¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, dezembro 29, 2004
 
VENHA LOGO!



Aqui em Paris, as autoridades sanitarias estao passando a considerar o vinho como "bebida patogena" (perdao pela falta de acentos, mas o teclado nao os comporta). Isto eh, de icone da Franca, o vinho passa a ser veneno. Os vinicultores se perguntam se nao estah na hora de trocar o cultivo dos vinhedos pelo de marijuana ou coca, seguindo o exemplo de paises ricos e saudaveis como Colombia e Bolivia.

Venha logo, repito. Antes que a Europa acabe.


terça-feira, dezembro 28, 2004
 
MANNEKEN PISS

Bruxelas. Milhares de pessoas se aglomerando e disputando espaco para fotografar e tirar fotos junto a um bonequinho de uns 40 cm que faz xixi.
A humanidade nao tem cura.


sábado, dezembro 25, 2004
 
NATAL EM HEIDELBERG

Nada mais triste e desolador que um Natal em Heidelberg. A cidade morre. Nas ruas, alguns turistas pingados em busca de algum restaurante aberto. Amanha desco para Bruxelas, em busca de vida e cervejas.

terça-feira, dezembro 21, 2004
 
RECONSIDERANDO


A bem da verdade, encontrei em Munique um restaurante com rádio, televisäo e muito futebol. Era de um grego. Nada mais da milenar cultura helenica, só a barbárie da mídia audiovisual. E os europeus ainda pensam em admitir os turcos na CE. Para mais tarde, já estäo pensando nos romenos.

A Europa está rumando ao suicídio. Se voce quer conhece-la, venha logo antes que termine.

segunda-feira, dezembro 20, 2004
 
CIVILIZACÄO É SILENCIO


Estou em Munique, tomando cerveja abaixo de zero grau. Na Bavária, sigamos os hábitos bávaros. Observo ainda que há mais de duas semanas näo vejo grades nos prédios. Nem rádio ou televisäo nos bares. O paraíso, se existisse, certamente seria assim.

sábado, dezembro 18, 2004
 
NO TE CREO!



Recebi, mês passado, a visita de uma amiga sabra, que não via há 33 anos. Esses reencontros não acontecem todos os dias. Para não deixar o leitor confuso, já vou explicando: sabra é o judeu que nasceu em Israel. Ela não conhecia o Brasil e São Paulo muito menos. Tentei explicar esta terra divina por natureza, que beleza! Não foi fácil. Nossa língua comum era o espanhol. Passei a semana toda ouvindo: no te creo!

Para começar, meu bairro, como toda a cidade, tem quase todos os edifícios cercados por grades. Isso sem falar em bares, que mais parecem uma assembléia de presidiários. Os clientes ficam cercados pelas grades, enquanto os criminosos andam livres quais passarinhos pelas ruas. Ela não entendia as grades. Para proteger-se da violência, invasões, roubos, expliquei. Ela, que já revirou o mundo, tirou fotos e mais fotos das grades, para mostrá-las aos seus como uma característica desta grande pátria. Logo ela, que vive em um país em que terroristas se explodem a toda hora em qualquer bar.

Mas não é só isso, expliquei. Os condomínios estão aparelhados de câmeras, para vigilância interna dos que entram e saem. Foi o primeiro no te creo. Mostrei-lhe as câmeras, que nos vigiavam inclusive no elevador. Ela teve de crer. Mas tem mais, continuei. Boa parte das grades têm cercas eletrificadas.

- No te creo? No es un crímen?

Talvez até fosse, respondi, ainda não pesquisei se é crime ou não. Mas é fato. E mostrei-lhe as cercas eletrificadas. Ela creu. Quis saber qual era a idade que determinava a maioridade aqui no Brasil. Depende, respondi. Como depende? Para votar é 16 anos. E ouvi de novo o no te creo. Como é que pode votar uma criança de 16 anos? Pois é, aqui no Brasil pode, expliquei. Nos anos 80, surgiu um partido que julgava ser mais fácil enganar os mais jovens. Tinha razão. Agora, este partido está no poder. Mas 16, continuei, é a maioridade para votar. Para matar, é diferente.

- Pero como? No te entiendo.

Matar, expliquei, é permissível até os 18 anos.

- No te creo.

