¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
quinta-feira, julho 31, 2014
FALTA DE VERGONHA NÃO TEM PARTIDO O bispo Edir Macedo é um personagem no mínimo admirável. Filho de católicos praticantes, começou sua carreira em 63, aos 18 anos, como um funcionário público na Loteria do Estado do Rio de Janeiro, a Loterj e trabalhou no IBGE como pesquisador no censo econômico de 1970. Aos 19 anos, abandonou a igreja de Roma e tornou-se cristão evangélico, ingressando na Igreja de Nova Vida. Próximo a completar 16 anos de carreira como funcionário público, deixou o cargo para se dedicar à obra de Deus, o que na época foi considerado uma loucura. Que Deus? Há dois anos, perambulando por Lisboa e com vontade de ler algo divertido, comprei o primeiro volume de sua biografia, Nada a Perder, na época liderando a lista dos mais vendidos em Portugal. Em mais de 200 páginas, não especifica de qual deus se trata. É mais ou menos aquele do Antigo Testamento, mas Macedo não o define com precisão. É mais um deus à la carte, uma espécie de máximo divisor comum, para agradar gregos e troianos, evangélicos e romanos. Começou sua carreira de homem de deus como começa todo camelô, pregando ao ar livre, em um coreto em uma praça do Méier, no Rio. Em 1977, decidiu fundar sua própria igreja, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), cuja primeira sede funcionava no prédio de uma antiga funerária, na Zona Norte do Rio. Hoje, 37 anos depois de sua arrancada evangélica, tem mais de seis mil templos e 1,8 milhão de fiéis no Brasil, segundo o IBGE, e quase 10 mil pastores. Está presente em mais de 200 países, sendo mais disseminada nas nações de língua portuguesa. É a quinta maior instituição no Brasil, sendo a quarta maior igreja protestante e a 29ª maior denominação religiosa no mundo, com seis milhões de pessoas. A loucura vingou. No século XI a. C., o rei Salomão construíu o primeiro templo de Jerusalém, para a adoração de Javé, deus de Israel, onde se ofereciam os sacrifícios conhecidos como kornabot, para agradar o Eterno. A julgar-se pela natureza dos sacrifícios, o templo deveria cheirar como um açougue. Destruído por Nabucodonosor II da Babilônia, em 586 a. C., após dois anos de cerco a Jerusalém. Em 516 a. C., após o regresso de mais de 40.000 judeus do Cativeiro Babilônico foi iniciada a construção no mesmo local do Segundo Templo, que foi destruído pelo general romano Tito em 70 d.C. Não tendo mais local físico para cultuar Javé, os judeus se refugiaram na Tanak, a bíblia hebraica, que tornou-se, de certa forma, um lar para os judeus dispersos pelo mundo todo. Neste ano da graça de 2014 d. C. – quase dois milênios após a destruição de Tito – o templo de Salomão ressurge triunfante nesta São Paulo, o maior semental de religiões do país. Mas com nova direção, a do bispo Edir Macedo. O bispo judaizou sua religião particular. Passou a usar quipá e barba de patriarca veterotestamentário, e distribuiu menorás pelas colunas do novo templo. Não faltou nem mesmo a Arca da Aliança e o hino de Israel. As vestes talares têm as cores da bandeira israelita. O custo estimado da obra é de mais de 680 milhões de reais. Sua capacidade é de mais de dez mil pessoas sentadas na nave principal, o que o torna o maior templo do País, deixando atrás a Basílica de Aparecida. O altar e a fachada do templo foram feitos com pedras nativas de Israel. Para Macedo completar sua obra, só estão lhe faltando as 700 esposas e 300 concubinas do sábio rei Salomão. Como todo homem de Deus, Edir Macedo teve seus percalços com a justiça do homens. Em 1992, foi preso sob acusações de charlatanismo e curandeirismo. Inocentado das acusações, foi liberado após onze dias. Apontado pela revista Forbes como o pastor mais rico do Brasil, teve seu patrimônio avaliado, em janeiro do ano passado, em quase 2 bilhões de reais. Nada mal para quem na juventude foi um modesto funcionário público. Templo é dinheiro. Em 2006, foi denunciado pelo Ministério Público por importação fraudulenta de equipamentos e uso de documento público falso e um processo foi aberto pela Justiça Federal. Em 1998 a Receita Federal concluiu procedimento de fiscalização em um lote de equipamentos para TV e rádio importados pela Record e apreendeu uma carga de 1,7 toneladas de aparelhos para radiodifusão cujas notas não foram devidamente comprovadas. Com base nos documentos enviados pela Receita, o procurador da República André Libonati ofereceu em 2000 denúncia contra Macedo e mais seis diretores da Record. Segundo o Ministério Público, Macedo alega que não tem participação direta no dia-a-dia da Record e que não tinha conhecimento da importação dos equipamentos. Em 2009, em ação criminal aberta pelo juiz Gláucio de Araujo, da 9ª vara criminal de São Paulo, o bispo e mais nove pessoas ligadas a ele foram acusados pelos crimes de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Segundo a denúncia da promotoria, Macedo e os outros acusados teriam feito desvio de dinheiro de doações de fiéis, também se aproveitando da isenção de impostos oferecida a igrejas de qualquer culto. Para esconder a origem do dinheiro, o bispo e os outros acusados teriam usado um esquema de lavagem de dinheiro envolvendo empresas de fachada, no Brasil e no exterior. Os recursos então, voltavam ao Brasil, na forma de empréstimos feitos pelos laranjas de Edir Macedo, sendo usados para comprar empresas. Em alguns casos, Macedo teria fraudado procurações assinadas por estes laranjas para, posteriormente, transferir as ações das emissoras para seu próprio nome ou de pessoas acusadas de participar da quadrilha. Macedo seria o chefe de uma quadrilha que usava empresas de fachada para desviar recursos provenientes de doações dos fiéis da Universal e praticar uma série de fraudes. Estas denúncias, divulgadas por todos os grandes jornais do país, foram também veiculadas pela Rede Globo e consideradas pela Rede Record, de Edir Macedo, como "desespero da concorrência". Mais sujo que pau de galinheiro, Edir Macedo inaugurou hoje, impertérrito, seu templo salomônico. Segundo filme exibido, a história bíblica começa com Abraão, Moisés, Davi, Salomão, Cristo e culmina, em 1977, dois milênios depois, com Edir Macedo. A construção do templo está repleta de irregularidades. Segundo editorial do Estadão, o Ministério Público Estadual (MPE) constatou que o templo foi construído com base num alvará de reforma expedido em 2008. Reforma adicional de 64.519 m², em terreno que tinha área construída de 2.687,32 m², parece inconcebível. Não é preciso ser técnico para perceber o absurdo de considerar o Templo de Salomão uma simples reforma, pois isso desafia o mais elementar bom senso. Mesmo assim, a Igreja Universal conseguiu na Secretaria Municipal de Habitação o tal alvará, emitido pelo setor responsável, à época dirigido por Hussain Aref Saab, demitido em 2012 por suspeita de enriquecimento ilícito. O certo, para construções de mais de 5 mil m² e 499 vagas de estacionamento, como era o caso - o templo tem dimensões muito maiores e 1,2 mil vagas -, é alvará de obra nova, conforme determina a lei dos polos geradores de tráfego, de 2010. Com isso, a Igreja Universal se livrou do pagamento de 5% do valor da obra - R$ 34 milhões - em contrapartidas e melhorias para o sistema viário no entorno do templo. Coniventes com o escroque contumaz e com o flagrante desrespeito às leis, comparecem à cerimônia altas autoridades do Judiciário (do STF, inclusive), do Congresso e dos governos federal, estadual e municipal. Com toda pompa e circunstância, hoje foi sacramentada a desimportância da lei. Se templo é dinheiro, também é votos. Para remediar a situação e inaugurar o templo, o prefeito Fernando Haddad, do PT, emitiu um exótico alvará de evento. Ao qual não faltaram a presidente Dilma Rousseff, o vice Michel Temer (PMDB) e o governador Geraldo Alckmin, do PSDB. As mais altas autoridades da República não hesitaram um segundo em prestigiar o escroque. Mas constrangido mesmo deve ter ficado Fernando Haddad. Enquanto financia o consumo do crack na Cracolândia, teve de ouvir uma longa e mentirosa arenga de um pastor contra a droga. Edir Macedo rende votos e falta de vergonha não tem partido. quarta-feira, julho 30, 2014
SININHO QUER ASILO Estão surgindo na imprensa, como se fossem novidade, personagens obsoletos e anacrônicos, que se pretendem inovadores e contestadores do... Do que mesmo? Da ditadura não há de ser, porque ditadura não existe no país. Do governo muito menos, pois são recebidos e defendidos por altas autoridades do PT. Da oposição tampouco, afinal são opositores. No fundo, são os abomináveis rebeldes sem causa, que só são rebeldes porque julgam que ser rebelde tem charme. Comentei há pouco os pronunciamentos do líder do MTST, Guilherme Boulos, que de sem-teto nada tem. Aventureiro oriundo da Fefelech - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – que se diz professor de psicanálise. Mas a meta de Boulos não é exatamente teto para os sem-teto. E sim a revolução socialista. Qual revolução socialista? De artigo escrito na Folha de São Paulo, deduzimos que é aquela de 1917, que de início se chamou comunista, e que estertorou em 1989, com a queda do Muro. Escreve o jovem stalinista, a propósito da morte de Plínio Arruda Sampaio: “Figurou nessa lista ao lado de gente como Luiz Carlos Prestes, Francisco Julião (dirigente das Ligas Camponesas) e do próprio Jango, dentre outros grandes nomes que defenderam os interesses populares contra o golpe militar”. Ou seja, o marxismo de Boulos não é apenas pré-64. É pré-35. Data do auge do stalinismo, quando o Paizinho dos Povos queria pôr uma pata na América Latina. Só mesmo no Brasil para um espécime como este ganhar coluna na grande imprensa. Agora está tendo seus 15 minutos de fama uma gaúcha desocupada, Elisa Quadros – mais conhecida como Sininho - que se diz cineasta e produtora cultural e tem liderado as últimas badernas no Rio de Janeiro. A moça, munida de três galões de gasolina, queria nada menos que tocar fogo na Câmara de Vereadores. Presa com outros baderneiros - todos soltos por habeas corpus de um desembargador que não vê mal nenhum em pretender incendiar a Câmara - Sininho se diz perseguida política. Que país é este onde um cidadão não tem mais direito a incendiar uma câmara de vereadores? Indagada pelo Estadão sobre a acusação de ser uma das líderes da FIP (Frente Independente Popular), Sininho afirmou: “Historicamente, o Estado, o poder, precisa criar um líder para matar e criminalizar o movimento. É isso o que estão fazendo. E vão fazer com todos. Vão destruir as identidades por meio da mídia, para depois justificar prisão, tortura e assassinato. Eles precisam disso. Mas o movimento é espontâneo, não aceita esse tipo de coisa. Não adianta tentar criar o que não existe”. Ela classificou de “abobrinha e história surrealista” o conteúdo do processo de 15 volumes contra os 23 acusados. “Somos perseguidos políticos”, diz ela. “Vão fazer 5 mil, 20 mil páginas de abobrinhas, de história surrealista. Porque não existe, são 23 pessoas que mal se conhecem”, afirma. “Nunca falei com a maioria dessas pessoas. Que líder é esse que não fala com os seus? Não existe liderança.” Na noite do 25 de julho passado, no salão do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, Sininho e outros militantes de esquerda presos por envolvimento em manifestações violentas cantaram que são “comunistas até morrer”, além de trechos como “se eu mrro é no combate”, “comunista hei de morrer”, “sou comunista por toda a vida”, “a foice e o martelo avançando”, “tropa de choque da revolução”. A reunião teve adaptações de Bella Ciao, antiga canção de operários italianos, do fim do século XIX, adotada por comunistas e anarquistas do mundo todo. Lavoro infame, per pochi soldi, o bella ciao bella ciao Bella ciao ciao ciao, lavoro infame per pochi soldi E la tua vita a consumar! Ma verrà il giorno che tutte quante o bella ciao, bella ciao Bella ciao ciao ciao, ma verrà il giorno che tutte quante Lavoreremo in libertà! As canções podem ser eternas. Mas o mundo muda e a revolucionária não viu. Ao final dos propósitos revolucionários, os bravos militantes erguem os punhos ao ar, repetindo o gesto dos heróis do PT, hoje na bancada da Papuda, ao serem presos. Para ver o circo, clique aqui: http://www.folhapolitica.org/2014/07/sininho-e-outros-ativistas-presos-fazem.html No Estadão, lemos