¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, junho 24, 2014
 
LA MÉTHODE CRISTALDESQUE *


Dia 26 de março de 1981 foi o último dia em que usei gravata em minha vida. Há 27 anos, portanto. Já não a usava há muito, tanto que já nem lembrava como se dá um nó. Usei-a porque iria defender uma tese na Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III) e meu orientador julgou conveniente que eu fosse de gravata. Então tá! Mas o problema não foi a gravata. E sim o tal de método.

Não usei teoria alguma para fundamentar minha tese. Apenas raciocinei, livre pensei, como quiserem. Um de meus inquisidores era Madame Brahimi, especialista em literatura do Maghreb. O que ela estava fazendo lá, não sei. A tese era sobre as literaturas Ernesto Sábato e Albert Camus e alguém entendeu que Camus, por ser argeliano, era um autor magrebino. Ora, pode ser que Camus tenha nascido em Mondovi, na Argélia. Mas sua literatura nada tem a ver com a Argélia. É, antes de tudo, um escritor francês.

Falava do método. Lá pelas tantas, Me. Brahimi encrencou: “Je n’ai jamais vu ça! Oú est la méthode?” (Jamais vi algo assim. Onde está o método?) E quando um burocrata francês diz “je n’ai jamais vu ça!”, saia da frente. Ele está querendo dizer que a coisa vista não existe.

- Ma méthode c’est la cristaldesque! – respondi, arriscando jogar fora, com aquela resposta, quatro anos de pesquisa. Meu método é o cristaldesco. Não vim aqui para analisar a obra de dois autores pedindo emprestado o cérebro de um terceiro. Estou usando o meu mesmo. Milagrosamente, minha tese passou. Acho que um pouco devido à platéia. Havia entre cinqüenta e sessenta meninas na salle Bourjac, na velha Sorbonne, e um só rapaz. Seria uma ofensa a tão seleto público reprovar-me. Minha Baixinha, que viera do Brasil para assistir a defesa, estava perplexa. Nossa! Como conseguiste isto? Sei lá! Conversei, namorei, amei. Consegui.

Desconheço algo mais precário, no mundo acadêmico, que o tal de método. Método significa o seguinte: você usa o pensamento de um teórico qualquer, de preferência alemão ou francês – paraguaio ou boliviano não vale, é claro! – para embasar suas reflexões. Ou seja: você não pode pensar. Quem pensa é o teórico. Que isso tenha importância na área científica, entendo. Só não sei quem importou o tal de método para a área das ditas ciências humanas. Método é um freio ao livre pensar. Você quer um galão que o habilite ao ensino universitário? Então renuncie a seu próprio pensamento e pense como nós, da Academia, pensamos. Você não está aqui para ser original. Pense como pensamos todos.

Escreveu Lígia Chiappini Moraes Leite – por sinal minha conterrânea e hoje professora na Freie Universität de Berlim – em A Invasão da Catedral: “É por isso que os seminários da pós-graduação continuam a ser, na sua maior parte, aulas ou conferências dadas pelo professor ou por um aluno, e as teses, exercícios escolares sem grandes audácias, onde a invenção é mal vista e a submissão aos métodos do orientador, predominante. O que interessa não é entrar na aventura da pesquisa, mas seguir a trilha bem comportada e segura que levará aos títulos”.

Conversando com a Lígia, disse-me ela um dia: “Não existe legislação alguma que obrigue um doutorando a utilizar teorias em sua pesquisa”. Ora, numa instituição esclerosada como a universidade, isto soa como heresia. Na Idade Média, seria fogueira na hora.

No entanto, algo parece estar mudando nos dias que correm. Leio no Estadão de hoje:

Universidades aceitam dissertações e teses fora do formato convencional

Desafiando a tradição de formatos e metodologias quase sagradas e abençoadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), universidades brasileiras têm aceitado dissertações de mestrado e teses de doutorado na forma de romances, ensaios autobiográficos, roteiros e textos experimentais que resvalam na ficção e na criação literária. A repercussão aparece em extremos: há os entusiastas da flexibilização e os que defendem como imprescindível a manutenção dos moldes acadêmicos tradicionais.

Bom... nem tanto ao mar nem tanto à terra. Um romance pode exigir muita pesquisa. Como jurado de uma banca, eu não teria problema algum de consciência a conferir grau de doutor a Dostoievski, caso me apresentasse como tese Os Irmãos Karamazov. Ou a Swift, se me propusesse As Viagens de Gulliver. Ou a Orwell, se brandisse 1984. Daí a aceitar os desvarios de uma Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Telles vai uma longa distância.

Tese, a meu ver, é um ensaio em que se discute uma determinada visão de mundo. Esta visão de mundo existe nas obras de Dostoievski, Swift ou Orwell. Mas não necessariamente na obra de escritores medíocres que tiram seu sustento da contemplação do próprio umbigo. É possível discutir, comentar, contestar, a obra dos autores que citei. São autores que afirmam algo. Suas ficções são, no fundo, ensaios sobre a condição humana. Já não é possível contestar a obra de quem não afirma coisa alguma.

Enfim, a universidade parece estar se abrindo à sensatez. Talvez um dia aceite la méthode cristaldesque. Desde que não confira o título de doutor ao Paulo Coelho ou à Bruna Surfistinha, vá lá! O que não me surpreenderia, conhecendo os bois com que lavro.

* 20/12/2008