¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
sexta-feira, setembro 30, 2011
NORUEGUESA ANALFABETA É ENTREVISTADA PELA FOLHA Há muita desinformação nos jornais sobre o mundo árabe. O que talvez explique essas bobagens que jornalistas andam escrevendo sobre a tal de primavera árabe. Por exemplo: em 2002, o terror palestino conseguiu inovar. Surge, naquele ano, uma nova palavra na mídia, mulher-bomba. Três meninas se explodiram, uma com 28 anos, outra com 21 e a terceira com 18. A mais velha nem havia chegado à metade da vida. Claro que não faltou, na época, uma feminista tardia e de poucas luzes, suficientemente irresponsável para louvar a nova conquista de seu sexo. A sale besogne coube a Marilene Felinto, da Folha de São Paulo. Eterna defensora das piores bandeiras que o engenho humano concebe, a colunista considerou que é pelo suicídio que as muçulmanas se igualam aos homens. “As mulheres-bombas muçulmanas são a glorificação do suicídio pelo estoicismo, pelo auto-sacrifício - elas agem no intuito de que a justa defesa do bem público prevaleça sobre o direito do agressor ao corpo e à vida”. Ora, no mundo muçulmano, nem pelo suicídio a mulher se iguala ao homem. A jornalista, que acabou sendo ejetada do jornal, demonstrou desconhecer a história de ontem. Para o sacrifício, até mulher serve. Aconteceu na guerra da Argélia. Na hora de carregar bombas para matar franceses, a mulher teve um papel a desempenhar. Finda a guerra, voltou para a cozinha fazer cuscuz. Logo depois, se não usasse véu, corria o risco de ter o rosto desfigurado para sempre com ácido. Como as afegãs. Enquanto serviam como execração dos taleban, exibiam seus belos dentes. Derrotados os taleban, voltaram a esconder o rosto na burca. Fanatismo e ignorância andam sempre de mãos dadas. A insipiência da jornalista era tamanha, a ponto de falar em “quilos de dinamite que carregam por baixo das sete saias do xador (sic!)”. Ora, o chador é usado pelas iranianas. Consiste em uma capa que esconde todo o corpo e deixa o rosto descoberto. Foi proibido temporariamente pelo xá Reza Palhevi e nada tem a ver com palestinas. E muito menos com árabes. Diga-se de passagem, o dicionário Houaiss dá uma definição errada de chador: “traje feminino usado em alguns países muçulmanos, especialmente no Irã, que cobre todo o corpo, à exceção dos olhos”. Dois erros. Primeiro, não é que seja usado especialmente no Irã. É usado só no Irã. Segundo, não deixa apenas os olhos a mostra, mas todo o rosto. Na época, vi um documentário sobre o Afeganistão no National Geographic Channel. Mostrava mulheres de burca - véu que mais parece uma gaiola, com uma espécie de grade cobrindo o rosto - e a todo momento a locução falava em chador. A televisão é poderosa. Quem não sabe o que é burca, acaba achando que as afegãs usam chador. Que uma pessoa sem maiores luzes confunda burca com chador, entende-se. Que um canal de televisão difunda este erro é mais grave. Todo analfabeto passa a afirmar, de boca cheia, que as afegãs usam chador. Televisão é cultura. Em meus dias de Folha de São Paulo, recebi uma matéria do correspondente do jornal em Paris. Ele falava do Instituto de Cultura Árabe, “que reúne países como Egito, Tunísia, Argélia, Irã...” Eu o atalhei: - Calma, companheiro. Irã não é árabe. - Como que não é árabe? - Irã é persa. Perplexidade do outro lado da linha. O arguto correspondente internacional da Folha não sabia o que era persa. Em meio a isso, tenho uma amiga que me recomendou o bestseller O Livreiro de Cabul, da jornalista e escritora norueguesa Asne Seierstad, sabatinada ontem pela Folha, no auditório do jornal no shopping Higienópolis, aqui ao lado de casa. Claro que não fui lá. Em primeiro lugar não leio bestsellers. Em segundo, jamais perderia meu tempo ouvindo um autor de bestsellers. Mas li trechos da alocução da moça na Folha. Asne falou sobre sua experiência de 18 anos cobrindo conflitos internacionais e também comentou os ataques terroristas, que deixaram 77 mortos em seu país. Falando sobre a “invasão ocidental”, afirma: - Sou radicalmente contra a invasão estrangeira. A maior parte dos afegãos vê isso como uma ocupação e seus atos denotam essa preocupação. Temos de pensar em outras formas de lidar com os conflitos no mundo árabe. Vá lá! Pode-se até dar um desconto. Vai ver que a jornalista falava do Afeganistão e depois ajuntou o mundo árabe a seu discurso. Ocorre que ela reincide: - A burca se tornou um símbolo do quanto as mulheres afegãs são oprimidas e essa questão vai muito além do vestuário. No mundo todo, as mulheres nunca tiveram nada de graça. Cabe ao mundo ocidental ensinar as mulheres árabes a conquistarem poder. Ora, Afeganistão nada tem a ver com mundo árabe. E burca muito menos. Curiosamente, o encontro teve mediação de Paulo Werneck, editor do caderno Ilustríssima. Também participaram o repórter de Mundo Samy Adghirni; a professora de história e cultura árabe da USP Arlene Clemesha e o editor de Internacional do UOL Notícias, Edilson Saçashima. Nenhum destes especialistas fez qualquer objeção a esta solene besteira proferida pela jornalista norueguesa. - Como jornalista, meu objetivo é reportar o que eu vejo. Mas acho que somos reflexo da nossa criação. Cresci nos anos 70, sou filha de pais liberais e de mãe feminista. Nas minhas reportagens, muito embora eu seja objetiva, acredito que seja possível enxergar o meu ponto de vista nas entrelinhas. E bota objetividade nisto. A moça, que já escreveu um livro sobre Cabul, sem saber que o Afeganistão não é árabe, pretende agora escrever um outro sobre a Líbia. Depois que a imprensa internacional descobriu – ó perspicácia! – que Kadafi era um ditador, Kadafi se tornou rentável. O livro será certamente mais um bestseller. quinta-feira, setembro 29, 2011
TODA HONRA E TODA GLÓRIA AOS SUICIDAS E ASSASSINOS Que mundo, este que nos foi dado viver. Não é fácil entender um menino de dez anos que dá um tiro em uma professora e depois se suicida. Profundo mistério. Mas, pelo que lemos, foi um gesto planejado. O menino teria contado a colegas que levaria um revólver para atirar na professora Rosileide e mostrou a arma a eles. A nenhum deles, no entanto, ele contou o motivo. A primeira menção do ataque contra a professora teria sido feita na quarta-feira, dia anterior ao disparo. A professora de Ciências e Geografia, Priscila Rasante, afirmou que ouviu que o menino teria comentado com colegas, um dia antes do crime, que mataria a professora. É gesto típico de filhos de policiais ou vigias, pessoas que guardam armas em casa. Uma criança normalmente não tem armas. No caso, o pai era guarda-civil. Pelo jeito, um irresponsável, que jamais ensinou ao filho como lidar com armas. Em minha infância, tive contato com armas, e não eram revólveres. Revólver era arma que se punha à cintura mal despontava o buço. Mas eu portava também, em meus quinze anos, mousers e winchesters, aquelas de quinze balas, usadas nos faroestes para matar índios. Não só eu, como todos meus primos. De novo, a influência dos pais. Meu clã vivera as revoluções do anos 20 e guardava armas de guerra, escondidas em baús ou debaixo de colchões. Duas ou três vezes por ano, era dia de azeitá-las e praticar “tiro al blanco”. O que, para a piazada, era uma festa. A gente se sentia adulto. Mas havia um dogma. Não se aponta arma para ninguém, a não ser que seja para atirar. Mesmo que a arma não esteja carregada. Se não está carregada, o Diabo a carrega. Quem quer que apontasse uma arma para alguém, não mais podia usá-la. Jamais ouvi relato de que um adolescente tivesse matado alguém naquelas plagas, nem mesmo por acidente. Duas semanas antes do episódio, o menino teria perguntado a seu irmão de quinze anos: “Se eu morrer, você vai ficar triste?” Obviamente, criança a alguma vai à escola com um revólver carregado sem alguma idéia do que fazer com a arma. O projeto vinha sendo amadurecido há dias. Até aí, como dizia, profundo mistério. Nada fácil de entender. Mas mais difícil de entender ainda é o que leio hoje no Estadão. Os alunos da escola onde ocorreu a tragédia fizeram uma festiva homenagem, com balões coloridos, ao aluno suicida e à professora ferida. Onde estamos? O menino, que jamais recebeu homenagens, agora as recebe por ter atirado em uma professora e depois em si próprio. A escola, pelo jeito, está incentivando crianças com vocação para o suicídio. É a fórmula mais segura para se perpetuar na mídia e na memória dos colegas e professores. Mudando de assunto, mas não muito. Leitor me envia notícia sobre o cacique Raoni Metuktire, que recebeu o título de cidadão honorário de Paris. A capital da França, como salienta o redator, supondo que os leitores contemporâneos já não mais saibam que Paris é a capital da França. Raoni está no país em campanha pela suspensão das obras da Usina de Belo Monte, no Rio Xingu (PA). A prefeitura de Paris informou que a escolha de Raoni foi feita baseada na atuação em defesa da Floresta Amazônica e dos povos indígenas do Brasil. Os franceses o consideram uma espécie de símbolo de luta pelos direitos humanos, pelo desenvolvimento sustentável e pela conservação da biodiversidade. Raoni é 12º cidadão honorário de Paris. Ao receber o título, Raoni usava trajes indígenas. Ele pretende ficar em Paris até o próximo mês. Raoni, se alguém não lembra, é aquele cacique que, nos anos 80, exibia orgulhosamente aos jornais a borduna com que matou onze peões de uma fazenda. Não só permaneceu impune, totalmente alheio à legislação brasileira, como foi recebido com honras de chefe de Estado na Europa. O papa João Paulo II, François Mitterrand e os reis da Espanha, entre outros, o receberam como líder indígena. Raoni, com seus belfos, se deu inclusive ao luxo de expor sua pintura em Paris. Um dos quadros do assassino atingiu US$ 1.600 em uma lista de preços que começava a partir de mil dólares. No final do ano passado, Raoni recebeu o título de Dr. Honoris Causa pela UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso). Enfim, isso de universidades homenagear assassinos está virando praxe acadêmica. Fidel Ruz Castro também é Dr. Honoris Causa pela UFSC -Universidade Federal de Santa Catarina. Os doutorados Honoris Causa parecem ser hoje o título preferido por assassinos. E analfabetos. Lula acaba de receber seu sexto doutorado Honoris Causa e sua carreira está longe de estar terminada. Dr. Raoni Metuktire, portanto. Que em setembro de 2009 encontrou-se com Nicolas Sarkozy na Embaixada da França, em Brasília, pouco antes do desfile da Independência. O presidente ficou impressionado com os belfos do bugre, círculo de 8 cm de diâmetro que Raoni tem no lábio inferior. O assassino tem um instituto, que leva seu nome, e desenvolve projetos econômicos sustentáveis no parque do Xingu além de ações para proteção ambiental das áreas indígenas, com apoio financeiro de organismos europeus. Sempre haverá na Europa quem se oponha a projetos de desenvolvimento no Terceiro Mundo. Questão de proteção de mercado. Há uns bons quatro anos, comentei reportagem do 60 Minutes sobre uma região da Índia que abrigava quarenta milhões de habitantes. O programa começava mostrando mulheres e crianças carregando em baldes, para próprio consumo, uma água preta e lamacenta. Outras juntavam esterco de vaca, usado como combustível. Havia um projeto de uma represa para abastecer de energia elétrica e água potável a região toda. Uma ONG vetou o projeto junto ao Banco Mundial, com a argumentação de que a represa ameaçava uma espécie qualquer de tigre. A represa gorou e quarenta milhões de pessoas continuaram a beber água podre e cozinhar com esterco de vaca. A reportagem entrevistava em Nova York, em um elegante apartamento, a porta-voz da ONG que conseguiu sepultar a represa. Não sei se a moça percebeu a ironia, mas o repórter a filma enchendo um copo de límpida água de torneira. O repórter quer saber porque privar milhões de pessoas de água limpa. A moça dizia mais ou menos o seguinte (cito de memória): não queremos que aquelas populações adquiram os hábitos de consumo do Ocidente. É como se dissesse: esses hábitos do Ocidente são privilégios de ocidentais. Vocês aí, continuem catando esterco de vaca. Todas as casas de Roma tinham água encanada antes de Cristo. No Brasil, até hoje, milhões de pessoas não dispõem deste conforto. Mais de trezentos projetos de barragens já foram engavetados no mundo, especialmente na África, Ásia e América Latina, por obra de ONGs. Estas organizações estão cometendo crimes contra a humanidade, ao condenar milhões de pessoas a viver longe da água potável e energia elétrica. Seus militantes são sempre oriundos de países desenvolvidos, todos pontilhados de represas. Sua ação sempre incide sobre países do Terceiro Mundo, que precisam de energia para abandonar esta condição. O cacique assassino, tido hoje como símbolo internacional do movimento de defesa da Amazônia, quer dizer à presidente Dilma que os povos indígenas da região do Rio Xingu, no Pará, não querem a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. “Vim para falar que somos contra, que não queremos Belo Monte. Se o governo pudesse me ouvir, queria dizer que não construam a usina. Não temos mais espaço. Vocês homens brancos já tomaram conta de todas as terras. O governo deveria deixar os índios onde os índios estão. Quero que rios e florestas fiquem para os meus netos e vou lutar por isso”. Coitadinhos dos bugres. São os maiores latifundiários do Brasil e se queixam da falta de espaço. Quando branco possui uma grande extensão de terra produtiva, é insultado pela imprensa como latifundiário. Indígenas que nada produzem a não ser folclore têm extensões ainda maiores de terra se queixam de pouco espaço. Com a carinhosa complacência dos jornalistas que anatematizam quem trabalha e produz alimentos. Um assassino em série, que deveria estar na cadeia e hoje se arvora em defensor do meio-ambiente, pede a uma ex-terrorista, que não deveria ter saído da cadeia que proíba a construção de uma hidrelétrica. E hoje recebe em Paris, como homenagem à sua estupidez, o título de cidadão honorário. quarta-feira, setembro 28, 2011