que Sininho tinha projetos vem definidos e bastante ambiciosos. Queria internacionalizar seu protesto, tentando um asilo político na Inglaterra. Segundo escutas telefônicas feitas com autorização da Justiça na Operação Firewall, numa conversa em 24 de junho com um outro ativista, identificado como Igor, Sininho demonstra medo de ser presa ou assassinada por policiais e fala da ideia de ir para a Inglaterra. Ela ressalta o impacto político positivo da iniciativa: "Estou pensando em ir para a Inglaterra com o Mohamed para fazer as denúncias sobre o que está acontecendo aqui. Ia ser um processo de caos agora, eu me exilar depois da Copa e antes das eleições. Mas os advogados de São Paulo e daqui (de Porto Alegre) não estão concordando com isso". Igor demonstra não concordar com a ideia, mas Sininho insiste: "Exílio, querendo ou não, tem um poder político muito forte. Imagina a pessoa ser exilada agora, seria um poder político forte se eu fizesse isso, se tivesse uma boa campanha internacional. Porque essa perseguição que eu estou vivendo não vai acabar. ... O que quer esse inquérito? Ele vai até onde? Minha vida está virando um inferno, não estou conseguindo trabalhar... É ameaça em cima de ameaça: ameaça de milícia, ameaça de polícia... Se eu não for assassinada por um policial, eu vou ser presa, e aí?" Trabalhar em quê? Pelo que se saiba, a libertária – como se define – não tem emprego algum. Ameaçada como? Fora sua prisão, não se tem notícia de ameaça alguma. A incendiária posa de vítima pela volúpia de ser vítima. Sininho reivindica o sagrado direito de incendiar o prédio de vereadores, eleitos pelo voto popular, sem correr o risco de ser presa. Como prêmio a seu nobre propósito, quer as mordomias de um asilo bem remunerado no exterior. Comunista até morrer, mas asilo no paraíso comunista do Caribe... ni pensar. Sininho quer asilo em Londres, uma das metrópoles mais capitalistas do Ocidente. Com direito a coletivas para a imprensa internacional, nada menos. Nisto segue a trilha dos exilados de 64 e 69. Em vez de buscar abrigo na comunista Moscou – que aliás os financiava – foram voando para as mais esplendorosas capitais européias, Londres, Paris, Estocolmo e Berlim. Comunista hei de morrer. Mas não sem antes ter degustado as delícias do capitalismo. Sou comunista por toda vida, desde que usufruindo das mordomias deste podre mundo capitalista. A foice e o martelo avançando, mas por favor longe de mim. Neste Brasil incrível, sempre na rabeira da História, ainda há viúvas do Kremlin, cultuando um defunto como se vivo estivesse. domingo, julho 27, 2014
QUANDO FILA DÁ STATUS Entre as coisas que evito na vida, estão as filas, e já perdi muita coisa boa por causa disso. Durante meus anos de Paris, jamais subi na torre Eiffel. Por duas razões. Primeiro, considerava ser um lugar comum, típico de turista deslumbrado. Segundo, pelas filas. Quando superei o primeiro obstáculo, restou o segundo. Em uma das últimas tentativas, ainda com a Baixinha, havia filas de quatro ou cinco horas. Em uma das patas da torre, a fila era menor, previa-se duas horas. Era aquela pata por onde se sobe a pé. Merci bien! Verdade que, anos depois, acabei subindo. Passava por lá, e sei lá por que estranho fenômeno, havia filas de 15 minutos. Então tá. Cá entre nós: a visão do alto do Arco do Triunfo, que é bem mais baixo, é mais esplendorosa. Há, é claro, as filas das quais jamais escapamos. Na era pré-internet, as de banco eram uma delas. Antes do real, naqueles dias em que uma mercadoria tinha o preço aumentado três vezes por dia, a fila era um inferno inevitável. No dia seguinte à vigência da nova moeda, sumiram como que por encanto. Sempre vi fila como estigma de país pobre e subdesenvolvido. Ou praga de país socialista. Na época do comunismo, os países soviéticos eram os campeões do triste esporte. Se um russo via um fila, nela entrava sem pensar. Porque na outra ponta certamente havia algo que faltava a todos. Mas existem também as filas do supérfluo. Uma das raras filas que vi em Paris foi na Champs Elysées. Eram centenas de turistas, na maioria japonesas, numa loja de bolsas Vuiton. Todos os dias. Em Nomade, a escritora somali se defronta com misteriosas instituição do Ocidente, o tíquete para filas. “Eu estava cativada pela engenhosidade do sistema. As pessoas não tinham de fazer a fila como éramos obrigados na África; eles não tinham que se enfiar, empurrar os outros ou se comportar de maneira agressiva para defender seu lugar na fila de espera. Podia-se sentar, e durante este tempo seu tíquete de alguma maneira fazia a fila por você”. É observação de quem vive em um mundo que depende de filas. Fila é perda de tempo, ou seja de vida. Quando tenho de enfrentar alguma da qual não posso escapar, me refugio na leitura. Em suma, fila não é coisa de se gostar. Exceto talvez em São Paulo. Desde que cheguei aqui, há 23 anos, notei um certo apreço, quase orgulho, em curtir uma boa fila, seja em exposições, shows ou restaurantes. Sem falar no trànsito. É quase com um sentimento de heroísmo que um paulistano se gaba de ir até Santos em três ou quatro horas, distância que normalmente tomaria menos de hora. Um estrangeiro se horroriza com 100 ou mais quilômetros de engarrafamento. Para o paulistano, faz parte da vida. Minha primeira constatação desta sensação de bem-estar em uma fila ocorreu no Famiglia Mancini, restaurante na rua Avanhandava, no centro da cidade. Nos almoços de fins de semana, espera-se no mínimo duas horas para entrar. Ninguém faz cara feia. A fila é uma oportunidade de conversar, confraternizar, fazer novos amigos. Lembro de um Dia das Mães, em que 400 delas esperavam para comer, sem pressa alguma, sob um sol de rachar. Confesso ter entrado em uma dessas filas, não exatamente por vontade própria, mas para mostrar a um amigo francês nossas instituições. Chegamos a um ponto tal de apreço pelas filas, que as pessoas as buscam como sinal de status. Leio no Estadão de hoje, em reportagem de Mônica Reolom: Em SP, filas já são evento cultural Segundo a repórter, a concorrência por atrações não só faz com que paulistanos incorporem a espera como parte do passeio, como também buscam filas para postar foto na internet. Embora fosse o meio da tarde de uma sexta-feira fria e nublada, Alexandra Sene, química de 41 anos, e o filho Mateus, de 10, já estavam há duas horas e meia em pé na calçada, esperando para ingressar no Instituto Tomie Ohtake, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. "Viemos de Cotia", disse ela, ansiosa para finalmente entrar na mostra Obsessão Infinita (conhecida por exibir milhares de bolinhas), da artista Yayoi Kusama. "Só peguei uma fila parecida com essa quando Ayrton Senna morreu", lembrou Mara Marques, dentista de 42 anos que também estava com o filho, de 10. Alexandra, Mara e as duas crianças, no entanto, já haviam feito amizade na fila e comprado pipoca e refrigerante das barraquinhas ao redor. Além disso, viraram atração: quem passava de carro ou a pé tirava foto da aglomeração que virava o quarteirão. A nutricionista Thaís Furlani, de 24 anos, brincava: "Vim para tirar foto e postar no Instagram". Na Barra Funda, o casal Bruno Novaes, de 24 anos, e Aline Alves, de 26, atribuía às redes sociais um dos motivos por estarem há mais de 40 minutos na fila da exposição da dupla osgemeos, na Galeria Fortes Villaça. "Os amigos postam e estimulam que a gente venha. Nós também pretendemos tirar foto lá dentro", disse ele. Por coincidência - ou talvez nem tanto - a Vejinha São Paulo de hoje tem como reportagem de capa "as filas que valem a pena. A revista dedica nada menos que sete páginas às melhores filas da cidade. Para o paulistano, pouco importa o espetáculo ou evento. O que interessa é o “eu vi, eu estive lá”. O filme pode ser um solene abacaxi. Mas é preciso vê-lo. Principalmente se for um blockbuster. Como participar de uma conversa com pessoas que já o viram sem tê-lo visto? O que mede a procura de um espetáculo já não é a qualidade do espetáculo em si, mas o tamanho da fila dos assistentes. Sempre vi São Paulo como uma metrópole um tanto provinciana, e este apreço pelas filas confirma minha opinião. Enquanto fila é maldição em todos os países do mundo, Brasil inclusive, em São Paulo a carneirada vibra com boas horas de espera. O evento já nem é o evento, mas a fila para o evento. Mais um pouco, e as filas serão anunciadas como atrativo turístico da cidade. Venha entrar nas maiores filas do mundo. Que tem na outra ponta? Não interessa. O que importa é curtir a fila em si. quarta-feira, julho 23, 2014
RUI BASTIDE E SEU ALVARINO * Ainda Dom Pedrito. Depois que Bertrand Delanoë, homossexual assumido, foi eleito prefeito de Paris, a França passou a gabar-se na imprensa de sua mentalidade liberal. No mesmo ano da eleição de Delanoë, Veja nos informava que o Estado que reúne a maior quantidade de piadas machistas havia assumido a dianteira na defesa dos direitos dos homossexuais. A revista paulistana referia-se ao fato de a Justiça do Rio Grande do Sul ter emitido julgamentos favoráveis em causas relacionadas a reivindicações dos gays. A ausência de preconceitos da gauchada, no que se refere à homossexualidade, não é atitude de hoje, nem mesmo de ontem, mas data de muito mais longe. Antes mesmo que os parisienses ousassem eleger um prefeito homossexual, o Rio Grande do Sul já teve um, e dos mais queridos por seus conterrâneos. Ora, direis, Dom Pedrito não é Paris. Claro que não é. Dom Pedrito é uma pequena comuna isolada do mundo. Já Paris é uma das capitais deste mesmo mundo, com todo cosmopolitismo que isto implica. Feliz de quem tem uma província no coração, disse alguém. Final dos anos 50, há mais de meio século, portanto. Naquela cidadezinha da fronteira gaúcha, nos confins da fronteira seca entre Brasil e Uruguai, então com 13 mil habitantes, tive minhas primeiras lições de tolerância. Um dos líderes políticos locais, voz de estentor, bom de voto e temível nos debates, jamais escondeu suas preferências por jovens efebos. Nem por isso deixava de contar com o apreço dos pedritenses. Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes. Comentário indiferente na cidade: "O Brasil vai perder muito com esta cassação". Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. "Já procurei até médico" - confessou-me um dia Bastide -. "Mas que vou fazer? É a minha natureza." Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide. Sua detenção pelos militares virou folclore. O vereador estava prestando seus serviços ao Brasil, quando batem na porta de seu apartamento. Ainda pelado, entreabriu a porta. Três militares o procuravam, um oficial e dois soldados, de metralhadoras em punho. - O senhor é o Rui Bastide? - perguntou o oficial. - Sou. - Então o senhor está convidado a comparecer às dependências do 14º Regimento de Cavalaria. - Acho que vou declinar do gentil convite - respondeu Bastide. Ocorre que não é bem um convite. O senhor terá de ir. Agora e como está. - Então me levem - disse o Rui - abrindo a porta e os braços, em plena glória de sua nudez. "Os soldadinhos enrubesceram - me contava o Rui -, não sabiam para onde apontar as metralhadoras. Aí, me deram tempo. Tomei banho, me perfumei, me despedi do Brasil, não sabia quanto tempo ia ficar preso". Pelo jeito, a prisão foi produtiva. Em vez de xingar a ditadura, Rui encenou um balé, onde bravos lanceiros do Ponche Verde, envergando diáfanas bombachas brancas, executavam impecáveis pas de deux enquanto cantavam uma ode ao 14º RC: "Querido Exército..." A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso pedritense. E vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados. Há fatos que na infância nos marcam a memória e só depois de muito viver lhes conferimos a verdadeira dimensão. Ocorreu no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira com o Uruguai, onde vivi meus dias de guri. Torrão de gente rude, onde qualquer adulto tinha de cuidar-se com a língua. Lá na Linha Divisória - como era mais conhecida a região - uma palavra mal empregada, ou mal entendida, podia custar uma vida. Lá, conheci Seu Alvarino. Fora trazido da cidade, como cozinheiro do Peixoto, um bolicheiro local. Negro, enorme, espadaúdo, durante o dia cuidava da cozinha e das coisas do Peixoto. Nas tardes de domingo, cumpridas suas tarefas caseiras, vestia uma blusinha de rendas cor-de-rosa, punha sua mais rodada saia longa e sentava na porta do bolicho, munido de agulhas e novelos. A gauchada ia chegando, boleando a perna e atando os cavalos no alambrado. Em meio àquela gente armada, revólveres e facões pendendo da guaiaca, seu Alvarino, indiferente às charlas e ruídos de esporas, permanecia absorto em seu crochê, como se ali estivesse tricotando desde o início dos tempos. Jamais ouvi qualquer piada a respeito das prendas domésticas de Seu Alvarino. Também, pudera! Seria uma empreitada um tanto arriscada dirigir qualquer comentário desairoso àquele par de munhecas. Seria homossexual? Ou o travestir-se seria apenas uma prosopopéia que o acometia aos domingos? Fosse como fosse, se gostava de usar saias e fazer crochê, isto era algo que só a ele dizia respeito. "A principal explicação para o Rio Grande do Sul estar na vanguarda da defesa dos gays encontra-se no bom nível educacional da população do Estado", diz o redator de Veja, que certamente jamais teve notícias do Bastide ou do seu Alvarino. "Uma classe média instruída e formada com base na imigração européia tende a ser mais crítica e aberta a atitudes liberais", afirma o historiador Luiz Roberto Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pura conversa fiada de acadêmicos. Lá na Linha, não era hábito local imiscuir-se na vida de ninguém. O preconceito veio através dos padres europeus, que lá introduziram as noções de pecado e culpa entre gaúchos que viviam imersos em uma espécie de paganismo crioulo pré-cristão. * 26/05/2012 terça-feira, julho 22, 2014
