¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 27, 2003
 
VAI!



Viagens. Minha primeira foi de bicicleta, 60 quilômetros de areia e barro, de Upamaruty, distrito rural de Livramento, a Dom Pedrito. Certamente foi a mais significativa. Eu teria dez anos e não conhecia cidade. Em meu imaginário, fruto talvez de contos de fadas, as cidades seriam douradas e brilhantes. Pedalando, avancei pela estrada real e, por mais que aguçasse a vista, não conseguia ver nada de dourado nem brilhante. Fui penetrando aos poucos por seus arrabaldes poeirentos, entrei pelas ruas de paralelepípedos e só apoiei o pé no chão frente a igrejinha da praça. Então aquilo era cidade? Fosse como fosse, seria minha nova geografia. Meu universo rural já pertencia ao passado.

A segunda mais significativa foi de navio, no finado Eugenio C. Estava abandonando o Brasil e não fazia parte de meus projetos voltar. No salão Opala, encontrei uma francesa que voltava da Amazônia, fascinada. C'est magnifique, me repetia com olhar sonhador. Eu não conseguia entendê-la. Mas na Amazônia só há árvores, índios e bichos - objetei. C'est ça! - me respondeu. Ela, oriunda de um mundo milenar e cosmopolita, queria ver o que ficara à margem da civilização. Eu, que nascera naquelas margens, queria a civilização propriamente dita.

Brasileiro, de índios só quero distância. Com eles nada tenho a ganhar, culturalmente. Que antropólogos os adorem, entendo. Índio, hoje, é o ganha-pão da antropologia. A francesa, européia e cosmopolita, queria ver atraso e primitivismo. Eu, vizinho do atraso e primitivismo, queria ver o presente e o futuro.

Fui, vi e voltei. Como Chesterton, considero ser impossível conhecer uma catedral olhando-a apenas por dentro. Se você quiser conhecer seu país, saia logo de seu país. O homem só conhece comparando. Nutro profunda lástima por essa espécie de patriotas, que louva o Brasil sem jamais dele ter saído. Hoje, um de meus prazeres diletos é incitar amigos ao viajar e já consegui convencer alguns a fazer malas e enfrentar oceanos. Mas atenção. Há viajar e viajar. Excursão não é viagem. É uma bolha de seu próprio país que o envolve, e dela você não sai. (Há exceções, é claro. Você não pretenderá, por exemplo, enfrentar a China ou o Sahara sozinho). Viajar é largar-se na aventura, buscar geografias distantes, tentar entender e fazer-se entender em línguas esdrúxulas, perder-se por ruelas e tentar encontrar-se por mapa. Por tais razões, não vejo sentido algum em viajar por país em que todos falam nossa mesma língua, assistem à mesma novela nos mesmos horários e bebem as mesmas bebidas e comem as mesmas comidas que se bebem e comem em sua geografia nativa. Isto é: viajar pelo Brasil não é viajar. É mesmice. Claro que o Rio merece uma visita. Mas você não estará viajando. Apenas foi do quarto para a sala do mesmo apartamento.

Viajar, hoje, não mais é privilégio de milionários. Por pouco mais que o preço de um televisor de 29 polegadas você já está na Europa. Pelo preço de um carro de porte médio, você passa um mês na Espanha, Itália ou França. Uma casa na praia rende mais de uma volta ao mundo. Não estamos mais na época em que só os barões do café podiam permitir-se o estrangeiro. Nos anos 70, milhares de jovens sem maiores posses fizeram a Europa, eu entre eles. Muitos embarcaram literalmente sem nenhum vintém. Para pagar a passagem, trabalhavam em navios. Chegando lá, sempre havia algum restaurante onde se podia lavar pratos. Nem todos se deram bem e suicídios não faltaram. Mas coragem sobrava. Esta tradição de viajar sem um vintém é antiga e por ela optaram nomes ilustres, como Henry Miller e George Orwell. A luta de Miller para matar a fome de todos os dias está em seus Trópicos. A odisséia de Orwell está em Down and Out in Paris and London.

