¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, maio 31, 2012
 
MI TAPERA

Elias Regules *

Entre los pastos tirada
como una prenda perdida
y en el silencio escondida
como caricia robada,
completamente rodeada
por el cardo y la flechilla
que como larga golilla
van bajando a la ladera
está una triste tapera
descansando en la cuchilla.

Alli, en ese suelo fué
donde mi rancho se alzaba,
donde contento jugaba,
donde a vivir empecé,
donde cantando ensillé
mil veces al pingo mio,
en esas horas de frío
en que la mañana llora,
cuando se moja la aurora
con el vapor del rocío.

Donde mi vida pasaba
entre goces verdaderos,
donde en los años primeros
satisfecho retozaba,
donde el ombú conversaba
con la calandria cantora,
donde noche sedutora
cuidó el sueño de mi cuna,
con un beso de la luna
sobre el techo de totora.

Donde resurgen valientes,
mezcladas con los terrones,
las rosadas ilusiones
de mis horas inocentes,
donde delirios sonrientes
brotar a millares ví,
donde palpitar sentí,
llenas de afecto profundo,
cosas chicas para el mundo
pero grandes para mí.

Donde el aire perfumado
está de risas escrito,
y donde en cada pastito
hay un recuerdo clavado:
tapera que mi pasado
con colores de amapola
entusiasmada enarbola,
y que siempre que la miro
dejo sobre ella un suspiro
para que no esté tan sola.

*(1861, Sarandí del Yí - 1929, Montevidéu. Médico, docente, poeta e político uruguaio. Além de Mi Tapera (1894), publicou ainda Pasto de cuchilla (1904), Renglones sobre postales (1908), Veinte centésimos de versos (1911), Mi pago (1924) e Versitos criollos (1924).

quarta-feira, maio 30, 2012
 
SOBRE MAIMÔNIDES *


Vivo em Higienópolis, bairro judeu, cujos costumes e rituais me soam bastante estranhos. Aos sábados, quando chove, senhores e senhoras elegantes se cobrem com capinhas vagabundas de plástico, dessas que se compra a cinco reais nas bancas de revista. Casais nunca se dão as mãos. Em um determinado dia do ano, homens engravatados e bem postos não usam sapatos, apenas tênis. Aos poucos, comecei a descobrir as firulas da ortodoxia judaica. Usam capas no sábado, porque no sábado um judeu não pode portar um guarda-chuva. A rigor, não pode nem apertar um botão de elevador. O que faz com que apartamentos de primeiro andar sejam muito valorizados. Há inclusive no bairro um prédio com um elevador casher: aos sábados, ele pára em todos os andares sem que nenhum botão precise ser acionado.

Judeu não dá a mão a uma mulher porque ela pode estar impura, isto é, menstruada. Neste sentido, no ano passado, quando ainda prefeita, Marta Suplicy pagou uma gafe monumental. Num encontro com rabinos, foi logo estendendo a mão. Que restou inútil, balançando no ar. Henry Sobel, mais diplomático, ousou responder ao gesto da pustulenta. Quanto ao uso de tênis, ocorre no Yom Kipur, quando um judeu não pode usar sapatos de couro.

Com essa moda de espalhar vacas em fibra de vidro pela cidade, uma delas esteve plantada frente à praça Buenos Aires, tendo no corpo o desenho dos cortes casher da carne. Olhando-a mais detidamente, vi que nela não existiam filé nem picanha.

Consultei amiga entendida nesta estranha gastronomia, que rejeita o melhor do boi. Não pode, me disse ela. São carnes que ficam perto do nervo ciático. Como palavra puxa palavra, fiquei sabendo ainda que judeu não come crustáceos. Nada de lagosta, camarão, ostras ou mexilhões. Nem mesmo polvos. Vá lá se entender por quê. À ortodoxia, o bem bom sempre soa como pecaminoso.

Vivendo e aprendendo. Estes senhores hebreus, que parecem tão modernos e civilizados, no fundo não se distinguem muito, em suas práticas, de seus primos muçulmanos e obsoletos. Enfim, para entender a estirpe, consultei amiga judia. Que me recomendou ler Maimônides, um dos rabinos e teóricos mais prestigiados da história do judaísmo. Médico sefardita, conhecido entre os muçulmanos como Abu Imram Musa ben Maimun Ibn Abdala, Maimônides nasceu em Córdoba, em 1135 e morreu em 1204. Também conhecido como Rambam, escreveu vários ensaios, médicos e religiosos, desde um Tratado sobre as hemorróidas até o que é considerado sua obra maior, o Guia dos Perplexos. Mas um de seus livros me atraiu de cara: Os 613 mandamentos. Só o título já intriga. Se lembrar dez já é às vezes difícil para muitOo cristão, imagine lembrar 613. São 248 preceitos positivos e 365 negativos. Suponho que o judeu temente ao Enaltecido deve andar sempre com um no bolso, para consultar o que pode ou não pode fazer.

Colho algumas pérolas entre as 365, para deleite dos leitores goyin. Começo pelos preceitos positivos.

185 - Destruir todo tipo de idolatria na terra de Israel
Por este preceito somos ordenados a destruir todo tipo de idolatria e seus templos por todas as maneiras possíveis de destruição e aniquilação: quebrar, queimar, demolir e rasgar, usando, para cada objeto, o meio apropriado para que a destruição seja feita o mais completa e rapidamente possível, pois a intenção é que não reste nem traço dele. Isso está expresso em Suas palavras, enaltecido seja Ele, "Certamente destruíreis dos lugares" (Deuteronômio, 12:2), em "Mas assim fareis com elas: seus altares derrubareis etc." (Ibid. 7:5) e novamente em "Porém seus altares derrubareis" (Êxodo, 34:13).

186 - A lei da Cidade Apóstata
Por este preceito somos ordenados a matar todos os habitantes de uma Cidade Apóstata e a queimá-la com tudo que houver nela. Esta é a Lei da Cidade Apóstata, e ela está expressa em Suas palavras, enaltecido seja Ele, "E queimarás no fogo, a cidade e todo o seu despojo, inteiramente" (Deuteronômio, 13:17). As normas deste preceito estão explicadas no Tratado Sanhedrin.

187 - A guerra contra as Sete Nações hereges
Por este preceito somos ordenados a exterminar as Sete Nações que habitavam a terra de Canaã, porque eles constituíram a raiz e primeiro fundamento da idolatria. Este preceito está expresso em Suas palavras, Enaltecido seja Ele, "Mas destrui-los-ás". (Deuteronômio 20:17). Está explicado em vários textos que o objetivo disso era evitar que imitássemos sua heresia. Há vários trechos nas Escrituras que nos incitam e insistem veementemente para que os exterminemos, e a guerra contra eles é obrigatória.