Podes crer, ó sabra querida! Até os 18, todo brasileiro tem carteirinha de 007, com permissão para matar. As leis não permitem que vá para a cadeia. Se estuprar e matar alguém algumas horas antes de ter completado 18 ? como já aconteceu ? não pode ser punido, apenas reeducado. Vai para escolas de crime, onde cumpre uma curta reclusão e depois tem sua ficha criminal totalmente apagada, mesmo que tenha matado dez ou vinte pessoas. Passado zerado. Pode recomeçar a vida criminosa, cheio de experiência e um promissor futuro pela frente. Se matar mais vinte, teoricamente pode cometer mais vinte crimes e ser condenado a cem ou mais anos de prisão.

Mas - continuei - nossa legislação não permite que alguém fique mais de trinta anos de prisão. Então a hipotética pena de cem anos é reduzida em 70%. Tem mais. Se este grande criminoso tiver bom comportamento, cumpre apenas um sexto da pena. Isto é, sai do cárcere em cinco anos, cheio de vigor e vontade para matar os parentes das vítimas que o denunciaram. No Brasil, expliquei, o crime não é punido. É regulamentado.

- No te creo! - continuei ouvindo.

Falei então dos grandes cárceres, onde os capos das drogas comandam seus exércitos, decretam assassinatos e vendetas, organizam o comércio das drogas.

- Pero como puede ser, si están presos?

Ora, sabra querida, por telefone. Depois do celular, a vida se tornou mais fácil para a iniciativa privada. Ela não entendia. Como podia um preso ter celular? Simples, respondi, suas mulheres ou amantes lhes fornecem. Mas elas podem entrar nas prisões? Sim, querida, aqui podem. Há grupos de Direitos Humanos que defenderam - e ganharam - a idéia de que todo presidiário tem direito a uma visita íntima. Os celulares são levados na vagina.

- Pero eso no es Derechos Humanos. No puede ser. Derechos Humanos no son los derechos del criminal.

Aqui é - respondi. Tese defendida até pela Igreja Católica. Quando contei que os tais de Direitos Humanos só defendiam criminosos, me olhou perplexa: no puede ser. Acontece que é.

Tampouco entendeu as carrocinhas que juntam lixo nas ruas. Que es eso? É o que estás vendo, respondi, gente juntando o lixo da cidade. Pero con tracción humana? Ustedes no han llegado al motor? Chegar, havíamos chegado. Desde inícios do século passado. Mas um partido de extração comunista, que havia tomado o poder na cidade, houve por bem determinar que voltássemos à Idade Média. E a tração humana voltou à moda em todas as capitais dominadas por esse partido.

Para dar uma idéia mais realista deste país surrealista, levei-a à Santa Ifigênia, queria mostrar-lhe a dinamicidade do comércio paulistano. Impressionou-se com a abundância das ofertas de eletrônicos. Ruas e mais ruas vendendo o haut de game da informática, telefonia, som, fotografia, softs, DVDs. Expliquei a relação preço/benefício. Programas que custariam normalmente seis ou sete mil reais, lá eram comprados por... dez reais. Um filme americano, antes de estrear nos Estados Unidos, já tem cópia na Santa Ifigênia. Também por dez reais.

- Pero como puede?

Contrabando, minha querida. Pirataria.

- Pero así, a la luz del dia?

E por que não? O comércio é geralmente diurno, já que à noite o mercado prefere dormir. Às vezes, a polícia, para mostrar serviço, faz uma blitz e recolhe 30, 40 toneladas de muamba. No dia seguinte, o bairro está completamente reabastecido, como se 30 ou 40 toneladas de contrabando fossem uma gota d?água no mar da contravenção. E tem mais, expliquei. Este bairro, onde tudo é crime, está longe de ser o maior centro de contravenção da cidade. O maior está na 25 de Março, onde nem te levo porque é difícil caminhar.

Falei do número de assassinatos nos fins de semana na cidade, uma média de 50 cadáveres, da meia noite de sexta-feira até a meia-noite de domingo. Pero ni en mi país, que está en guerra, se mata tanto en um mes. Pois é, aqui se matava. Em tempos de paz. Só na cidade de São Paulo. Eu não falava do Estado nem do País.

Isso que não falei das invasões de terras, de prédios, de próprios da União. Das aposentadorias obscenas dos comunistas que um dia tentaram destruir o país. Dos milhares de criminosos, julgados e condenados, que flanam soltos nas ruas, porque não há vagas nas prisões. Seria demais para seu cérebro de sabra. Não é fácil explicar o Brasil.