Mas se você acha melhor aplastar-se diante de uma televisão, tudo bem: fique em casa a ver novelas na telinha. Se preferir comprar um monte de lata para arriscar a vida nas estradas ou assaltos nas ruas, melhor ficar por aqui e irritar-se com o tráfego, com assaltantes e com as multas. Você pode também preferir uma casa para usar um mês ou dois durante o ano e renunciar ao vasto mundo. Falo de pessoas que apertam seu orçamento para conquistar estes mesquinhos sinais de status, mesquinhos mas indispensáveis à auto-estima de quem não tem personalidade. Quem tem tudo isto e folga econômica para viajar - e não são poucos - está excluído desta reflexão.

Bem entendido, nunca tive carro nem casa na praia. A cada vez que pensava em carro, juntava meus trocados e atravessava o oceano. Com um carro não se vai longe. A pé, o mundo não tem fronteiras. Usufrui também de bolsas e viagens patrocinadas por consulados. Bolsa também exige fazer opções. Ou você fica, segurando seu lugar no mercado. Ou parte, sem saber onde cair na volta. Quando voltar, seus colegas e amigos estarão empoleirados em altos cargos e dificilmente lhe darão colher de chá. Quem o mandou gozar o mundo enquanto eles mourejavam? Ocorre que o mundo é grande e a vida é breve. Além disso, não tem estepe.

Em meu dia-a-dia paulistano, tenho encontros esporádicos com pessoas de alto poder aquisitivo, para quem viajar é, no máximo, ir a praias no Nordeste. Constituem aquele tipo padrão que considera o Brasil o melhor país, sem nada conhecerem do mundo. Alguns, mais audazes, já foram a Cancun ou Orlando. Isto é, a locais exclusivamente turísticos, onde não existe o que se poderia chamar de nacional.

Se você é jovem, parta logo, antes que o mercado o escravize. Se é adulto, aproveite sua maturidade e vigor para explorar o planetinha. Está aposentado e se aproximando da velhice? Vá logo, antes que seja tarde. Kafka tem um apólogo, onde fala de casas onde se pode entrar a qualquer hora, encontrar ou não encontrar pessoas, ficar ou sair quando bem entender. Essas casas existem mundo afora. Nelas, milhares de pessoas o esperam, de bandeja na mão, prontas a recebê-lo com carinho e prestimosidade.

Ergue o traseiro desse sofá, leitor. Dá férias a teu medo do desconhecido. Esquece essa luta inglória por sempre mais dinheiro. E vai.

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quinta-feira, outubro 23, 2003
 
IN MEMORIAM


Clotilde


Lembras, Clotilde, daquele guri boca suja e sem respeito que fugia para o chircal quando chegavam visitas? E que só voltava do mato para exibir aos visitantes - especialmente se eram moças - seu vasto repertório de nomes feios? Eu já não lembro muito dele. Entre aquela época e hoje se passaram mais de trinta anos, que dão a impressão de trezentos. Mas sei que lembras dele melhor do que eu.

Me dá teu braço. Vamos passear pelos campos de Ponche Verde e Upamaruty. Rever a sanga onde pesquei minhas primeiras joaninhas. Os mundéus para onde mangueei perdizes. A sombra da parreira onde me ensinaste as primeiras letras. A cacimba em que me debrucei para beber a água gelada do manancial. Vamos passear em silêncio, não sou de muito falar. Sabes que no campo não se admite intimidades entre pais e filhos. Se hoje tenho a coragem de te falar, decerto é porque estou longe.

Olhando paras trás, tudo me parece sonho. Lembras de quando escarafunchavas meus pés arrancando rosetas e espinhos de tala e coronilha? Sinto saudades daqueles espinhos. Aquele cascão grosso que protegia meus pés é hoje uma pele fina, sensível até mesmo a grãos de areia. Forçado pelas convenções, ao pôr sapatos me sinto um pouco como cavalo ferrado. Mas a cidade assim o exige.