190 – A lei da guerra não obrigatória
Por este preceito somos ordenados quanto a guerras não obrigatórias contra nações. Caso entremos em guerra contra eles, somos obrigados a fazer um acordo com eles para poupar suas vidas se eles fizerem as pazes conosco e nos entregarem suas terras, e nesse caso eles deverão nos pagar tributos e ser nossos súditos. Este preceito está expresso em Suas palavras, enaltecido seja Ele, “Te será tributário ou te servirá” (Deuteronômio 20:11). A esse respeito, diz o Sifrei: “Se eles disserem ‘nós concordamos com os tributos mas recusamos a servidão’, ou ‘concordamos com a servidão, mas nos recusamos a pagar os tributos’, não devemos concordar: eles devem aceitar as duas condições” (...) Contudo, se eles não fizerem a paz conosco, somos ordenados a matar toda a população masculina, jovens e velhos, e a tomar tudo que lhes pertence, inclusive suas mulheres. Este preceito está expresso em Suas palavras, enaltecido seja Ele.

235 – A lei sobre o escravo cananeu
Por este preceito somos ordenados quanto à lei sobre um escravo cananeu; ela diz que ele deve ser escravo para sempre e que não pode adquirir sua liberdade a não ser por causa de um dente ou um olho (se o dono do escravo lhe causar a perda de um dente ou de um olho), ou por causa de qualquer outro órgão do corpo que não torne a crescer, de acordo com a interpretação tradicional. Este preceito está expresso em Suas palavras “Perpetuamente vos farei servir deles” (Levítico 25:46) e, “E quando ferir um homem o olho de seu escravo etc.” (Êxodo 21:26).

Vejamos alguns preceitos negativos.

49 - Não poupar a vida de um homem das Sete Nações Idólatras
Por esta proibição somos proibidos de poupar a vida de qualquer homem que pertença a uma das Sete Nações para evitar que eles corrompam as pessoas e as levem para o caminho errôneo da idolatria. Esta proibição está expressa em Suas palavras, enaltecido seja Ele, "Não deixarás com vida todo que tiver alma" (Deuteronômio, 20:16). Matá-los constitui um preceito positivo, como explicamos ao tratar do preceito positivo 187. Todo aquele que transgredir esta proibição, deixando de matar todo aquele que ele poderia ter morto estará infringindo um preceito negativo.

257 – Não utilizar um servo hebreu para executar tarefas degradantes
Por esta proibição somos proibidos de utilizar um escravo hebreu para executar tarefas domésticas degradantes, como as que são executadas pelos escravos cananeus. Ela está expressa em Suas palavras, enaltecido seja Ele, “Não o farás servir com serviço de escravo” (Levítico 25:39).

Curiosamente, mais adiante lemos:

289 – Não matar um ser humano
Por esta proibição somos proibidos de matar-nos uns aos outros. Ela está expressa em Suas Palavra “Não matarás” (Êxodo 20:13), e todo aquele que violar este preceito negativo será decapitado. O Enaltecido diz: “Do meu altar o tirarás, para que morra” (Ibid., 21:14).

O sábio rabino parecia ser curto de memória. Vejamos outro preceito, logo adiante:

310 – Não deixar viver um feiticeiro
Por esta proibição somos proibidos de permitir que um feiticeiro viva. Ela está expressa em Suas palavras “Feiticeira não deixarás viver” (Êxodo 22:17), Permiti-lo é quebrar um preceito negativo, e não somente um preceito positivo, como no caso de perdoar um malfeitor que esteja sujeito à morte por sentença judicial.

E por aí vai. Grande humanista, o santo e sábio Maimônides. Que o Enaltecido o tenha em sua glória. Verdade que não é muito original. Estes preceitos sanguinolentos emanam dos livros da Tora, sempre citada pelo magnânimo rabino. E depois os judeus se queixam de ser uma raça perseguida.

* dezembro 2005

terça-feira, maio 29, 2012
 
JURISTAS LEGALIZAM CHUVA


A Comissão de Juristas do Senado, que discute mudanças no Código Penal, aprovou ontem proposta para descriminalizar o porte de drogas para consumo próprio. Pelo texto, não haveria mais crime se um cidadão fosse flagrado usando entorpecentes. Atualmente, a conduta ainda é considerada crime, mas sujeita à aplicação de penas alternativas. É o que leio nos jornais.

Os doutos senhores, ao que tudo indica, acabam de declarar que a chuva é legal. Em todas as metrópoles do país, zumbis fumam crack a céu aberto, muitas vezes com a presença complacente da polícia, e uma Comissão de Juristas vem agora propor a descriminalização das drogas. O senhores juristas incorrem no mesmo ridículo das passeatas da maconha, que pretendem legalizar o que há muito é permissível. A lei que criminalizava o uso das drogas desde há muito virou letra morta e só agora os legisladores parecem ter percebido a mudança.

Nada de novo tenho a dizer sobre o assunto. Ano passado, a Veja nos trazia a surpreendente revelação de que drogas eram consumidas livremente no principal prédio da Universidade de Brasília, inclusive em salas de aula. O site publicava um vídeo com flagrantes de uma festa organizada por alunos da Biologia, onde cerca de 3.000 pessoas participavam do evento, que teve a apresentação de bandas de rock.

“Um breve passeio era suficiente para constatar a disseminação da droga no local. Jovens não se preocupavam em esconder a prática e preparavam cigarros de maconha na frente de todos. Grupos usavam salas de aula para dividir os entorpecentes. Tudo dentro do Instituto Central de Ciências (ICC), o prédio-símbolo da universidade.

“A Polícia Militar não foi vista no mal iluminado câmpus Darcy Ribeiro, localizado a quatro quilômetros do Congresso Nacional. Em greve, agentes de segurança da universidade também não incomodaram os usuários. Dois porteiros do prédio pareciam cochilar. Não havia qualquer controle que impedisse a presença de menores de idade no local”.

Desde há muito as drogas vêm sendo consumidas livremente nas universidades de todo o país. Os campi constituem verdadeiros templos onde os drogados buscam refúgio. Os alunos da USP, sem ir mais longe, preferem arriscar-se a assaltos e estupros a serem perturbados pela presença da polícia. A universidade, no Brasil, é o foco disseminador de duas pragas, as drogas e o marxismo. Isso sem falar em outros males gálicos, como o estruturalismo, lacanismo, desconstrutivismo. Estes, pelo menos não tão letais.

As drogas se popularizaram no Brasil através da universidade. Nos tempos em que vivi na Fronteira gaúcha, maconha ou cocaína eram coisas da capital. Bastou a universidade chegar lá e as ruas foram tomadas, à noite, por bandos de jovens drogados. Que o digam Dom Pedrito, Bagé, Livramento. Assim como a universidade, a droga chegou na Campanha para ficar.

No final dos anos 50, droga era coisa de marginais. Lembro de ter visto reportagem na revista Cruzeiro, em que um repórter deixava crescer a barba para infiltrar-se junto a presidiários. Na época, antes ainda da tomada do poder em Cuba por Castro e Guevara, barba era distintivo de bandido. Era preciso descer ao “tenebroso mundo do crime” para se conhecer os meandros do mundo da droga. A maconha era conhecida como a erva do diabo. Só tornou-se coisa de gente fina quando passou a ser consumida pelos universitários americanos. Com um nome que indicava sua procedência mexicana, marijuana. Com os Woodstocks e Beatles e roqueiros da vida, a cannabis ganhou status acadêmico. Não por acaso o fumacê brasiliense era animado por bandas de rock. Rock e drogas sempre andaram juntos.