FARSA DEMOCRÁTICA NA ARÁBIA DOS SAUD Há muitos jornalistas saudando a tal de primavera árabe, como se fosse um prenúncio de democracia no Magreb e Oriente Médio. Mantenho minhas reservas. É completamente inviável qualquer possibilidade de democracia em sociedades teocráticas. Enquanto Alá existir e Maomé for seu profeta, democracia não é primavera, mas fugaz sonho de uma noite verão. Como Alá é eterno, que percam os árabes qualquer esperança de democracia. Democracia só existe no Ocidente. E só depois que a Europa deu um chega-pra-lá na Igreja de Roma. Leio em despacho da Associated Press que o rei saudita Abdullah deu às mulheres o direito de votar pela primeira vez em eleições locais marcadas para 2015. O rei afirmou em um discurso anual à assembléia, ou Conselho Shura, que as mulheres sauditas poderão concorrer e votar nas eleições municipais. Votar para vereadores, bem entendido. Rei é rei e não se submete a eleições. A Arábia Saudita assim se chama porque pertence ao clã dos Saud. Algo como se o Brasil se chamasse País dos Silvas. Ou talvez Silvalândia. Abdullah também afirmou que mulheres serão indicadas para se juntar ao Conselho Shura, que é todo formado por homens e escolhido pelo rei. A Arábia Saudita teve sua primeira eleição municipal da história em 2005. O reino realizará a próxima eleição municipal amanhã, mas desta vez as mulheres não poderão votar. Voto feminino sim. Mas devagar. Só daqui a quatro anos. Há quem atribua esta decisão de Abdullah aos ventos que sopram da Tunísia, Egito e Líbia. Ou seja, aos ventos da tal de primavera árabe. Ironicamente, dois dias depois do anúncio do voto feminino, noticiou-se que uma mulher saudita, Shaima Ghassanya, receberá dez chibatadas por dirigir um carro. Na Árabia dos Saud mulher é proibida de dirigir. Não por lei, mas por éditos de religiosos. Votar, até pode ser. Dirigir, jamais. Uma mulher dirigindo é um perigo. Pode afastar-se de casa e dedicar-se a essa abominável prática ocidental, a de praticar sexo antes do casamento. Ou depois, o que é pior. Fosse só isto seria pouco. Na Arábia dos Saud uma mulher só pode sair à rua se estiver acompanhada por um macho. A escritora somali Ayaan Hirsi Ali conta que foi ao encontro de seu marido, se bem me lembro, em Riad. Por alguma razão qualquer, ele não compareceu ao encontro. Ela ficou presa no aeroporto, pois não tinha macho para acompanhá-la na saída. Não venham então falar-me de primavera ou democracia. No mundo regido pelo Corão, um divórcio se resolve com apenas três palavrinhas do amo e senhor. É a lei dos três talaqs. À menor insubmissão da mulher, o marido diz: talaq. É um aviso. Se ela insiste em não fazer a vontade de seu amo e senhor, o marido repete: talaq. Na terceira insubmissão, o terceiro e definitivo talaq. Está consumado o divórcio, sem essa tralha inútil de cartórios e advogados. Talaq, talaq, talaq e passar bem. Aconteceu na Arábia dos Saud, em 79, em uma copa de futebol. O fato foi relatado no jornal Al Medina, de Riad. Abdul Rahman El Otaibi, rico comerciante, assistia ao jogo entre a equipe Ittihad, de Djeddah, e a equipe Ahli, de Riad. Abdul torcia por Ittihad, sua mulher preferia encorajar os Ahli. Para desgraça da senhora El Otaibi, seu time marcou um gol. Ela vibra e Abdul pronuncia a fórmula ritual: - Em nome de Alá, eu te repudio. O primeiro talaq fora pronunciado. O jogo continua. Os Ahli fazem um segundo gol, a senhora Otaibi não se controla e aplaude seu time. Abdul repete a fórmula: - Em nome de Alá, eu te repudio. Segundo talaq. Para suprema desgraça da senhora Otaibi, o demônio não brinca em serviço. Quis o destino que os Ahli marcassem um terceiro gol. Ela vibra. Abdul pronuncia pela terceira vez a fórmula fatídica: - Em nome de Alá, eu te repudio. Terceiro talaq. A partir do terceiro gol, a senhora Otaibi estava divorciada. O caso acabou na corte corânica de Meca. Para sua sorte, em algum lugar disse Maomé: "o divórcio não será válido se for pronunciado sob o império de cólera extrema". Em severo editorial, o Al Medina anatematizava não o Corão, evidentemente, mas o futebol: "até quando nossa obsessão pelo futebol continuará a destruir o caráter sagrado de nossa família?" Em país árabe, democracia sempre será uma farsa. terça-feira, setembro 27, 2011
LA SOLUCIÓN ES, MUCHAS VECES, MUY SIMPLONA Ainda há pouco eu comentava uma notícia alarmante: metade das crianças brasileiras que concluíram o 3.º ano (antiga 2.ª série) do ensino fundamental em escolas públicas e privadas não aprendeu os conteúdos esperados para esse nível de ensino. Cerca de 44% dos alunos não têm os conhecimentos necessários em leitura; 46,6%, em escrita; e 57%, em matemática. Isso significa que, aos 8 anos, elas não entendem para que serve a pontuação ou o humor expresso em um texto; não sabem ler horas e minutos em um relógio digital ou calcular operações envolvendo intervalos de tempo; não identificam um polígono nem reconhecem centímetros como medida de comprimento. Na ocasião, republiquei crônica de 1977, na qual eu manifestava meu espanto ante uma funcionária dos correios, que precisou usar uma calculadora para subtrair 20 de 31. Minha crônica tem 34 anos de idade. Ou seja, há mais de três décadas um funcionário público não conseguia fazer uma subtração banal sem recorrer a uma máquina eletrônica. De lá para cá, o ensino só tem se degradado. Mas ainda acabaremos sentindo saudades do analfabetismo contemporâneo. Em maio passado, provocou celeuma o livro Por uma Vida Melhor, adotado pelo Ministério da Educação, que considera ser válido o uso da língua popular, ainda que com seus erros gramaticais. Dizer "Nós pega o peixe" ou "os menino pega o peixe", seria aceitável. Para quem não tem escola, sem dúvida é aceitável. Mas a escola existe para ensinar os alunos a falar corretamente. Se não ensina, não tem porque existir. Um livro, adotado pelo MEC, não pode abrir tal exceção. O pior ainda está por vir. Leio na Folha que o Estado de São Paulo reduzirá a carga horária das aulas de português e matemática para aumentar o espaço de outras matérias. No ensino médio matutino, por exemplo, o aluno que está na rede hoje deverá ter assistido a 560 aulas de português quando se formar. Pela proposta, se ele escolher ênfase em linguagem, serão 440 aulas (20% menos). No currículo com ênfase em matemática, seriam 400 aulas e 360 em humanas. Por outro lado, todos os estudantes terão carga maior de física, química, filosofia e sociologia, que hoje chegam a ter apenas uma aula semanal. Ora, se com 560 aulas de português os alunos saem da escola apenas balbuciando o vernáculo, imagine o leitor como sairão com 120 horas a menos. Português e matemática são as matérias fundamentais de qualquer escola. Se você não conseguir expressar-se corretamente ou entender um texto, ou dominar pelo menos a tabuada, você não vai longe na vida. A menos que opte pela política. Aí poderá ser até mesmo presidente. Quanto a física ou química, quem de nós lembra das leis da termodinâmica ou de alguma formula química? Eu não lembro mais. Só gente do ramo, médicos, físicos ou engenheiros retêm tais conhecimentos. Eu, que desde jovem tinha uma propensão às humanidades, nunca entendi porque tinha de aprender leis da física ou da química. A única lei da qual lembro hoje é a da gravidade. O que estudei de história ou geografia até hoje me acompanha. De física e química, devo confessar que pouco ou nada me serviu. Quanto á filosofia, isto é coisa que não existe. O que existe é a história da filosofia, que começa lá nos antigos gregos, evolui no tempo e se tornou hoje esta disciplina confusa, cujo sentido é procurar o sentido da filosofia. Filosofia, assim sem mais nem menos, só existe para os marxistas. Para estes, a única filosofia permissível é o marxismo e todos os demais rumos do pensamento não têm sentido algum. Não por acaso, os cursos todos de filosofia são dominados pelas viúvas do Kremlin. Como também os de sociologia. Sociologia, desde sempre, foi um laboratório de marxismo. A decisão dos burocratas paulistas, no fundo, está privilegiando a masturbação intelectual, em detrimento do ensino que é fundamental para a vida. Com a alteração – leio na Folha - o governo tira carga de matérias em que os alunos têm problemas. Prova da secretaria aponta que 38% estão abaixo do esperado em português e 58% em matemática. La solución de un problema muchas veces es muy simplona, dizia um de meus professores em Madri. Se os alunos estão abaixo do nível esperado em português e matemática, é simples: reduz-se o número de horas/aula. Para que complicar, quando se pode facilitar? Melhor mesmo, só eliminando essas disciplinas chatas do currículo. Afinal, ninguém precisa delas para ser presidente da República. segunda-feira, setembro 26, 2011
BON VOYAGE! Alexandre Breveglieri está com o pé no estribo e me pede dicas sobre Paris. Como não houve jeito de responder (seu email parece estar errado), segue aqui o mapa da mina. Atenho-me principalmente à geografia etilogastronômica, informação que nem sempre encontramos nos guias de turismo. Cabe lembrar que esta oferta é imensa em Paris, e cada viajante sempre encontrará seus rumos. Cito aqueles que encontrei e gostei. São quase todos centenários e podem ser facilmente encontrados no Google ou no Google Earth. Fora o Chartier e o Polydor, não são restaurantes baratinhos. Mas tampouco são caros. Praticam os preços médios de Paris. Normalmente, entre duas pessoas, janto por algo entre 60 e 90 euros, vinho incluído. Mas pode-se comer por dez euros naqueles restaurantes do Quartier Latin e Mouffetard. Há menus executivos que constam de entrada, prato principal, sobremesa e eventualmente um demi pichet de vin. Nem sempre se come bem. Mas também se pode comer bem por esse preço, é questão de ter olho clínico. Evite os que ficam em ruas com alto tráfego de turistas. Bares • Os grandes bares de esquina ou de bocas de metrô são sempre mais caros que os botecos mais discretos. Lá, se paga pela paisagem. Num botequinho modesto de meio de rua, pode-se tomar a mesma cerveja dos bares mais imponentes, quase pela metade de preço. Vale o mesmo para cafezinho ou refeições • Mesmo assim, estacionar em pelo menos um dos dois cafés frente ao metrô Odéon: o Danton e o Relais Odéon, um quase em frente ao outro. Apanhar um jornal, pedir algo e olhar a fauna. Vale a consumação. Por outro lado, sentar numa terrasse numa tarde de inverno, mesmo que o cafezinho custe um pouco mais, é uma boa hipótese para observar as gentes • Se você quiser uma taça de vinho, deve pedir um ballon, rouge ou blanc, conforme seu gosto • Dar um giro pela rue Mouffetard, perto do Panteon. Há uma feira deliciosa nas manhãs de domingo. Almoços ótimos e abordáveis. Gosto em particular de um deles, o Tire Bouchon, na rua Descartes, ao lado da Mouff. É daqueles onde se come bem por dez euros, ao meio-dia. O patron se chama Antoine e sempre me recebe de braços abertos. A Mouff merece uma visita, é uma rua para onde os parisienses tentaram fugir, para escapar ao Quartier Latin. Se bem que o turismo já chegou lá. Saindo da Sorbonne, dá uns 10 ou 15 minutos a pé • Um restaurante interessante a visitar é o Polydor, na rue Monsieur Le Prince, a uns cinco minutos da Sorbonne. Almoços relativamente baratos. Gosto muito, particularmente quando tem boudin no cardápio, o que não acontece todos os dias. Modesto, honesto