Dassy convidou-me para visitar Israel. Estou pensando no assunto. Países onde se pode flanar com segurança e sem medo sempre me atraem.


quarta-feira, dezembro 15, 2004
 
NO PAPAGENO


Minha impressäo é que há mais de séculos näo ouco rock nem samba, nem vejo mendigos nas ruas, nem ouco discursos políticos idiotas ou o alarido dos vendedores ambulantes, o que dá mais ou menos no mesmo. Do Supremo Apedeuta, nenhuma vírgula. Claro que näo estou no Brasil. Mas em Viena, em um simpático hotel chamado Papageno, onde tomo café aos acordes de Die Zauberflöte. Minhas cervejas e vinhos säo acompanhadas por Mozart, pelos Strauss, Beethoven e por aí vai. Meu bar dileto é o Café Central, onde conspirava Trotski. Cheio de colunatas de mármore, encimado por arcos góticos, sempre foi embalado por valsas, polcas e galopes vienenses. Claro que revolucionário europeu näo vai conspirar em botecos proletários.

Vim para estes nortes recolher alguns pedacos de minha alma, que deixei por aqui quando jovem. Estive em Amsterdä, onde, se alguém ainda näo sabe, as prostitutas se exibem semi-desnudas nas vitrines e maconha e outras ervas teem menu nas coffeshops. Nada de pobres coitadas tremendo de frio ao relento, à espera do cliente. Mas mulheres soberbas, em lingerie, numa cabine quentinha.

Nas ruas, nem sombra de traficantes. A pragmaticidade dos holandeses, isenta de pruridos catölicos, há muito liberou a prostituicäo e as drogas. E todo mundo vive muito bem, com altíssimo padräo de vida, embora prefiram circular pelas ruas de bicicleta. Por certo, teem em suas garagens uma BMW ou Mercedes. Mas preferem, sabiamente, as bicicletas. Comove ver aquelas velhotas saudáveis, em seus setenta ou mais anos, pedalando pelas ruas como se fossem meninas novinhas.

Em Viena, o que mais se respira é müsica. Além do bom cheiro dos cafés (falo da bebida), que säo dezenas, e muitas vezes mais caros que um copo de vinho. Esta bebida deu origem aos famosos cafés de Viena (falo dos bares), onde entramos e näo temos mais vontade de sair.

Ergue teu traseiro dessa cadeira, meu caríssimo leitor. Se ainda näo conheces estas cidades esplendorosas que tornam o mundo mais lindo, sai logo desse país infeliz e vem dar uma olhada no que de melhor a humanidade criou. Vende teu carro - se for o caso - ou tua casa na praia, ou teu sítio, e vem ver como o mundo näo precisa ser um aglomerado de cidades de centros deteriorados, ruas cheias de mendigo e arquitetura que faz mal olhar.

Viajar sempre faz bem, mesmo ao mais insensível dos viajantes. Mesmo este bruto, em sua ignorancia, consegue perceber que no mundo näo existem apenas os costumes de sua aldeia. Quem me acompanha, sabe que jamais tive carro. Sem falar que esta tralha nunca me fez falta, cada vez que pensava em comprar um, lembrava que por aquele preco teria um mes ou mais de Europa. Carro näo leva longe. Viajar é muito melhor.

Em minha volta, voltarei ao assunto.


terça-feira, dezembro 14, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXXVII)


Nos anos 60, a social-democracia sueca, em uma tentativa de captação de mão-de-obra barata, desfechou uma ofensiva de charme nos países do Terceiro Mundo. Jornalistas e escritores apressados louvavam o bem-estar sueco, sua legislação trabalhista, a libertação da mulher e, last but not least, a revolução sexual. Isca infalível dos pragmáticos luteranos lançada aos países latinos e africanos, católicos e muçulmanos e, antes de mais nada, pobres. Ocorre que sem a mão-de-obra do migrante não há paraíso. Os marxistas pretendiam ter uma solução ao problema, Lênin sonhava com uma sociedade em que o pedreiro seria também engenheiro. Delírio demagógico: o pedreiro jamais terá tempo para estudar engenharia e o engenheiro estaria dilapidando sua instrução caso se dedicasse a empilhar tijolos.

Utopistas mais contemporâneos imaginam que a máquina substituirá o trabalho escravo. Pode ser. Mas sempre alguém terá de tirar o lixo das ruas ou limpar latrinas, ainda que com máquinas. Os europeus decidiram que este alguém é o imigrante. A este pobre diabo, oferecem salários e condições de trabalho que ele jamais teria em seu país. No caso da Escandinávia, um aceno erótico de brinde, as adoráveis louras nórdicas. Meu conflito com a Suécia foi elementar: eu queria apenas as louras, sem o ônus do trabalho vil.