Como pretendem as autoridades combater as drogas quando o país recebe de braços abertos Beatles, Rolling Stones et caterva, os grandes difusores internacionais das drogas? Obviamente, nenhum dos alunos que participaram da festa regada a drogas na UnB foi desligado da universidade. Como não foram desligados da PUC de São Paulo, nem da Estácio de Sá no Rio, nem da USP, nem da UFSC ou da UFRGS, nem da Urcamp ou da Funba.

Curta é a memória das gentes. Droga se tornou uma questão de equilíbrio social. Pelo jeito ninguém mais lembra quando, em 2003, Anthony Garotinho, então secretário de Segurança do Rio de Janeiro, ficou seriamente preocupado com o caos social decorrente do fim do tráfico: "Imagine se nós conseguíssemos fechar todas as bocas-de-fumo por uma semana e não fosse vendido um papelote de cocaína ou um grama de maconha? O que aconteceria com 700 mil pessoas depois de três dias sem usar droga, em crise de abstinência?”

Toda política de repressão às drogas tem redundado em rotundo fracasso. Nos fins de semana em São Paulo – ou em qualquer capital do país – é mais fácil encontrar um baseado do que um melhoral. Que esperam as autoridades para legalizar o consumo de drogas?

Ora, direis, então se não se pode combater o roubo e o assassinato, legalize-se tanto o roubo como o assassinato. O argumento não procede. O assassinato tira uma vida, o roubo subtrai bens. A droga não tira nada de ninguém. É o que se chama de crime sem vítima. Não faltará quem argumente que vítima sempre há, no caso o usuário. Pode ser. Mas suicídio não está tipificado como crime em nosso Código Penal. Se suicídio não é crime, porque criminalizar a pressa com que uma pessoa se suicida?

A douta Comissão do Senado sugeriu, porém, uma ressalva para a hipótese do uso de drogas. A pessoa poderá responder a processo caso consuma "ostensivamente substância entorpecente em locais públicos, nas imediações de escola ou outros locais de concentração de crianças ou adolescentes ou na presença destes". Nessa hipótese, o usuário ficará sujeito a cumprir uma pena alternativa, se for condenado. A pena envolveria uma advertência sobre os efeitos do consumo de drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Alguém vai proibir raves ou shows de rock no país, que reúnem multidões de adolescentes? Duvido. Na última Virada Cultural organizada pela prefeitura paulistana, a droga correu nas ruas de São Paulo. Proibirá um dia a prefeitura a distribuição generalizada de drogas que ela própria patrocina?

Os doutos juristas decidiram que, pela proposta, o simples fato de ser realizada venda de uma substância entorpecente seria considerado tráfico de drogas.

— Se a pessoa é surpreendida vendendo, não importa a quantidade, é tráfico — disse o relator.

Pelo jeito, estão propugnando a distribuição gratuita de drogas. Como comprar se não há quem venda? A elite de nossos juristas está agindo como formigas enlouquecidas ante um temporal, que já nem sabem para onde vão.

segunda-feira, maio 28, 2012
 
DO ALTO DE MEU SOFÁ


Ainda o Facebook. Desconfio de militantes de qualquer causa. Todo militante é proselitista. Julga-se dono da verdade. Até pode ser que seja. Mas nada temos a ver com isso. O que mais me afasta da militância, no entanto, é sua ineficácia. Serve no máximo para promover alguns líderes e nada mais. Estou falando do que conheço.

Eu também fui militante, em um breve período de minha vida. Foi em meus dias de católico. Em meus quinze anos – pasma, leitor! – eu era presidente de Congregação Mariana em Dom Pedrito. Levei meus congregados às últimas conseqüências e acabei destruindo a congregação, meu primeiro contributo ao esclarecimento das gentes. Fui expulso da cidade – expulso pela primeira vez, é bom salientar. Mas os padres foram generosos. Cortaram minha matrícula no colégio mas me encaminharam ao colégio Santa Maria, em Santa Maria. Lá, passei a militar na Ação Católica. Era um cristianismo mais arejado, mas nem por isso menos asfixiante.

Transformar o homem e o mundo – este era o menor de nossos propósitos. Nos reuníamos em congressos com jovens de todo o país e aquele número de militantes, vindos de todos os quadrantes, nos dava uma sensação de poder e um gostinho de vitória. Cristo tinha reunido doze? Pois bem, nós reuníamos muito mais. Tínhamos certeza absoluta de que conseguiríamos levar os homens ao bom caminho e voltávamos em fogo para nossos municípios. Eu era bom orador e conseguia comover as massas. Em um desses encontros, uma freirinha em lágrimas me abraçou e disse: “Cem homens como você e nós transformamos o mundo”. Havia bem mais de cem e não transformamos coisa alguma.

À medida que nos aproximávamos de nossas cidades, o entusiasmo mermava. Aquela alta tensão espiritual que havíamos vivido por uma semana se esvaía como água entre os dedos. Longe dos nossos, nos sentíamos isolados e impotentes. Alguns optaram pela luta armada. Deu no que deu. Foi aí então que joguei ao lixo essa idéia perversa que até hoje contamina a humanidade, a idéia de Deus. Me senti livre e dono de meu destino. Militância nunca mais!

Na época, fui abordado pelos marxistas, que generosamente se propunham a acolher aquela pobre alminha desprovida de fé. Eles também eram religiosos a seu modo. Assim como acreditávamos em Deus e na parusia, eles acreditavam na História e no Estado comunista. Como nós, católicos, eram também arrogantes. Olhavam com discreta piedade os que não participavam de sua ideologia: esse coitado não entendeu o mundo.

O que nos dava certeza da vitória era a universalidade do movimento. Tanto cristãos como comunistas, sabíamos que em toda aldeia do Ocidente havia alguém lutando pela Causa. Saber-se partícipe de uma luta universal gera a certeza dos fanáticos. No Brasil, as pequenas cidades podiam não ter uma guarnição militar. Mas lá estavam, onipresentes, a Igreja e uma célula comunista. O eterno combate entre Don Camilo e o camarada Peppone. Mais tarde o pároco de aldeia e o alcaide juntariam forças, mas isto já é outro assunto.

Naqueles dias, um pouco antes de perder definitivamente a fé, militei na Juventude Estudantil Católica (JEC) e Juventude Universitária Católica (JUC). Os religiosos que nos orientavam eram homens abertos, mas o conflito sexual persistia. Em Santa Maria, eu apertava o padre Carlos Pretto contra a parede: "Se mulher é tão bom, por que é proibido?" Pretto armava uma longa história, de final curto e grosso. Que não devíamos ter relações com uma mulher por amor a ela. “Eu estudei em Roma – dizia Pretto – no meio daquelas gringas boazudas. Eu me perguntava porque não podia ir para a cama com elas. Examinei criticamente a Bíblia e concluí que não podia fazer isso pelo amor que devia a elas”.

Nada mais fácil para um crente do que inverter uma evidência. Eu também havia lido a Bíblia e, fora as neuroses de Paulo, não via nada demais no exercício da sexualidade. Mas o Paulo era o Paulo. Eu era o Cristaldo. De minha parte, era por amá-las que as queria na cama.