e tradicional. Bom para um almoço sem maiores pretensões. • Bem no início da Rue du Faubourg Montmartre, há um restaurante peculiar, o Chartier, bem no início, à esquerda, no fundo de uma “cour”. Simpático, folclórico e muito barato. Foi construído no final do século XIX, hoje está classificado como monumento histórico e gaba-se de servir o mesmo cardápio desde a inauguração. À noite, fecha às nove. Só pelo ambiente, vale a visita. Lembrar que em Paris as mesas, mesmo pequenas, são coletivas. Não se importe de sentar junto a estranhos ou que eles sentem em sua mesa. É normal • Na Gare de Lyon há um restaurante suntuoso, um teto de cair o queixo, o Train Bleu. Vale a pena a visita, que mais não seja para tomar um cerveja no bar e contemplar o ambiente. Não aconselho comer nele. Muito caro. Rapport prix/qualité nada conveniente • Na Rue de l’Ancienne Comédie, quase ao lado do Relais Odéon, há o Procope, fundado em 1686. Lá almoçaram desde Racine, Voltaire, Rousseau, D’Alembert até os revolucionários de 89 e Napoleão. Este deixou lá um chapéu a título de pindura. Está lá também a mesa em que Voltaire escrevia. Preços normais de Paris • Há um belíssimo restaurante, o Julien, na rue du Faubourg Saint-Denis. Pratos excelentes, nada caros em termos de Paris. A rua é de prostituição, está um pouco deteriorada, mas é freqüentável sem problema algum • Na rue Mabillon, procurar o Charpentier, excelente cozinha, preços humanos. Recomendo vivamente. Cuisine du terroir. O restaurante, simpaticíssimo, é ligado ao movimento de Compagnonage, uma confraria meio paralela à maçonaria. Recomendo vivamente as andouilletes AAAAA. Isto é, as andouilletes aprovadas pela Association Amicale des Amateurs d'Andouillettes Authentiques. O boudin aux pommes é superbe • Na Île St. Louis, ilha ao lado da ilha da Notre Dame, na rue St. Louis en l’Île, procurar Le Sergeant Recruteur ou, ao lado, Nos Ancêtres, les Gaulois. São dois restaurantes com menu a preço fixo. Entradas, queijos e vinhos à vontade. Quanto aos pratos propriamente ditos, você escolhe um entre três opções. Não esquecer que o vinho é “à la volontê”. Não é lugar para se ir sozinho. Como é ambiente de alegria coletiva, o solitário fica um tanto deslocado. Se o garçom demora e você está sedento, estenda sua taça a seu vizinho de mesa e peça um pouco de seu vinho. Ele não vai negar. Nem estranhar • Algo mais sofisticado e, evidentemente, mais caro: o Bofinger, numa pequena travessa da Place de la Bastille. É só chegar na Place e perguntar pelo restaurante. Sem falar na cozinha, só o interior vale uma tarde e alguns euros a mais. Quando sento lá, não tenho mais vontade de sair. Em frente, o Petit Bofinger, caso o Bofinger esteja lotado. Mas a arquitetura do Petit não se compara à do primeiro • Um excelente restaurante, o preferido do Mitterrand, é a Brasserie Lipp, no boulevard Saint Germain. Abrigou várias gerações de intelectuais franceses. As esquerdas sempre sabem onde se come bem. Recomendo fortemente. O plat de resistance é o cassoulet, uma espécie de protofeijoada. Mas o jarret de porc tampouco é de se jogar fora • Frutos do mar há por toda parte. Mas um dos locais mais reputados é o Au Pied de Cochon, no Les Halles. Em matéria de ostras, minhas diletas são as fines de Claire • Em quase todos os restaurantes que arrolo, se você quiser vinho, em vez da bouteille pode pedir um pichet, ou, para amadores, un demi pichet ou un quart pichet. Ou seja, uma jarra de vinho, uma meia jarra ou um quarto de jarra. Em geral, o vinho é potável. Em restaurante bom, o vinho sempre é bom • Tivesse eu de visitar apenas cinco restaurantes, pela ordem, eu começaria pelo Julien e Charpentier, continuaria pelo Procope e Bofinger, e terminaria com a Brasserie Lipp • Não esquecer as virtudes da comida de rua. Há um sanduíche árabe em Paris que adoro, é o merguez au chili. Merguez é uma lingüicinha picante. Compra-se em quiosques de esquina. Atenção: munir-se de água. Pega fogo na garganta • A gorjeta vem sempre incluída na conta. Lei do Mitterrand • Fora isso, deve existir mais uns cinco mil restaurantes e cafés por lá, à sua espera Outra dicas • comer ou beber sentado custa uns 20 % a mais do que no balcão. Para um café da manhã, nada melhor que uma tartine au beurre, que é uma baguetinha com manteiga • em compensação, se você pede um cafezinho ou chope numa mesa, pode a rigor passar uma hora sem que o garçom o incomode • jamais pedir “une bière”, isto o denuncia como marinheiro de primeira viagem. Se o garçom for sacana, lhe empurra um litro de cerveja. Pede-se “un demi”, ou seja, un demi-verre. • em boa parte dos bares há uma cerveja belga que gosto muito, é a Abbaye de Leffe. Esta geralmente não é servida em demi, mas em um copo um pouco maior. É mais cara que as triviais, mas vale a pena. Tem três versões: blonde, brune e radieuse. Qualquer uma é boa aposta • se você vai ficar coisa de uma semana, tratar da carte orange (une semaine, deux zones). A semanal vale de segunda a domingo. Levar fotos 3 x 4. Ou tirá-las nas dezenas de máquinas automáticas, encontradiças em todas as ruas do centro. No metrô, se enfia o tiquete na catraca, no ônibus basta mostrar a carta ao motorista. Outra opção, carnê de dez bilhetes, mais conveniente se você chega no meio da semana e vai ficar pouco tempo • Comprar a revista Pariscope, ou L’Officiel des Spectacles, em qualquer banca. Saem às quartas e dão toda a programação cultural da cidade. Lembrar que em Paris gastronomia também é cultura • Usar ônibus tem a vantagem de lhe mostrar Paris. Neste sentido, o 69 é ótimo. Se você fizer o percurso de início a fim de linha, terá o melhor da cidade Visitas a meu ver obrigatórias No “centrão”, se é que se pode falar de centro em Paris: As tradicionais: Notre Dame (tem concertos de órgão, domingo, às 17 hs, maravilhoso e grátis) Louvre, Sorbonne. (Na Sorbonne, depois do 11/9, não dá pra entrar mais. Só sendo estudante ou professor). Frente à Sorbonne há uns botecos agradáveis, para um lanche rápido ou leituras. • Além do Louvre, há o Musée d’ Orsay, às margens do Sena, belíssimo. (E mais umas duas ou três centenas de museus, é claro). Conforme seu tempo, terá de passar rapidinho por museus, ou não verá nada da cidade • Saint Chapelle, no Palais de Justice, no Boul'Mich. Belíssima • Les catacombes, metrô Denfert-Rochereaux. Antes abriam apenas um domingo por mês. Agora estão abertas durante a semana toda. Imperdível • Centro Beaubourg, conjunto com biblioteca, exposições, etc. Se você subir ao último andar, terá uma bela vista de Paris, sem ter de enfrentar as filas nem os preços da torre Eiffel. Deambular pelas adjacências • Um passeio pelo parque Luxembourg, a cinco minutos da Sorbonne é algo imperativo. Diria que são quatro parques em um só: a cada estação do ano, uma beleza diferente • Le Forum des Halles. Arquitetura subterrânea criada no espaço do antigo mercado, Les Halles. Hoje é um imenso centro comercial. A bem da verdade, passei por lá em minha última viagem a Paris e não gostei. Me pareceu muito deteriorado. Mas a arquitetura em seus entornos é interessante • Dedicar pelo menos uma hora percorrendo as gôndolas da FNAC, a mais poderosa livraria do país. Acho que há três FNACs em Paris. Nas FNAC há muita oferta em matéria de som e eletrônicos. Música que você jamais encontrará aqui. Neste sentido, a FNAC de Montparnasse é mais diversificada • Tudo isto pode ser feito a pé e a arquitetura, por si só, já é uma festa. Se você se perde em algum pedaço, vai descobrindo novas geografias • Perambular pelo Marais (bairro onde está o centro Beaubourg), Palais Royal, Place des Vosges, principalmente esta última, último reduto da aristocracia parisiense. (Mas já vi mendigos dormindo por lá) • Dar uma olhadela no café Deux Magots (metrô Saint Germain), pelo menos em homenagem aos existencialistas dos anos 60. Fica em frente ao Chez Lipp. • Dar uma passada no Boulevard Montparnasse, à noite. Há uma livraria interessante, L’ Oeil qui écoute. Mais cafés dos existencialistas, La Coupole, Le Dôme, também caros e turísticos. Eu gostava particularmente do Select Latin, onde curti centenas de horas de leitura • Pode-se subir a Montmartre de barco. É só pegar no Sena, às 9 da manhã, um barquinho chamado La Patache, que ancora ao lado da piscina Deligny. Vai subindo por canais subterrâneos e eclusas, até o Canal Saint Martin. Chega-se ao pé do morro lá pelas 11. (Não sei se este barco existe ainda. Conferir no Pariscope) Saindo do “centrão”: • Perambular pela Champs Elysées, Trocadero, Eiffel, Arco do Triunfo, etc • Pegar um metrô expresso, o R.E.R., e ir até La Défense. Ver a Arche, que os jornalistas brasileiros insistem em chamar de Arco. É o lado modernoso de Paris, frio e imponente. Acho que deve ser visto, para não se ficar com uma idéia apenas da Paris que imaginávamos. Estando lá, dar uma olhadela no Omnimax, o cinema de 360 graus. Vale • Cité de la Science et de l’Industrie, em La Villette, ao norte, no XXe. Tem de tudo. Cabe uma visita ao Geode, outra sala de cinema com uma tela de 360°. Sessões de hora em hora. Melhor escolher um só setor da Cité, senão perde-se um dia todo • Se der tempo, mas só se der tempo, visitar La Grande Bibliothèque, último monumento faraônico do Mitterrand. Aqueles quilômetros e quilômetros de mogno que forram paredes e pisos foram surripiados do Brasil, via o cacique Paulinho Paiakan. • Père Lachaise, é claro. Em Asnières, ao sul de Paris, há um cemitério de cães que vale a pena como folclore. Há um outro em Villepinte. Visitá-los em dia de Finados é um espetáculo à parte • Procurar a Promenade Plantée. É um passeio belíssimo. Apanhá-la de manhã, por exemplo, de modo a chegar pela 1h ou 2h da tarde na Bastille e aproveitar para um almoço no Bofinger Et bon voyage! domingo, setembro 25, 2011
SOBRE MEDICINA E RELIGIÃO Minha crônica de domingo passado, sobre as medicinas do Além, rendeu não só cumprimentos, mas também magoados protestos de crentes ofendidos. Me escreve um leitor: “você parou para pensar que você pode estar desrespeitando a sua equipe médica? E se o seu médico é católico ou de qualquer outra religião? Esse é o grande problema dos seres humanos... se acham superiores a tudo e a todos... é lamentável...” Para início de conversa, isso de achar que ninguém é superior a alguém é ideologia massificante de católicos e comunistas. É óbvio que somos superiores a muitos seres humanos. E inferiores ante outros. Uma pessoa que lê é claramente superior em relação a uma que não lê. Um poliglota é de longe culturalmente superior a um monoglota. Um homem urbano e ciente do valor da vida humana é nitidamente superior a um bugre que enterra crianças vivas, seja porque são gêmeas, seja por porque são filhos de mãe solteira. Um homem com noções de Estado e cidadania é moralmente superior a um silvícola que só tem noção de tribo. Me considero serenamente superior a esses desmiolados que enchem os templos evangélicos ou os shows de rock, a essa gente que vai xingar a mãe do juiz nos estádios e passa discutindo um jogo de futebol durante uma semana. A essa gente que assiste novelas da Globo e lê Harry Potter. Me considero obviamente superior a leitores de Paulo Coelho ou padre Marcelo, e aqui minha superioridade se estende sobre milhões. Em contrapartida, me sinto pequeno ante um Platão, Alexandre, Nietzsche, Swift, Schliemann, Fernão de Magalhães ou Champollion. Mais próximos de nós, José Hernández, Orwell, Pessoa. Meu herói dileto é o Alexandre. Não era exatamente um pensador, mas guerreiro e homem de ação. Em 33 anos, conquistou impérios e civilizou nações. O judeu aquele que foi crucificado pelos judeus aos 33 anos – e hoje goza de muito mais mídia que o filho de Olímpia – tem em seu currículo apenas três anos de conversa fiada. Três anos que fizeram a humanidade regredir séculos. Se algo aprendi de minhas leituras, é que o avanço no tempo não torna ipso facto um homem moralmente superior a seus antepassados. A humanidade jamais produziu um outro Alexandre. Nem produzirá outro Platão. Meus santos tutelares não são contemporâneos, mas homens de séculos atrás. Voltando à mensagem do leitor: de médicos católicos eu só quero distância. Em meus dias de Florianópolis, encontrei um destes senhores. Estava de partida para a França e ele me advertiu: cuidado com o vinho. Seja moderado. E muito cuidado com os queijos e foie gras. Ora, considero que prescrições médicas devem ser levadas a sério. Era no mês de meu aniversário. Amigos me receberam com muito vinho, champanhe, queijos e foie gras. Eu, beliscando como um tico-tico. Bebendo pouco e comendo menos ainda. Vai daí que, ao tomar o avião de volta, comprei um Nouvel Observateur. A reportagem de capa era sobre o “paradoxe du Périgord”, algo que até