Me passa um mate. Vamos sentar na frente da Casa, ao lado da pedra onde Canário afiava facas e tesouras. Enquanto o sol vai caindo e as sombras avançam, como fantasmas tristes coxilha arriba, vamos corujar a primeira estrela, ouvir a canção dos grilos, ver as ovelhas se aprochegando em fila para o abrigo de uma canhada.

Não sei se imaginaste alguma vez as andanças futuras daquele guri xucro. Eu jamais imaginaria. Se, naquela época, me dissessem que há um país onde o sol não se põe, eu insultaria o mentiroso. E não é que um dia fui parar lá? E à meia-noite o sol ameaçava esconder-se, mas era só ameaça, continuava rodando quase paralelo ao horizonte.

Lembro de ti muitas vezes atrelando o tordilho à aranha. Li há algumas semanas, num jornal, a queixa de umas professoras rurais que tinham de ir à escola a cavalo. Gente boba, não é? Durante trinta anos, alfabetizaste duas gerações, graças ao tordilho. E nunca ouvi de ti queixa alguma.

Devo ter sido bom aluno, não é verdade? Uma das coisas que lembro muito foi daquele quinto ano primário. Tirei o primeiro lugar da aula. Foi barbada. Pra começar, só tinha dois alunos, eu e a Chica. Como viriam fiscais da cidade para os exames, e a turma não estava bem preparada, as professoras nos deram a prova num domingo, para decorar em casa. Não sou ruim de memória, respondi tudo em dois minutos.

Lembras da professora que pulou o alambrado atrás de nós, quando a aranha já descia o lançante da coxilha? “Espera, pára, o teu filho é um gênio, tens de mandar esse guri pra cidade”. Pois é! Mandaste o geninho pra cidade. Lá já foi mais difícil continuar sendo o primeiro da classe. As professoras jamais deram a alguém as provas antes do dia do exame. Resultado: no fim do ano, um monte de reprovações. Por isso que o ensino moderno anda em crise.

Mais um chimarrão antes de a gente terminar este passeio! Já está ficando tarde, tenho de voltar ao presente. Só há um lugar no mundo para onde sempre volto com o coração aos pulos: Ponche Verde. Qualquer dia estarei de novo aí. Não é por meu gosto que vivo nos povoados. Sabes, já faz alguns anos que não dou uma boa galopada nem vejo um nascer de sol. Há muito não ouço um galo cantar nem vejo galinhas ciscando o pátio depois de uma chuva. Já nem sei se formigas de asa existem ou são lenda. Esqueci o gosto de um tatu assado na casca. Bebo um leite de sabor desagradável que nada mais tem a ver com um apojo quentinho.

Virei bicho da cidade, mãe. Mas qualquer dia desses, o diabo sai de trás da porta, ato a mala nos tentos e me mando à la cria!

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quarta-feira, outubro 22, 2003
 
MUITA ÁGUA SOB A QUILHA


Kafka tem um belo apólogo. Fala de um homem que busca a Lei. Diante da Lei está um porteiro. Um homem do campo acerca-se dele e pede-lhe que o deixe entrar na Lei. Mas o porteiro diz-lhe que agora não pode deixá-lo entrar. O homem reflete e pergunta se poderá, então, entrar mais tarde. «É possível», diz o porteiro, «mas agora não». Como o portão da Lei se encontra, como sempre, aberto, e o porteiro se afasta para o lado, o homem inclina-se e olha para dentro através do portão. Assim que o porteiro repara nisso, ri-se e diz-lhe: «Se te atrai assim tanto, experimenta então entrar, apesar da minha proibição. Mas repara: eu sou forte. E sou apenas o porteiro mais ínfimo. De sala para sala há, porém, outros porteiros, cada um deles mais forte do que o outro. Até eu próprio já não consigo suportar o aspecto do terceiro porteiro».

Resumindo: o camponês espera a vida toda. O porteiro reconhece que ele já está próximo do seu fim. Para alcançar o seu ouvido moribundo, berra-lhe: "Aqui mais ninguém poderia ser admitido, pois esta entrada era apenas destinada a ti. Agora vou-me embora e fecho-a."