Mas Pretto não era de ferro. As militantes de JEC e JUC, secundaristas e universitárias cheias de charme e desejo, fizeram um excelente trabalho de sapa. Mais adiante Pretto já ousava heresias desde "mulher e religião não se discute, se abraça" a outras do tipo "se batina fosse bronze, que badaladas!" Os sacerdotes que desceram do púlpito para falar conosco – e foram vários – sempre condenando a sexualidade, acabaram largando a batina, casando e fazendo filhos. Foi nossa revanche a longo prazo.

Um sexualidade exigente e incontrolável foi, sem dúvida alguma, o que me libertou do obscurantismo. Houve também os questionamentos de ordem intelectual, mas estes foram secundários. E é o sexo que tem afastado milhares de sacerdotes da Igreja Católica. Em Santa Maria terminaram meus dias de militância. Ateu, decidi tratar de meu jardim.

Ora – perguntareis – então porque escreves? Boa pergunta. Escrevo por necessidade interior, gosto de questionar convicções. Fazer terrorismo intelectual, examinar as contradições de doutrinas que parecem sólidas, é algo que me diverte. Escrevo para exercitar meu senso de humor. Leitor algum me flagrará portando bandeiras. Aceito o mundo como ele é, com suas misérias e grandezas. Sou adepto do “amor fati” nietzscheano. Aceito integralmente o que me cerca, minha vida e meu destino, no que tiver de doloroso ou prazeroso. Hoje, liberto do cristianismo, não movo uma palha para modificar o mundo. Que siga seu curso. Mas me reservo o direito de fazer algumas anotações à margem.

Que jovens sejam militantes, entendo. Com que faremos a revolução? – perguntava-se um dos personagens de Roberto Arlt. Com os jovens – respondia seu interlocutor -. São estúpidos e entusiastas. O que me causa espanto é ver marmanjos lutando por causas bobas.

A militância está tomando novas formas nestes dias de Internet. Se antes seus instrumentos eram passeatas e manifestações, aos poucos está se tornando protestos indignados contra a corrupção no Facebook. Temos agora o militante de sofá. Ou de teclado, como quisermos. Os corruptos, se é que tem tempo para perder nas ditas redes sociais, devem morrer de rir. Nunca vi protestos, nem na Internet nem nas ruas, punindo corrupto. Se nem as leis conseguem puni-los, não serão mensagens indignadas que os levarão à cadeia.

Enfim, o choro é livre. Mas para mim soa como algo ridículo ver marmanjos, alguns até com certa estatura intelectual, protestando quais jovenzinhos indignados contra os políticos malvados. A impressão que me fica é a de um certo descargo de consciência. Algo como: não sou indiferente às injustiças do mundo. Do alto de meu sofá, estou contribuindo para um mundo melhor.

Contem outra.

domingo, maio 27, 2012
 
O VALOR DO FACEBOOK E
A HUMANA INDIGÊNCIA



Em meados deste mês, li nos jornais que as ações do Facebook estrearam na Nasdaq, bolsa de valores de empresas de tecnologia em Nova York, operando em alta. Às 12h35 (horário de Brasília), da sexta-feira de 18 passado, apenas minutos após a abertura dos negócios, os papéis, negociados com o símbolo FB, subiam 12%, a US$ 43 – o valor previsto inicialmente era de US$ 38. Houve um atraso de pouco mais de 30 minutos para o início das vendas dos papéis. Logo após a abertura, a companhia já era avaliada em US$ 117,82 bilhões.

Já entendi muita coisa complicada no mundo. Por exemplo, o mistério da Santíssima Trindade. À primeira vista, a razão emperra: como pode um deus ser três em um só? Com um pouco de pesquisa, tudo se esclarece. Apesar de ter sido o primeiro imperador cristão, Constantino não levava muita fé na nova religião. Seus propósitos eram políticos: queria unificar o império, dividido pela crença em vários deuses. Agradou-lhe aquele novo deus que surgia, que não pertencia a nenhuma nação e ao mesmo tempo pretendia ser o deus de todas. Para ter um império grande, precisava de um deus grande. Maior que todos, de preferência. Apesar de ter assumido a nova seita como religião oficial, não assumiu a intolerância típica dos cristãos, que pretendiam que seu deus fosse o único.

Segundo os historiadores, Constantino, além de construir basílicas cristãs, mandou erigir templos pagãos. Além de escutar os augúrios do clero cristão, escutou os dos áuspices e hierofantes, presidiu o concílio de Nicéia e venerou a estátua da deusa Fortuna. É por pressão sua que se cria nessa época o dogma da Santíssima Trindade. Ao ver que o cristianismo estava resvalando rumo ao politeísmo, com a história do Pai, Filho e Espírito Santo, o imperador manipulou as discordâncias teológicas existentes entre Arius (Cristo é um ser criado) e Atanásio (Cristo é igual e eterno como seu Pai) e coagiu os bispos do império a assumir a doutrina de Atanásio. “Adoramos um só Deus em Trindade… O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e contudo eles não são três deuses, mas um só Deus”. O que deve ter dado origem, séculos depois, àquele aparelho de som da Gradiente, o três-em-um.

Constantino quis proteger seu nascente império do politeísmo que voltava à galope pela janela. O Pai e o Filho também entendo. O Pai, porque era o deus dos judeus. E o Filho, porque afinal não seria o Pai quem roubaria ods judeus o livro antigo. Sem o Filho, não se criaria uma nova seita. Confesso que até hoje não entendi o que faz o Espírito Santo na Trindade. Como tampouco o fato de que o Facebook valha US$ 117,82 bilhões. Como pode valer tudo isso aquela pagininha onde posto estas crônicas e eventualmente converso com amigos?

O valor do Facebook – me informam amigos mais atilados – está no volume imenso de informações que reúne sobre seus membros. Assim sendo, a publicidade pode ser dirigida a segmentos específicos, que tendem a interessar-se pelos produtos anunciados.

Que publicidade? – me pergunto. Nunca vi publicidade no Facebook. Perplexos, meus informantes sugerem que eu dê uma olhadela na coluna à direita da página. Foi o que fiz. Para minha surpresa, lá estavam os anúncios.

Sou totalmente refratário ao mundo da publicidade. Abomino toda e qualquer propaganda. Tenho um olhar seletivo. Um jornal pode anunciar um produto qualquer em página inteira e eu não o enxergo. Aconteceu há alguns anos. Eu lia um jornal em um café e fui abordado por uma marqueteira. Queria saber se eu havia visto algum anúncio das casas Bahia. Respondi que não. Ela pegou o jornal e mostrou-me. Havia seis anúncios das tais de casas, de página inteira e de meia página. Eu não havia visto nenhum.

Publicidade para mim é preto – disse certa vez a uma amiga em um bar. Ela olhou preocupada para os lados, para ver se não havia nenhum negro por perto. Mas não era a negros que me referia. E sim a uma antiga prática de jornalismo. Após fechar o jornal, editores e redatores descem à gráfica para ver as primeiras provas no papel, questão de corrigir em última hora algum errinho que tenha passado. Nestas provas, só está o texto jornalístico. O espaço reservado à publicidade está em negro. É assim que vejo a publicidade ao ler algo, um quadrado preto frente a meus olhos.

Se disser que jamais comprei algo em função da publicidade, acho que não estou afirmando uma inverdade. Tenho, obviamente, eletrodomésticos em casa. Mas porque necessários. Diga-se de passagem, a maior parte deles são herança da Baixinha. Se preciso comprar algum, eu o compro em função do tamanho que me serve, da conveniência de preço, eventualmente da cor. Se alguém me perguntar qual a marca de qualquer apetrecho que tenho na cozinha, vou ter de ir lá e conferir.