Enfim, nem tanto elas. A Suécia tinha outro apelo poderoso. Nem só de mulher vive o homem. Pertenço a uma geração fascinada pelo cinema. Mais que os livros, foram os filmes que nos jogaram na vida. Paralelamente à literatura, tínhamos como mestres Chaplin, Buñuel, Bergman, Fellini, Kurosawa, Louis Malle, o confuso Goddard, e até mesmo o chato e hoje insuportável Antonioni. Serei cineasta, pensei então, vou estudar com Bergman, minha visão de mundo eu a transmitirei em fotogramas.

Santa ingenuidade. A Suécia, a rigor, me queria como lavador de pratos ou algo próximo. Fiz um semestre de Filmvetenskap - Ciência (sic!) do Cinema - na Stockholms Universitet. Pura teoria. Ao intuir que saíria de lá com muita erudição em história do cinema, mas sem saber como abrir uma lata de negativos, fiz as malas e voltei. Se jamais lavei pratos em casa, não iria lavá-los para estrangeiros. Não poucos brasileiros e latino-americanos aceitaram este e outros trabalhos servis como uma iniciação à Europa. Certa noite, em um hotel medíocre da Rue Cujas, em Paris, encontrei como porteiro de noite Gerd Bornheim, gaúcho, meu professor de filosofia cassado em 68. Este jamais foi meu projeto. Da Europa queria cultura, não sustento.

Cinema, antes de ser talento é dinheiro. Na cobertura de um festival de Cannes, ao perceber que a verba de publicidade de um Apocalypse Now, por exemplo, financiaria uns dez longa-metragens no Brasil, perdi qualquer veleidade pela arte. Pelo menos por enquanto, cinema é luxo não permissível ao que os europeus chamam de Terceiro Mundo. Às vezes, em um aceno de paternalismo, Cannes ou Berlim premiam alguma produção barata contestando o Estado, geralmente financiada pelo próprio Estado.

Melhor escrever. Que mais não seja, sai mais barato produzir uma obra tendo como infra-estrutura uma cadeira e uma mesa, máquina e papel. A decisão dependeu em boa parte de uma suissesse, Federica de Cesco. Colega de aulas de sueco, ela estava em Estocolmo para escrever um romance ambientado em aeroportos internacionais. Fazíamos exercícios de gramática, quando ela disse ser forfättarina. O que em sueco quer dizer escritora. Como jamais havia visto uma suíça de perto, menos ainda uma escritora suíça, perguntei quantos livros escrevera.

- Vinte e cinco. Estou redigindo o vigésimo oitavo e com dois no prelo.

Decidi examinar mais de perto a promessa do Simenon de saias. Em seu apartamento, uma prateleira exibia dezenas de exemplares de algumas traduções de alguns de seus livros. E eu jamais ouvira falar da Federica.

- É normal. Tudo o que escrevo não tem importância alguma. Escrevo para meu sustento. Não tenho nada a dizer a ninguém.

Em quanto tempo escrevia um livro?

- No tempo que o editor pedir. Se quiser em quatro semanas, O.K.

Latino e cheio de depoimentos a prestar sobre o pretendo paraíso social escandinavo, pareceu-me que também poderia escrever. Deste encontro surgiu O Paraíso Sexual Democrata. Havia lido dezenas de livros sobre a Suécia antes de rumar ao éden nórdico. Nenhum deles mostrava o que eu via. Havia uma outra motivação poderosa. Ao voltar a Porto Alegre e ver, na Rua da Praia, sempre as mesmas gentes rumando nas mesmas horas ao mesmo trabalho, precisei convencer a mim mesmo que um dia havia saído de lá.

O livro foi aceito pelo primeiro editor que procurei no Rio. Para uma primeira obra de um autor desconhecido, foi longe: teve quatro edições no Brasil e uma tradução na Argentina. Ingênuo atroz, precisei de alguns anos para descobrir o porquê. Ao criticar a social-democracia sueca, eu oferecia um regalo divino aos marxistas. Sem ser comunista nem compagnon de route, prestei bons servicos a uma causa estúpida.

De Cesco, sem saber, conduziu-me a uma outra viagem, esta na geografia. Só um de seus livros lhe agradava, era sobre o Saara argeliano, mais precisamente sobre os tuaregues da região de El Hogar. Alguns anos depois, já em Paris, fui lá conferir. O deserto mexe com nossas camadas místicas. Há muito estava liberto da crença. Mas me ocorreu que, se Deus existisse, teria nascido naquelas paragens lunares. Não estava muito longe da verdade. As três religiões mais influentes do mundo contemporâneo nasceram de civilizações do deserto.