Este apólogo marcou-me fundo e sempre tive medo de estar diante de minha porta, de minha única porta, e de não ter a coragem de forçá-la. Camponês e filho de camponeses, terá sido este medo que me impeliu deste cedo a viajar. Via uma porta aberta? Entrava logo, bem que podia ser a minha. Assim, sem ser rico, tive a ventura de conhecer o melhor do Ocidente e viver em suas cidades mais esplendorosas. Quem faz esta opção acaba perdendo empregos, cargos, carreira e patrimônio. Paciência. Ganhei o mundo e sua memória.

Ano passado, recebi mail de uma amiga, viajada e cosmopolita, que há horas mora nos Estados Unidos. Para minha surpresa, confessou-me não conhecer Paris nem Roma. Em um primeiro momento, manifestei minha perplexidade. Paris e Roma, hoje, já não são distantes. Já no segundo momento, pensando melhor no assunto, uma pontinha de inveja começou a corroer-me por dentro. Lembrei-me de quando não conhecia a Europa e da excitação com que vi o continente cada vez mais perto de meus pés. Explico. Minha primeira viagem foi de navio. Ao final de dez dias de navegação, no horizonte foi-se delineando a silhueta do litoral português. Mais algumas horas e já se via a ponte sobre o Tejo. A ponte foi-se se tornando cada vez mais nítida e mais próxima e eu, Colombo às avessas, mesmo vendo a velha e boa terra, não conseguia acreditar que dentro de mais outras horas estaria pisando solo europeu. Devo confessar que só acreditei mesmo depois de fincar os pés no porto. Esta sensação, só temos uma vez na vida. Colombo que o diga.

Outras há que também não se repetem. Entrar lentamente de trem em Paris, vendo cruzar na janela aqueles telhados e chaminés que sempre repousaram nalgum escaninho de nossa memória. Ouvir o chiado dos próprios pés numa viela noturna e silente em Veneza. Quebrar pela primeira vez a crosta de um mar congelado rumo ao Norte. Perfurar pela primeira vez um deserto branco, pleno de neve e silêncio, para cair finalmente, também pela primeira vez, numa densa noite ao meio-dia. Penetrar em um fiorde em uma meia-noite clara como dia. Atravessar as pontes sobre o Neva nas noites brancas de São Petersburgo. Ouvir o silêncio da noite gelada, no pico de uma montanha enluarada no Sahara. É um silêncio estridente, que fere os ouvidos acostumados aos ruídos urbanos, só entrecortado pelas escassas palavras dos tuaregues contando lendas ao redor de uma fogueira. Se os deuses houveram por bem conceder-me a ventura dessas paragens, hoje tudo isto adquiriu um ar de déjà vu. Certo dia, atravessando o Pont Saint Michel, minha mulher me alertou: notaste que aquilo ali à direita é a Notre Dame? Eu sequer a havia visto. Residira quatro anos em Paris e já não mais a via. Se hoje deploro a condição de quem ainda não passou por estes momentos mágicos, ao mesmo tempo a invejo. Este deslumbramento, eu o perdi para sempre.

Ante as urbes prodigiosas, os viajores do século XIX sofriam uma reação física semelhante a dos peregrinos perplexos ao nelas entrarem. Os visitantes caíam de joelhos em Florença, Roma e Atenas. No caso dos peregrinos, recorria-se à histeria e à doença de San Vito para explicar as convulsões. O mesmo não se diria de hordas mais sensíveis. Em 1817, quando ia entrar na igreja de Santa Croce, em Florença, Stendhal foi tomado por uma espécie de pasmo, teve o pulso acelerado e lhe tremeram as pernas... isso só de antever o que veria lá dentro. A esta experiência, que o escritor francês narra em sua correspondência, convencionou-se chamar de síndrome de Stendhal, a perturbadora agitação do viajante ante a contemplação da beleza.