Não tenho idéia do que seja grife. Certa vez, precisei comprar uma mala em Barcelona. Vi uma que me pareceu prática, robusta e bonita e a levei. Viajava com duas amigas e por elas soube que comprara uma grife famosa. Se comprei, foi por acaso. Até hoje não lembro qual seja. Confesso não entender como funciona este universo. Vejo vedetes do mundo da mídia recebendo milhões para uma anunciar uma cerveja ou refrigerante. Ora, eu jamais beberia algo porque uma vedetinha anuncia. Se bebo, é porque provei e gosto. É preciso ser muito bruto para consumir algo só porque o Pelé ou a Xuxa anunciam esse algo. A publicidade – só posso concluir – depende fundamentalmente da existência de seres irracionais neste mundinho.

Volto ao Facebook. Ao descobrir – ó milagre! – que havia propaganda no lado direito da página, passei a lê-la, questão de curiosidade. Pelo jeito, o Zuckerberg não reuniu suficientes informações a meu respeito. Nada do que me oferece me interessa. Me sugere viagens. Mas para mim não adianta sugerir viagens, sou eu que decido viajar, como viajar e para onde viajar. Me oferece gadgets eletrônicos. Merci de tout, o que tenho em casa já me basta. Até que ando vagamente tentado por um desses objetos de desejo, os smartphones, mas até agora não consegui descobrir para que me serviriam.

Carros? Não me interessam. Nenhum de meus ancestrais teve carro, e não pretendo romper com a tradição. Cursos? Não tenho mais idade para cursos e adoro o autodidatismo. Isso sem falar que estou sempre cursando alguma disciplina, entre minhas quatro paredes. Disfunção erétil? Quando chegar a hora, procuro um médico. Planos de saúde? Se nesta altura da vida não tivesse um, talvez não estivesse escrevendo aqui.

Jamais comprei algo em função da publicidade e não seria agora que compraria em função do Facebook. Nos bilhões que vale o Facebook na bolsa não há um centavo sequer de meu bolso. A fortuna de Zuckerberg, a meu ver, depende da humana indigência.

sábado, maio 26, 2012
 
RUI BASTIDE E SEU ALVARINO *


Ainda Dom Pedrito. Depois que Bertrand Delanoë, homossexual assumido, foi eleito prefeito de Paris, a França passou a gabar-se na imprensa de sua mentalidade liberal. No mesmo ano da eleição de Delanoë, Veja nos informava que o Estado que reúne a maior quantidade de piadas machistas havia assumido a dianteira na defesa dos direitos dos homossexuais. A revista paulistana referia-se ao fato de a Justiça do Rio Grande do Sul ter emitido julgamentos favoráveis em causas relacionadas a reivindicações dos gays.

A ausência de preconceitos da gauchada, no que se refere à homossexualidade, não é atitude de hoje, nem mesmo de ontem, mas data de muito mais longe. Antes mesmo que os parisienses ousassem eleger um prefeito homossexual, o Rio Grande do Sul já teve um, e dos mais queridos por seus conterrâneos. Ora, direis, Dom Pedrito não é Paris. Claro que não é. Dom Pedrito é uma pequena comuna isolada do mundo. Já Paris é uma das capitais deste mesmo mundo, com todo cosmopolitismo que isto implica.

Feliz de quem tem uma província no coração, disse alguém. Final dos anos 50, há mais de meio século, portanto. Naquela cidadezinha da fronteira gaúcha, nos confins da fronteira seca entre Brasil e Uruguai, então com 13 mil habitantes, tive minhas primeiras lições de tolerância. Um dos líderes políticos locais, voz de estentor, bom de voto e temível nos debates, jamais escondeu suas preferências por jovens efebos. Nem por isso deixava de contar com o apreço dos pedritenses.

Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes. Comentário indiferente na cidade: "O Brasil vai perder muito com esta cassação". Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. "Já procurei até médico" - confessou-me um dia Bastide -. "Mas que vou fazer? É a minha natureza." Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide.

Sua detenção pelos militares virou folclore. O vereador estava prestando seus serviços ao Brasil, quando batem na porta de seu apartamento. Ainda pelado, entreabriu a porta. Três militares o procuravam, um oficial e dois soldados, de metralhadoras em punho.
- O senhor é o Rui Bastide? - perguntou o oficial.
- Sou.
- Então o senhor está convidado a comparecer às dependências do 14º Regimento de Cavalaria.
- Acho que vou declinar do gentil convite - respondeu Bastide. Ocorre que não é bem um convite. O senhor terá de ir. Agora e como está.
- Então me levem - disse o Rui - abrindo a porta e os braços, em plena glória de sua nudez.

"Os soldadinhos enrubesceram - me contava o Rui -, não sabiam para onde apontar as metralhadoras. Aí, me deram tempo. Tomei banho, me perfumei, me despedi do Brasil, não sabia quanto tempo ia ficar preso".

Pelo jeito, a prisão foi produtiva. Em vez de xingar a ditadura, Rui encenou um balé, onde bravos lanceiros do Ponche Verde, envergando diáfanas bombachas brancas, executavam impecáveis pas de deux enquanto cantavam uma ode ao 14º RC: "Querido Exército..."

A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso pedritense. E vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados.

Há fatos que na infância nos marcam a memória e só depois de muito viver lhes conferimos a verdadeira dimensão. Ocorreu no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira com o Uruguai, onde vivi meus dias de guri. Torrão de gente rude, onde qualquer adulto tinha de cuidar-se com a língua. Lá na Linha Divisória - como era mais conhecida a região - uma palavra mal empregada, ou mal entendida, podia custar uma vida. Lá, conheci Seu Alvarino.

Fora trazido da cidade, como cozinheiro do Peixoto, um bolicheiro local. Negro, enorme, espadaúdo, durante o dia cuidava da cozinha e das coisas do Peixoto. Nas tardes de domingo, cumpridas suas tarefas caseiras, vestia uma blusinha de rendas cor-de-rosa, punha sua mais rodada saia longa e sentava na porta do bolicho, munido de agulhas e novelos. A gauchada ia chegando, boleando a perna e atando os cavalos no alambrado. Em meio àquela gente armada, revólveres e facões pendendo da guaiaca, seu Alvarino, indiferente às charlas e ruídos de esporas, permanecia absorto em seu crochê, como se ali estivesse tricotando desde o início dos tempos.

Jamais ouvi qualquer piada a respeito das prendas domésticas de Seu Alvarino. Também, pudera! Seria uma empreitada um tanto arriscada dirigir qualquer comentário desairoso àquele par de munhecas. Seria homossexual? Ou o travestir-se seria apenas uma prosopopéia que o acometia aos domingos? Fosse como fosse, se gostava de usar saias e fazer crochê, isto era algo que só a ele dizia respeito.