Viajando e conhecendo gentes, concluímos que a concepção de espaço sempre vai depender das dimensões do país que uma pessoa habita. Para um francês, por exemplo, cujo território tem no máximo mil quilômetros entre as extremidades mais longínquas, Estocolmo fica dans le bout du monde. Para um panamenho em Paris, até Amsterdã está longe. Já para um brasileiro, ir de Lisboa a Oslo é como não ter ainda saído do próprio território. Em um retorno ao Brasil, no Eugênio C, costeamos o continente a partir do Nordeste, o que dá dois dias de navegação até o Rio. Uma francesa me perguntava: ce pays ne finit jamais?

E tínhamos mais dois outros dias até o porto de Pelotas, no extremo sul.

segunda-feira, dezembro 13, 2004
 
Que viva la España!

Um leitor me pergunta o que penso, antes que suma da memória das gentes, sobre mais um desses casos que só ocorre no Brasil. O assunto é antigo, mas vamos lá. Em Niterói, a 15 km do Rio de Janeiro, o juiz Antônio Marreiros da Silva Melo Neto moveu ação de danos morais contra um condomínio e obteve liminar para ser tratado por ?senhor? ou ?doutor?. A sumidade exige também indenização por danos morais.

Um dia, fiz o curso de Direito. Cinco anos perdidos de minha vida. Não que julgue o ofício inútil, nada disso. Mas já no segundo ano eu sabia que jamais advogaria. Os rituais do ofício, o terno e gravata, isso sem falar na toga, o linguajar arrevesado dos processos, que mais parece gíria de mafiosos para não serem entendidos pela clientela, mais o anel no dedo, tudo isso me afastava da profissão. Uma vez diplomado, para sobreviver, fui vender enciclopédias e contar sabonetes e shampoos em farmácias e supermercados, para a Sidney Ross. Me sentia melhor do que chamando rábulas de Dr. e juízes de Meritíssimo. Um tio me presenteou com anel de rubi. Foi muito útil para botar no prego da Caixa Econômica, nos dias de maiores apertos.

Mais tarde fiz um doutorado na Sorbonne. Não por exigência universitária ou profissional, mas por diletantismo. Queria viajar, conhecer Paris, a França, a Europa, ilha gregas e canárias, e não tinha grana sequer pra curtir Montevidéu. Como viajar sem grana? É simples. Pede-se uma bolsa. Qualquer professor universitário sabe disso. Sem ser professor universitário, pedi, levei e fui. Não tinha a mínima idéia do que fosse um doutorado, uma tese ou mesmo literatura comparada. Me enfurnei nas bibliotecas, percorri sebos e livrarias, catei teses e ensaios de literatura comparada. Na época, já trabalhava com jornalismo, e para um jornalista não é um desafio maior elaborar uma tese na área literária.

Defendi minha tese, em circunstâncias um pouco insólitas. Na hora da defesa, havia algo entre 50 e 60 mulheres - e um só varão. Este dado é importante, pois suponho que foram elas que me salvaram. Minha tese era um insulto aos acadêmicos, pois eu não citava teórico algum. Quelle est votre méthode? - perguntou-me uma doutora argelina que participava da banca. Ma méthode - respondi serenamente - c'est la cristaldesque. Não vim a Paris para pensar com a cabeça de terceiros. Naquele instante, senti que eu mesmo havia decretado minha decapitação. A banca levou meia hora para tomar uma decisão, o que é um tanto exagerado, já que toda defesa de tese é puro teatro e nada mais que teatro.

Voltaram do conciliábulo e a menção me surpreendeu: Très Bien. Pareceu-me que a banca não ousou decepcionar aquele auditório florido, et me voilà Docteur es Lettres. Às amigas que me honraram com suas presenças, minha eterna gratidão.

Eu estava tão por fora do mundo acadêmico, que sequer sabia que um doutorado me habilitava a lecionar. Eu fora a Paris curtir seus queijos e vinhos, mulheres e arquitetura, jornais e literatura. Meu diploma, sequer o apanhei. Quando fui buscá-lo na secretaria da Sorbonne, as funcionárias ficaram pasmas. Mais non, Monsieur, c?est pas comme ça. Eu deveria preencher um formulário, enviá-lo pelo correio e esperar o diploma em casa. Ora, eu estava partindo de Paris, havia largado meu apartamento e ainda não tinha endereço fixo no Brasil. Tal despropósito me irritou tanto, que até hoje não peguei meu diploma. Tenho apenas um certificado de que ele existe, em algum arquivo morto, au bord´elle, la Seine.