Esta crise acometeu-me em Cuenca, quando a beleza das cidades da Espanha já começava a saturar-me. Subindo a encosta do penhasco, ao olhar para o alto vi os prédios inclinados que pendiam sobre minha cabeça. Aos poucos, fui perdendo o sentido da verticalidade. Para não cair, olhava só para baixo. Ao chegar, de pernas bambas, à frágil ponte que varava o abismo, não consegui mais manter-me em pé. Sentei no chão e enrolei-me em posição fetal. Crianças saltitavam sobre o vazio, sem medo algum ou espanto. Haviam nascido ali. Para minha satisfação, vi outros estrangeiros apoiando-se nas paredes de rocha para não cair. Isto também só se vive uma vez. Dia seguinte, após tomar um bom vinho na sacada de uma das casas colgadas, enveredei pela ponte e saltitei como as crianças. Vencera Cuenca.

A moça que não conhece Paris não deixa de ser pessoa afortunada: tem ainda síndromes pela frente. A ela, repasso esta saudação de marujos: muita água sob a quilha. Que vasto é o mundo e breve nossa passagem. Santé, Milla!

PS - Outras crônicas em
http://www.baguete.com.br/colunas_anteriores.php?nome=janercristaldo



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sexta-feira, outubro 17, 2003
 
RECORDAR É RIR

Vós sabeis, amigos, o ódio que eles têm, os homens de dinheiro, os donos da vida, os opressores dos povos, os exploradores do trabalho humano, a Stalin. Esse nome os faz tremer, esse nome os inquieta, enche de fantasmas suas noites, impede-lhes o sono e transforma seus sonhos em pesadelos. Sobre esse nome as mais vis calúnias, as infâmias maiores, as mais sórdidas mentiras. O Tzar Vermelho, leio na manchete de um jornal. E sorrio porque penso que, no Kremlin, ele trabalha incansavelmente para seu povo soviético e para todos nós, paras toda a humanidade, pela felicidade de todos os povos. Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stalin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos. Não há muito ele completou 70 anos. Foi uma festa mundial, seu nome foi saudado na China e no Líbano, na Rumânia e no Equador, em Nicarágua e na África do Sul. Para o rumo do leste se voltaram nesse dia de dezembro os olhos e as esperanças de centenas de milhões de homens. E os operários brasileiros escreveram sobre a montanha o seu nome luminoso.

In

O Mundo da Paz, Rio, Editorial Vitória, 1952

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terça-feira, outubro 14, 2003
 
E-BOOKS

do autor, disponíveis para download em

http://www.ebooksbrasil.com



Ponche Verde, romance
Laputa, romance
Mensageiros das Fúrias, tese de doutoramento
Engenheiros de Almas, ensaio
Qorpo Santo de Corpo Inteiro, ensaio
Ianoblefe, ensaio
A Indústria Textil, ensaios
Crônicas da Guerra Fria, crônicas
EleCrônicas, crônicas
Flechas Contra o Tempo, crônicas
Ressentidos do Mundo Todo, Uni-vos, crônicas
A Vitória dos Intelectuais, crônicas

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IN MEMORIAM


Canário



Não me esperaste, Canário! E como eu tinha causos pra te contar depois desta última campereada. Andei por plagas onde a geada era grossa por mais de palmo e o pasto cresce só de teimoso. Montei nuns matungos de duas corcovas, de trote mais feio que potro redomão. Dancei com uma indiada de semblante maleva, cara embuçada, que reboleava os mosquetes por cima da cabeça e terminava cada marca com um tiroteio. Ouvi uns gringos falando uma língua que não era língua, mais parecia doença da garganta. Vi uns maulas tomando café com sal e comendo peixe podre, mais satisfeitos que guri roendo rapadura. Tirei até uns retratos desses causo mais difícil de dar crédito. No meu peito sentia uma vontade de sentar contigo no oitão da Casa e ir proseando entre um mate e outro. Não me esperaste.