"A principal explicação para o Rio Grande do Sul estar na vanguarda da defesa dos gays encontra-se no bom nível educacional da população do Estado", diz o redator de Veja, que certamente jamais teve notícias do Bastide ou do seu Alvarino. "Uma classe média instruída e formada com base na imigração européia tende a ser mais crítica e aberta a atitudes liberais", afirma o historiador Luiz Roberto Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Pura conversa fiada de acadêmicos. Lá na Linha, não era hábito local imiscuir-se na vida de ninguém. O preconceito veio através dos padres europeus, que lá introduziram as noções de pecado e culpa entre gaúchos que viviam imersos em uma espécie de paganismo crioulo pré-cristão.

* Excertos de um projeto de memórias

sexta-feira, maio 25, 2012
 
PARA QUANDO
TRAVESTIS NO
JUDICIÁRIO?



O racismo no Brasil, hoje, é fundamentalmente negro. O racismo que antes existia, por parte dos brancos, era mitigado e jamais foi militante. Havia – e ainda há – quem não gostasse de negros, e isto a meu ver é direito de cada um. Isso de amai-vos uns aos outros é coisa de católicos. Eu amo quem me agrada amar. Não me vejo obrigado a gostar de ninguém, seja branco ou seja negro. Respeitar alguém como ser humano, detentor de meus mesmos direitos, isto sim. Mais não me peçam.

Desde há muito venho denunciando este racismo negro, que não ousa dizer seu nome. Já em 2006, eu comentava um monstrengo jurídico, de autoria do senador Paulo Paim, o projeto de lei n° 3.198/2000, também chamado de Estatuto da Igualdade Racial. Na ocasião, já fora aprovado pelo Senado e tramitava em regime de prioridade na Câmara dos Deputados. De uma só tacada, Paulo Paim extermina legalmente os mulatos do território pátrio: "para efeito deste Estatuto, consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga".

Demorou mas chegou até nós. Está sendo introduzida legalmente no Brasil a classificação ianque, que só consegue ver pretos e brancos em sua sociedade e nega a miscigenização. Este sórdido projeto é antigo, fruto da exportação dos conflitos raciais dos Estados Unidos para um país onde o negro sempre conviveu bem com o branco, tanto que o mulato constitui um contingente considerável da população. Mal foi eleito, o Supremo Apedeuta saiu arrotando urbi et orbi que o Brasil era a segunda nação negra do mundo, depois da Nigéria.

Até mesmo uma pessoa aparentemente culta, como Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, prestou-se a corroborar o sofisma safado: "como declarou o presidente Lula, o estreitamento das relações com a África constitui para o Brasil uma obrigação política, moral e histórica. Com 76 milhões de afrodescendentes, somos a segunda maior nação negra do mundo, atrás da Nigéria, e o governo está empenhado em refletir essa circunstância". Ao colocar todos afrodescendentes no mesmo saco dos negros, o ministro demonstrou que, nos círculos do poder, mesmo homens cultos se dobram à bajulação.

Ora, segundo o IBGE, a população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus. Com o projeto do senador, não teríamos mais mulatos (ou pardos, no jargão do IBGE), mas apenas afro-brasileiros. O que os ativistas negros esquecem é que o mulato pode denominar-se tanto afro-brasileiro como euro-brasileiro. Tanto afrodescendente como eurodescendente. A tônica no afro tem intenções óbvias: aumentada artificialmente a população negra, torna-se fácil pressionar os legisladores para obter mais vantagens para os que não são brancos. Os ativistas negros no Congresso querem ganhar privilégios no tapetão da semântica.

Sensível ao apelo dos votos, o tucano Geraldo Alckmin encaminhou na época, à Assembléia Legislativa, projeto de lei que estabelecia o acréscimo de pontuação aos afrodescendentes no concurso público para a Defensoria do Estado. Após os Estados Unidos estarem abandonando a política das ações afirmativas, o governador paulista, em um gesto de mimetismo terceiro-mundista tardio, afirmava: "Estamos fortalecendo nossa proposta de ações afirmativas". É um modo de dizer.

O que Alckmin ignorou foi o artigo 5° da Constituição, que reza: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Alckmin era então visto como uma alternativa à permanência do Supremo Apedeuta no poder. Triste alternativa, a de um político que, em sua ambição de votos, começa sua campanha rasgando de uma penada a Constituição brasileira. Se já rasgava a Carta Magna enquanto candidato a candidato, podemos imaginar o que ousaria quando no poder.

Nas últimas décadas, os movimentos negros insistiram na idéia de que raça não existe, ser negro seria apenas uma questão de melanina. Quando começou a surgir no Brasil a infeliz idéia ianque de cotas, tanto para a universidade como para admissão em empregos públicos, assistimos a uma súbita reviravolta: raça agora existe e deve ser declarada. O malsinado projeto do senador gaúcho determinava que, em várias circunstâncias - no Sistema Único de Saúde, nos sistemas de informação da Seguridade Social, em todos os registros administrativos direcionados aos empregadores e aos trabalhadores do setor privado e do setor público - o quesito raça/cor seria obrigatoriamente introduzido e coletado, de acordo com a autoclassificação.

Se afirmar a existência de raças era sinônimo de racismo, a noção de raça passou a ser algo bom, digno e justo. Para a advogada Flávia Lima, coordenadora do Programa de Justiça da ONG Núcleo de Estudos Negros, em Florianópolis (SC), a classificação dos indivíduos segundo a raça pode ser um instrumento na luta contra o racismo. A obrigatoriedade de registro da cor seria um ponto positivo do Estatuto, já que permite investigações sobre racismo em diversas esferas da sociedade.

Se aprovado na Câmara este projeto infame, os negros e mulatos teriam carteirinha única, e esta jamais seria a de mulato. Imagine o leitor se um deputado branco sugerisse a instituição da carteirinha de negro. Seria imediatamente comparado a Hitler, que identificou os judeus com a tecnologia Hollerith de cartões perfurados da IBM.

Não sei que rumos tomou o projeto de Paulo Paim. Mas há dois anos foi aprovada a Lei n.° 12.888 – 20 de julho de 2010 – a qual instituiu algo também chamado de Estatuto da Igualdade Racial. Que visa obviamente a conceder aos negros mais direitos que os brancos. Com a oficialização do racismo no país por unanimidade pelo STF, com sua decisão de 26 de abril passado, foram dadas as bases para as reivindicações mais estapafúrdias dos movimentos negros.

Leio no Estadão de hoje que a Frente de Luta Pró-Cotas Raciais no Estado de São Paulo está pressionando por cotas raciais em concursos para juízes e procuradores públicos em SP, a antiga reivindicação de Geraldo Alckmin. Um abaixo-assinado, que será entregue às autoridades estaduais, reivindica cotas nas universidades, nos concursos de acesso ao serviço público, incluindo processos de escolha de juízes, procuradores, cargos de confiança.

Na avaliação da frente, as cotas sociais utilizadas na USP, Unicamp, Unesp e Fatec, não resolvem o problema da desigualdade entre negros e não negros. “Vários estudos apontam que a adoção de cotas raciais é o único meio capaz de mudar o perfil elitista de seus cursos”, afirma.

Há boas décadas eu me perguntava: uma vez garantido por lei o acesso dos negros à universidade, que acontecerá se não encontrarem lugar no mercado de trabalho? Eu mesmo respondia: seriam criadas cotas no mercado de trabalho. Sem me pretender profeta do óbvio, a reivindicação aí está. O que se pede, hoje, é que prova de negro valha mais que a de branco nos concursos públicos.