Eu, Doutor pela Université de la Sorbonne Nouvelle ? Paris III (não confundir com a Sorbonne, que não existe a partir de 1968), posso afirmar serenamente: doutorado é uma bobagem que qualquer pessoa medianamente dotada é capaz de cumprir. Tese pode ser uma besteira qualquer. Se aprovada por uma banca legalmente constituída, dá direito ao título, por absurda que seja. E não foram poucas as defesas de teses absurdas que assisti em Paris.

O fato me leva a um incidente um tanto insólito de minha vida. Por circunstâncias que ora não vêm ao caso, fui levado certo dia ao que se chama de barras dos tribunais. Minha advogada já foi me alertando: ao dirigir-me ao juiz, não cometesse a gafe de chamá-lo de Dr. No tribunal, o juiz se ofende se for chamado de Dr. Só aceita Meritíssimo. Bom, compareci ante o dito cujo. Em Roma, como os romanos. E os meritíssimos e doutores se cruzavam pelos ares a todo instante no tribunal, como se eu estivesse em outro universo que não o do comum dos mortais. E eu - que era o único a ter doutorado naquela sala - recebi o tratamento nada nobilitante de ?indigitado réu?.

Enfim, o Merítissimo foi uma mãe para mim, tudo acabou bem e, como dizem os franceses, c?est bien tout ce que finit bien. Mas a situação constituía uma profunda ironia. Não me concederam sequer um doutorzinho, nem mesmo em função de meu curso de Direito. Muito menos pelo doutorado que defendi em Letras Francesas e Comparadas, na Université de la Sorbonne Nouvelle. Eu era apenas o indigitado réu.

Dadas as exigências de carreira no Brasil, estão sendo formados doutores às pencas, a tal ponto que as bibliotecas já não têm espaço para abrigar tantas teses. Pessoalmente, tenho uma sugestão. Poderiam ser exportadas para a Holanda, para fazer diques, e assim teriam algum sentido. O título de Dr - falo do doutorado defendido após quatro ou cinco (supostos) anos de pesquisa, vulgarizou-se a tal ponto que já não distingue mais um pesquisador sério de um escroque qualquer. Sem falar que diversos sites já oferecem, a preços módicos, dissertações de mestrado ou teses prontinhas a quem se dispuser a comprá-las. Aliás, Umberto Eco, em seu livro Como fazer uma tese, cinicamente já escrevia: doutorado é um título que dá direito a um patamar mais alto de salários. Se você não conseguir elaborar a sua, plagie.

Que um médico ou dentista sejam chamados de doutor, entende-se. É antiga tradição, inerente ao ofício. Mas quando um rábula entra com ação para ser chamado de doutor - fora dos tribunais, quando nem lá mesmo se justificaria o título ? estamos ante a desmoralização cabal da profissão. Um juiz já não vale pelo que vale, mas pelo Dr com o qual exige que lhe tratem. Este senhor é um pobre diabo, que sequer consegue impor-se a um porteiro por sua personalidade, e exige ser tratado com a reverência que lhe conferem os cúmplices de sua guilda privada
.
A piada é antiga e nada refinada. Mas se adapta ao caso. Um advogado, ao pagar o engraxate que lhe lustrava os sapatos, ouviu do menino: "Obrigado, doutor".

- Meu filho, como você sabe que sou doutor?

- Ora, meu senhor, neste país qualquer pé-rapado é doutor.

A desmoralização do título se deve, entre nós, à universidade brasileira, que distribui doutorados a torto e a direito, como quem joga milho aos porcos. Mais um pouco, e ser chamado de Dr será pejorativo. Se já não é.

E por que Espanha, a propösito de tudo isto? É que na quinta-feira passada, o Conselho de Ministros do país decidiu, entre outras coisas, que serao suprimidos os títulos de Excelentíssimo, Excelentíssima, Ilustríssimo, Ilustríssima e similares, de modo que o unico tratamento protocolar será o de senhor ou senhora, seguido da denominacao do cargo.

