posso ser dono de um livro, de um par de sapatos, de um carro. São coisas, objetos. Eu os possuo e deles disponho como bem entender. Mas não posso ser dono de uma mulher, de um outro ser humano com vontade própria. Se minha mulher me troca por um outro homem, creio existirem apenas duas atitudes a tomar.

Uma, seria cumprimentar minha mulher, caso tenha encontrado um homem melhor dotado e com mais capacidade de oferecer-lhe amor e compreensão. (Pois é bem possível que eu não seja o mais perfeito e amoroso dos homens, não é verdade?) A outra atitude seria dar-lhe pêsames, por ter-me trocado por um homem inferior e incapaz de oferecer-lhe amor. (Pois é bem possível que eu não seja o mais imperfeito e egoísta dos homens, não é verdade?)

Mas o macho contemporâneo não renunciou à sua condição de senhor. Vê na mulher uma escrava, uma coisa de sua propriedade. Sente-se roubado? Mata. Os jurados o inocentam, numa espécie de alerta: “Cuidado, querida. Se me traíres, te mato. E meus colegas me absolverão”. Chamam a isto defesa da honra.

Os tempos mudaram. A mulher se transformou. O homem continua o mesmo. Ao sentir-se traído, só conhece uma forma de diálogo: reage à bala. Isto é, o macho está falido.

*Porto Alegre, Folha da Manhã, 03/11/1975