hoje perturba a medicina politicamente correta. Por este paradoxo entende-se o estranho fenômeno de o Périgord ser uma região de alto consumo de patês, queijos e vinhos e, no entanto, seus habitantes gozarem de excelente saúde cardíaca e vascular. Um médico declarava, na reportagem, que inclusive um pouco de boudin no leite das crianças era muito saudável. Boudin é a versão francesa da nossa morcilha. Mais suave e um de meus pratos prediletos. Me senti roubado. Ao voltar a Santa Catarina, busquei meu médico. De Nouvel em punho. Doutor, o senhor ouviu falar disto, o paradoxo do Périgord? Não, não havia ouvido falar. Então leia esta reportagem. Não leio em francês, disse-me. Tudo bem – respondi – eu traduzo. E traduzi. Ele fez marcha à ré. Bom... meia garrafa de vinho por dia é sempre bom para o coração. Ou duas doses de uísque. Entende-se que o boudin seja saudável às crianças, contém ferro. Mas nós, médicos, não podemos admitir isto. Seria estimular o alcoolismo. Não acho. Sempre discordei do conceito médico de alcoolismo. Com o tempo, descobri que médicos formados nos Estados Unidos são sempre mais intolerantes em relação ao álcool que os formados na Europa. Coisa de puritanos. Na Espanha, França, Itália ou Portugal, o vinho faz parte de qualquer refeição. Antes do final do século passado, uma médica me proibiu qualquer gota de álcool. Consulente disciplinado, passei dois anos sem beber. Minha vida se tornou um inferno. Meus amigos bebiam e eu só tomava cerveja sem álcool. Em alguns bares, fui apelidado de Kronenbier. Meus amigos entravam em uma outra fase e eu restava sóbrio. Horror. Troquei de médica. De início, já fui claro: Doutora, eu estou trocando de médica porque a anterior me proibiu o álcool. Estou buscando uma que o libere. Ela topou e eu voltei ao mundo dos vivos. Alguns anos depois, voltando de mais um giro pela Europa, fiz meus exames de rotina. Todos os índices vitais, glicemia, colesterol, triglicérides, transaminases, excelentes. Levei-os feliz à minha nova médica. E confessei. Dra! Eu só não bebi no café da manhã. E assim mesmo, em alguns hotéis, não resisti ao champanhe que acompanhava o café. - Agora, só depois dos exames, é que você diz isso? - Exato, Dra! - Bom, então acho que vou te prescrever uma viagem à Europa a cada dois meses. O que me pareceu ser uma sábia prescrição. Quando vivia em Curitiba, encontrei um gastro, também católico, que ousou me afirmar sem nem ao menos enrubescer: a dose permissível de cerveja é meio copo de cerveja. Ora, Dr! Meio copo de cerveja não existe. Se existissem, os copos não seriam copos, mas meios copos. Alguns anos mais tarde, eu trabalhava aqui em casa e deixei a televisão ligada. Lá pelas tantas ouço um fragmento de frase: meio copo de cerveja. Só pode ser aquele cretino, pensei. Fui conferir. Era. No Sírio-Libanês, me deparei com um técnico do aparelho de radioterapia que era testemunha de Jeová. Após uma sessão de radiação, eu o ouvi opinando sobre a Bíblia. Dizia umas bobagens sem fundamento algum, aquele papo furado de crente que carrega a Bíblia sob o sovaco e da Bíblia nada entende. Chamei-o às falas. A discussão foi longa. Acabei descobrindo que os testemunhas de Jeová mantém equipes em vários hospitais do país, para dar assistência aos pacientes que se recusam a transfusões de sangue. Essa gente deveria estar na cadeia. Não, meu caro leitor. De médicos católicos – ou de qualquer outra religião – procuro manter distância. Considero inclusive que se alguém sai da universidade crendo nas coisas do Além, isto é a prova mais evidente de que a universidade fracassou. Já um dentista católico, nenhuma objeção. Odontos não se metem na vida da gente. sábado, setembro 24, 2011
EN HOMENAJE A EL RATÓN Leitor me escreve: "Parece que o espetáculo esplendoroso, mas cruel, que são as touradas vai acabar. Cinco mil anos de história pro lixo". Creio que não, meu caro Marc. Pelo que li, será realizada a última tourada na Catalunha. Mais que apreço pelos touros, me parece que está em jogo um desafio à Espanha. Tendo vivido em Madri – e para lá volto quase todos os anos – nunca assisti a uma tourada. Para começar, por meu asco às multidões. Continuando, como em todos esses grandes espetáculos, o espectador está sempre longe do que está acontecendo. Só com binóculos para se ver o que de fato acontece. Mesmo assim, não consegui escapar de touradas. No verão espanhol, em qualquer bar que você esteja, a las cinco en punto de la tarde, alguma televisão estará transmitindo uma tourada. Assim sendo, acabei entendendo um pouco do assunto. Tourada é algo complexo, não compreensível a qualquer turista. Há pelo menos três personagens na lídia, o picador, o banderillero e o herói da festa, o toureiro. Mais outros dois, o cavalo do picador e o touro, é claro. O picador é quem dá início ao massacre. Está montado em um cavalo, blindado por cotas de malha, e com uma venda nos olhos. A venda é para não se assustar com a investida do touro. Ou seja, o cavalo anda às cegas. O picador tem uma lança – a pica – com a qual penetra na cerviz do animal. Uma vez picado, o touro não consegue mais erguer a cabeça. Feito isto, entram os banderilleros. São aqueles valentes que cravam quatro lancetas no lombo do animal já debilitado. Ficam balançando enquanto o touro corre e servem para irritá-lo. Quando ele está reduzido a um caco, entra o herói da festa, com seu “traje de luces”, todo bordado em ouro. Se você assistiu alguma tourada na televisão, deverá ter visto a nonchalance com que o toureiro dá as costas ao touro, e se afasta serenamente sem sequer olhar para trás. É truque. O touro, como todos os herbívoros, tem um olho para cada lado. À sua frente, há um ponto cego, onde ele não vê nada, e é este ponto cego que o herói aproveita para humilhar o touro. Mesmo assim, debilitado, o touro reage. Em uma temporada em Madri, vi foto espantosa em um jornal. Um touro acertou, com precisão inesperada, o ânus de um banderillero. Levantou-o nas aspas e fez um rasgo de 18 centímetros. Não sei se o banderillero morreu, não acompanhei a notícia. Mas aquele foi certamente o dia do touro. Uma das coisas que me aprazem na vida é conversar com barbeiros. Bueno, certa vez, a las cinco en punto de la tarde, entrei em uma peluqueria, na calle Echegaray, centro de Madri. Na televisão, uma corrida. O touro começou estripando o cavalo do picador, apesar de sua cota de malha. Entraram os banderilleros, o touro enfiou as aspas na coxa de um deles e o jogou para o alto. Reuniu-se então a Presidência da tourada e decidiram devolvê-lo para o brete, por ser um touro manso. Chamaram quatro vacas que o conduziram de volta às coxias. - Como touro manso? – perguntei a meu Fígaro. - Bueno, no es que se pueda afagar como a un gato. Explicou-me melhor. Touro manso é aquele que está familiarizado com o ser humano. O toureiro gosta mesmo é do touro burro. É aquele que, quando sente a pica na cerviz, investe contra a pica e a crava mais fundo no próprio lombo. O touro manso é inteligente. Mal sente a pica, recua. O toureiro já se põe em alerta. Tourada é algo complexo, dizia. Há dicionários de tauromaquia e é preciso ser um pouco erudito para entender uma tourada. Um dos passes se chama veronica. O toureiro se ajoelha, de costas para o animal, balança a capa e deixa que a besta venha. Bom, pela televisão, assisti a um passe desses. Ocorreu que o herói, naturalmente preocupado com o que lhe vinha pelas costas, olhou para trás. Vaia total da platéia: Cagóóón! Tudo isto, para saudar El Ratón, a meu ver um touro manso. Em janeiro de 2009, li no El País: Ratón, la res más cotizada de los encierros, agiganta su fama a golpe de cornadas y sangre "Lo feliz que me ha hecho este animal no lo cambio por nada. No tiene precio", afirma orgulloso su dueño El Ratón, um touro de oito anos, ganhou lenda de assassino nas corridas de rua em Valência. Matou um e feriu mais de trinta com cornadas. Tornou-se o herói das festas, ao invés do toureiro. Encheu arenas e seus seguidores acudiram a todos os vilarejos em que foi. Na Internet, são contadas suas façanhas, de forma por vezes exageradas. El Ratón se tornou celebridade dos bous al carrer, que é como os catalães decidiram chamar as touradas. Tem muitos seguidores, mas também um grande número de detratores. Há quem louve sua valentia, sua bravura e inteligência. Outros o caluniam como covarde, touro que se aproveita de toureiros inexperientes e que os corneia à traição. Enfim, el Ratón não deixa a ninguém indiferente. Segundo Gregorio de Jesús, ex-matador que se dedicou à criação de gado, “es ágil, inteligente, rápido. Muy alegre. No es bruto, no es como los demás toros que actúan por instinto y chocan contra todo. Éste piensa, analiza y después ataca". Um touro que pensa é um perigo. Ao mesmo tempo, uma atração. Gregório cobrava seis mil euros por cada apresentação de el Ratón, quando um touro de aluguel não custa mais que mil euros. El Ratón se limitava a aparecer umas dez vezes por temporada, em Aragón, Valencia, Cataluña y Navarra, comunidades nas quais o regulamento não obriga a sacrificar as reses após serem toureadas. Cá entre nós, um dia bem que pode ser do touro. sexta-feira, setembro 23, 2011
REYKJAVIK, ADEUS! Tudo que é bom dura pouco, dizem as gentes. Com o real valorizado, viajar ao Exterior estava sendo muito confortável. Nesta última semana, o estrangeiro ficou um pouco mais longe de nós. E eu, logo eu que vivo recomendando aos leitores que aproveitem o bom astral do câmbio, me deixei pegar de calças curtas. Estou partindo mês que vem. As passagens, comprei-as ainda no bom câmbio anterior. Os hotéis, deixei para hoje e senti uma certa dor no bolso. Dor no bolso, mas não muita. Estou reservando bons hotéis a preços que não conseguiria em São Paulo. Algo em torno a 100 euros para duas pessoas. Em Paris, no entanto, os preços decolaram. Em hotel que, ano passado, paguei cerca de 150 euros, agora vou pagar mais de 200. Em compensação, encontrei um hotel divino em Budapeste, pelo qual pagarei 124 euros. É hotel até que meio suntuoso para meu gosto. Ocorre que abriga um dos bares que mais adoro em toda a Europa, o Café New York. Nele, me sinto como se estivesse bebendo em uma catedral. Até dispensei o café do hotel. Vou tomá-lo neste singelo boteco: http://www.budapestzin.com/2007/10/caf-new-york.html Difícil dizer se conheço café mais solene na Europa. Adoro o Oriente e o Gijón em Madri. O Bofinger e o Julien em Paris. (Em verdade, são mais restaurantes). O Café en Seine, em Dublin. O Greco em Roma, o Florian em Veneza. Mas nenhum destes tem aquelas colunatas do New York, que lembram o baldaquino de Bernini no Vaticano. É o que me dá a sensação de estar bebendo em uma catedral. À tardinha, degustarei um Egri Bikaver às margens do Danúbio, ao som de violinos magiares. Espero conseguir sair dos limites do hotel. Buda e Pest têm restaurantes soberbos – entre eles o Gundel, considerado um dos mais refinados do Leste europeu. Suponho que terei estímulos suficientes para sair do New York. Se alguém ainda lembra do Anjo Exterminador, do Buñuel, entenderá meu drama. Diversas pessoas se reúnem em uma casa para um jantar. As portas estão abertas, mas ninguém consegue sair. Vou pegar a Primeira Namorada em Berlim, onde ela estuda aquele idioma marcial dos Deutschen. Meu primeiro projeto era chegar até Reykjavik, um de meus mais antigos xodós. Voltar a Copenhague e fazer Praga e Budapeste. Com uma perna até Karlov Vary, outro xodó ainda não consumado. E com um grand finale em Paris, afinal ninguém é de ferro. Vai daí que me deparei com as circunstâncias da Islândia. Fica muito fora de rota. Três horas de vôo rumo ao norte, mar adentro. E Reykjavik, por mais que renda, não pode render muito: cem mil habitantes. A cidade pequena, olha e passa, dizia Kavafis. Praga e Budapeste são muito mais cidade. Resolvi então descer de Copenhague na reta rumo ao sul. Continuo enamorado por Reykajvik. Mas a moça terá de esperar mais um pouco. Talvez esteja perdendo uma aurora boreal. Mas a chance de perdê-las é mínima, elas se fazem avaras em outubro. Estou mais ou menos chegando à filosofia de Buñuel, que dizia: “não viajo por países que não conheço”. Já tive maus dias em Praga. Em 1990, quando fui a Berlim para tirar alguns cacos do Muro, tive um problema de água no joelho. Do trem, fui direto a um hospital. Claro que não faltaram más línguas que falaram de uísque no joelho. Até pode ser, a cor do líquido extraído lembrava um bom scotch. Recomendação: repouso e gelo no joelho. Mas o muro estava ali, quase a meu lado, esperando meu martelo. Mal me equilibrei nas pernas, fui lá tirar meus cacos. Caminhava devagar, sem forçar o joelho. Deu certo. Fui então para Praga. Ora, Praga é uma cidade belíssima, concebida