¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, outubro 14, 2003
 
IN MEMORIAM


Canário



Não me esperaste, Canário! E como eu tinha causos pra te contar depois desta última campereada. Andei por plagas onde a geada era grossa por mais de palmo e o pasto cresce só de teimoso. Montei nuns matungos de duas corcovas, de trote mais feio que potro redomão. Dancei com uma indiada de semblante maleva, cara embuçada, que reboleava os mosquetes por cima da cabeça e terminava cada marca com um tiroteio. Ouvi uns gringos falando uma língua que não era língua, mais parecia doença da garganta. Vi uns maulas tomando café com sal e comendo peixe podre, mais satisfeitos que guri roendo rapadura. Tirei até uns retratos desses causo mais difícil de dar crédito. No meu peito sentia uma vontade de sentar contigo no oitão da Casa e ir proseando entre um mate e outro. Não me esperaste.

Levei muito tombo nestes rodeios da vida, só depois fui te entender. Um dia abandonei teu rancho, fui pro povoado, me tornei letrado e não te entendia. Acordavas antes dos galos e ias buscar as vacas naquelas manhãs brancas de sereno. As vacas já na mangueira, me acordavas para o mate no galpão. Enquanto eu chorava com a fumaça da madeira verde, me contavas as peleias de Martín Fierro, histórias de contrabando, brigas de baile, intrigas de chinas. Eu só ouvia, era guri sem mundo. E agora que eu tinha uns causos pra te contar, não me esperaste.

Não te entendia. Eu, o letrado, o doutor, não entendia tuas lidas. Inverno e verão levantando cedo, apojando as vacas, tomando mate, rasgando a terra com o arado, largando a semente e cortando a aveia, colhendo o milho e fazendo a parva. Rasgaste tuas mãos alambrando, derrubaste cercas do Uruguai e Brasil fugindo de peleias que não eram tuas. Me ensinavas a encilhar um cavalo, clavar na volta-e-meia, manguear perdiz pro mundéu, tirar lonca e trançar laço. E tudo isto me parecia inútil. E eu não entendia teu lugar no universo. Um dia te entendi. Não me esperaste.

Te lembro já de noitinha, descendo o Cerro da Tala, voltando de um trago no bolicho do Jacinto. A cachorrada te saudava, eu corria até a sanga e voltava na garupa. (Onde andarão meus cachorros?). Voz já meio enrolada, um hálito de cachaça, apeavas contando as novas lá das Três Vendas. Eu desencilhava teu baio e voltava ligeirito para me acocorar na roda de chimarrão e ouvir as histórias que tu tinhas ouvido. A lua ia nascendo lá no Uruguai, do outro lado da Linha, e quem vai a bolicho não volta sem uma botellita debaixo do braço. E me falavas de causos de assombração que me gelavam o espinhaço e perturbavam meu sono. E agora eu tinha causos pra te contar. Não me esperaste.

A última vez que fui te ver... Sentias que era a última vez, eu não sentia. Vou pras Oropas e depois volto, pensei, pra mais um chimarrão. Tu sabias que aquele mate era o último. E quando juntei meus trapos pra voltar a Porto Alegre, choraste. Como não entrava em minha cabeça dura ver aquele gaúcho chorando, virei as costas e me vim. Ah, Canário! Nesta vida nada é mais sem volta que a morte. Mas esta lição sempre vem tarde.

Hoje te entendo em teu mundo, cumpriste teu ciclo no tempo e no espaço que te foi dado. E a dor que tua memória me traz, é dor que me revigora. Me dá até vontade de crer noutra vida depois desta, pra tomar mais uns mates e te contar aqueles causos que queria te contar.

Hasta luego, Canário!


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