Enquanto a milenária Espanha se moderno, nosso jovem e obsoleto Brasil exige na justica a prática de vaidades dos tempos coloniais.

terça-feira, dezembro 07, 2004
 
AFFONSO CELSO REDIVIVO


Nos anos 60, minha mãe, professora primária rural, que pouco ou nada entendia dos bastidores da política, queimou não poucos livros meus, como também alguns artigos. Não por censura, mas por medo e amor ao filho. Dona Clotilde não foi exceção. Naqueles dias conturbados, muitas mães tomaram as mesmas providências. A polícia política adotava, na época, a estratégia estúpida de procurar livros que pregassem ou sugerissem socialismo ou comunismo. E quem os tivesse passava maus momentos até explicar porque os tinha. Naqueles dias foi apreendido até O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Se tinha vermelho no título, por certo era subversivo. Este zelo de analfabetos fez a festa das esquerdas, que passaram a qualificar os militares como trogloditas. E em boa parte tinham razão.

Ao começar a cronicar diariamente em Porto Alegre, fiz uma assinatura para a dona Clotilde de meu jornal, para que acompanhasse as andanças do rebento. Certa vez, assustada, escreveu-me: "filho, por que não falas de flores? Há flores tão lindas no Brasil".

Ocorria que minha coluna não era de botânica. Até hoje me comove esta intenção ingênua de minha mãe. Já não me comove a visão nada ingênua do Supremo Apedeuta, apedeuta mas vivaldino. Nesta quinta-feira passada, Lula se queixava de que a televisão só divulga desgraça. Segundo a Folha de S. Paulo, disse que os brasileiros têm o costume de mostrar apenas as desgraças do país. "Nós permitimos que só as desgraças apareçam e não apresentamos as virtudes, sem negar as desgraças que existem", declarou. Mais uma vez, acometeu-lhe a providencial amnésia: parece ter esquecido que em seus dias de oposição, só via desgraças nos governos vigentes e virtudes nenhumas.

De acordo com Lula, a violência joga contra o Brasil quando o assunto é vender o país no exterior. "Não precisa negar isso, mas temos de mostrar as coisas boas também". Pretenderá voltar ao regime dos militares, que só exibiam coisas muito boas, boníssimas aliás, nas embaixadas e consulados do mundo? Mulatas deslumbrantes, de glúteos generosos, Corcovado e Pão de Açúcar, mulatas de novo, futebol e vitórias-régias, Pelé e Garrincha, mais mulatas, coqueirais, sombra, água fresca, Sete Quedas e de novo mulatas. Era o que Brasil tinha de melhor, então, na visão dos militares e do Itamaraty.

Lula também criticou as emissoras de TV: "Se a pessoa ficar apenas assistindo à televisão, vai achar que no Nordeste só tem seca, no Rio só tem violência e em São Paulo só tem seqüestro. Então a pessoa fica em casa e viaja o Brasil inteiro pela televisão. Temos que colocar as coisas boas". Bem que podia ressuscitar os documentários do Jean Manzon, que quando filmava a caatinga era capaz de transplantar até mesmo um cacto, para o fundo de barro rachado de um açude seco, para melhor compor sua imagem do país.

Em seguida, Lula voltou a citar o Nordeste, região onde nasceu. "As pessoas só vêem as notícias do Nordeste pela miséria: ou quando tem muita seca, e aí a gente vê gado morrendo e as pessoas carregando latas de água na cabeça, ou quando tem enchente, e aí vê pessoas morrendo afogadas. Ou seja, entre a seca e a enchente não existe nada. Mas tem sim, tem praias maravilhosas, recantos históricos, cidades belíssimas. É isso que precisamos divulgar".

Não sei se o Supremo Apedeuta leu o conde Affonso Celso. Se não leu aquela cartilha clássica, Porque me ufano de meu país, mesmo ignorando-a quer ressuscitá-la. Affonso Celso, em época em que não havia televisão para mostrar-lhe os horrores que horrorizam o presidente, invasões de terra, tiroteios em favelas, crianças abandonadas nas ruas, capitais deterioradas pela incúria de seus administradores, podia dar-se ao luxo de louvar o Amazonas, "uma das maravilhas da natureza, o maior rio do mundo. Uma de suas ilhas, a de Marajó, excede em tamanho a Suíça. O rio luta contra o oceano: vence-o".

Ou a cachoeira de Paulo Affonso: "os americanos do norte têm immenso orgulho da sua cataracta do Niágara, que Chateaubriand qualificou - uma columna d?água do dilúvio. O Brazil possue uma maravilha igual, sinão superior, - a cachoeira de Paulo Affonso. Encontra-se nesta tudo quanto naquella encanta, apavora e maravilha".

