¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 23, 2014
 
REALEZA BRITÂNICA
HONRA CRACKGARTEN



Em 2011, a Prefeitura de São Paulo queria retirar das ruas, à força se fosse preciso, usuários de drogas que recusassem tratamento. A administração buscava uma alternativa jurídica para isso. Segundo o então prefeito, Gilberto Kassab, a idéia era dar mais liberdade para as equipes de saúde e de assistência social da prefeitura poderem atuar com usuários de drogas. O alvo principal seria a Cracolândia.

Paguei para ver. A Cracolândia já existia há mais de duas décadas e só em 2011 um administrador pensou em tratar do assunto. Antes tarde do que nunca, direis. Mas não vejo como reprimir o consumo da droga em Santa Ifigênia enquanto se libera a marcha da maconha na avenida Paulista. A propósito, os marchadores da maconha parecem pretender estabelecer uma hierarquia entre maconheiros e fumadores de crack. Os maconheiros seriam seres moralmente superiores à turma do crack e não gostam de ser confundidos com estes.

Em dezembro do ano passado, os moradores do bairro organizaram um abaixo-assinado que foi encaminhado aos órgãos públicos, pedindo a remoção dos “usuários” da região. Agora vai! – me escreveu um entusiasmado leitor, otimista incorrigível. Não vai nada, respondi. Desde que o uso da droga foi liberado no Brasil, e depois que os igrejeiros elevaram à condição de direito inalienável do homem o direito de morar na rua, a Cracolândia tem vida eterna assegurada.

A Cracolândia veio para ficar, escrevi no início deste ano. Os incomodados que se retirem. Mesmo que paguem IPTU para residir. Para confirmar-me, no mesmo mês de janeiro, o atual prefeito, Fernando Haddad, ofereceu habitação, alimentação, emprego e assistência médica para moradores da Cracolândia. O emprego consiste no pagamento de 15 reais para cada quatro horas de varrição de ruas.

Novos “usuários” acorreram ao bairro para conseguir uns trocados para comprar as pedras, cujo preço subiu em flecha. A prefeitura conseguiu inflacionar o mercado. Não bastasse isso, no mês passado, para incentivar o uso tranquilo da droga, o prefeito criou cercadinhos nas ruas para consumir o crack sem maiores incomodações. À semelhança das Biergarten da Alemanha, Haddad inovou. Temos agora os crackgarten paulistanos.

Isto vai atrair turismo, comentei na ocasião. Cala-te, boca. A saison vai ser inaugurada pela realeza britânica. O primeiro visitante ilustre é nada mais nada menos que o príncipe Harry, que desfilará sua majestade no pedaço na próxima quinta-feira.

Leio nos jornais que Harry demonstrou interesse em saber como uma cidade grande como São Paulo, maior ainda do que Londres, está lidando com um problema tão grave como o vício em drogas. Foi o próprio príncipe que pediu para conhecer o local.

Na visita, cujo horário está sendo mantido em segredo por questões de segurança, Harry deve visitar a sede do programa, onde viciados (perdão, usuários) em crack recebem orientações, e conversar com seus freqüentadores.

No Discurso da Desigualdade, disse Rousseau, o pai dos utopistas desvairados dos dias de hoje: "O primeiro homem que cercou um pedaço de terra e disse que era sua propriedade e encontrou pessoas que acreditaram nele foi o fundador da sociedade civil. Daí vieram muitos crimes, muitas guerras, horrores e assassinatos que poderiam ter sido evitados se alguém tivesse arrancado as cercas e alertado para que ninguém aceitasse este impostor. Não podemos esquecer que os frutos da terra pertencem a todos nós e a terra a ninguém".

Morto em 1778, em Ermenoville (França), o filósofo suíço adoraria ver, mais de dois séculos depois, sua utopia implantada pelo PT em São Paulo. Parafraseando Rousseau: não podemos esquecer que as ruas pertencem a todos nós e a cidade também. Nóia finalmente adquire cidadania.

Europeu adora pobreza. Longe da Europa, é claro. O príncipe, que certamente jamais pôs seus reais sapatos nos bairros degradados de Londres, privilegia a Cracolândia em sua segunda visita ao Brasil. Para o turista médio europeu, uma visita à favela é programa quase obrigatório em um tour pelo Brasil. A impressão que me fica, é que adoram ver aquilo de que escaparam. De minha parte, só fiz esse turismo uma vez em minha vida, a visita de um terreiro de macumba no Belfort Roxo, no Rio... a convite de um diplomata francês.

Com a visita real, novos turistas certamente virão ver este notável achado de Haddad. Com jeito, se arrumam algumas mesinhas na calçada para tomar uma ceva, contemplando a miséria in loco e confortavelmente.

E ainda há quem lute pela liberação da droga no Brasil!