Ainda ontem, os líderes do núcleo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) do PT pretendiam se reunir com Fernando Haddad, pré-candidato do partido à Prefeitura de São Paulo, para apresentar idéias de combate ao preconceito na capital paulista. Se a reunião ocorreu, não sei. Mas entre as reivindicações dos militantes estava uma campanha de incentivo a professores transgêneros nas salas de aula, além da adoção do "kit-gay" como ficou conhecido o material do MEC.

Vamos deixar de preconceitos, gente! Para quando travestis no Judiciário?

quinta-feira, maio 24, 2012
 
FSP MOSTRA IRÃ
PARA INGLÊS VER



Se há algo que recomendo não ler no jornalismo nacional são os suplementos de turismo. Jamais vi proposta de viagem inteligente. Redatores de turismo são de modo geral venais. Não são pagos pelos próprios jornais. Mas por agências aéreas ou de viagens. Que vendem um turismo padronizado, ao gosto do turista médio, em geral inculto e endinheirado. De modo geral, esses redatores sugerem hotéis e restaurantes caros – que constam dos roteiros das empresas aéreas e agências –, o que pode atrair essa classe média emergente, que acha que caro é sinônimo de excelente. Ora, não é bem assim. Pode-se viajar e comer relativamente barato e muito bem. Isto, os cadernos de turismo não mostram.

Se estes suplementos constituem geralmente jornalismo venal – uma gentileza do jornalista a uma mordomia recebida - hoje a Folha de São Paulo exagerou em seu caderno sobre o Irã. No caso, o jornalista não está viajando por conta de empresas turísticas ou aéreas, mas é o correspondente do jornal em Teerã. Seu relato é idílico. Como em toda ditadura, o prato forte é o passado. Quanto mais remoto, melhor. A reportagem nos fala de Meshed, no extremo oeste, onde está enterrado o santo xiita imã Reza. De Shiraz, terra do lendário poeta Hafez, que também abriga refinados jardins; de Persépolis, tesouro arqueológico do império aquemênida; de Yazd, epicentro da multimilenar fé zoroástrica; e de Isfahan, jóia da arquitetura e da engenharia islâmicas.

O jornalista nos fala dos encantos destas cidades, e até aí nada demais, todas as cidades milenares têm seus encantos peculiares. Um nota da redação do jornal alerta o turista brasileiro. O Brasil aconselha entrar no Irã já com visto, que pode ser obtido pela embaixada do país em Brasília. Quem viajar sem o documento pode pedir um visto trânsito de sete dias, não renovável, no destino. A prática, porém, é desencorajada pela representação brasileira em Teerã. Além disso, o Irã não reconhece o Estado de Israel e não permite a entrada de quem tem carimbo do país no passaporte.

Advertência oportuna. Mas a Folha parece esquecer que turista é tanto homem como mulher. E se a condição da mulher no Irã – como em praticamente todos os países muçulmanos – está abaixo do rabo do camelo, a estrangeira não fica melhor posicionada. Para começar, é preciso munir-se de um véu para visitar o país dos aiatolás. E de um manto. Mal o avião toca o solo em Teerã, uma aeromoça adverte: "Todas as mulheres devem cobrir a cabeça com um véu e vestir um manto antes de deixar a aeronave".

O véu não deve necessariamente cobrir o rosto, mas nenhuma franja de cabelo deve ficar de fora. O manto serve para cobrir essas características femininas que têm um apelo perverso, as curvas. Saia curta ou decotes, nem pensar. A rigor, não há lei alguma que obrigue uma estrangeira ao uso do véu. Mas ai da turista que não usá-lo. Está exposta a cusparadas por onde andar.

Mais ainda: mulher não pode andar sozinha na rua. Deve estar acompanhada por outra. Ou por um macho. E atenção: o macho tem de ser parente. Pai, irmão ou filho, mesmo que pequeno. Detalhe: homens e mulheres não podem se olhar nos olhos. Nem podem apertar a mão um do outro. Qualquer transgressão a estas regras lhe significarão dissabores com a polícia moral.

Um homem e uma mulher solteiros não podem ficar sozinhos sob o mesmo teto. Consta que Oriana Fallaci teve de casar-se com seu guia enquanto esperava uma entrevista com o aiatolá Khomeiny. A escritora não confirma o fato, mas em uma de suas entrevistas deixou a hipótese no ar. O que não deve ter sido um problema para a italiana. O Irã admite o chamado sigheh, o matrimônio temporário que pode durar alguns minutos ou 99 anos. O casamento é feito mediante a recitação de um versículo do Alcorão. O contrato oral não precisa ser registrado, e o versículo pode ser lido por qualquer um.

A prática tem seus convenientes. Num passe de mágica,a prostituição deixa de existir. O que há são relações normais entre duas pessoas casadas. Mas falava de turistas. No feminino. De modo geral, um homem não se sentirá desconfortável no Irã. Mas cuidado. Se você for homossexual e quiser praticar o esporte em terras muçulmanas, arrisca a pena de morte. Outro detalhe: álcool, nem em sonhos. Alá não gosta.

Não se pede a um suplemento de turismo um estudo de sociologia sobre a condição feminina em um país. Ocorre que estas restrições afetam as turistas e, assim sendo, deveriam constar de uma reportagem cujo objetivo é incitar a viagens. Estes dados são vitais para a decisão de viajar ou não viajar.

A omissão pode ser do correspondente. Ou mais provavelmente do editor. Os suplementos de turismo nacionais tendem a induzir o leitor a viajar, sem alertá-lo para eventuais dissabores que o esperam na viagem.

Seja como for, a Folha está enganando seus leitores.

quarta-feira, maio 23, 2012
 
AOS VITORIOSOS DE 64 *


Os militares brasileiros costumam gabar-se de ter vencido o confronto que culminou com a chamada Revolução de 64. Graças à ação das Forças Armadas, foram derrotados os comunistas e compagnons de route que tentavam transformar o país em uma Cuba meridional. Três décadas depois, cabe a pergunta: foram?

Nunca foi tão pobre e minguado um 7 de Setembro no Brasil. Na capital federal, por escassez de combustível, apenas quatro blindados fizeram parte do desfile. O grupamento da Força Aérea Brasileira deixou os aviões estacionados e seus pilotos desfilaram a pé. Tampouco houve o tradicional sobrevôo de caças. Já no 25 de agosto, dia do soldado, faltou grana até para o coquetel de praxe e o desfile militar foi cancelado.

Faltasse verba apenas para comemorações, não seria tão grave. Mas as Forças Armadas avisaram o Tribunal Superior Eleitoral que nestas eleições não será fácil atender os pedidos de envio de tropas aos Estados diante da liberação antecipada de 44 mil recrutas no final de julho passado. Esta dispensa foi causada por cortes no Orçamento determinados pelo governo federal. Há algum tempo, os quartéis vinham liberando os recrutas para comerem em casa, já que o rancho andava escasso.