BRANCA E RADIANTE VAI A NOIVA... Santana do Livramento, minha cidade natal – mas não aquela em que fui criado - parece ter decidido profanar o Santo dos Santos. Verdade que os santanenses sempre foram pioneiros. Foi em Livramento que surgiu a primeira célula comunista no Brasil, já em 1918, apenas um ano após a revolução russa, criada por anarquistas italianos que haviam aportado em Rio Grande. Os paulistanos se gabam - como se louvável fosse gabar-se da humana estupidez - de que o Partido Comunista tenha nascido em 1922, em São Paulo. Não é verdade. O obscurantismo tem origens gaúchas. Mas os comunistas russos estavam eivados de boas intenções e na época ninguém sonhava com a tirania que resultou dos nobres propósitos dos bolcheviques. De certa forma, era dever de todo humanista aderir à revolução. As melhores mentes da época jogaram-se de corpo e alma na Idéia, como então se dizia. Agora o puchero é mais gordo. A celebração da união entre pessoas do mesmo sexo em um CTG (Centro de Tradições Gaúchas) foi sugerida pela diretora do Foro de Livramento, juíza Carine Labres. Que asco, tche! Deve ter muito maula sofrendo arcadas de vômito. Pior ainda, a magistrada entende que a melhor data para o casamento é 13 de setembro, justo quando se iniciam os festejos da Semana Farroupilha e as homenagens a figuras como o o general Bento Gonçalves da Silva, o símbolo maior da valentia gaúcha. Contrabandista e ladrão, é verdade, mas naqueles tempos tudo era muito embaralhado e algum herói se precisava cultuar. Há alguns anos, provoquei um deus-nos-acuda definindo a Semana Farroupilha como a celebração de uma derrota e chamando o obelisco do Ponche Verde de pequeno poste. Imagino como devem andar eriçados os brios da gauchada com a provocativa sugestão da juíza, que nos traz à mente a exótica imagem de um gaúcho dançando a chula de leque em punho. Gaúcho, sempre me manifestei contra o casamento gay. Não por ser gaúcho nem por ter algo contra homossexuais. Convivi com eles desde o ginásio à universidade e mais tarde na vida profissional. Ostentavam uma certa aura, não digo de heróis, mas de rebeldes avessos à sociedade bem comportada, à ética vigente, ao casamento e à religião. Entre os homossexuais com os quais convivi – e alguns eram companheiros de bar – nunca vi casais nem pessoas com pendores religiosos. Todos tinham consciência de que as religiões vigentes condenavam seus comportamentos, e das igrejas só queriam distância. Eram geralmente pessoas cultas e sensíveis. Quando penso nos homossexuais de minha juventude, sempre me vem à mente o “non serviam” de Lucifer, a primeira afirmação de liberdade ante a arrogância do Altíssimo. Sou, isto sim, contra o casamento. Quando vejo um homem casar com homem, vejo uma pessoa que trocou os prazeres por deveres, os bares e as saunas pelo lar, a vida alegre e solta pela monotonia do casal. Em suma, a liberdade por grilhões. Volto a esses teatrinhos da classe média, os CTGs. O gaúcho é personagem de três países, Brasil, Uruguai e Argentina. Mas só entre nós se fez de um marginal um herói, todo coragem e virtudes, o centauro dos pampas. O gaúcho dos CTGs é inumano: valente ao extremo, honesto, leal, generoso, em suma, um santo. E principalmente macho. O que é um absurdo. Por que não poderia um gaúcho ser homossexual? Como reação a este machismo, abundam as piadas do gaúcho bicha, e algumas delas são muito pertinentes. Na fronteira oeste, sempre houve tolerância ao homossexualismo. Costumo contar a saga do pedritense Rui Bastide, gaúcho de fibra, homossexual assumido já nos anos 60, que saiu do armário muito antes que se falasse em sair do armário. Querido por seus conterrâneos, era vereador aguerrido e foi prefeito da cidade. Em meus dias de ginásio, tive pelo menos dois colegas de aula que eram homossexuais e nenhum deles era por isso hostilizado. Havia inclusive um outro, já sessentão, personagem importante da cidade. Consta que suas netinhas faziam roda em torno dele, cantando: “Vovô é bicha, vovô é bicha”. Os CTGs, ao cultivar o mito, ignoram o homem de carne e osso. Verdade que o patrão do CTG Sentinela do Planalto, o advogado e vereador Gilbert Gisler, acatou a idéia, provocando reações indignadas. O mesmo não pensam outros cetegistas. "Que se casem onde quiserem, cada um vive do jeito que quer, mas um CTG não é o lugar para isso", disse o presidente da Associação Tradicionalista de Livramento, Rui Ferreira Rodrigues. Na semana passada, foram convocados os representantes das 40 entidades tradicionalistas de Livramento para uma reunião de urgência. Dos 38 que compareceram, todos repudiaram o casamento gay em CTG. Os cetegistas não estão entendendo os tempos que vivem. A partir do dia 20 de agosto de 2012, os travestis e transexuais interessados poderão ter um documento de identidade no gênero no qual se identificam. O documento vale apenas em território gaúcho e é feito no Instituto Geral de Perícias (IGP). Se até o Estado já assumiu esta realidade, que esperam os CTGs para adaptar-se aos novos tempos? Seja como for, será no mínimo divertido ver a noiva - um baita macho - casando com as pilchas prescritas pelos CTGs: SAIA E BLUSA OU BATA: 1) Saia: com a barra no peito do pé, godê, meio-godê ou em panos. 2) Blusa ou bata: de mangas longas, três quartos ou até o cotovelo (vedado o uso de “boca de sino” ou “morcego”), decote pequeno, sem expor os ombros e os seios, podendo ter gola ou não. 3) Bordados e pinturas: se utilizados, devem ser discretos. As pinturas com tintas para tecidos. 4) Tecidos: lisos. Nas Blusas ou batas, mais encorpados. 5) Cores: escolher cores harmoniosas e lisas, esquecendo as cores fortes, proibidas as cores berrantes e fosforescentes. 6) Cuidados: Nas apresentações artísticas, o traje feminino deve representar a mesma classe social do homem. 7) Vedações: enfeites dourados, prateados, pinturas à óleo e purpurinas. VESTIDO: 1) Modelo: Inteiro e cortado na cintura ou de cadeirão ou ainda corte princesa com barra da saia no peito do pé, corte godê, meio-godê, franzido, pregueado, com ou sem babados. 2) Mangas – longas, três quartos ou até o cotovelo, admitindo-se pequenos babados nos punhos, sendo vedado o uso de “mangas boca de sino” ou “morcego”. 3) Decote – pequeno, sem expor ombros e seios. 4) Enfeites – de rendas, bordados, fitas, passa-fitas, gregas, viés, transelim, crochê, nervuras, plisses, favos. É permitida pintura miúda, com tintas para tecidos. Não usar pérolas e pedrarias, bem como, os dourados ou prateados e pintura a óleo ou purpurinas. 5) Tecidos - lisos ou com estampas miúdas e delicadas, de flores, listras, petit-poa e xadrez delicado e discreto. Podem ser usados tecidos de microfibra, crepes, oxford. Não serão permitidos os tecidos brilhosos, fosforescentes, transparentes, slinck, lurex, rendão e similares. 6) Cores – devem ser harmoniosas, sóbrias ou neutras, evitando-se contrastes chocantes. Não usar preto, as cores da bandeira do Brasil e do RS (combinações) 7) Na categoria mirim: não usar cores fortes (ex: marrom, marinho, verde escuro, roxo, bordô, pink, azul forte). Quem viver, verá! sábado, julho 19, 2014
OS ANOS MAIS INÚTEIS DE MINHA VIDA * “Direito se inclui na área das humanas a qual você se referiu na sua última entrada do blog?” – pergunta Bruno Bolson Lauda. “É que é absolutamente surpreendente o número de profissionais atuantes, experientes, que ficam a tentar obter uma vaga em bons cursos de mestrado e de doutorado, inclusive puxando o saco dos professores para que lhes concedam, em tempo, a almejada vaga. Acredito que deve ter alguma importância para além do âmbito da academia na área jurídica, do contrário tantos não procurariam um pós reconhecido. Compreendo que, em Letras e em Sociologia, o pós seja somente uma procrastinação (se bem que, quais outras opções tem um bacharel nessas áreas? Servem para alguma coisa que não esteja ligada à academia?), mas, no Direito, passa por pelo menos uma boa medalha". Meu caro Lauda: para começar, normalmente os cursos de Direito são vistos como pertencentes à área de humanidades. Com uma diferença: ao contrário dos cursos de Letras ou Sociologia, formam profissionais necessários à sociedade. Em As Viagens de Gulliver, Swift faz uma crítica corrosiva a juízes e advogados. Mas na hora de um aperto legal, o recurso a um advogado é tão crucial quanto uma visita a um médico. Mas, cá entre nós, não sei muito para que serve um curso de Direito. Minha mulher – a que partiu – era auditora fiscal e trabalhou toda sua vida com direito tributário. Tinha curso de Filosofia. Na época em que fez concurso, exigia-se apenas curso superior. Qualquer um. Podia ser até de Educação Física. Eu, que também fiz o concurso, tinha o curso de Direito, mas não exercia a profissão. Na época, já trabalhava em jornal. Dei algumas aulas para ela, pelo menos para introduzi-la no jargão jurídico. Resumindo: ela passou no concurso. Eu não. Passou boa parte de sua vida elaborando pareceres jurídicos. Uma vez aposentada, passou a trabalhar no Conselho de Contribuintes em Brasília, última instância de julgamento de processos fiscais. Seus pareceres passaram a constituir jurisprudência. Passou também a assessorar uma importante banca de advocacia em São Paulo, na qual coordenava o setor tributário. Já entrada nos 50, achou que precisava fazer um curso de Direito, para poder assinar petições. Alertei-a: não vais agüentar cinco anos. Ela insistiu em seu propósito e fez vestibular na prestigiosa Mackenzie. Não agüentou três dias. Na primeira aula de Direito Constitucional, um decrépito professor perguntava a seus alunos: - O direito é uma emanação da so.. da so...? Ninguém conseguia terminar a frase. - Da socie... da socie...? Os alunos, demonstrando invulgar inteligência, responderam em coro: - Da sociedade!!! - Muito bem - disse o professor, com um sorriso beatífico. - Ao direito dos costumes, costumamos chamar de Direito con... Direito con...? Silêncio total. - Direito consue...? Consue...? Silêncio ainda mais espesso. - Consuetu...? Consuetu...? Nada feito. - Consuetudi...? Consuetudi...? Muito menos. O brilhante professor exclamou então com um sorriso sapiente na face, sorriso de quem detém o saber: - Consuetudináááááário!!! Foi seu terceiro e último dia de curso. Preferiu continuar elaborando pareceres e dando consultoria sem diploma algum. Como ela, milhares de outros auditores fiscais e fiscais trabalham com Direito na Receita Federal, embora oriundos de profissões que com Direito nada tem a ver. Uma de minhas dentistas, eu a perdi para o Ministério da Fazenda. Insatisfeita com sua profissão, fez concurso para auditor e hoje lida com leis. Há despachantes por aí afora que entendem mais de Direito que muito bacharel. Continua o Lauda: “De qualquer forma, realmente não nego que, mesmo na área jurídica, a bolsa pode ser uma armadilha. Um amigo meu alertou-me dela já há algum tempo (e é por