para pedestres. Impossível não caminhar. Foi quando me acometeu de novo a praga, sem trocadilhos. A perna começou a intumescer e tive de procurar hospital. O hospital, uma espécie de pátio de milagres, gente doente atirada no chão, em colchões espalhados pelos corredores. Eu, tentando achar um médico. Falava em inglês, os funcionários me entendiam. O problema é que respondiam em checo. Lá perto de meio-dia, descobri que havia uma ala diplomática no hospital. Fui para lá. Consegui me comunicar. Nossa! O panorama mudou. Muita limpeza, muita higiene, não vi mais gente deitada nos corredores. Me atendeu uma médica que fizera estágio em Cuba e falava espanhol. Bonitaça, ela aproximou seu rosto do meu, começou a queixar-se de sua vida, me confessou suas mais íntimas angústias. Eu, que não sabia se voltaria ao Brasil com uma perna ou duas, não percebi naquele momento que a moça estava me insinuando outros serviços que não os médicos. Por uns vinte dólares, eu talvez até tivesse esquecido o inchume de meu joelho. Seja como for, a ala diplomática era limpa e abordável. Com acesso aos serviços VIP da doutora. Rezo ao bom deus dos ateus que me poupe destes percalços nesta campereada. Dediquei a Praga cinco dias. Vai ser uma maratona, espero fazer pelo menos Malá Strana, Cidade Velha e o Bairro dos Judeus. E o Hrad, é claro, o castelo. E vou acrescentar uma cidade nova às minhas lembranças, Karlovy Vary. Quem quiser vê-la, procure o filme Last Holiday, de Wayne Wang, cujo título brasileiro é As Férias de Minha Vida. É um filme curioso, que em determinados momentos nos dá vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Recomendo. De Buda e Pest tenho ótimas lembranças. Curiosamente, a que mais me marcou, foi a de uma sensação agradabilíssima na pele, em um dia de primavera, às margens do Danúbio. Era um friozinho delicioso, que arrepiava os pelos do braço, enquanto o sol me aquecia. Sensação igual só tive em Madri, em outra primavera, em frente ao Palácio Real. Dava vontade de jamais sair daquela praça. As sensações térmicas dependem muito de geografia. No Valle dei Templi, em Agrigento, na Sicília, senti algo também estranho. O sol me queimava o peito e minhas costas, viradas para o poente, estavam geladas. E depois, Paris. Dizia que o aumento do euro encareceu as viagens. Encareceu mas não muito. Ano passado, comi satisfatoriamente em Paris por dez euros, entrada, prato principal e sobremesa. Com sorte, mais um demi pichet de vin. Do ano passado para cá os preços não mudaram. Ou seja, à cotação de hoje, 25 reais. Por este preço, você mal paga um sanduíche e um café com leite em São Paulo. O euro subiu, mas ainda há esperança. Reykjavik, adeus! Mas não é um adeus para nunca mais. Ainda há tempo para consumar nosso amor. quinta-feira, setembro 22, 2011
HARVARD DESCOBRE A AMÉRICA Há quem pense que sou um ateu militante, que luta para atrair os crentes à sua causa. Nada disso. Ateu, eu o sou desde minha adolescência. Ou melhor, desde nascido. Nascemos todos ateus. Quem nos faz crer em Deus é a igreja, escola, a família, o Estado. No meu caso, foi uma catequista uruguaia, Doña Chichi. Eu vivia no campo, em um universo mais pagão que religioso. Meus pais acreditavam vagamente que deveria existir alguém que criara aquelas canhadas e coxilhas e inclusive nós mesmos. Era uma crença vaga, de pessoas incultas que do mundo pouco ou nada entendiam. Morávamos em Upamaruty, distrito rural de Livramento. Havia uma capela nas Três Vendas, no município vizinho de Dom Pedrito. A cada domingo, vinha um padre da cidade celebrar uma missa. Quem nos levou para as missas – e para a catequese – foi Doña Chichi, mulher de um fazendeiro uruguaio, don Soilo. A cada domingo, Doña Chichi passava em sua camioneta pela Linha Divisória, arrebanhando a piazada. Automóvel, para nós, era uma aventura. Entrávamos com entusiasmo na caçamba e só a viagem já valia uma missa. Acreditei naquelas potocas todas, fiz primeira comunhão, me submeti a essa suprema humilhação que se chama confissão e tentei, naqueles anos, ser um bom cristão. Cada vez que julgava ter cometido um pecado, me ajoelhava no chão de terra e pedia perdão a Deus. Esta genuflexão ridícula é o que mais tarde me fez abominar a Igreja. Eu me ajoelhava ante o que não existe, para pedir perdão por algo que nada tinha porque ser perdoado. Doña Chichi, por sua vez, nos fazia pedir ao grande Deus do universo para que não chovesse, “para que nuestras carreteras se mantengan en buenas condiciones, para llevar nuestra safra de lana a la ciudad”. Era sua maneira de interpretar a função de Deus no universo. Durante uns quatro ou cinco anos, fui à missa a cada domingo, rezei, confessei e comunguei. Fui congregado mariano e, mais ainda, fui presidente da Congregação Mariana. Por uma questão de coerência, acabei destruindo a Congregação Mariana. Teria uns quinze anos. Foi meu primeiro serviço prestado à humanidade. Voltei a meu ateísmo primevo quando comecei a ler a Bíblia. Não há fé que resista a uma leitura atenta da Bíblia. Desde o Gênesis, vê-se que deus é uma criação dos homens. Terá sido por isso que a Igreja desrecomendava a leitura da Bíblia antes do trinta anos. Se você chegou aos trinta acreditando em Deus, dificilmente renegará sua crença. A respeito de crônica recente, sobre o embuste das medicinas do Além, me escreve Marcelo Araújo: Picaretagem??? Superstições??? Embustes??? O seu texto até que nos faz parar para pensar nos profissionais da medicina, porém, a sua forma de se dirigir às pessoas citadas, nos lembra os orgulhosos Patrícios do 1º século. Que se discorde das idéias, tudo bem. Mas, utilizar destas palavras, me parece uma falta de respeito muito grande. Caro, toda religião é picaretagem. Padres, seja a qual religião pertençam, vivem de enganar o próximo. Sustentam-se vendendo vento. Comprei vento, em minha juventude. Mas lá por meus quinze anos considerei não ser bom negócio comprar vento. Achar que chamar de picaretagem a condenação das religiões é falta de respeito, é o mesmo que chamar de falta de respeito condenar a corrupção do governo e do Congresso Nacional. Que as pessoas creiam no que quiserem e felicidades a todos! Para mim, tanto faz como tanto fez. O que não se admite é atribuir a instâncias do Além o trabalho de médicos, enfermeiros e máquinas. Minha cura se deveu em boa parte à medicina de ponta e à excelência do corpo médico – e também dos físicos - do Sírio-Libanês. Além da competência, fui tratado com um carinho como se eu fosse, não um cliente, mas um amigo de todos. E graças, muito especialmente, à Siemens e à sua metodologia IMRT - Intensity Modulated Radiotherapy - Radioterapia com Intensidade Modulada, uma tecnologia avançada de radioterapia. O aparelhinho, um acelerador linear de última geração, que custa um milhão de dólares – mais outro milhão pelas instalações e softwares – cura determinados cânceres com mais eficiência e menores danos que as técnicas anteriores. Quem atribui a Deus sua cura, após ter sido tratado em hospitais de excelência, deveria ter seu nome posto numa lista negra e jamais ser aceito em hospital algum. Que apele a Deus, ao Dr. Fritz, ao Queiroz. Mas que não ofenda o esforço continuado dos cientistas em desenvolver cada vez melhores instrumentos de cura. Em meio a isso, leio na Folha de São Paulo de hoje reportagem afirmando que pessoas que acreditam em Deus têm mais chance de cometer falhas lógicas levadas pela intuição. Ora, acreditar em Deus já é uma falha lógica. Que milhões de pessoas acreditem numa ficção, isto é questão de fé e não se discute. O que não se pode afirmar é que seja questão de lógica. Lógica nenhuma permite afirmar a existência do que não existe. Segundo a reportagem, muita gente rejeita o estereótipo que descreve ateus como pessoas racionais e analíticas e religiosos como intuitivos e espontâneos. Um experimento feito na Universidade Harvard, porém, sugere que esse clichê pode ter um fundo de verdade. No trabalho, cientistas avaliaram o estilo de raciocínio preferido por mais de 800 voluntários e viram que aqueles com tendência maior a usar a intuição eram mais propensos a crer em Deus e entidades sobrenaturais. O resultado do experimento saiu em um estudo publicado na revista científica Journal of Experimental Psychology. O trabalho, coordenado pelo psicólogo Amitai Shenhav, indica que pessoas mais racionais tendem a crer menos em Deus. A Universidade Harvard, pelo jeito, está descobrindo a América. É óbvio que um ser racional não pode acreditar em deus ou deuses. Esta crença é atributo dos tais de intuitivos. E eles são legião. quarta-feira, setembro 21, 2011
FAXINEIRA VARRE LIXO PARA BAIXO DO TAPETE Leitores me cobram. Por que não falo de corrupção? Bom, em verdade gosto de escrever sobre o que a imprensa não escreve. Corrupção, neste Brasil, virou usos e costumes. Sem falar que não passa dia sem que os jornais revelem uma grossa falcatrua. Seria para mim redundante comentar o assunto. Dona Dilma está adquirindo a fama de faxineira. Faxineira coisa nenhuma. Quem está fazendo a faxina é a imprensa. Nenhum dos quatro ministros demitidos nos últimos oito meses foi demitido por iniciativa da presidente. Dona Dilma só os demitiu quando não foi mais possível segurá-los. Nem mesmo a oposição denuncia a corrupção do governo. O PSDB vive em beijos e abraços com o PT. A única oposição neste país é feita pelos jornais. Oposição inócua. Quatro ministros foram demitidos por corrupção. Antonio Palloci, que já havia sido demitido por Lula em 2006 do cargo de ministro da Fazenda – sempre por pressão da imprensa – voltou ao governo de Dilma e teve de pedir demissão da chefia da Casa Civil, em virtude de denúncias de enriquecimento ilícito. Alfredo Nascimento, dos Transportes, teve de cair fora após suspeitas de superfaturamento em obras de rodovias; Wagner Rossi, da Agricultura, também, por ter usado um jatinho de uma empresa privada que tinha contratos com o ministério. Pedro Novais, do Turismo, teve de renunciar às suas mordomias por ter pago com verbas públicas, durante sete anos, o salário de uma governanta. Antes disso, já havia sido denunciado por pagar com dinheiro do contribuinte despesas de um motel. Alguém foi preso ou de alguma forma punido? Alguém devolveu o dinheiro roubado? Nenhum. Palocci e demais defenestrados devem continuar fazendo lobby por aí. Novais voltou a ocupar sua cadeira de deputado. As denúncias da imprensa podem até retirar ministros de seus pedestais. Mas acabam caindo no vazio. Corruptos como José Dirceu, flagrados em óbvias corrupções, continuam recebendo altos coturnos do governo em quarto de hotel. Dos quarenta mensaleiros, denunciados pelo Ministério Público por formação de quadrilha, nenhum até hoje foi punido. E os crimes de pelo menos 22 prescreveram no mês passado. Corrupção no Legislativo e Executivo são graves chagas em país que se pretenda decente. Mas nada pior que a corrupção no Judiciário. Pois este poder é o que determina, legalmente, o que é lícito ou ilícito na nação. A tal de Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça acaba de absolver, em um caso de flagrante corrupção, o clã do corrupto-mor de Pindorama, o senador José Sarney, que – não por acaso – é presidente do Senado. Quando um corrupto notório preside a mais alta instância legislativa do País, nada mais se pode esperar de seus pares ou ímpares. Leio no Estadão que o julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que anulou as provas da Operação Boi Barrica, tramitou em alta velocidade, driblando a complexidade do caso, sem um pedido de vista e aproveitando a ausência de dois ministros titulares da 6.ª turma. O percurso e o desfecho do julgamento provocam hoje desconforto e desconfiança entre ministros do STJ. O relator do processo contra a Operação Boi Barrica, ministro Sebastião Reis Júnior, demorou apenas seis dias para estudar o processo e elaborar um voto de 54 páginas em que julgou serem ilegais as provas obtidas com a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico dos investigados. E de maneira inusual, dizem ministros do STJ, o processo foi julgado em apenas uma sessão, sem que houvesse nenhuma dúvida ou discordância entre os três ministros que participaram da sessão. O velho e eficaz recurso aos arabescos colaterais. Não importa se as provas de um crime são procedentes ou não. O que importa é a forma como foram obtidas. Não se julga mais o mérito de uma questão. Mas os procedimentos de investigação. Corrupto perde tempo se constituir como advogado um criminalista. Estará melhor servido com um processualista. Não interessa mais se alguém cometeu ou não um crime. O que interessa é como foi denunciado. O PT inaugurou o governo mais corrupto do qual se tem notícia no Brasil. Dona Dilma, enquanto ministra da Casa Civil, foi ciente e conivente com toda esta corrupção. Posa agora de faxineira. Mas só tem varrido o lixo para baixo do tapete. Fosse o caso de minha faxineira, eu a demitiria incontinenti. Mas brasileiro é generoso. Corruptos notórios – vide Sarney - denunciados pela imprensa se reelegem ad aeternum. José Dirceu quer voltar à política. Se voltar, é claro que será reeleito. O problema do Brasil não são os corruptos. Corrupto segue sua vocação natural - como um rio segue sua corrente - a de ser corrupto. O problema é este povinho que os elege e reelege. terça-feira, setembro 20, 2011