Levei muito tombo nestes rodeios da vida, só depois fui te entender. Um dia abandonei teu rancho, fui pro povoado, me tornei letrado e não te entendia. Acordavas antes dos galos e ias buscar as vacas naquelas manhãs brancas de sereno. As vacas já na mangueira, me acordavas para o mate no galpão. Enquanto eu chorava com a fumaça da madeira verde, me contavas as peleias de Martín Fierro, histórias de contrabando, brigas de baile, intrigas de chinas. Eu só ouvia, era guri sem mundo. E agora que eu tinha uns causos pra te contar, não me esperaste.

Não te entendia. Eu, o letrado, o doutor, não entendia tuas lidas. Inverno e verão levantando cedo, apojando as vacas, tomando mate, rasgando a terra com o arado, largando a semente e cortando a aveia, colhendo o milho e fazendo a parva. Rasgaste tuas mãos alambrando, derrubaste cercas do Uruguai e Brasil fugindo de peleias que não eram tuas. Me ensinavas a encilhar um cavalo, clavar na volta-e-meia, manguear perdiz pro mundéu, tirar lonca e trançar laço. E tudo isto me parecia inútil. E eu não entendia teu lugar no universo. Um dia te entendi. Não me esperaste.

Te lembro já de noitinha, descendo o Cerro da Tala, voltando de um trago no bolicho do Jacinto. A cachorrada te saudava, eu corria até a sanga e voltava na garupa. (Onde andarão meus cachorros?). Voz já meio enrolada, um hálito de cachaça, apeavas contando as novas lá das Três Vendas. Eu desencilhava teu baio e voltava ligeirito para me acocorar na roda de chimarrão e ouvir as histórias que tu tinhas ouvido. A lua ia nascendo lá no Uruguai, do outro lado da Linha, e quem vai a bolicho não volta sem uma botellita debaixo do braço. E me falavas de causos de assombração que me gelavam o espinhaço e perturbavam meu sono. E agora eu tinha causos pra te contar. Não me esperaste.

A última vez que fui te ver... Sentias que era a última vez, eu não sentia. Vou pras Oropas e depois volto, pensei, pra mais um chimarrão. Tu sabias que aquele mate era o último. E quando juntei meus trapos pra voltar a Porto Alegre, choraste. Como não entrava em minha cabeça dura ver aquele gaúcho chorando, virei as costas e me vim. Ah, Canário! Nesta vida nada é mais sem volta que a morte. Mas esta lição sempre vem tarde.

Hoje te entendo em teu mundo, cumpriste teu ciclo no tempo e no espaço que te foi dado. E a dor que tua memória me traz, é dor que me revigora. Me dá até vontade de crer noutra vida depois desta, pra tomar mais uns mates e te contar aqueles causos que queria te contar.

Hasta luego, Canário!


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sábado, outubro 11, 2003
 
O ESCRITOR ESQUECIDO


"Se cada espanhol opinasse sobre aquilo que sabe, e só a respeito do que sabe, se faria um grande silêncio, que poderíamos aproveitar para o estudo".


Don Manuel Azaña, político e escritor, presidente da República Espanhola durante a Guerra Civil.

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quinta-feira, outubro 09, 2003
 