isso que atualmente, mesmo recebendo-a, com um ano de mestrado e aos vinte e quatro anos, procuro emprego). E talvez até mesmo em outras áreas. Conheço mestrandos em Farmácia, Agronomia e Medicina que mal vêem a hora de largar a dita cuja e arranjar um emprego em uma boa multinacional ou em um bom hospital. Como com certeza não devo ser o único a se manifestar acerca dessa sua última entrada, então não direi mais nada”. Raciocinando um pouco mais adiante. Imaginemos que alguém se forme hoje em Direito e opte por um mestrado e doutorado. Não terá exercido a profissão e, se pensar em voltar ao ramo depois da pós-graduação, as leis já serão outras. Particularmente neste país em que os responsáveis pelo ordenamento jurídico são acometidos de uma especial fúria legiferante. Mestrados e doutorados na área humanística, eu os vejo de modo geral como masturbação acadêmica. Só afastam o profissional do mercado de trabalho. Ora, me perguntará o leitor: por que então fiz doutorado? Simples. Fiz por diletantismo. Queria viajar, queria Paris, queria seus vinhos e queixos, suas mulheres e suas artes. Nem apanhei meu diploma. Havia toda uma burocracia para apanhá-lo e eu não tinha disposição alguma de enfrentá-la só pra pegar um papelucho. Mas não posso dizer que minha pós-graduação foi inútil. Indiretamente, para algo o doutorado serviu. Conheci por dentro uma sociedade desenvolvida, conheci melhor a Europa, aperfeiçoei mais um idioma, enviei crônica diária de Paris para meu jornal em Porto Alegre, divulguei a obra de Ernesto Sábato na França e passei a traduzir seus livros. (Meu orientador, que não sabia se Sábato era açougueiro ou alfaiate, acabou escrevendo um livro sobre sua obra e divulgou sua literatura em todo o continente. Fui bom professor). Para um jornalista, isto constitui uma excelente ferramenta de trabalho. Mas nada tinha a ver com o curso em si. Uma vez doutor, descobri – para minha surpresa – que doutorado servia para lecionar. Lecionei literatura brasileira e comparada durante quatro anos. Foram os anos mais inúteis de minha vida. * 28/04/2010 quarta-feira, julho 16, 2014
RECÓRTER CALA Comentei há pouco as reivindicações dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) mas com smartphone, que estão invadindo prédios em bairros nobres da cidade, exigindo o direito de morar junto aos ricos sem pagar um vintém. Uma pessoa leva uma vida para juntar um patrimônio e conseguir viver bem. Estes senhores acham ser possível pular da miséria para o luxo sem trabalho algum. Falei também do líder do movimento, Guilherme Boulos, que de sem-teto nada tem, aventureiro oriundo da Fefelech - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – que se diz professor de psicanálise. Mas a meta de Boulos não é exatamente teto para os sem-teto. E sim a revolução socialista. Qual revolução socialista? De seu artigo escrito ontem na Folha de São Paulo, deduzimos que é aquela de 1917, que de início se chamou comunista, e que estertorou em 1989, com a queda do Muro. Escreve o jovem stalinista, a propósito da morte de Plínio Arruda Sampaio: “Figurou nessa lista ao lado de gente como Luiz Carlos Prestes, Francisco Julião (dirigente das Ligas Camponesas) e do próprio Jango, dentre outros grandes nomes que defenderam os interesses populares contra o golpe militar”. Ou seja, o marxismo de Boulos não é apenas pré-64. É pré-35. Data do auge do stalinismo, quando o Paizinho dos Povos queria pôr uma pata na América Latina. Só mesmo no Brasil para um espécime como este ganhar coluna na grande imprensa. Não bastasse pretender um revival da tomada do Palácio de Inverno, as reivindicações dos sem-teto são múltiplas. Hoje de manhã, com uma manifestação contra operadoras de telefonia móvel, bloquearam várias vias na região da Vila Olímpia, na zona oeste de São Paulo. Em nota, o movimento informou que lutava contra “os abusos das operadoras de telefonia celular no país”. Mais um pouco e o MTST estará reivindicando televisores. Nada como um dia depois do outro. Ainda há pouco, Reinaldo Azevedo desfechava suas baterias contra o “coxinha extremista”: “Guilherme Boulos, aquele coxinha extremista, oriundo de família rica, mas que decidiu fazer a revolução em lugar dos pobres e se transformou no queridinho dos engajados, reuniu nesta quinta 15 mil pessoas, segundo a PM, num protesto na Zona Oeste de São Paulo em favor de moradia. Ele é o chefão do MTST, o dito Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Bloquearam avenidas, causaram um congestionamento dos diabos, infernizaram a vida das pessoas. Mas a imprensa diz que a manifestação foi “pacífica”. Por enquanto ao menos. Boulos já deixou claro que, se o poder público não ceder às suas chantagens, vai correr sangue”. Hoje, o recórter tucanopapista de Veja e o coxinha extremista assinam coluna no mesmo jornal. Ontem, Boulos fez a defesa do marxismo mais obsoleto que ainda persiste em alguns bestuntos tupiniquins, o que seria um prato feito para o recórter. Sempre rápido no gatilho, o recórter manteve um silêncio obsequioso. Quando o guardião da democracia voltará a lançar diatribes contra o stalinista incendiário? Voltará a chamá-lo de coxinha extremista? Calou-se o valente? Pelo jeito, Boulos ganhou, senão um aliado, pelo menos um conivente. terça-feira, julho 15, 2014
SANTIAGO SEGUNDO LITTíN * Santiago do Chile — A cidade é feia, pobre e suja. Pelos buracos e lixo acumulado nas amplas avenidas, adivinha-se uma capital que um dia foi próspera e cujos habitantes desfrutaram, em passado pouco distante, um alto nível de vida. Cidadãos pobremente vestidos, em seus ternos ainda restam farrapos de dignidade — e nada mais triste do que ver um homem cheio de remendos, mas elegantemente vestido, estendendo a mão súplice para pedir alguns centavos. Lojas vazias, de vazias e tristes vitrines, restaurantes entregues às moscas, garçons olhando para nada. Mal o sol se põe sobre o Pacífico, a capital escurece e os raros privilegiados da tirania se escondem em suas tocas, temerosos da fome e da justa violência dos deserdados. Mesmo durante o dia, nota-se tensão e medo nos rostos e gestos, como se alguém que agora circula livremente pelas ruas, no momento seguinte, sabe Deus lá por que razões, pudesse estar algemado nos porões da ditadura. Um exército parece ter posto suas patas sobre a cidade. Estou em Santiago do Chile. Do Chile de Pinochet. O poder do tirano é onipresente. Em um país privilegiado pelos deuses, que por sua geografia se permite quatro estações simultâneas, mar e montanha, deserto e neve, os tentáculos da ditadura envolvem o território todo, manifestando-se principalmente na capital. Raríssimas bancas de jornais exibem apenas a imprensa laudatória ao regime. Jornais de oposição, nem em sonhos. A imprensa internacional está banida do país e só pode ser adquirida em hotéis de luxo, onde o cidadão comum só pode entrar se estiver disposto a sérios interrogatórios pela polícia do regime ao sair, mesmo que saia sem jornal algum. As raríssimas livrarias, de paupérrimas estantes, exibem não mais que literatura técnica e alguma ficção de escritores coniventes com a ditadura. Miséria, lixo, decadência, medo, opressão, silêncio, desconfiança: estes são os odores que todo visitante, isento de quaisquer preconceitos ideológicos, respira em um rápido giro por Santiago. Mas as cidades são como árvores, quem quiser destruí-las terá de cortar-lhes as raízes. Estão vivas as raízes de Santiago. Que um dia será Salvador. Salvador Allende. Terminasse eu aqui esta crônica, sem ajuntar sequer uma linha a mais, conquistaria platéias e simpatias, sem falar em tribunas, lugar ao sol e quem sabe até mesmo uma sinecura num órgão público qualquer. Acontece que estaria mentindo, transmitindo, é verdade, uma mentira que todos gostam de ouvir. Como não gosto de mentir, renuncio a eventuais simpatias e passo a contar o que vi. Para quem está acostumado a bater pernas pelas ruas de cidades como Porto Alegre ou São Paulo, Santiago exerce um poderoso impacto pela conservação e limpeza de suas ruas e passeios. Nas capitais brasileiras, há muito resignei-me a enfrentar ruas sujas e esburacadas, sem falar no lixo cotidiano nelas jogado por transeuntes sem noção alguma de cidadania, meros habitantes, nefastos usuários da cidade. Passear pelas margens do Mapocho — rio que atravessa um aglomerado de cinco milhões de almas — respirar milagre, suas águas preservam a limpidez com que descem da Cordilheira. Para quem sofre a Beira-Mar Norte de Florianópolis — já nem falo do riacho Ipiranga ou Tietê — o Mapocho mais parece miragem de viajante perturbado pela travessia dos Andes. Pelo Paseo de la Ahumada, rua Estado, Huérfanos, uma fauna humana e bem vestida (insisto em dizê-la humana, pois os transeuntes das ruas centrais do Rio ou São Paulo, sem ir mais longe, mais parecem animais machucados na luta pela vida) que há muito não se vê nas metrópoles da América Latina. Antes de Santiago, estive em Buenos Aires e a outrora elegante Florida, hoje, proporções à parte, mais parece rua Direita ou Nossa Senhora de Copacabana. Deixada de lado a agressão idiota — mas não perigosa — de cambistas à cata de divisas fortes, senti no centro de Santiago sensação que brasileiro algum pode hoje sentir em nossas capitais: a sensação de segurança. As ruas da capital chilena têm um ar de praça; nela vi velhos, jovens e crianças sentados, degustando sorvetes e o espetáculo da rua em si, tanto à tarde como à noite, sem preocupação alguma com assaltos ou violência gratuita. Para mim, que já penso duas vezes quando em Porto Alegre ao atravessar a Borges e a Praça XV para freqüentar o Chalé à noite, Santiago me fez evocar a Praça da Alfândega dos anos 60, quando filosofávamos madrugada adentro preocupados com a enteléquia aristotélica ou o ser em Sartre, jamais com punhais ou revólveres. Outra surpresa, e das melhores, os quiosques de jornais e revistas. Penso que tais quiosques são uma excelente amostragem da cultura e liberdade de expressão de um país, neles podemos auscultar que tipo de informação consomem os cidadãos e, ao mesmo tempo, que qualidade ou quantidade de informação não proíbe o Estado de ser consumida. Pois bem: nesta Santiago que imaginava cidade sitiada e sob censura, vi nas bancas uma profusão e diversidade de jornais que sequer encontrei em Paris ou Madri. Jornais em cirílico do Leste europeu, imprensa de toda Europa, Escandinávia, Alemanha, França, Itália, Espanha, Estados Unidos, América Latina, Brasil. Sabendo como esta imprensa toda é gentil a Pinochet, o espanto do turista vira perplexidade. E mais: jornais chilenos malhando, em primeira página, a ditadura. Ocorre-me evocar os quiosques tristes e monocórdios que vi em cidades do Leste europeu, mas nem preciso ir tão longe. nenhuma banca do Rio ou São Paulo, neste Brasil 88, me oferece tal quantidade e diversidade de informação. Livrarias imensas, bem sortidas, onde não faltam livros de Fidel Castro ou Garcia Márquez, o mais ferrenho adversário de Pinochet e, curiosamente, defensor incondicional do ditador cubano. Tampouco faltam nas prateleiras obras de José Donoso ou Isabel Allende, isso para citar apenas dois opositores do regime chileno já conhecidos do leitor brasileiro. O que é no mínimo insólito em uma ditadura. Nas vitrines e gôndolas das mercearias, víveres e bebidas do mundo todo, desde arenques do Báltico a foie gras trufado, dos mais diversos uísques da Escócia a vinhos alemães, franceses, italianos, espanhóis. E chilenos, naturalmente. Preços? Abordáveis. Para se ter uma idéia, pode-se comprar um scotch — com a certeza de que não são da reserva Stroessner — a partir de dez dólares, ou seja, o preço de um Natu Nobilis hoje. Que mais não seja, qual intelectual de esquerda não gostaria de viver em uma sociedade onde uma dose de um bom escocês custa, em bares, um dólar? Conheço não poucos exilados traumatizados com a democrática França de Mitterrand, onde um gole de uísque só é viável a partir dos cinco dólares. Piadas à parte, a farta oferta de tais produtos evidencia uma sociedade habituada a comer bem e com requinte, afinal comerciante algum seria insano a ponto de importar iguarias para turista ver. Contava eu estas e outra coisas a uma moça ilhoa e bem-nascida, cidadã da Santa e Bela Catarina, dessas que julgam ser todo empresário um canalha, mas que jamais recusam uma cobertura facilitada por um pai empresário, dessas que jamais