MENSAGEM DO CATELLI Caro Janer, Saudações! Li seu ótimo artigo "Veja endossa medicina do além". Você esqueceu de mencionar que essa tal Mara Mazan morreu em novembro de 2009 - o artigo em que você originalmente criticava essa contumaz ingratidão para com os que realmente curam era de março daquele ano, pelo que pesquisei em seu site. Ou seja: Dr Fritz falhou vergonhosamente, mesmo dominando técnicas avançadíssimas da tal "medicina do além". Pergunta: por que orações pouco adiantavam antes de Alexander Fleming e agora curam tanto? Por que orações curavam pouco quando não havia técnicas avançadas de cirurgia? Por que não rezam pela paz no Oriente Médio, pela cura da AIDS ou que o dedinho amputado do Lula cresça... Sabemos que o seu deus não cura amputados, nem que todas as pessoas do mundo peçam com fé incessantemente por meses a fio. O crente acredita que melhorou pelo fato de ter pedido pela sua saúde à Senhora das Graças? Bravo! Partindo desse pressuposto, deve as melhoras à Santa porque ela o ajudou. E se não tivesse melhorado, seria por recusa da Santa em o ajudar? Aí não, claro! Seu deus sabe o que é melhor para ele, para sua alma. O crente blinda seu deus, que é louvado quando atende a preces e quando não atende - é louvado aqui por ter lhe dado forças para suportar o infortúnio. Ora, então o crente pio que pediu com fé devia colocar uma plaquinha de agradecimento na gruta da Santa por não ter sido curado, afinal seu deus sabe o que é melhor para ele e para a humanidade. E quando tem sucesso, o infinito orgulho de nossa raça ajuda-o a crer que mereceu ser curado enquanto milhões de outras pessoas que têm a mesma crença estão na fila de espera há anos por um milagrezinho. Ele é muito especial para o seu deus! Mas considero isso normal. Quando crentes se sentem impotentes perante algumas agruras da vida, gostam de ter um ser onipotente à disposição, para atender aos seus desejos, qual gênio da lâmpada, e a prece (a prece que pede por algo, não a que agradece, que por vezes é fruto apenas de felicidade transbordante e por vezes medo de ser mal-agradecido e perder o que foi conquistado por ser muito especial aos olhos de deus) é uma espécie de joystick com que julgam controlar esse ser onipotente... E aí se sentem potentes... Digamos que 0,15% da população mundial contraia uma doença nova da qual a chance de o contagiado se curar seja de uma em cem - 1%. Quem ouve de um médico "sua chance de sair vivo desta é de 1%" considera-se praticamente morto, não? A população mundial é de 6,6 bilhões. Teremos quase 10 milhões de desgraçados no mundo que contraíram a doença. Quase todos terão algum deus e rezarão para ele, embora se considerem praticamente mortos. No fim das contas, teremos 100 mil pessoas salvas "miraculosamente" mundo afora a dar testemunho diário do quanto seu deus é poderoso, afinal estavam "praticamente mortas". As outras milhões estarão mortas e não terão chance de dar testemunho diário de coisa alguma. Estatística é isso aí! Se a possibilidade de ganhar em determinado jogo é de uma em um milhão e cinco milhões jogarem, provavelmente teremos cinco ou seis ganhadores, dez, quem sabe. E todos eles se considerarão agraciados pelos deuses, afinal rezaram antes de jogar... Assim como rezaram também os outros que não ganharam... Mas vou além, caro Janer. Amiúde acreditam também em destino, nossos crentes. Se 200 morrem em um acidente de avião, era a hora deles. Se um se salva, era porque não era a hora dele. Se a caminho do hospital a ambulância bate e ele morre, é porque realmente era a hora dele, mas se não morre é porque realmente não era a hora dele. Se perde o voo é porque não era sua hora. Se consegue embarcar pela fila de espera e morre é porque realmente era sua hora... Pergunto: por que colocar cinto de segurança, por que ir ao hospital, por que se medicar? Por que chamar o Dr. Fritz? Já não está escrita a hora de cada um? Tenho pena... Um grande abraço! Catelli Pois, Catelli, eu não sabia da morte da Mazan. Pelo jeito, o Dr. Fritz de nada lhe valeu. As declarações da atriz se mostram de um ridículo atroz: - Antes de eu tirar o tumor de meu pulmão, eu já havia sido operada espiritualmente pelo Doutor Fritz (incorporado por Edson Queiroz), indicado pela minha amiga e cantora Alcione. Os tumores que existiam em meu pulmão diminuíram consideravelmente e, quando a equipe do médico Riad Yunis fez a retirada do tumor maligno, não houve nenhum tipo de complicação. (...) Foi uma coisa surreal, mas muito bacana. O meu tratamento foi inteiramente realizado na base da oração. Fiquei sentada em uma cadeira e começaram a rezar. Logo eu comecei a sentir meu corpo dormente, como se tivesse sido anestesiada. Entrei em alfa e depois vomitei um líquido verde, parecendo a personagem Sarah, de O Exorcista. De fato, foi uma coisa muito bacana. Entrou em alfa, vomitou... e morreu. Quanto a isso de aviões, sempre me espantaram as declarações de quem se salva de um desastre aéreo: "Graças a Deus". Mas que deus é esse que matou os demais passageiros e tripulantes? Falando nisso, vivi uns bons quatro anos em pânico ante a perspectiva de voar. É que levei um susto aterrissando numa pista no Saara argelino. O piloto mandava atar os cintos, que estávamos aterrissando, e eu, mesmo a uns quatro ou cinco metros do solo, só via areia. É hoje, pensei. Não era. Os aeroportos no deserto são assim mesmo, a pista só surge quando o avião está encostando o solo. Vai daí que, por quatro longos anos, se eu tinha de voar, dois meses antes eu já não conseguia dormir bem. Comecei a interrogar-me e descobri que eu não tinha medo de voar. Mas medo de morrer. Ninguém tem medo de voar. O medo é outro. Até que um dia conclui que a morte é inevitável mesmo e assim sendo, que aconteça o que tiver de acontecer. Hoje, mal o avião decola, já estou dormindo. Não estou preocupado com minha hora. Mas sempre pode ser a hora do piloto. Da morte, não alimento mais medo algum. Mas sei que me sentirei muito triste ao abandonar uma festa que vai continuar. Talvez eu chore, como chorei em Madri, ao dar-me conta de que estava abandonando aquela festa toda para voltar ao Brasil. Em meio a isso, que pobres de espírito busquem muletas metafísicas para enfrentar a morte, isto não me surpreende. O que me surpreende é ver médicos negando suas próprias ciências e assumindo as tais de medicinas do Além. segunda-feira, setembro 19, 2011
DA UNIVERSIDADE, POUCO OU NADA SE PODE ESPERAR De Laís Legg, médica, recebo: Oi, Janer: Li tua matéria sobre as crendices. Realmente, a indignação toma conta da gente quando lemos coisas assim. Se deu certo o tratamento, ”foi Deus”. Se não deu certo e o paciente morreu, “Ele escreveu certo por linhas tortas”. E quando um médico acredita nisso, sinto arrepios. O vestibular de Medicina é o mais difícil de todos e o curso é o mais longo de todos. Ainda assim, após seis anos de graduação, o médico ainda não está pronto para o mercado, precisa enfrentar nova tarefa hercúlea que é a de passar na residência. Somente após nove anos será um especialista. O que muita gente não sabe é que os acadêmicos de Medicina são percentil 98, ou seja, somente 2% dos candidatos do vestibular estão à sua frente. Podem observar nas listagens de aprovação: a grande maioria dos primeiros colocados nos demais cursos não ingressaria em Medicina, estão abaixo do último colocado. E eu falo, aqui, de Engenharia, Arquitetura, Economia, etc. Será que Deus interfere nisso, também? E a capacidade de cada um, onde fica? E a dedicação, as horas de estudo? A genética? Podemos medir a temperatura da coisa ligando a TV, à tarde. Onde está a Vigilância Sanitária? Vemos propagandas mirabolantes, prometendo curas assombrosas com o uso de cartilagem de tubarão, lodos do Vesúvio, cogumelos e o escambau. Comecei a pensar que, talvez, Deus esteja fazendo uma espécie de “seleção natural”... Sempre me causou espécie o fato de não acontecer a “baixa” de espíritos de advogados e engenheiros, por exemplo. Gostaria de ver alguém aprovando, na Prefeitura, um projeto de Engenharia recebido por um médium que “incorporou” algum profissional desencarnado e desenhou a planta. Ou, quem sabe, um agravo de instrumento recebido de algum desembargador que foi desta para a melhor? O que achas? Por que será que é só a Medicina tem essas prerrogativas, hein? Será que o além é preconceituoso? Abraços, Laís Pois, Laís, ainda não vi espírito baixando em engenheiros. Nem em economistas. Mas não duvido que haja por aí engenheiros espíritas, recebendo projetos do Além. Quanto a advogados, o Brasil tem até associações jurídico-espíritas. Há juízes defendendo o testemunho via declarações mediúnicas do Além. Em maio de 2008, o Estadão denunciava estas práticas: “Sob a justificativa de tornar a Justiça “mais sensível às questões humanitárias” e discutir questões morais como aborto, eutanásia, pena de morte e pesquisas de células-tronco, um grupo de delegados de polícia, advogados, promotores, procuradores e juízes acaba de criar a Associação Jurídico-Espírita de São Paulo (AJE), com cerca de 200 filiados. Entidades semelhantes já existem no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo e a maior delas é a Associação Brasileira de Magistrados Espíritas (Abrame), que reúne 700 juízes, desembargadores e até mesmo ministros de tribunais superiores”. O jornal publicou declarações de ilustres causídicos defendendo os testemunhos do Além: “O Estado é laico, mas as pessoas não. Não tem como dissociar e dizer: vou usar a minha fé só dentro do centro espírita”, diz o promotor Tiago Essado, um dos fundadores da AJE. “Não enxergaria nenhuma diferença entre uma declaração feita por mim e uma declaração mediúnica, que foi psicografada por alguém”, afirma Alexandre Azevedo, juiz-auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça. “Não acredito em acaso, mas numa ordem que rege o universo, acredito em leis universais”, endossa o juiz Jaime Marins Filho. É preciso “questionar os poderes constituídos para que o direito e a Justiça sofram mais de perto a influência de espiritualizar”, conclui o juiz federal Zalmino Zimmermann, presidente da Abrame”. Em vários Estados, advogados vêm apresentando aos Tribunais do Júri declarações psicografadas como estratégia de defesa. Nesse tipo de julgamento, como é sabido, os jurados não precisam fundamentar seus votos. Os juristas espíritas alegam que a psicografia pode ser levada em consideração desde que esteja em “harmonia” com as demais provas. Quando o Judiciário brasileiro tem pelo menos 700 juízes, desembargadores e até mesmo ministros de tribunais superiores acreditando em superstições, vai mal a Justiça no país. Não bastassem as associações de magistrados espíritas, temos também as de médicos espíritas. Espiritismo é doença que, embora tendo nascido na França, viceja melhor em países pobres. Allan Kardec está sepultado no Père Lachaise, em Paris, mas são raros os franceses que sabem de quem se trata. A doutrina criou raízes, fundamentalmente, no Brasil e nas Filipinas. O Brasil tem associações médico-espíritas em praticamente todos os Estados. Já existe uma Associação Médico-Espírita (AME-Internacional) que, ano passado, em um Congresso em Valencia, Espanha, reafirmava seu compromisso com a Medicina da Alma, com o estabelecimento de um novo paradigma de saúde no século XXI, que considera o homem como um ser integral, constituído de corpo físico, periespírito ou corpo espiritual e alma. Reafirmamos, em consequência , nosso compromisso com a prática da Medicina Integral que cuida do ser humano â luz da Espiritualidade. Ou seja, já temos médicos tratando não só do corpo, mas também do periespírito. O que só comprova que universidade não é infensa à superstição. Pessoas com educação superior não conseguem fugir ao temor da morte. É este temor que cria religiões. Paulo sabia muito bem disto, quando escreve na 1ª Epístola aos Coríntios: “se Cristo não foi ressuscitado, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”. E larga sua bravata, que atravessou os séculos: "Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" A vitória da morte