RECORDAR É RIR


Hoje não se pode mais falar em reunificação da Alemanha, pura e simplesmente, com fundamento tão somente na língua e história comuns. (...) Não se pode, todavia, afastar a hipótese de, num futuro mais ou menos remoto, vir a ocorrer a unificação (como aconteceu no Vietnã). Esta hipótese, porém, só pode ser considerada se na chamada Alemanha Federal - RFA - passar a existir também um regime socialista.
Uma das maiores bobagens veiculadas no Brasil sobre o Muro de Berlim é que ele foi erguido para evitar as fugas de alemães da RDA para a parte oeste de Berlim. Esta asneira é veiculada até por pessoas que gozam de alguma credibilidade no Brasil, e por órgãos de comunicação, que se apresentam como veículos fiéis à verdade.
Todos os epítetos lançados contra o muro - afronta à liberdade, vergonha, etc., etc. - escondem apenas o ressentimento e a frustração dos fazedores de guerra que, naquela linha de fronteira, viam o começo da terceira guerra mundial por que tanto sonham, e para cujo deflagrar tudo fazem, com vistas a salvar o capitalismo da crise irreversível em que está mergulhado.
É natural que na RDA e nos demais países socialistas a tendência seja a diminuição do índice de criminalidade, de vez que as infrações penais que têm origem na miséria, numa vida difícil e atormentada, com dificuldades econômicas e financeiras, tendem a desaparecer por completo nos países socialistas, e muito particularmente na RDA.
Mas, decorridas quatro décadas, essa mesma Alemanha Ocidental - eis a grande verdade - não resolveu problemas vitais do povo alemão que vive na região ocidental. Mais do que isso. Hoje a República Federal da Alemanha - RFA -, como todo mundo capitalista, é um país atormentado por uma crise de vastas proporções, crise política, econômica, social e moral.
A realidade alemã ocidental hoje reflete a crise que avassala o sistema capitalista. Na RFA a situação social também vem se agravando. Progressivamente aumenta a pobreza.
Os sindicatos da RFA estão prevendo que até 1990 cerca de 100 mil pessoas perderão seus empregos, atualmente, por força da automação. Afora, evidentemente, o desemprego resultante da crise do capitalismo que existe na RFA e em todo o ocidente capitalista, e que vai continuar.
Os meios de comunicação de massa do Ocidente já decretaram que nos países socialistas não há liberdade para os cidadãos e que, especialmente, inexiste liberdade de imprensa. Também decretaram que os direitos humanos não são respeitados no mundo socialista.
Daqui cinco anos, na RDA, não haverá mais desconforto habitacional - todas as famílias terão sua casa.

In

Berlim: muro da vergonha ou muro da paz?

de Antonio Pinheiro Machado Netto, Porto Alegre, L&PM, 1985

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quarta-feira, outubro 08, 2003
 
Convite para um café em Santos


Outubro de 2003

Convidado: Janer Cristaldo

Tema: Como ler jornais

O que um leitor atento deve saber antes de ler um jornal? É o que pretende esclarecer o jornalista e escritor Janer Cristaldo na Cafeteria de Idéias. Gaúcho de Santana do Livramento, Cristaldo formou-se em Direito e Filosofia e doutorou-se em Letras Francesas e Comparadas pela Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III), sobre as obras de Ernesto Sábato e Albert Camus. Morou ainda na Suécia, onde estudou Língua e Literatura Sueca e viveu em Madri, onde estudou Literatura Espanhola. No Brasil, lecionou Literatura Comparada e Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina e trabalhou como redator da editoria Internacional na Folha e no Estado de São Paulo.

Dia 18 de outubro, 18h, na Realejo Livros.
Rua Marechal Deodoro, 2 - Gonzaga - Santos/SP
Tel.: (13) 3289-4935
Próximos convidados:


Dia 18 de outubro, 18h, na Realejo Livros.
Rua Marechal Deodoro, 2 - Gonzaga - Santos/SP
Tel.: (13) 3289-4935
Próximos convidados:

Novembro: Eduardo Gianetti da Fonseca - Economista, cientista político e filósofo, é PhD em economia pela Universidade de Cambridge, professor do IBMEC e autor de livros como "Felicidade" e "As Partes e o Todo".

Novembro: Mariana Sérvolo da Cunha

Dezembro: Viktor Salis é psicologo e um dos maiores especialistas no estudo das tradições e da mitologia das antigas civilizações. Ele é grego de nascimento, mas há muito radicou-se no Brasil.



