¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 30, 2014
 
AOS NOVOS INQUISIDORES *


Cristo decide voltar à terra, mostrar-se a seu povo sofredor e miserável e para isso escolhe Sevilha, em pleno século XVI, quando mais intensamente crepitavam as fogueiras acendidas ad majorem Dei gloriam. No dia anterior, o cardeal Grande Inquisidor havia feito queimar uma centena de hereges. Cristo surge discretamente, sem se fazer notar, mas todos o reconhecem. Ressuscita uma menina e o cardeal manda prendê-lo nos porões do Santo Ofício. À noite, vai visitá-lo.

— És Tu? Tu?

Face ao silêncio do Cristo, ajunta:

— Não diz nada, cala a boca. Por que vieste nos atrapalhar?

Assim vê Dostoievski o Cristo. No livro V de Os Irmãos Karamazov, o genial e histérico místico russo, católico ortodoxo e sempre hostil à igreja de Roma, desenvolve o eterno paradoxo do cristianismo, a oposição entre um Cristo humilde e pobre e uma igreja rica e arrogante. O Grande Inquisidor, considerando os homens excessivamente débeis e mesquinhos para viver segundo os mandamentos de Jesus, decidira corrigir sua obra: a fé na liberdade e no amor é substituída pelo poder, pelo milagre e pela autoridade.

— Não há nada mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio — acusa o cardeal — mas também nada mais doloroso. Tu ampliaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e assim impuseste para sempre ao ser moral os tormentos desta liberdade.

O inquisidor vai longe em seus considerandos e Dostoievski é à prova de síntese. Transcrevo apenas as palavras finais do cardeal:

— Amanhã, a um sinal meu, tu verás essa tropa dócil trazer carvões ardentes para a fogueira onde subirás, por ter vindo atrapalhar nossa obra. Pois se alguém mereceu mais que todos a fogueira, foste tu. Amanhã, eu te queimarei. Dixi.

Voltarei em breve, diz Cristo ao final do Apocalipse. Se ainda não voltou, totalitário e triunfante como o quer João, tem seguidamente reaparecido nas artes e particularmente na literatura, sempre provocando em crentes e sacerdotes a mesma inquietação manifestada pelo Inquisidor: por que vieste nos atrapalhar?

E sempre que volta, atrapalha. Perturba até mesmo a vida dos que mais o veneram. Nietzsche, por exemplo, não saiu ileso de seu corpo-a-corpo com ele: em seus dias de insânia, assinava-se “O Anticristo”. Ernest Renan, outra das maiores sensibilidades do mesmo século de Nietzsche, tampouco escapou a seu charme.

Vida de Jesus, qualificado como um dos grandes acontecimentos do século passado, é um poema em torno ao Cristo, travestido em ensaio histórico. Para escrevê-lo, Renan preparou-se estudando línguas semíticas e refazendo o percurso do biografado na Galiléia e Palestina. Em 1862, ao assumir uma cátedra no Collège de France, teve de interromper seu curso por ordem do governo: em sua primeira aula, ousara falar de Jesus como “um homem incomparável”.

Giovanni Papini, outro apaixonado pelo nazareno, escreveu uma História de Cristo e nem por isso escapou ao Index Prohibitorum. E hoje em dia, tanto Dostoievski como Nietzsche, tanto Renan como Papini, são anatematizados pelos inquisidores, grandes ou pequenos, de qualquer igreja. Qualquer dia destes, até Hegel cai em desgraça, pois na juventude escreveu — o que muito marxista ignora — uma Vida de Jesus, onde o sentido espiritual da revelação cristã e mesmo o drama da vida, morte e ressurreição do cristo estão explicados através da doutrina ético-religiosa de Kant.

Martin Scorsese, cineasta americano, está sendo vítima de insultos e interdições no mundo todo, por ter levado às telas o romance A Tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis. Curiosamente, o livro foi recentemente traduzido ao brasileiro, está em todas as livrarias e, pelo que me consta, os novos inquisidores, cientes de que seus seguidores são mais ou menos analfabetos, pouco estão ligando para a difusão literária da obra. Cinema já é mais perigoso, pode gerar idéias no mais inculto dos espectadores. Perigoso a tal ponto que um distribuidor catarinense, em crise de atroz provincianismo, proibiu o filme em suas salas. Freira de dia, puta à noite, tudo bem, tais obras-primas parecem não ofender credo algum. Já uma madura reflexão, oriunda sensibilidade de um criador fascinado pelo Cristo, esta merece a fogueira.

Pois uma grande injustiça está sendo cometida em relação à Kazantzakis e sua obra. Para começar, duvido que a literatura deste século tenha produzido autor tão febrilmente religioso como este cretense, que já conhecíamos através de Zorba, o Grego. Ou será ateu e herege quem escreveu “Três espécies de alma, três preces”?

a Eu sou um arco em tuas mãos, Senhor; tende-me, senão apodreço.

b Não me tende muito, Senhor; eu quebrarei.

c Tende-me quanto quiseres, Senhor, e tanto pior se eu quebrar.