estava ali, a seu lado. Era preciso negar o óbvio, para criar uma superstição. Meu primeiro contato com espíritas ocorreu quando minha mulher morreu. Eles sempre aparecem quando alguém morre. Minha mulher morrera há mais de mês e eu conversava com amigos comuns. Em dado momento, uma moça atalhou: "Eu conversei ontem com ela". Nessas ocasiões, tomo uma atitude de crédulo. Se a moça afirmava com tanta convicção ter conversado com minha mulher, não seria eu quem iria contestá-la. Perguntei apenas o que ela havia dito. Ela deixou uma mensagem, disse a moça: "seja feliz". O que me lembrou a aparição de Maria aos três pastores em Fátima. Quando interrogada sobre quem era, teria dito a Virgem: "Eu sou a Nossa Senhora". Ora, sendo Maria mais que santa, semideusa, é de supor-se que não tivesse domínio tão precário do português. Se se dirigia aos três pastores, o correto seria: "Eu sou a Vossa Senhora". Por um descuido sintático do narrador, o milagre ficou prejudicado. Da mesma forma, a mensagem de minha companheira. Éramos gaúchos. Depois de passarmos por Curitiba e São Paulo, ela passou a usar o você, mas apenas ao tratar com curitibanos e paulistanos. Jamais me trataria por você. Como a comunicação de Maria, a de minha mulher também ficou sob suspeita. Mas não neguei o testemunho da moça. Podes falar de novo com ela? - perguntei. Claro - me respondeu. Pedi-lhe então que, quando voltasse a falar com ela, pedisse o código do celular, que eu havia ficado sem. A moça entrou em pane, achava que não ia dar, códigos são coisas confidenciais, começou a perguntar que horas são e logo deu as de Vila Diogo. Contei a história mais tarde a professores universitários e um deles, também espírita, prometeu-me perguntar às instâncias do Além sobre o código do celular. Mas me alertou que o médium teria de ser muito poderoso para descobri-lo. Bem entendido, nunca mais me falou no assunto. Nem eu precisava do código, afinal sempre o tive e queria apenas divertir-me com a capacidade comunicativa dos tais de médiuns. Quando magistrados, médicos e universitários se pautam por crendices idiotas, isto significa que do saber universitário pouco ou nada se pode esperar. domingo, setembro 18, 2011
VEJA ENDOSSA MEDICINA DO ALÉM Já contei. Contar de novo se impõe. Na época em que tratava de meu câncer, no hospital Sírio-Libanês também estava se tratando uma atriz chamada Mara Mazan. Após completar um ano de sua operação, na qual retirou um tumor maligno do pulmão direito, a moça continuou fazendo sessões de quimioterapia a cada 21 dias. Mas o tratamento no Sírio-Libanês, pelo que disse então a atriz, de pouco ou nada lhe serviu. "Fui curada somente com oração. O nódulo desapareceu do meu peito", afirmou. Sua cura, Mazan atribuiu a Deus. "Não tenho nenhuma religião, mas sou fiel a ele, pois resolveu me dar uma segunda chance para continuar me divertindo com meus amigos aqui na Terra." A atriz foi curada, não pela excelência tecnológica do hospital, nem pela competência de seus médicos e técnicos, e sim por uma entidade espiritual, encarnada por um tal de Edson de Queiroz, através de um uma cirurgia espiritual. Ao ser interrogada por que optou por este método e não pelo convencional, diz a atriz: - Antes de eu tirar o tumor de meu pulmão, eu já havia sido operada espiritualmente pelo Doutor Fritz (incorporado por Edson Queiroz), indicado pela minha amiga e cantora Alcione. Os tumores que existiam em meu pulmão diminuíram consideravelmente e, quando a equipe do médico Riad Yunis fez a retirada do tumor maligno, não houve nenhum tipo de complicação. (...) Foi uma coisa surreal, mas muito bacana. O meu tratamento foi inteiramente realizado na base da oração. Fiquei sentada em uma cadeira e começaram a rezar. Logo eu comecei a sentir meu corpo dormente, como se tivesse sido anestesiada. Entrei em alfa e depois vomitei um líquido verde, parecendo a personagem Sarah, de O Exorcista. O repórter quer saber se houve alguma intervenção cirúrgica. O médium chegou a usar algum instrumento para fazer a operação? - Ele não usou absolutamente nada. Antes de eu entrar neste sono profundo, foi colocada em meu seio uma gaze umedecida com água purificada espiritualmente. Nada além disso. Eles ficaram rezando por horas e quando acordei o nódulo não existia mais. Então resta a pergunta: por que retirou o tumor com uma equipe do hospital e por que continua fazendo quimioterapia? Estou cansado desta malta de crentes, que diante de uma doença grave, reza e se encomenda a Deus, ao mesmo tempo em que busca medicina de ponta. Se não conseguem sobreviver, seus próximos atribuem a morte à medicina. Se se salvam, a vida é atribuída a Deus. Sem a morte, não existiria deus. Nós não vemos, em princípio, pessoas atribuindo – não digo a cura, porque cura não existe – mas sua sobrevivência à hipertensão ou ao diabetes a Deus. São doenças crônicas, às quais se sobrevive com tomar remédios permanentemente. Na hora do câncer, é diferente. Os crentes oram ao seu deus. Mas vão buscar cura na medicina. Quando a medicina os cura, eles agradecem não aos médicos, mas a deus. O que me parece ser uma ofensa aos médicos que os trataram. O pior é que há médicos que acreditam nisso. No Sírio-Libanês, fui tratado por uma competente equipe de uns dez médicos e médicas. Falava eu destas questões teológicas com uma das moças e ela me disse: nós tratamos, quem cura é Deus. Ela, com toda sua ciência – a ciência que me curou -, atribuía minha cura a um ser que não existe. Uma das mais lindas de minhas vizinhas me trouxe água de uma fonte milagrosa, não lembro se de Lourdes ou de Fátima. Tomei, água não faz mal. Além do mais, presente de moça bonita a gente não desdenha. Estava até me perguntando se me tratava em hospital ou se esperava pelo efeito da água. Hoje, vivo uma dúvida atroz: terá sido realmente o Sírio-Libanês que me curou? Ou quem sabe a água da moça? Quando damos entrada em um hospital, há sempre duas perguntinhas no formulário de admissão: você tem religião? Qual? Acho que faltam mais algumas. Você crê no poder de Deus para curar doenças? Acredita em cirurgia espiritual? Se eu fosse médico e a resposta fosse sim a estas duas perguntas, eu mandaria incontinenti o crente entregar-se a Deus e à cirurgia espiritual. Se Deus cura, pra que hospital e boa medicina? É redundante e só faz sofrer. Se você vai usar de toda nossa ciência para depois atribuir a cura ao Dr. Fritz, então consulte logo o Dr. Fritz e não perca tempo conosco. Considero profundamente ofensivo à medicina ser curado por médicos dedicados e alta tecnologia e atribuir a cura a Deus. Aconteceu com minha mulher. Quando adoeceu, círculos de oração foram organizados no país todo. Deus a curará – diziam. “Estamos gastando nossos créditos junto ao Poderoso” – disse-me um casal católico. Ninguém mencionava o tratamento sofisticado, caro e doloroso, ao qual ela estava sendo submetida. Quando morreu, mudou o papo. A medicina falhou. Deus tinha outros planos para ela. Mas agora ela finalmente está sendo feliz. Para quem crê em Deus tudo é fácil. Faça chuva, faça sol, haja sofrimento ou alegria, morra ou sobreviva, tudo é bem-vindo. Medicina não salva ninguém. Quem salva é o Cara aquele. A história se repete. O ator Reynaldo Gianecchini descobriu, em agosto passado, que estava com um câncer, um linfoma do tipo não-Hodgkin (tumor que atinge os gânglios linfáticos) e um mês depois começou a buscar ajudas espirituais para auxiliá-lo na busca pela cura da doença. Faz acompanhamento com um “médico astral”, no Instituto de Medicina do Além (IMA), em Franca, São Paulo. Quem o atende é o médium João Berbel, que tem fama de cura das cirurgias espirituais que realiza, e que afirma fazê-las a fim de mostrar as profecias de Jesus. “A gente não anda preocupado em fazer propaganda, a intenção é mostrar as profecias de Jesus, que a Terra da regeneração já chegou, e muitos aflitos vem aqui em busca dos nossos trabalhos gratuitos, que só são possíveis graças a rifas, doações de materiais e à renda dos livros”, diz Berbel. Bem entendido, Gianecchini não dispensa uma quimioterapia no Sírio-Libanês. Mas quem trata do ator não é exatamente o João Berbel. Este senhor é apenas um mecânico elétrico que recebe, isto sim, o espírito do clínico geral Ismael Alonso y Alonso, o “médico dos pobres”, que foi prefeito de Franca nos anos 50. “É visível a melhora do meu sobrinho desde o início do tratamento com o doutor Alonso”, disse uma tia do ator. “Ele está mais confiante para seguir o tratamento convencional, pois tem a certeza de que vai superar o câncer”. O dr. Fritz já era. Agora temos o Alonso y Alonso. Leio na Veja: "Gianecchini recebeu a visita do médium. 'O doutor Alonso colocou uma mão na cabeça e a outra no pescoço do Reynaldo, justamente onde está o foco do problema de saúde', lembra Berbel. Em seguida, ainda conforme o médium, o espírito encarnado fez uma oração pedindo a cura, proferiu uma reza batizada de Oração de Jesus (de sua própria autoria) e encerrou o ritual com o pai-nosso". Conheço de perto estas histórias. Entre elas, a de um professor universitário, que diz ter sido curado por uma cirurgia espiritual em um hospital de cirurgias espirituais, em Campeche, praia de Florianópolis. Perguntei-lhe se não havia buscado terapia em um hospital convencional. Ah, sim, eu me tratei no Santa Rita, de Porto Alegre. Mas o câncer já estava encapsulado. Ah, bom! Se Gianecchini sobreviver, claro que os méritos de sua cura serão atribuídos ao dr. Alonso y Alonso, e não à equipe de médicos que o trata. No que vai um risco a esta aposta dos crentes. E se não sobreviver? Problema nenhum. O fracasso, obviamente, será dos médicos que o tratam. A Veja desta semana deu a matéria de capa a este embuste, com o título “Medicina e Fé”. A revista, em um atentado à ciência, faz um aceno à terapia espírita e à impostação de mãos. Fico sabendo que o médico Plínio Cutait, do Sírio-Libanês, é um mestre reiki. Ora, o tal de reiki é uma terapia baseada na canalização da energia universal (rei) através da imposição de mãos com o objetivo de restabelecer o equilíbrio energético vital de quem a recebe e, assim, restaurar o estado de equilíbrio natural, podendo eliminar doenças e promover saúde. Segundo o que leio na rede, a sua prática assemelha-se com as práticas budistas de canalizar a energia universal pela imposição das mãos, redescoberta no Japão no início do século XX pelo Dr. Mikao Usui, e introduzida nos Estados Unidos da América por volta de 1940 pela Sra. Hawayo Takata, uma americana de origem japonesa. A imposição de mãos, na verdade, é uma antiga picaretagem, retomada por Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec (1804 – 1869), que misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer, com mais algumas pitadas de budismo, no caso, a reencarnação. Mesmer era médico, estudava teologia e instituiu como terapia a imposição das mãos. Criação nada original, afinal já está nos Evangelhos. Se voltarmos um pouco atrás, encontraremos a prática no Egito, no templo da deusa Isis, onde multidões buscavam o alívio dos sofrimentos junto aos sacerdotes, que lhes aplicavam a imposição das mãos. Ainda segundo a Veja, o biólogo Ricardo Monezi, pesquisador de medicina comportamental na Universidade Federal de São Paulo, testou a influência da impostação de mãos (técnica chupada tanto pelo reiki como pelos espíritas) em ratos com câncer, divididos em três grupos. No terceiro, submetido à impostação de mãos, as células de defesa foram até 50% mais eficientes no combate às células tumorais do que as dos outros ratos. Se espiritismo cura até ratos, provavelmente curará o Gianecchini. O espantoso, em tudo isto, é ver médicos e pesquisadores universitários acreditando em tais superstições. E uma revista como a Veja endossando tais embustes. sábado, setembro 17, 2011