subiram o morro do Mocotó mas estão preocupadas com a colheita do café na Nicarágua, em suma, falava eu com um espécime típico da raça que chamo de os Novos Cafeicultores, e a objeção — a primeira objeção — caiu como um raio: — E a miséria? Aposto que não foste visitar os bairros pobres, a periferia de Santiago. Tinha razão em parte a jovem cafeicultora. Não visitei os bairros pobres de Santiago, afinal se troco as margens do Atlântico pelas do Pacífico, não será para ver miséria que conto meus parcos dólares. Não tenho a psicologia do francês médio, por exemplo, que mal chega ao Brasil, quer visitar favelas. Este comportamento, a meu ver doentio, parece-me ser vício de europeu inculto e de consciência pesada, que insiste em ver a miséria do Terceiro Mundo que explora, para depois contribuir com avos de seu bem-estar para guerrilhas suicidas. Se junto meus trocados para visitar um país, quero receber o que de melhor esse país tem a me oferecer. Nos anos que vivi em Paris, descia certa vez de Montmartre e enveredei pelas ruelas da Goutte d'Or, encrave árabe e paupérrimo que se alastra na cidade como mancha de óleo. Senti-me, de repente, em um território miserável para o qual jamais teria pensado em viajar, que mais não seja não será minha indignação ou revolta que resolverá o problema árabe na França. Dei meia volta, enfurnei-me na primeira boca de metrô e só voltei à superfície na Rive Gauche, a margem que mais me fascina do Sena. Não, não vi a miséria de Santiago. Mas consolei a cafeicultora: podes estar certa de que miséria existe, pois miséria está presente em qualquer metrópole do mundo. Ela sorriu por dentro, parecia dizer: que bom que existe miséria em Santiago. O que me deixou um tanto perplexo, eu sorriria intimamente se soubesse que não existe miséria em lugar algum do mundo, independentemente de regimes políticos ou ideológicos. Ela, por sua vez, admitia a veracidade de meu relato. Ajuntei que a inflação era de seis por cento. Quando digo isto a um brasileiro, a reação normal é: "seis por cento ao mês?" Acontece que é seis por cento ao ano. Isto é sonho que, brasileiros, já nem ousamos sonhar. Se eu passar a alguém os preços de um restaurante que visitei em Santiago no mês passado, e se este alguém visitar o Chile no ano que vem, é provável que os preços continuem os mesmos ou, no máximo, tenham variado em torno de uns dez por cento a mais. Cá entre nós, não conseguimos recomendar para amanhã um restaurante no qual comemos ontem. Caiu, então, fulminante, a segunda objeção: — Sim. Mas que preço pagaram os chilenos por este bem-estar? Houve, no Chile, um assalto marxista e armado ao Estado e negá-lo é paranóia. Deste confronto resultaram, segundo alguns, dez mil mortes. Segundo outros, quarenta mil. De qualquer forma, um preço infinitamente inferior ao preço pago pelos russos a Josiph Vissarionovitch Djugatchivili — que oscila entre vinte e sessenta milhões de cadáveres — para dar no que deu: uma confederação forçada de países pobres, alguns vivendo a nível de fome, como a Romênia e a Albânia. Bem mais barato que o preço pago pelos cambojanos a Pol Pot: dois milhões e meio de mortos, em um país de cinco milhões de habitantes, e disto não mais se fala. Sem falar que os que ficaram se jogam ao mar em jangadas, enfrentando tempestades, tubarões e piratas, ou já esquecemos os boatpeople? Sem falar nos que matou Castro — número que nenhum Garcia Márquez aventa — para instalar no Caribe seu gulag tropical. Em Cuba também há farta escolha de bebidas e gêneros alimentícios. Mas só o turista pode comprá-los, e com dólar. O cidadão cubano fica chupando no dedo. Nas praias, cheias de peixe, não há atividade pesqueira alguma, pois quem tem barco vai pra Miami. — Justificas então tais mortes? — quis saber a moça — referindo-se, é claro, aos mortos do Chile, já que tornou-se tácito, para os fanáticos contemporâneos, que é lícito fazer correr sangue de certas pessoas e criminoso o de outras. Em suma, para usar dois conceitos que não me agradam, porque multívocos, é perfeitamente permissível fazer jorrar sangue da assim chamada direita e constitui sacrilégio, quase tabu, sangrar a assim chamada esquerda. Não justifico morte alguma, a humanidade tem pelo menos uns três mil anos de experiência histórica, milênios suficiente, parece-me, para concluirmos que não é matando que se chega a erigir a cidade humana. — Cristaldices! — jogou-me na cara minha cafeicultora, digo, interlocutora. Pode ser. Chamo então um cineasta exilado que voltou clandestinamente ao Chile, em depoimento tomado por Gabriel Garcia Márquez, intitulado A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile, já traduzido ao brasileiro por Eric Nepomuceno e encontradiço em qualquer livraria. No capítulo significativamente intitulado "Primeira desilusão: o esplendor da cidade", depõe Littín: — Eu atravessei o salão quase deserto seguindo o carregador que recebeu minha bagagem na saída, e ali sofri o primeiro impacto do regresso. Não notava em nenhuma parte a militarização que esperava, nem o menor traço de miséria. (...) Não encontrava em nenhuma parte o aparato armado que eu tinha imaginado, sobretudo naquela época, com o estado de sítio. Tudo no aeroporto era limpo e luminoso, com anúncios em cores alegres e lojas grandes e bem sortidas de artigos importados, e não havia à vista nenhum guarda para dar informação a um viajante extraviado. Os táxis que esperavam lá fora não eram os decrépitos de antes, e sim modelos japoneses recentes, todos iguais e ordenados. Mais adiante: — Na medida em que chegávamos perto da cidade, o júbilo com lágrimas que eu tinha previsto para o regresso ia sendo substituído por um sentimento de incerteza. Na verdade o acesso ao antigo aeroporto de Los Cerrillos era uma estrada antiga, através de cortiços operários e quarteirões pobres, que sofreram uma repressão sangrenta durante o golpe militar. O acesso ao atual aeroporto internacional, em compensação, é uma auto-estrada iluminada como nos países mais desenvolvidos do mundo, e isto era um mau princípio para alguém como eu, que não só estava convencido da maldade da ditadura, como necessitava ver seus fracassos na rua, na vida diária, nos hábitos das pessoas, para filmá-los e divulgá-los pelo mundo. Mas a cada metro que avançávamos, o desassossego original ia se transformando numa franca desilusão. Elena (militante da esquerda chilena que acompanha Littín) me confessou mais tarde que ela também, ainda que estivesse estado no Chile várias vezes em épocas recentes, tinha padecido o mesmo desconcerto. Coragem, leitor de esquerda. Adelante! Leiamos Littín, só mais um pouquinho: — Não era para menos. Santiago, ao contrário do que contavam no exílio, aparecia como uma cidade radiante, com seus veneráveis monumentos iluminados e muita ordem e limpeza nas ruas. Os instrumentos de repressão eram menos visíveis do que em Paris ou Nova York. A interminável Alameda Bernardo O'Higgins abria-se frente a nossos olhos como uma corrente de luz, vinda lá da histórica Estação Central, construída pelo mesmo Gustavo Eiffel que fez a torre de Paris. Até as putinhas sonolentas na calçada oposta eram menos indigentes e tristes do que em outros tempos. De repente, do mesmo lado em que eu viajava, apareceu o Palácio de La Moneda, como um fantasma indesejado. Na última vez que eu o tinha visto, era uma carcaça coberta de cinzas. Agora, restaurado e outra vez em uso, parecia uma mansão de sonho ao fundo de um jardim francês. Fico por aqui. Se o leitor ainda alimenta dúvidas, que visite o Chile, preferentemente após ter deambulado por Havana. O homem só conhece comparando. Para finalizar, apenas mais uma observação, não minha, mas de Littín, que talvez elucide a prosperidade atual de seu país. — Uma das primeiras medidas que ele (Allende) tomou no governo foi a nacionalização das minas. Uma das primeiras medidas de Pinochet foi privatizá-las outra vez, como fez com todos os cemitérios, os trens, os portos e até o recolhimento do lixo. O que esclarece, a meu ver, o fascínio das ruas de Santiago. * Joinville, A Notícia, 27.11.88, Porto Alegre, jornal RS, 10.12.88 sábado, julho 12, 2014
PORQUE ME UFANO Em crônica passada sobre a Copa, falei em affonsocelsismo. Um leitor quis saber do que se trata. A palavra vem de Affonso Celso, autor de Porque me ufano de meu país. Segue uma mostragem. Primeiro motivo da superioridade do Brasil: a sua grandeza territorial O Brasil é um dos mais vastos países do globo, o mais vasto da raça latina, o mais vasto do Novo Mundo, à exceção dos Estados Unidos. É pouco menor que toda a Europa. Rivaliza em tamanho com o conjunto dos outros países da América Meridional. Representa uma décima quinta parte do orbe terráqueo. Só a Rússia, a China e os Estados Unidos o excedem em extensão. É quatorze vezes maior do que a França, cerca de trezentas vezes maior do que a Bélgica. A sua circunscrição territorial menos dilatada, Sergipe, sobreleva a Holanda, a Dinamarca, a Suíça, o Haiti e Salvador. Cada um dos municípios em que se subdivide a mais ampla, Amazonas, eqüivale a Estados, como Portugal, Bulgária e Grécia. Pará, Goiás, Mato Grosso ultrapassam qualquer nação européia, salvante a Rússia. O Brasil é um mundo. Quer isto dizer que se a população do Brasil igualar a densidade da população belga, tornar-se-à superior à que se calcula existir hoje na terra inteira. Basta que essa densidade seja como a de Portugal, para a população ascender a 400 milhões. Ascenderá a um bilhão se a densidade emular com a das ilhas Britânicas. Já se estima num terço da população latina do Novo Mundo a atual do Brasil. Ocupa o 13° lugar entre as nações mais povoadas do globo, só tendo acima de si as dos impérios anglo-índico, chinês, e russo, a da França e colônias, a dos Estados Unidos e colônias, a da Alemanha e colônias, a do Japão, a da Áustria-Hungria, a da Holanda e colônias, a da Itália e colônias, a do império Otomano, e a da Bélgica com o Estado do Congo. Das nações latinas só distanciam o Brasil em população a França e a Itália. Quanto à Espanha, a sua população presentemente, se não é inferior, é igual à do Brasil. Tem esta dobrado de trinta em trinta anos. Se continuar assim a progressão (e tudo indica que aumentará: a população de S. Paulo triplicou em dez anos), o Brasil nos meados do século XX sobrepujará em número de habitantes a França dos nossos dias. Vantagens unidas à grandeza territorial do Brasil A enorme extensão do Brasil forma um todo homogêneo, bem situado, servido por magníficos rios, facilmente acessível. Comunicam-se entre si, do modo mais natural, todos os elementos desse conjunto, quer pelo mar, quer pelo interior. Ocupa ele a parte central do continente. Acha-se mais perto da Europa e da África que qualquer ponto da América espanhola, o que o torna em extremo favorável ao comércio e à navegação. Oferece mais de mil léguas de costas, com uma infinidade de portos e enseadas, como que adrede abertos para acolherem os visitantes. Constitui tão gigantesco território um resumo da superfície do planeta, exceto as regiões polares. Descobre-se nele tudo quanto o mundo possui de melhor. Pode suprir por si só as necessidades físicas das inumeráveis multidões que o povoarem. À flora brasileira, maravilhosamente rica, é dado se juntarem todas as flores e frutas do universo. Nenhuma é incompatível com a nossa natureza. Não há planta exótica que, convenientemente tratada, deixe de germinar no Brasil. Homens de não importa que procedência encontram também no Brasil, escolhendo zona, meio adequado para prosperar. Negros, brancos, peles-vermelhas, mestiços vivem aqui em abundância e paz. PS – Recomendo a leitura: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/ufano.html#2 quinta-feira, julho 10, 2014