segunda-feira, outubro 06, 2003
 
In Memoriam


Viagem infame, aquela! Nossa noite já havia sido de angústia, prenúncio de uma partida sem volta. No dia seguinte, imbecis, rumamos um para o norte, outro para o sul. Te apertei com desespero até a estação, não sabia quando te voltaria a ver. Sei, há muitas mulheres no mundo, mas se tu existias para que buscar outra companheira de caminhada? Minto, não é bem isso, é algo ainda mais simples. Te adorava, e pronto! Posso perder a memória, mas jamais a lembrança daquela manhã que não desejo a ninguém, manhã abominável, para sempre permaneça sepultada lá em Madri.
O Talgo começou a mover-se, lento como todos os trens que separam amantes, lento mas inexorável, cada vez menos lento e mais inexorável, e teu vulto envolto em lãs e distância foi se tornando cada vez mais distante e mais terno, um nó começou a me estraçalhar a garganta, não resisti. As lágrimas foram rolando sem muita cerimônia. Um espanhol a meu lado, muito discreto, desviou o olhar para não imiscuir-se em meus sentimentos. Lembras aquele boné de bisão que me deste em Amsterdã? Pois é, o espanhol tomou-me por russo, tenho certeza que intimamente se perguntava por que razões andaria este cossaco chorando em Madri. Cossaco é a vovozinha, sou gaúcho de Ponche Verde. Gaúcho chora? Chora sim, basta que sofra.
Quando cheguei em Paris, estavas em Lisboa. Era tempo ainda, bastaria um telefonema para o aeroporto para pôr fim àquela insensatez. Mas sempre fui obstinado, continuei teimando em minha viagem rumo ao frio. Mais algumas horas e um oceano estaria nos separando. Seria tarde para voltar e eu queria que fosse tarde para voltar – para não voltar.
Em uma gare apanhei o resto de minhas malas e atravessei aquela Paris, cheia de charme quando chegamos, cheia de cinza quando voltei. A neve que aconchegava os campos, que contigo me parecera tão macia e tão morna, era agora cada vez mais neve e mais fria. Frio por dentro, atravessei aquela Alemanha fria sem disposição alguma para divertir-me às custas dos Deutschen e seus ares marciais, como fazia quando contigo.
Atravessei uma Holanda sem graça, uma Dinamarca sem graça, rumo a uma Estocolmo sem graça alguma. A graça estava em ti e tu voavas rumo ao sul. No ferry-boat para Helsinborg – já estarias próxima a Porto Alegre – fugi do restaurante e fui até a proa, se estava enregelado por dentro pouco importava enregelar-me por fora. O barco avançava com dificuldade no mar congelado, o céu era cinzento e me pesava como chumbo aos ombros e eu, o estúpido, tinha ganas de jogar-me ao Báltico, estou certo que quebraria sua crosta hibernal, cabeça-dura como sou.
Estocolmo. Noites brancas e sempre frias. Da janela de meu quarto, em meio a um silêncio que feria os ouvidos, eu não olhava sequer a neve, mas o vazio. Não poucas noites fiquei em pé, frente à janela, olhando aquele vazio que não seria vazio se estivesses lá. Sos un boludo, che! – dizia-me um boliviano – en Brasil hay una mujer que te quiere, que haces en esta tierra de hombres tristes? Que fazia? Não sei, como tampouco ele sabia que fazia lá. Errâncias...
Lá, recebi e dei calor, calor humano e animal. Muitas noites enrosquei-me em uma lena (doce, em sueco) Lena, que por sua vez me apertava sonhando apertar um romeno de Bucareste. Amávamos por procuração, sem que nenhum mandato nos tivesse sido outorgado. Mas não era ela quem eu apertava, tampouco era eu quem ela apertava. Desculpa o lugar comum: éramos apenas bons amigos, angustiados amigos. Até que um dia deixei de ser besta, atei a mala nos tentos e voltei a trote largo pra querência. E se não me esqueço daquela manhã infame em Madri, tampouco esqueço aquela manhã linda no Rio. Não te esperava e lá estavas, chorando grudada às grades do portão do cais. Vivendo e aprendendo! Sonhei com divas e deusas e cá estou comovido com uma baixinha dentuça.
A quem espero, mesmo de cabelos brancos, jamais chamar de minha mulher ou minha esposa, mas simplesmente de minha guria.

Porto Alegre, Folha da Manhã, 13/06/77

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