PUC, ANTRO DE MACONHA, PROÍBE FESTIVAL DE CULTURA CANÁBICA As drogas, como o rock, nos chegaram via Estados Unidos. Não que fossem produzidas lá, mas o consumo da juventude norte-americana exportava a moda para os símios ao sul do Trópico de Câncer. Uma edição da revista O Cruzeiro publicou, nos anos 50, uma reportagem significativa sobre a "erva do diabo", como era então chamada a Cannabis sativa. Para aproximar-se da droga, que circulava então nas favelas e no presídio, um repórter deixou crescer a barba, como camuflagem junto aos traficantes e consumidores. Maconha era então coisa de submundo, e barba logotipo de marginal. Mas tarde, virou logotipo de corrupto petista, mas isto já é outra história. Bastou os universitários norte-americanos adotarem a marijuana - voz mexicana que indicava a origem do produto - a erva virou moda no Brasil, particularmente nos campi. Como jamais suportei modas, e particularmente as vindas do Norte, meu repúdio à maconha era antes de tudo teórico, político. Por outro lado, o consumo da maconha era vício gregário, e sempre me afastei de cerimoniais coletivos. Os curtidores da cannabis eram em geral pessoas de pouca ou nenhuma leitura, e nada me impelia a confraternizar com eles. Verdade que havia gente consumindo alfafa por maconha sem se dar conta. Afinal, pouca é a diferença entre Cannabis sativa e Medicago sativa. Em meus dias de Porto Alegre, quando escrevia na finada Folha da Manhã, caiu-me em mãos a notícia de um traficante que operava numa favela chamada Vila do Cai n’Água. Preso pela polícia, alegou que nada estava vendendo de ilegal. Vendia alfafa batizada com esterco de cavalo. E o pessoal não reclama? – perguntou o policial. “Eles acham que o cheiro é muito forte. Digo que é maconha do Nordeste, da boa”. Os grandes difusores da maconha e outras drogas foram os roqueiros e a universidade. Não se concebe show de rock ou rave sem drogas. Muito menos universidade. Consumida anteriormente por marginais, a maconha foi elevada à dignidade acadêmica. Com esta bendita mania que temos de importar do Primeiro Mundo o que de pior o Primeiro Mundo produz, logo foi adotada pela universidade brasileira. O leitor deverá ter conhecido ou ouvido falar de pequenas comunidades do interior do país, onde a droga inexistia. Basta criar um curso ou extensão universitária nalguma dessas comunidades, e no dia seguinte a droga e o tráfico lá se instalam. Em meus dias de Dom Pedrito, maconha era fenômeno distante, que só ocorria nas metrópoles do centro. Bastou um campus na cidade e a droga passou a ser vendida em plena Barão de Upacaraí. Quando a maconha era proibida no Brasil – início dos anos 90 – os campi eram os locais mais seguros para quem queria drogar-se sem ser perturbado pela polícia. Um dos mais reputados fumódromos de São Paulo era o campus da PUC. Desde há muito se sabe que os campi abrigam aprazíveis fumódromos, protegidos pela asa cúmplice dos reitores. Mas ai de quem disser que o rei está nu. Foi o que aconteceu com o psiquiatra Içami Tiba. Ao analisar o caso de Suzane von Richthofen, estudante de direito da PUC de São Paulo que matou os pais em 2002, afirmou: 'A PUC é um antro de maconha'. Que a maconha tinha livre curso na PUC, isto era público e sabido, e nenhum universitário negará este fato. A PUC, melindrada, entrou com dois processos contra o psiquiatra: um de indenização por danos morais e uma queixa-crime por difamação. O crime foi dizer em público, com todas as letras, o que era público mas jamais admitido. Foram precisos seis anos para que um reitor admitisse publicamente, em 2009, o uso de drogas no campus de Perdizes. O reitor Dirceu de Mello decidiu defender o “franco enfrentamento do problema” e coibir o consumo nas dependências universitárias. “A PUC não quer ser marcada como um território livre para o uso de drogas. O que é ilegal não pode e pronto. Aqui não é lugar para ficar fumando maconha” – disse na época o pró-reitor de Cultura e Relações Comunitárias, Hélio Roberto Deliberador. 120 seguranças da Graber, uma prestadora de serviço, receberam treinamento para abordar quem for visto consumindo drogas na unidade. Mas a abordagem seria leve. Nada de encaminhar à justiça que fosse flagrado cometendo um ilícito. Em média, dez usuários por dia seriam abordados. E por que apenas dez usuários? Deliberador não explica. É de supor-se que para não espalhar a inquietação entre estes bravos jovens – o futuro da nação – que finalmente encontraram um eruv tranqüilo onde transgredir a lei sem temer as conseqüências da transgressão à lei. Se o leitor imagina que o transgressor seria encaminhado às autoridades para a devida punição, em muito se engana o leitor. Os funcionários da Graber teriam de pedir gentilmente que o cigarro fosse apagado, e alertariam que o uso é ilegal e que a universidade não é o espaço adequado para o consumo. Pelo que me consta, nenhum aluno foi punido e a erva continuou correndo solta na PUC. Assim sendo, me surpreende notícia que li nos jornais de ontem. O mesmo reitor Dirceu Mello, cuja orientação aos seguranças da Graber era a de pedir gentilmente aos acadêmicos maconheiros que o baseado fosse apagado, decidiu suspender ontem as atividades administrativas e acadêmicas no campus Monte Alegre. A medida foi tomada pelo reitor após estudantes divulgarem a realização do 1º Festival de Cultura Canábica. O festival, que teria a participação de bandas adeptas da legalização do uso da maconha, deveria atrair, segundo a reitoria, de 4000 a 6000 pessoas. Escândalo nas hostes universitárias. "Não somos baderneiros. Só queremos discutir a legalização da maconha. Afinal, não existiria produção cultural e acadêmica nesse País se não existisse a maconha", gritava ontem, em um microfone improvisado, Marcel Segal, de 23 anos, aluno do curso de Comunicação e Multimeios da PUC-SP. Essa agora! A produção cultural e acadêmica do País depende da cannabis. Confesso que não me havia dado conta deste fundamental instrumento de ensino e conhecimento. Mas vai ver que é assim mesmo, já que não há universidade no Brasil onde não se consuma maconha. Quanto ao reitor Dirceu de Mello, este senhor insensível às necessidades culturais da comunidade que administra, sua política é a mesma das ditas Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas do Rio: tráfico e consumo, tudo bem. Desde que discretos. Festival de Cultura Canábica é dar muita bandeira. Fume à vontade. Mas não espalhe. sexta-feira, setembro 16, 2011
LUCIANO DE SAMOSATA E AS VIGARICES DOS CRISTÃOS Luciano de Samosata é um refinado escritor grego do século II, viajor e cosmopolita, que foi influenciado por Celso, inimigo declarado dos cristãos. Celso, nobre romano, autor de Discurso Verídico, que foi queimado pela Igreja e do qual só temos notícia pela contestação de Orígenes em Contra Celso, em sua época já acusava os cristãos de rebeldes contra a ordem estabelecida. Se se negavam a participar na vida pública e civil, isto equivalia a estabelecer um Estado dentro do Estado, com normas e costumes próprios, mas distintos dos do Império. Se se contentassem em anunciar um deus novo, isto pouco importava aos romanos. Mais deuses, menos deuses, tanto faz como tanto fez. Ocorre que se empenhavam em denegrir os deuses do país que os acolhia. Raras pessoas conhecem Luciano em nossos dias. Nasceu em Samosata, na Comagena, país entre a Cilícia e o vale do Eufrates, talvez em 125. Exerceu a profissão de advogado, aos 25 anos, na Antioquia. Viajou pela Ásia Menor, Grécia, Macedônia, Itália, Gália. Cansado de uma vida agitada, fixou-se em Atenas durante 20 anos. Em um prefácio de Aníbal Fernandes à edição portuguesa de O Parasita, leio: "A sua actividade literária mais intensa é desta época em que voluntariamente se marginalizou e de quase tudo troçou, congregando à sua roda os espíritos livres da cidade. Já velho, Luciano sentiu novo apelo de viagens. Há indícios de que se arrastou entre cidades, vivendo à custa da leitura pública dos seus escritos e de quem comprava o brilhantismo de seu convívio ( O Parasita lança luz sobre esta forma de vida e o que constitui, numa moral às avessas, a sua defesa). Nos últimos anos, a perda do vigor físico necessário à vida errante forçou-o a uma situação estável que o governador romano no Egito lhe ofereceu como seu assistente. Sem grandes provas, se diz que nesse cargo esteve até a morte, em 192”. Deixou marcas em obras posteriores, de autores como Thomas Morus, em sua Utopia, Rabelais, no IV Livro, no Micromegas de Voltaire, nas obras mais célebres de Cyrano de Bergerac e inclusive em Swift, particularmente em sua Modesta proposta para evitar que os filhos dos pobres da Irlanda sejam um fardo para os pais, ou para o país, tonando-se úteis à comunidade. O Parasita é considerado o melhor exemplo de sátira à la Swift antes de Swift. Sobre Luciano, escreveu Renan: “Na segunda metade do século II não vemos senão um homem que,superior a toda superstição, tem o direito de rir das loucuras humanas e delas sentir piedade. Este homem, o espírito mais sólido e interessante do seu tempo, é Luciano. Ele nos aparece como um sábio perdido num mundo de loucos. Não odeia coisa nenhuma: ri de tudo, exceto da virtude séria”. Pois não é que entre meus leitores encontro um leitor de Luciano? Nem tudo está perdido. Me escreve Emerson Schmidt, a propósito de crônica recente que escrevi sobre as vigarices inerentes ao cristianismo: Caro Janer, tudo bem? Essa denúncia do MP me lembrou que no cristianismo certas coisas pouco mudam. Um escritor do segundo século d.c. chamado Luciano de SamOsata e que gostava de denunciar impostores e embusteiros já contava em A Morte do Peregrino como vigaristas enriqueciam rapidamente entre os cristãos daquela época. A coisa começa quando Proteu - que é o peregrino - entra para a religião cristã por oportunismo. Interessante é a descrição que se faz dos cristãos: "11. Ce fut vers cette époque qu'il se fit instruire dans l'admirable religion des Chrétiens, en s'affiliant en Palestine avec quelques-uns de leurs prêtres et de leurs scribes. Que vous dirai-je? Cet homme leur fit bientôt voir qu'ils n'étaient que des enfants; tour à tour prophète, thiasarque, chef d'assemblée, il fut tout à lui seul, interprétant leurs livres, les expliquant, en composant de son propre fonds. Aussi nombre de gens le regardèrent-ils comme un dieu, un législateur, un pontife, égal à celui qui est honoré en Palestine, où il fut mis en croix pour avoir introduit ce nouveau culte parmi les hommes." O comportamento não parece aquele da grei do Valdomiro? A história continua e logo a seguir Proteu acaba sendo preso por vigarice. A reação dos cristãos não deixa de ser menos previsível pelo que se vê hoje: "12. Protée ayant donc été arrêté par ce motif, fut jeté en prison. Mais cette persécution lui procura pour le reste de sa vie une grande autorité, et lui valut le bruit d'opérer des miracles et d'aimer la gloire, opinion qui flattait sa vanité. Du moment qu'il fut dans les fers, les Chrétiens, se regardant comme frappés en lui, mirent tout en oeuvre pour l'enlever; mais ne pouvant y parvenir, ils lui rendirent au moins toutes sortes d'offices avec un zèle et un empressement infatigables. Dès le matin, on voyait rangés autour de la prison une foule de vieilles femmes, de veuves et d'orphelins. Les principaux chefs de la secte passaient la nuit auprès de lui, après avoir corrompu les geôliers: ils se faisaient apporter toutes sortes de mets, lisaient leurs livres saints; et le vertueux Pérégrinus, il se nommait encore ainsi, était appelé par eux le nouveau Socrate."* Essa última parte evidentemente já seria mais difícil, pois esperar que boa parte da platéia evangélica saiba quem foi Sócrates é pedir demais. Se soubessem, não seriam tão cristãos assim. De qualquer forma, se perguntados sobre Sócrates, no máximo responderão que se trata do jogador de futebol... Finalmente vem a parte que interessa e onde se critica a crença desmesurada nas fábulas por parte dos cristãos: "13. Ce n'est pas tout; plusieurs villes d'Asie lui envoyèrent des députés au nom des Chrétiens, pour lui servir d'appuis, d'avocats et de consolateurs. On ne saurait croire leur empressement en de pareilles occurrences: pour tout dire, en un mot, rien ne leur coûte. Aussi Pérégrinus, sous le prétexte de sa prison, vit-il arriver de bonnes sommes d'argent et se fit-il un gros revenu. Ces malheureux se figurent qu'ils sont immortels et qu'ils vivront éternellement. En conséquence, ils méprisent les supplices et se livrent volontairement à la mort. Leur premier législateur leur a encore persuadé qu'ils sont tous frères. Dès qu'ils ont une fois changé de culte, ils renoncent aux dieux des Grecs, et adorent le sophiste crucifié dont ils suivent les lois. Ils méprisent également tous les biens et les mettent en commun, sur la foi complète qu'ils ont en ses paroles. En sorte que s'il vient à se présenter parmi eux un imposteur, un fourbe adroit, il n'a pas de peine à S'ENRICHER FORT VITE, en riant sous cape de leur simplicité." Como se vê, vigaristas nunca tiveram a menor dificuldade em "enriquecer rapidamente" entre os cristãos e muito menos de se divertir com a ingenuidade deles depois. Até mais. Emerson Schmidt. *Os trechos citados vêm da tradução francesa de http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/Lucien/peregrinus.htm Grato, Emerson! Procure ler Luciano, leitor. Os melhores autores não são os contemporâneos. A boa literatura muitas vezes está lá atrás, a milênios de distância de nossos dias. Não é de hoje que se denuncia as vigarices decorrentes do cristianismo. |
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