LGBT DIXIT Homofobia, para começar, é neologismo que começou errado. Pretendeu-se associar o homo a homossexual, quando homo continua tendo seu significado original grego, o de mesmo. Homofobia, etimologicamente, quer dizer “mesmo medo”. Ora, a palavrinha pretende ser sinônima de repulsa ao homossexualismo. Não é. Foi construída errada. É espantoso ver jornalistas, profissionais que todos os dias lidam com as palavras, aceitarem conceitos sem pé nem cabeça, sem sequer questioná-los. Vou usar, à guisa de argumentação, a palavrinha mal construída. Se você sair por aí pregando a pena de morte para homossexuais, evidentemente será condenado como homófobo. Mas é o que diz o Livro. Será a Bíblia então proibida? A senadora Marta Suplicy, ciente desta implicação absurda, abriu uma exceção no projeto de lei. Nos templos, seria permitida a condenação do homossexualismo. Com isto deixa claro que, fora dos templos, qualquer crítica ao homossexualismo está sujeita às penas da futura lei. Se um padre ou pastor ler o Levítico em um templo, tudo bem. Se ler em praça pública, cadeia nele. Se você pregar a pena de morte para os heterossexuais, tudo bem. Está exercendo seu direito à livre expressão. O projeto de lei contra a homofobia pretende criminalizar a discriminação contra homossexuais no país. Se você discriminar quem gosta do sexo oposto, nada obsta. O que os homossexuais pretendem, no fundo, é uma lei que beneficia apenas a eles. Na verdade, estão discriminando quem não participar de suas opções sexuais. Quem está patrocinando esta tal de legislação anti-homofóbica, como também o malsinado kit anti-homofobia, é o PT. E só podia ser. Com a queda do muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética, as viúvas do Kremlin, saudosas da finada luta de classes, criaram agora outros conflitos. Se você for pesquisar os arquivos de jornais – e eu fiz esta pesquisa na Folha de São Paulo – verá que na década de 90 a palavra racismo se multiplica por mil na imprensa. Se a luta de classes obsolesceu, vamos agora jogar raça contra raça. Se isto não bastar, jogamos sexo contra sexo. Sem lutas, a Idéia – como se dizia no início do século passado – não avança. Quem vos fala é um cronista que sempre defendeu a liberdade de uma pessoa optar pelas práticas sexuais que bem entender. Mas se defendo esta liberdade, defendo também a de não gostar – e mesmo condenar – determinadas sexualidades. O mundo está cheio de pessoas às quais repugna a prática do homossexualismo. Porque repugna, não sei. Afinal, se outros gostam disto ou daquilo, ninguém tem nada a ver com isso. Mas considero que estas pessoas têm todo o direito a manifestar tal repulsa. Os homossexuais hoje tornaram-se uma seita agressiva, que pretende ter mais direitos que os demais mortais. Atribuem-se inclusive o direito de determinar como devem ser definidos. Leio nos jornais que o texto do programa de governo de Dona Dilma, protocolado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) causou manifestações de descontentamento na comunidade gay. Motivo: o texto utiliza a expressão “opção sexual” ao se referir a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. A expressão utilizada em organizações internacionais de direitos humanos é “orientação sexual”. Segundo a militância, quem ainda recorre ao termo “opção” são sobretudo fundamentalistas religiosos, defensores da chamada “cura gay”. Homossexuais e afins constituem hoje importante clientela eleitoral, e o governo está atento a estes votos. O Setorial Nacional LGBT (do Partido dos Trabalhadores, é claro) emitiu nota oficial sobre a questão e cobrou mudança. Afirma que foi “surpreendido” pelo texto e observa: “Há décadas o movimento LGBT internacional e nacional – e o próprio PT – tem usado o termo orientação sexual, para destacar que no terreno da sexualidade não se fazem ‘opções’, como escolher entre cores de roupa ou itens de um cardápio. A sexualidade humana é complexa, absolutamente diversa, plural e ‘determinada’ por inúmeros fatores sociais, culturais, históricos e individuais.” Quer dizer, se o LGBT internacional decretou que assim é, assim deve ser. Fixou uma nomenclatura e não é lícito usar outras expressões que não a aceita pelo LGBT. Submisso, o governo recuou. A equipe responsável pelo programa tratou de corrigir o erro no documento reproduzido no site da campanha de Dona Dilma. O trecho polêmico diz: “Ainda no elenco de desafios institucionais, a luta pelos DIREITOS HUMANOS se mantém, sempre, como prioridade, até que não existam mais brasileiros tratados de forma vil ou degradante, ou discriminados por raça, cor, credo, sexo ou opção sexual”. Com a mudança, a parte final do parágrafo ficou assim: “…até que não existam mais brasileiros tratados de forma vil ou degradante, ou discriminados por raça, cor, credo, orientação sexual ou identidade de gênero.” Por um punhado de votos – e que punhado – o PT decidiu que homossexualismo não é opção, mas destino. Os seres humanos nascem heteros ou homos, e isso de ter preferências sexuais está acima do livre arbítrio. O que em nada difere da tese safada de que homossexualismo é genético. Nega-se ao ser humano o direito de preferir com quem quer estar na cama. Ora, fora casos de conformação genital ou mesmo de educação, homossexualismo é obviamente uma escolha. Experimentei, gostei, assumi. Sexualidade não tem maiores mistérios. Estímulo e reação. Se você recebe um estímulo oral, digamos, seu corpo vai reagir sem perguntar de quem é a boca. Por outro lado, relacionar-se com o mesmo sexo é muito bom. Ou os homos não seriam milhões. Tive bons amigos homossexuais, desde o ginásio até a universidade. Verdade que o tempo e a distância nos separaram. Seja como for, jamais perguntei pelas razões de suas escolhas. Alguns eram homossexuais desde jovenzinhos, outros descobriram o bom esporte já adultos. Agora, temos por decreto que o ser humano não pode optar por suas preferências sexuais. LGBT dixit. A campanha da presidente entendeu rapidinho o recado. Seja feita a sua vontade. quarta-feira, julho 09, 2014
MELHOR MESMO SÓ SETE A ZERO La vida es la ruleta en que jugamos todos. A ti te había tocado no mas la de ganar. Pero hoy tu buena suerte la espalda te ha golpeado. Fallaste corazón, no vuelvas apostar. Como todos sabem, não sou aficcionado em futebol. Jamais fui a um estádio e não torço para time nenhum. Só torço nos finais de Copa... contra o Brasil. Nunca imaginei que uma Copa me traria tanta alegria como esta. O resultado de ontem foi perfeito. Se a vitória da Alemanha fosse de 1 a 0 ou de 2 a 1, sempre se poderia alegar que em futebol se ganha, se perde ou se empata. Não foi o caso. O resultado foi para humilhar. Quando soube que estava 2 a 0, me entusiasmei e decidi assistir ao jogo. Fui tomado por um entusiasmo brasilicida. Queria mais. Se a Alemanha fez 5 gols no primeiro tempo, seria de esperar-se mais alguns no segundo. Calculei nuns 7 ou 8 a 0. Errei por pouco. Não imagine o leitor que tenho ressentimentos contra meu país. Nada disso. É que não suporto vê-lo resumido a futebol, em uma mescla de affoncelsismo exacerbado e orgulho chocho. O grande personagem nacional não é o empresário ou industrial que faz o país crescer. Muito menos o médico ou o engenheiro,o comerciante ou o padeiro, o taxista ou o lixeiro, que mantém a bicicleta andando. O grande personagem nacional é o futebolista, cujos feitos só servem para inflar os brasileiros de vento. Desde há muito, a imprensa brasileira vem deturpando o conceito de herói. Herói não é mais o homem capaz de grandes feitos, que vão além da humana capacidade. Herói é simplesmente o bombeiro ou salva-vidas, que nada mais faz senão cumprir o seu dever. O Brasil sempre viveu uma carência de heróis. Neste vazio hiante, até cachorro serve. Quem não lembra da Catita, a cadelinha que defendeu uma criança atacada por dois pitbulls? "Heroína!" - berraram as manchetes. O episódio foi emblemático. Catita, mãe de vários cachorrinhos, arriscava a vida em defesa de um filhote alheio. O velho mito da Madonna, desta vez em versão canina, tão utilizado pelos jornalistas para comover leitores. Mais ainda: Catita era uma cadela plebéia, vira-lata latina e nativa. Os agressores eram cães de elite, alienígenas e com sotaque anglo-saxão. A finada luta de classes ressuscitava e se manifestava mesmo entre caninos. Claro que Catita era de esquerda, e os pitbulls eram da direita truculenta. Em falta de heróis, vai cadela mesmo. Com este vazio conceitual, sobrou para os jogadores de futebol. Estes senhores, que nada acrescentam à riqueza do país – pelo contrário, só subtraem – são hoje os heróis celebrados pela imprensa. Para mim, nada foi mais prazeroso que ver um herói chorando. Um herói se forja na adversidade. Menos os nossos, que só admitem a vitória. Não foram advertidos para o outro lado da moeda, a derrota. Me fez bem ao espírito ver os bravos leões das arenas hodiernas, chorando como gatinhos pela juba perdida. E não choraram porque foi um massacre. Chorariam com qualquer derrota, mesmo um prosaico 1 a 0. A entrevista do técnico foi de uma hipocrisia atroz. Quando a seleção ganha, a vitória é de todos, do técnico e do time. Nesta derrota, Scolari fez como o Cristo, que assumiu os pecados da humanidade, sem que humanidade alguma lhe pedisse tal favor. Em um manifestação de flagrante falsa modéstia, Felipão assumiu exclusivamente para si a responsabilidade da derrota. “Fui eu o culpado”. Como se não tivessem culpa alguma os pata-tortas que estavam no gramado. Pode soar simpático ao telespectador desavisado, mas sua admissão de culpa não resiste à menor análise. É muito complicado explicar o inexplicável, disse com ares de pitonisa o goleiro Júlio César, que engoliu os sete frangos. Pecou pelo simplismo. Inexplicável não se explica. Mas o fiasco nada tem de inexplicável. A Alemanha jogou bem e o Brasil como time de várzea. Após o segundo gol, os brasileiros perderam o controle e corriam como baratas tontas no gramado, atrás de uma bola que parecia ter desenvolvido alergia às chuteiras nacionais. Os alemães, com passes precisos e quase matemáticos, mal deixavam os brasileiros chegar perto da brazuca. A goleada foi insólita. Da incredulidade, os locutores foram passando à constatação. De início, ninguém ousou falar em humilhação. A palavrinha maldita só foi pronunciada depois que começou a ricochetear na imprensa internacional. De um segundo para outro, os clips de propaganda ufanista se tornaram ridículos. A imprensa, que antes só via virtudes na seleção, de repente, não mais que de repente, passaram a ver improviso e falta de preparo. Os candidatos a heróis passaram a ser vaiados e execrados como marginais. Scolari, de esperança de um Brasil pujante entre as nações, virou “avô ultrapassado”. Nada mais catártico para um Brasil inflado de vento e nada mais que esta derrota histórica. Nada mais salutar para a nação que ver o país do futebol derrotado em casa. O que se anunciava como festa nacional, revelou-se um festival de choro e ranger de dentes. Para os paulistas, a grande data se comemora hoje, 9 de julho. Para mim, será sempre o 8. Curtida a ressaca, restam poucos dias para lamber as feridas. Domingo que vem começa outra Copa, a eleitoral, mais vil e mentirosa que aquela que ontem morreu para o Brasil. Não vai dar tempo nem de respirar. Ontem ganhei meu dia. Deutschland über alles! Só uma crítica aos bravos alemães. Foi uma lástima permitir aquele gol do Brasil. Sete a zero seria bem mais emblemático. A donde fue tu orgullo a donde esta el coraje? Por que hoy que estas vencido mendigas caridad? Ya vez que no es lo mismo ganar que ter perdido. Hoy que estas acabado que lastima me das. terça-feira, julho 08, 2014
PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DA COPA DEUTSCHLAND ÜBER ALLES! DEUTSCHLAND ÜBER ALLES! DEUTSCHLAND ÜBER ALLES! segunda-feira, julho 07, 2014