Poeta, tradutor, místico e viajante, Kazantzakis percorreu o mundo em busca de fé e encontrou nessas andanças quatro degraus decisivos para sua ascensão: Cristo, Buda, Lênin e Ulisses. Como funcionário do Ministério de Assuntos Sociais de seu país, salvou da fome, na Rússia, 150 mil gregos expulsos da Ásia Menor, no final da II Guerra. Os cardeais e inquisidores menores que têm condenado o filme de Scorsese certamente não ignoram tais fatos e, caso os ignorem, deveriam procurar conhecê-los antes de abrir a boca para dizer bobagens.

Mas o fascínio de Kazantzakis pelo Cristo não se esgota em A Última Tentação. Em Cristo de Novo Crucificado, um dos momentos culminantes da novelística contemporânea — também já traduzido e disponível em qualquer livraria — o cretense volta à carga e desta vez com artilharia de grosso calibre. A ação se desenrola em Licovrisi, aldeia grega encravada em território turco. Seus habitantes seguem a religião grega ortodoxa e têm por hábito, a cada sete anos, representar o drama da paixão. Os atores são escolhidos e cabe a um pastor de olhos azuis e barba curta e loura, Manolios, representar o Cristo. A partir da escolha, os atores devem imbuir-se de seus papéis, procurando identificar-se, na vida cotidiana, com os personagens interpretados.

É quando acontece o imprevisível: um grupo de gregos, perseguidos pelos turcos, pede abrigo em Licovrisi. Os aldeões, liderados pelo pope Grigoris, o organizador da Paixão, recusam-se a recebê-los. O final, este sim, é previsível. Manolios e seus companheiros, os que deviam representar os apóstolos, imbuídos do espírito evangélico, advogam pelos gregos. A paixão se consuma, só que desta vez não é teatro. Manolios é assassinado na igreja, por instigação do pope, pelo aldeão que fazia o papel de Judas.

Estamos em pleno Dostoievski, novamente. Os que se dizem seguidores do Cristo não hesitam em crucificá-lo quando volta. Não terá sido por acaso que, ao perguntar a um sacerdote grego o que pensava de seu conterrâneo de Creta, obtive resposta curta e grossa: “louco, doido varrido”.

Quanto a mim, se por um lado abomino a santa ira dos moralistas de cueca que hostilizam o filme de Scorsese, por outro não partilho do enamoramento de Renan ou Kazantzakis. Vejo o Cristo como um iluminado, como tantos outros que brotavam às margens do Jordão como cogumelos após a chuva. Sua doutrina, é verdade, rejeita o ódio imanente ao Antigo Testamento, mas pouco ou nada tem de original. Para o leitor atento, os evangelhos já estão todos embutidos nos textos judaicos. E como homem — já que só assim posso vê-lo — Cristo desaparece se comparado, por exemplo, a um Sócrates, Platão, Aristóteles ou Alexandre.

Há um certo zelotismo, diga-se de passagem, na impermeabilidade de Cristo à cultura grega e em seu recurso exclusivo à cultura judia. Paulo, que desde menino falava grego, a língua comum de Tarso, é quem efetivamente inventa o cristianismo a partir de fontes helênicas, mesclando conceitos do gnosticismo e das religiões de mistério, particularmente do culto de Átis.

Sócrates, por exemplo. Guerreiro e pensador, ousou contestar os deuses de Atenas e, uma vez condenado à morte, acusado de introduzir novas divindades e corromper a juventude, não pediu a seus juizes clemência, como era praxe pedir. Nem quis fugir, como poderias ter feito. No momento de contrapor à pena imposta pelos juizes a pena que julgava merecer, Sócrates ri dos que o condenam ao declarar que merecia não uma punição, mas um prêmio, por seus serviços prestados à Atenas. Morreu por não querer humilhar-se e bebeu serenamente a cicuta, rodeado de amigos e discípulos. Quando vemos um Cristo lamuriento, balbuciando Eli, Eli, lama sabachtani?, aceitando sem revolta alguma a crucificação, salta-nos aos olhos a superior fibra moral do ateniense.

Ou um Alexandre, que desbravou a pata de cavalo e a ponta de espada a Ásia Menor, fundando cidades por onde passava e criando a primeira universidade da História, a Biblioteca de Alexandria, isso três séculos antes de Cristo. Rei, ao entrar em combate ia sempre à frente de seus comandados. Quase perdeu a vida quando, impaciente ante o vagar com que seus homens tomavam uma fortaleza, apanhou uma escada e nela penetrou sozinho, para perplexidade dos inimigos, que não sabiam se enfrentavam um louco ou um deus. Quando os sacerdotes do Sinédrio perguntam a Cristo se é lícito ou não pagar tributos a César, Cristo tenta fugir: “Daí, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Mas tarde piou.

Decididamente, se busco homens a cultuar, antes e depois de Cristo, a história nos oferece centenas de nomes ornados pela decisão, coragem e feitos e não pela indefinição, covardia e palavras dúbias. As visões de Dostoievski, Renan ou Kazantzakis, ainda que respeitáveis, a meu ver são românticas. Apenas acho que os novos inquisidores, que se presumem defensores da civilização cristã, deveriam examinar carinhosamente — e não condenar sem ler — as obras destes escritores fascinados pelo Cristo.

* Joinville, A Notícia, 18.12.88