Ou as nossas celebérrimas florestas: "Nas matas virgens do Brazil - que occupam espaço igual ao de vastos Estados, reside um dos espetáculos mais augustos da creação. Sobrelevam o oceano em mysterio, em diversidade de panoramas, em excesso de vida, em magnificência que, ao mesmo tempo, acabrunham a intelligencia humana e a arrebatam, acentuando-lhe a idéia das forças superiores regedoras do planeta (...) Todos os sentidos ficam ahí extasiados. Gozam todos os nossos instinctos artísticos. Com effeito, deparam-se-nos na floresta brazileira primores de architectura, de esculptura, de musica, de pintura, e, sobretudo, de divina poesia.?

Isso sem falar nos nobres predicados nacionais, a saber: sentimento de independência, hospitalidade, affeição á ordem, á paz, ao melhoramento, paciência e resignação, doçura, longanimidade, desintesse, escrúpulo no cumprimento das obrigações contrahidas. "Julgar-se-hia desairado quem, no interior, allegasse prescripção de dívida". Honradez no desempenho de funcções públicas ou particulares. E por aí vai.

A televisão brasileira está renunciando a estes instantes de divina poesia, para mostrar índios estuprando mulheres, bugres trucidando garimpeiros. Em vez das magníficas cataractas que o Senhor nos concedeu, a televisão fala sôbolos rios que em quinze minutos de chuva, quais oueds no Sahara, tornam São Paulo uma Veneza tropical. Em vez dos "nobres predicados nacionais", senadores ladrões, deputados e juízes venais, funcionários desviando dinheiro do Erário para contas em paraísos fiscais, policiais corruptos, máfias controlando cidades, bandidos seqüestrando velhos e crianças, Igreja e Ongs defendendo criminosos.

O neo-Affonso Celso, confortavelmente instalado na Ilha da Fantasia, certamente há muito não vê nada disso. Seus aspones provavelmente lhe fornecem, todas as manhãs, clippings ad usum delphim. Tanto que, nesta mesma semana, disse que estamos vivendo num mar de rosas. Para que atribular o Sumo Mandatário com essas micharias do dia-a-dia nacional?

Por que raios então a televisão não nos mostra flores? Por que nossos jornalistas não se inspiram naquela saudosa imprensa da China e União Soviética do século passado, que só mostrava grandes feitos, belos números, soberbos discursos de autoridades e notícias das "manhãs que cantam"?

Há algo errado em nossa imprensa - e é para isso que aponta o presidente. Urge levá-la ao rumo certo, torná-la mais sensível às rosas que ornam nosso mar. Como diria Dona Clotilde: porque vocês não falam de flores? Se naquela pequena ilha chamada Cuba os jornalistas já descobriram esta pauta, porque não o fariam seus colegas brasileiros, neste país abençoado onde motivos para ufanar-se é o que menos falta?


domingo, dezembro 05, 2004
 
AUTO-ESTIMA COM MOEDA PODRE?


O ministro Luiz Gushiken (Secretária de Comunicação) se disse ontem supreso com a campanha da auto-estima, promovida com o apoio do governo, em palestra no Planalto para assessores de imprensa de órgãos públicos e integrantes de agências de publicidade. "Fiquei pasmado, surpreso de ver a quantidade de empresas que entraram de forma espontânea nessa campanha", afirmou, referindo-se ao mote: "O melhor do Brasil é o brasileiro", promovido pela Associação Brasileira de Anunciantes. "Quando uma idéia tem potência, a coisa anda."

Idéias podem ter potência, mas quando a moeda nacional não a tem, nada anda. O dia em que o real for aceito nos bancos e casas de câmbio da Europa e Estados Unidos, talvez possamos falar em auto-estima. Antes não. País com moeda podre, melhor nem tocasse no assunto.

sábado, dezembro 04, 2004
 
MENININHOS COBRAM MAIS CARO


04/12/2004

Diocese católica oferece compensação recorde por abusos sexuais

Los Angeles (EUA), 3 dez (EFE) - A diocese católica de Orange, no estado da Califórnia, ofereceu compensações de mais de 100 milhões de dólares por abusos sexuais cometidos por seus sacerdotes, anúncio feito oficialmente nesta sexta-feira. Fontes judiciais disseram que o montante supera os 85 milhões concedidos no ano passado pela diocese de Boston a 552 vítimas dos abusos.

As profissionais do ramo devem estar roendo as unhas de inveja.