ADOLESCENTES TÊM PRESSA Está causando celeuma a notícia de que o Tribunal de Justiça de São Paulo inocentou um homem acusado de estupro de uma menina de 13 anos. Ele havia sido preso em flagrante enquanto praticava o ato com a adolescente, mas os desembargadores o inocentaram por considerar que a menina era prostituta e aparentava ser mais velha. O fazendeiro acusado de estupro tem hoje 79 anos e mora em Pindorama, na região de São José do Rio Preto. Ele chegou a ser preso em 2011, quando foi surpreendido com duas meninas, de 14 e de 13 anos, enquanto saía de um canavial com as meninas. A Polícia Militar abordou o homem e apurou que as adolescentes receberam disseram que receberam R$ 50 cada uma pelo programa. Apesar de ter sido preso em flagrante, o homem saiu da cadeia 40 dias depois. Julgado em primeira instância e condenado a oito anos de prisão por estupro de vulnerável, foi inocentado das acusações por desembargadores que defenderam que a aparência das adolescentes, que se prostituíam e consumiam álcool, levou o fazendeiro a pensar que fossem maiores de idade. O Código Penal brasileiro, na ausência da tipificação do crime de pedofillia, protege os menores de quatorze anos com a punição por estupro presumido. Ora, dezenas de milhares de adolescentes de menos de 14 anos têm vida sexual escancarada neste país e há quem fale em estupro presumido. Mas os ventos estão mudando. Aconteceu em março de 2012. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que nem sempre o ato sexual com menores de 14 anos poderá ser considerado estupro. A decisão livrou um homem da acusação de ter estuprado três meninas de 12 anos de idade e deve direcionar outras sentenças. Diante da informação de que as menores se prostituíam, antes de se relacionarem com o acusado, os ministros da 3.ª Seção do STJ concluíram que a presunção de violência no crime de estupro pode ser afastada diante de algumas circunstâncias. Escândalo entre as autoridades. A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, manifestou sua indignação com o entendimento do STJ. Para Maria do Rosário, os direitos das crianças e dos adolescentes jamais poderiam ser relativizados. “Ao afirmar essa relativização usando o argumento de que as crianças de 12 anos já tinham vida sexual anterior, a sentença demonstra que quem foi julgada foi a vítima, mas não quem está respondendo pela prática de um crime”, disse a ministra à Agência Brasil. Para a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a decisão foi uma afronta ao princípio da proteção absoluta de crianças e adolescentes, garantido pela Constituição Federal. Em sessão de abril daquele ano, a Terceira Seção da Corte considerou que atos sexuais com menores de 14 anos podem não ser caracterizados como estupro, de acordo com o caso. Na opinião do presidente da associação, o procurador regional da República Alexandre Caminho de Assis, a decisão é um salvo-conduto à exploração sexual. “O tribunal pressupõe que uma menina de 12 anos estaria consciente da liberdade de seu corpo e, por isso, se prostitui. Isso é um absurdo”. Até o alto comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos resolveu dar seu palpite sobre o assunto. Em um comunicado, o escritório da ONU para a América do Sul disse que a decisão do STJ abre um precedente perigoso e discrimina as vítimas. Em que planeta vivem estes senhores? Em 2011, o Estado de São Paulo publicava dados do Censo Demográfico de 2010, segundo os quais existem ao menos 42.785 crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos casados no Brasil. O número se referia a uniões informais, já que os recenseadores não checam documentos. A maior parte dos casamentos de crianças registrados no Censo são informais, já que o Código Civil autoriza uniões apenas entre maiores de 16 anos - abaixo dessa idade, só podem se casar com autorização judicial. O Código Penal, por outro lado, proíbe qualquer tipo de união com menores de 14 anos. “Isso constitui um crime chamado ‘estupro de vulnerável’, previsto no Código Penal e sujeito a detenção de oito a 15 anos”, disse na ocasião Helen Sanches, presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e da Juventude. Segundo ela, o crime se refere diretamente às relações sexuais mantidas com crianças e adolescentes, algo implícito quando se fala em casamento. Helen conta que é cada vez mais comum encontrar famílias nos fóruns pedindo autorização para casar uma filha adolescente ou mesmo passar a guarda dela para o seu parceiro, sem saber da proibição legal. “Quando isso acontece e a menina tem menos de 14 anos, o promotor, além de não acatar o pedido, pode denunciar o rapaz por estupro de vulnerável, mesmo que a relação seja consentida ou que os pais concordem com ela”, explica. Ou seja, até 2011 já tínhamos 42.785 estupros presumidos. A máquina judiciária pretenderá por acaso pôr atrás das grades os 42.785 estupradores? Claro que não! Que termine então essa hipocrisia de pretender punir quem tem relações consensuais com menores de 14 anos. O mundo mudou e a lei permaneceu fossilizada no tempo. Uma menina de 14 anos, hoje no Brasil, arrisca ter largo currículo sexual. Já comentei várias vezes o caso de um encanador de Minas Gerais, que foi acusado nos anos 90 pelo estupro de uma menina de doze anos. Segundo a legislação vigente, relações com menores de quatorze anos, mesmo consensuais, são consideradas estupros. A menina afirmou em depoimento ter consentido com a relação sexual. “Pintou vontade” — disse. Uma legislação vetusta, que considera estupro toda relação — consentida ou não — com menores de quatorze anos, havia encerrado no cárcere o infeliz que aceitou a oferta. Coube ao ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), absolver, em 96, o encanador. Na ocasião, o ministro foi visto como um inimigo da família e da moralidade pátria. Nosso Código Penal é defasado — disse o ministro — e os adolescentes de hoje são diferentes. Sugeriu um limite de doze anos para a aplicação da sentença de violência presumida. “Quando esse limite caiu de dezesseis para quatorze, na década de 40, a sociedade também escandalizou-se”, afirmou. O direito é o cadinho histórico dos costumes, aprendi em minhas universidades. A fundição é lenta. Enquanto o legislador dormia, os tempos mudaram. Como condenar alguém por estupro alguém que se relaciona com meninas de doze anos que se prostituem? É óbvio que a relação foi consensual. Provavelmente terá sido procurada pelas meninas. É crime que clama aos céus justiça ver meninas de doze anos prostituídas? Claro que é. Mas que se procure outro réu, que se crie outra tipificação jurídica para punir este crime. Que não se puna um homem que cometeu o mesmo gesto que pelo menos 42.785 – e obviamente serão muito mais – outros brasileiros cometeram. Prostituição à parte, as novas gerações de adolescentes têm pressa e querem usufruir dos mesmos direitos dos adultos. sábado, julho 05, 2014
SÓ O QUE GRITA É PECADO * Não bastasse o brilhante latinório puxado do fundo do baú, os delicta graviora, monsenhor Charles Scicluna encontrou outra palavrinha para minimizar as acusações de pedofilia feitas aos ministros da Santa Madre. "Cerca de 60% dos casos, tratam-se de atos de efebofilia", isto é, atração física por adolescentes do mesmo sexo. Em 30%, relações heterossexuais e para os 10% restantes, verdadeira pedofilia ». Monsenhor parece balizar a gravidade dos delicta graviora por faixa etária. Como se fosse mais ou menos criminoso violar uma criança ou um adolescente. O complacente monsenhor ainda afirma que, em nove anos, os casos do padres acusados de pedofilia são então cerca de 300, sobre « 400mil padres diocesanos e religiosos no mundo. Certo, mas é preciso constatar que o fenômeno não é tão expandido como se pretende fazer crer". Não é bem o que nos conta a imprensa. A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana está gastando bilhões de dólares com indenizações às famílias das vítimas. Só em 2008, a Igreja Católica dos Estados Unidos gastou US$ 430 milhões com indenizações por abuso sexual cometido por padres. Vítimas de abuso sexual cometido por padres em Los Angeles receberam mais de US$ 1,5 bilhão — mais do que qualquer outra diocese dos Estados Unidos já pagou em indenizações. A Arquidiocese de Portland, no Oregon, decretou falência, tornando-se a primeira diocese da Igreja Católica americana a tomar esta medida por causa das acusações de abuso sexual. O pedido de falência teve a intenção de paralisar uma ação de abuso cometido por um padre que estava sendo julgada em Portland. A ação envolvia Maurice Grammond, acusado de molestar mais de 50 garotos na década de 1980. Autores de duas ações envolvendo Grammond pediram uma indenização de mais de US$ 160 milhões. Isso sem falar nas indenizações que foram negociadas na Irlanda, Alemanha e Áustria. As bolas da vez, agora, são a Suíça – com cerca de sessenta acusações de abusos sexuais – e a Itália, onde está a raiz da infâmia. Mas que ninguém se surpreenda com estes fatos. Constituem velha tradição da Santa Madre. No século XVII, na mesma Regensburg (Ratisbona) em que o irmão de Sua Santidade regia um coral de meninos submetidos a abusos sexuais, dizia o missionário franciscano Bertoldo: “É bastante freqüente que os bispos tenham filhos, muitos ou poucos”. Um tal de Enrique, bispo de Basiléia, deixou em sua morte vinte rebentos. O bispo de Lüttlich – que, a bem da verdade, acabou sendo destituído – deixou sessenta e um. Cifra de enrubescer o bispo presidente do Paraguai. As amantes de religiosos chegaram a entrar para a história das artes. Káthe Stolzenfels e Ernestine Mehandel, concubinas do cardeal Alberto II, de Mannheim (Mogúncia, em português) foram imortalizadas por Durero, como as filhas de Lot. Káthe foi ainda homenageada por Grünewald, ao ser retratada como “Santa Catarina no matrimônio místico”. E Lukas Cranach pintou Ernestine como Santa Úrsula e o próprio cardeal como São Martim. Verdade que alguns padres foram punidos por seus excessos. Mas nem tudo é pecado na Igreja. Alexandre II ensina a seus sacerdotes em 1065: não tratamos nada além dos casos conhecidos e notórios. O que acontece em segredo só Deus sabe, e é ele quem tem de considerá-lo. Ou, como dizia um certo Panizza: o que acontece em segredo não aconteceu. Só o que grita é pecado. Estes dados, eu os extraio de Das Kreuz mit der Kirche – Eine Sexualgeschichte des Christentums, de Karlheinz Deschner. (Estou lendo a tradução espanhola, Historia Sexual del Cristianismo). São 480 páginas descrevendo a lubricidade de papas, bispos e padres durante os séculos de existência da Igreja Católica. Claro que não posso reproduzi-las, fica a recomendação de leitura. Mas não me furtarei a alguns tópicos. “A maioria dos religiosos de certa hierarquia – continua Deschner – se sentiam comprometidos. Certo bispo de Fiesole do século XI vivia rodeado de uma tropa de concubinas e filhos. O bispo Iuhell de Dol contraiu matrimônio publicamente e dotou suas filhas com os bens eclesiásticos. Durante o papado de Inocêncio III (1198 – 1216), o arcebispo de Besançon, cujas estorsões haviam levado o clero de sua diocese à mais extrema pobreza, manteve uma relação com uma parente consaguínea, a abadessa de REaumair-Mont e deixou grávida uma monja, além de deitar-se com a filha de um religioso, como era público e notório. Pela mesma época, costumava celebrar suas orgias o arcebispo de Bordéus, um personagem que se dedicava a saquear todas as igrejas, monastérios e vivendas privadas dos arredores com uma banda de ladrões. “No século XIII, o papa Inocêncio III diz que os sacerdotes são mais imorais que os leigos; Honório III assegura que estão corrompidos e conduzem os povos à perdição; Alexandre IV afirma que as gentes, em lugar de serem corrigidas pelos religiosos, são completamente corrompidas por eles. Os clérigos apodrecem como gado no esterco, outra preciosa sentença papal do século XIII. A meados do mesmo século, o dominicano e mais tarde cardeal Hugo de Saint Cher diria na conclusão do Concílio de Lyon (1251): amigos meus, fomos de grande proveito para esta cidade. Quando chegamos, só encontramos três ou quatro prostíbulos; no momento da partida, só deixamos um. Mas este abarca de um extremo ao outro da cidade”. Isto é só uma diminuta mostragem. Como disse, o livro de Deschner se estende por 480 páginas, cada uma repleta de abusos e desmandos por parte da hierarquia católica. Com o tempo e com a exigência mais severa de celibato, os padres se resguardaram de seus assaltos às mulheres. E se dedicaram à parte mais indefesa do rebanho, as criancinhas. Nada de novo sob o sol. O que estamos vendo, nas atuais denúncias de pedofilia nos jornais, é apenas a parte emersa do iceberg. Só o que grita é pecado. Isso sem falar na crônica sexual dos papas. Comentei a história há quatro anos. A cortesã mais famosa do Vaticano foi certamente Lucrécia Bórgia, amante do pai, o papa Alexandre VI, e também de seu irmão, o cardeal César Bórgia. Rodrigo de Bórgia, como se chamava o pontífice eleito em 1492, graças à compra dos votos dos cardeais, foi quem patrocinou o famoso baile das castanhas, em que sessenta prostitutas nuas dançaram para os cardeais no Vaticano. Foram jogadas castanhas ao chão, e as bailarinas tinham de apanhá-las. Mas não com as mãos, diga-se de passagem. Foram concedidos prêmios aos homens que copulassem com mais mulheres naquela noite memorável. Se o leitor quiser uma abordagem ficcional sobre Alexandre VI, pode procurar nas locadoras o belíssimo filme Contos Imorais, de 1974, do cineasta polonês Walerian Borowczyk. Enquanto Savonarola queima na fogueira, por ter denunciado os hábitos libertinos do Vaticano, uma Lucrécia nua (interpretada pela radiante Florence Bellamy), espichada sobre um corrimão do Vaticano, atende o papa e o cardeal, estes devidamente paramentados com as vestes eclesiásticas. Tudo muito sacro e solene. Isso sem falar no papado de Sérgio III, que inaugurou o período chamado pelos historiadores de pornocracia, como também de "reinado das prostitutas". Mas o melhor da crônica é a história da papisa Joana. Segundo cronistas, no século IX uma mulher teria assumido a curul pontifícia, como sucessora do papa Leão IV, com o nome de João VIII. Originária da Alemanha, vestiu-se de homem e assumiu o nome de João da Inglaterra. Ficou na história como a papisa Joana. Em uma procissão da basílica de São Pedro até Latrão, acometido das dores do parto, o papa caiu do cavalo e fraturou o crânio, tendo morte imediata. A partir daí, as eleições papais exigiram a verificação do sexo do candidato. Antes da sagração, o eleito era instalado numa cadeira furada, o estercorário. O camerlengo passava então a mão pelo buraco, para examinar os documentos. Em caso positivo, proferia as palavras rituais: habemus papam. Para a Igreja, tanto a papisa quanto o estercorário não passam de lenda, logo esta Igreja que considera como fato a virgindade de Maria e sua assunção aos céus. Si non é vero è ben trovato. Lenda ou fato, vale a imagem. Falar nisso, está faltando um filme nas telas do Brasil. Ano passado, o cineasta alemão Sönke Wortmann filmou o romance histórico A Papisa Joana, de Donna Woolfolk Cross, publicado em 1996. O filme foi concluído em julho passado e entrou nas telas alemãs em outubro. Cá neste país, sempre apressado em lançar abacaxis politicamente corretos tipo Avatar, sequer se ouve falar do filme de Wortmann. Para os leitores que quiserem mais informações, avanço alguns títulos. Devo ter mais em minha biblioteca, mas estes já dão uma boa idéia do assunto: Histoire de l'inquisition au Moyen Âge, de Henry Charles Lea, Paris, Robert Lafont, 2004 - um clássico, o precursor de toda a literatura sobre a Inquisição. 1458 páginas. Recomendo vivamente. Enciclopedia de los herejes y las herejías, de Leonard George, Barcelona, Ediciones Robinbook, 1998. La véritable histoire des papes, Jean Mathieux-Rosay, Paris, Jacques Grancher, 1991. La chair, le diable et le confesseur, de Guy Bechtel, Paris, Librairie Plon, 1994. The Female Pope, por Rosemary & Darroll Pardoe, Wellingorough, Crucible, 1988. Tradução ao espanhol: El Papa mujer - El misterio de la Papisa Juana, Barcelona, Ediciones Martinez Roca, 1990. La Papisa Juana, de Emmanuel Royidis, Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1973. * 29/03/2010 sexta-feira, julho 04, 2014
DO CÁLCULO RENAL À EPIFANIA * Nada se cria, tudo se copia, dizem as gentes. Se existe um campo onde este axioma impera, este campo é o das religiões. A começar pelo judaísmo. Não existe Bíblia sem o Egito, dizia Thomas Römer, especialista em história bíblica. O monoteísmo judaico já está em Akenathon. Com a diferença de que Akenathon teve existência atestada na história. E de Moisés, o patriarca dos judeus, não temos sequer um sinal de sua passagem no tempo. A autoria da Torá – Pentateuco, para os cristãos – não procede, pois no último dos cinco livros, o Deuteronômio, Moisés narra sua própria morte. Nem Cristo ousou tanto, deixou este relato para os evangelistas. Freud, em Moisés e a religião monoteísta, faz de Moisés um discípulo de Akenathon que teria se associado aos judeus para ensinar-lhes a religião monoteísta. Quanto aos cristãos, tiveram ainda mais religião de quem copiar. O Novo Testamento é uma apropriação indébita – para não dizer roubo – do livro dos judeus, acrescido de mitos gregos e do paganismo. A História está repleta de deuses nascidos de virgens e mortos no solstício de inverno. A vasta proliferação de denominações cristãs era tendência já embutida no próprio cristianismo. No Brasil contemporâneo, elas brotam como cogumelos após a chuva e fazem feroz concorrência aos católicos. Não há religião hoje que não seja uma sopa de religiões antigas. Os tais de neopentescostais, que infestam as cadeias de televisão no mundo todo, são outros que se apossam do Livro a seu modo. O mesmo fizeram os espíritas. Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer e construiu sua ficção. Mesmer era médico, estudava teologia e retomou a antiga picaretagem da imposição das mãos. Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris, é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores, colocadas geralmente por brasileiros. Há alguns anos, recebi visita de amiga que há décadas não via. Para minha surpresa, revelou-se espírita e umbandista. Profundo mistério. Sempre vi o espiritismo como uma religião de origem francesa, inspirada nas teorias de Mesmer, e a umbanda como um culto animista de origem africana. Não via como alguém podia assumir coisas tão díspares. Saí então a pesquisar. E descobri coisas que, como a jabuticaba, só ocorrem no Brasil. Segundo J. Alves Oliveira, em Umbanda Cristã e Brasileira, no dia 15 de novembro de 1908, o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou numa sessão espírita kardecista em Neves, São Gonçalo, município fluminense próximo ao Rio, então capital federal. “Foi um escândalo" – escreve Matinas Suzuki, na Folha de São Paulo -. “Embora haja indícios de incorporações de espíritos de índios e de escravos negros nas diversas formas de macumba que existiam no Rio de Janeiro do século 19, os kardecistas não os admitiam por considerá-los espíritos marginais e pouco evoluídos. Quem recebeu o caboclo indesejado, e logo em seguida o preto-velho Pai Antônio, foi Zélio Fernandino de Moraes, um rapaz de 17 anos que se preparava para entrar para a Escola Naval”. O achado do Zélio Fernandino parece ter vindo de encontro a alguma inconsciente aspiração brasílica e fez escola. Assim como os católicos se apossaram do livro judaico, os umbandistas reivindicaram para si o mediunismo, trouvaille de Allan Kardec. Segundo Alves Oliveira, o caboclo teria assim se revelado: "Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios [caboclos], devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho [o médium Zélio de Moraes] para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou". O espiritismo então abrasileirou-se, para desalento de seus mentores europeus. Contei então a história do Zélio Fernandino à minha amiga. Que a desconhecia totalmente. Ou seja, nem sabia como se havia operado a fusão de duas religiões em seu cerebrinho. A lambança é tal que já há centros orixás da umbanda, santos católicos e retratos de pregadores do Santo Daime posicionados em lugares estratégicos dos terreiros. E já existe inclusive o umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião afro-brasileira. O Santo Daime desbundou. É um culto sem pé nem cabeça, criado por um seringueiro da Amazônia, cujas cerimônias consistem na ingestão da ayahuasca, beberagem feita de um cipó, que produz vômitos e diarréias, as chamadas “peias”. A nova empulhação cultua o Cristo, a Virgem... e a floresta amazônica, ecologia oblige. Pelo jeito, as tais de peias não eram muito convincentes a ponto de por si só arrebanhar acólitos. O Santo Daime então adaptou-se. Assumiu elementos de hinduísmo, umbanda e hare krishna. Deus para todos os gostos. Aqui pertinho de São Paulo, em Nazaré Paulista, a escola espiritual tem dois gurus, um tal de Sri Prem Baba, o mestre da cerimônia, que pelo jeito é tupiniquim com nome indiano para melhor enganar. Mais o guru Sri Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, mas já apita no Santo Daime. Mais o sedizente mestre Raimundo Irineu Serra, seringueiro brasileiro neto de escravos, que morreu em 1971, e teria sido o fundador da doutrina do chá de cipó. São Paulo, com a maior clientela de crentes potenciais do país, é um semental de novas fés. Outro dia, zapeando na televisão, descobri uma nova igreja, a bereana. E porque bereana? Porque em Atos está escrito: “E logo, durante a noite, os irmãos enviaram Paulo e Silas para Beréia; ali chegados, dirigiram-se à sinagoga dos judeus. Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim”. A palavrinha se repete só mais duas vezes e já deu origem a uma igreja. Afinal os judeus de Beréia era mais nobres que os de Tessalônica. E mais nada sabemos de Beréia. Mas quando descobri a nova crença – há coisa de uma semana – as igrejas já eram três: temos a Igreja Evangélica Bereana, a Batista Missionária Bereana e a Adventista Bereana. Com tantos pastores proclamando a independência, a igreja deve ser das mais lucrativas. E as religiões continuam saltando como pipocas na panela. Em 11 de novembro do ano passado foi criada a Igreja Templária de Cristo na Terra. Seus adeptos seriam nada menos que a reencarnação dos Cavaleiros Templários, braço militar da Igreja Católica formado por monges com voto de pobreza que aceitaram a tarefa de proteger os cristãos dos muçulmanos. De novembro para cá, são apenas seis meses. E a novel igreja já tem um primeiro-ministro, quatro bispos, 20 ministros e 560 mestres, cada qual encarregado de cuidar de 70 fiéis. Walter Sandro Pereira da Silva, o apóstolo fundador, vive “uma vida simples”, em uma casa em São Bernardo do Campo (o “solo sagrado”), com nove dos ministros, sua mãe e cerca de 80 cães e gatos – a igreja tem como tarefa tirar animais da rua. Quem nos conta é Willian Vieira, repórter da CartaCapital. Com 70 fiéis para 560 mestres, temos 39.200 seguidores. Tudo isso em seis meses, o que dá mais de 6.500 adeptos por mês. O que dá mais de 1600 conversões por semana. Mais de 230 por dia. Mesmo sentado à mão direita do Pai, o Cristo – que, após três anos de pregação, mal teve um gato pingado para acompanhá-lo ao monte Calvário – deve estar se roendo de inveja. Walter Sandro, pernambucano pobre de Gravatá, descobriu cedo sua missão. Tinha 2 anos e meio e procurava desesperado a chupeta perdida, quando o Arcanjo Miguel veio em seu auxílio pela primeira vez. “Foi quando apareceu este ser dizendo que ela estava debaixo da cama e que eu devia procurar o Salmo 91.” Quando os pais encontraram o pequeno, ele tinha a chupeta na boca e a Bíblia na mão: milagre. “Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos”, dizia o premonitório texto bíblico. Walter Sandro veio para São Paulo bebê e só voltou a falar com o arcanjo aos 13 anos, quando foi visitar sua cidade natal. Miguel disse-lhe que deveria pregar. Virou evangélico. Anos depois, quando começou a vender seguros, descobriu o dom da retórica e passou a dar palestras motivacionais: deixe de fumar, emagreça, conquiste o amor. A epifania mesmo só ocorreu em novembro passado, quando Walter Sandro estava prestes a entrar no ar pelo canal UHF 58. Um novo milagre se deu. “O Arcanjo Miguel materializou-se e disse para eu abrir a igreja. Foi tão forte que tive uma crise de cálculo renal. Fui ao banheiro e ele veio e disse pra botar a mão na urina. Eu pus. E saiu uma pedra do tamanho de meio grão de feijão.” À meia-noite o programa foi ao ar já com o nome de Igreja Templária. As reuniões começaram como uma espécie de maçonaria, que aos poucos incorporou doses de Reiki, ioga e passe espírita. Uma pitada de Oriente, outra de espiritismo. Jogue tudo num caldo de cristianismo, misture e agite bem. Está criada uma nova religião. Com apenas seis meses de existência, além do prédio na Rua Leais Paulistanos, a igreja tem sedes no Rio de Janeiro, no Espírito Santo e em Minas Gerais. É mantida pelo “Carnê da Gratidão”, um boleto com depósito de 33 reais em uma conta do Banco do Brasil. “A pessoa não paga. Ela doa.” E ganha, de quebra, o número do celular de um dos mestres para ligar quando quiser, todo dia até as 2 da manhã. “Qual seu problema? Bem, às vezes Deus não cura agora para testar sua fé”. Vinte pessoas se revezam em três turnos para atender 3 mil ligações por dia no telemarketing. Se tudo der certo e o arcanjo ajudar, em breve a igreja terá seu canal UHF (que custou 120 mil reais) para levar, “em cadeia nacional”, a mensagem do fim do preconceito. “Nós não temos nenhum.” Você está desempregado e o mercado não está para peixe? Crie uma religião. É aposta segura. Nenhum outro ramo do trabalho lhe proporcionará tais retornos em apenas meio ano. * 17/05/2012 |
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