Enquanto o Exército nacional não tem verba sequer para alimentar seus soldados, o presidente Fernando Henrique Cardoso assina uma medida provisória que amplia a definição e os direitos dos anistiados políticos. Servidores públicos civis que foram punidos por adesão a greve serão reintegrados a seus cargos. Políticos, civis e militares que já haviam sido readmitidos poderão pedir indenização financeira à União – hipótese que era vedada na regulamentação da anistia do ano passado. As esquerdas e simpatizantes, que vivem protestando contra o arbítrio das medidas provisórias, contra esta certamente não terão objeções.

Em fevereiro deste ano, a Comissão de Anistia já havia aprovado concessão de indenização de R$ 59,4 mil para o presidente do PT, deputado José Dirceu, por ter sido obrigado a abandonar o País por onze anos, no regime militar. "O Estado brasileiro cassou minha nacionalidade e me baniu do País", afirmou o petista que, entre outras façanhas, trabalhou para os serviços de inteligência cubanos. A verdade é bastante diferente: José Dirceu era preso político e saiu do país em 1969 com mais 14 pessoas em troca da liberdade do embaixador norte-americano Charles Elbrick, seqüestrado por um grupo ligado ao MR-8. Saiu porque quis e mediante outra ação criminosa.

Na época, 2.600 esquerdistas foram beneficiados e sete mil outros pedidos esperavam decisão da comissão. Pela nova regra, passaram a ter direito ao benefício civis e militares atingidos por medidas de exceção desde o início da década de 30 até a promulgação da atual Constituição, em 1988. Ou seja, os pilotos da Força Aérea, marinheiros e fuzileiros navais que em 1964 atentaram contra a nação, serão agora regiamente recompensados por sua desobediência à hierarquia militar. O valor das indenizações pode ser de até R$ 100 mil e a pensão especial mensal de até R$ 10,8 mil – maior salário que pode ser pago com recursos da União. A expectativa do presidente da comissão, no início deste ano, era de que pelo menos 40 mil pessoas apresentassem requerimentos. Mesmo os punidos que não conseguirem provar vínculo com atividade laboral, serão contemplados com 30 salários mínimos para cada ano da punição.

E as vítimas do terror? Cerca de 120 militares foram mortos por militantes de esquerda durante o regime militar. Em janeiro de 2001, o presidente da República em exercício, Marco Maciel, enviou ao Congresso Nacional quatro projetos de lei concedendo pensão especial a vítimas de violência política durante o governo militar. O único vivo a ser beneficiado com uma pensão de R$ 500,00 foi o ex-piloto Orlando Lovecchio Filho, que, em março de 1968 perdeu uma perna, na explosão de uma bomba colocada no Consulado americano, em São Paulo. Lovecchio, que na época tinha 22 anos, estava prestes a tirar o brevê de piloto comercial. Não teve só a perna amputada, mas também sua carreira. Sérgio Ferro, o terrorista que colocou a bomba, vive hoje em Paris, a capital preferida de nove entre dez defensores do proletariado.

Segundo o então secretário de Estado dos Direitos Humanos, José Gregori, a medida não contemplaria os 120 militares mortos, já que eram partes envolvidas em conflito. Além de Lovecchio, abrangeu os herdeiros de mais duas pessoas mortas pelo terror. De carona, entraram no projeto os herdeiros de frei Tito de Alencar Lima, que se suicidou na França em 1974. O suicídio foi debitado a perturbações mentais em decorrência das agressões sofridas em dependências policiais.

Leio no site da Secretaria de Assuntos Legislativos do Congresso, que até junho passado o projeto de indenização a Lovecchio ainda não havia sido aprovado. Quanto à primeira leva de anistiados, estes há muito estão gozando as benesses do regime que pretendiam derrubar. Se terroristas são recompensados, nada mais justo que suas vítimas também o sejam, este é o primeiro raciocínio que nos ocorre. Mas se pensarmos um pouco adiante, logo se revela a ironia da situação. O terror mata e o Estado paga. Traduzindo melhor: o terror mata e você, contribuinte, paga. Pois o Estado nunca paga coisa alguma. Quem paga somos nós.

Foram derrotados os comunistas? O que vemos são seus líderes em prosa e verso cantados, na literatura e no ensino nacionais, ostentando aura de heróis, dando nomes a salas, ruas e rodovias e gozando de gordas aposentadorias. Os militares, que se pretendem vencedores, foram jogados à famosa lata de lixo da História e relegados ao papel de vilões.

Enquanto seu Exército não tem verba sequer para pagar o rancho de recrutas e sua Força Aérea desfila a pé, aos vitoriosos de 64 Fernando Henrique Cardoso confere honras, glória e gordas aposentadorias.

* 09/09/2002

terça-feira, maio 22, 2012
 
STALINISTA DE PLANTÃO DA FSP
REAFIRMA DOGMA DA GUERRILHA



Ao fazer a defesa do direito de resistência e comparar o assalto ao poder pelas esquerdas no Brasil nos anos 60 – e bem antes de 64, é bom salientar – à resistência francesa, escreve o stalinista de plantão da Folha de São Paulo:

- "Toda violação dos direitos humanos será investigada." Com essa frase, Gilson Dipp, um dos integrantes da Comissão da Verdade, procurou constranger setores da esquerda que procuram levar a cabo as exigências de punição aos crimes da ditadura militar. Trata-se de pressupor que tanto o aparato estatal da ditadura militar quanto os membros da luta armada foram responsáveis por violações dos direitos humanos. É como se a verdadeira função da Comissão da Verdade fosse referendar a versão oficial de que todos os lados cometeram excessos equivalentes, por isso o melhor é não punir nada.

Os mentores da dita Comissão da Verdade reiteram a toda hora que sua finalidade é o reestabelecimento dos fatos, e não a punição dos envolvidos. Vladimir Safatle se trai ao afirmar que, segundo a Comissão, o melhor seria não punir nada. No fundo, vê como alvo da Comissão a punição dos envolvidos. Mas atenção: apenas dos militares. A guerrilha, que matou gente que nada tinha a ver com o peixe, e inclusive executou militantes, não pode ser punida.

Esta postura das esquerdas está longe de ser nova. Em 2008, Dilma Rousseff, Tarso Genro, Paulo Vanucchi, então ministros de Lula, levantaram a tese de que tortura é crime imprescritível e portanto seus autores devem ser punidos. Para sustentar a exótica idéia, alegaram que tortura é crime comum, não é crime político, e portanto não está coberta pela Lei da Anistia. Ora, salta aos olhos que a tortura, na ocasião, teve razões políticas. Tortura como crime comum é esta tortura praticada cotidianamente em praticamente todas as prisões do país e que não merece a preocupação de ninguém. Aliás, a preocupação com a tortura só surgiu no Brasil quando os meninos da classe média entraram no pau. Quando só os pobres eram torturados, não víamos ninguém falar em direitos humanos.

Ao que tudo indica, os ilustres celerados, no afã do revanchismo, esqueceram de examinar com mais cuidado a Constituição, que reza em seu artigo XLIII:

- a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

E no XLIV:

- constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Foi preciso que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, refrescasse a memória dos sedentos ministros de Lula. "Essa discussão sobre imprescritibilidade tem dupla face. O texto constitucional também diz que o crime de terrorismo é imprescritível", disse Mendes. E emendou: "Tenho uma posição muito clara em relação a isso. Repudio qualquer manipulação ou tentativa de tratar unilateralmente casos de direitos humanos. Direitos humanos valem para todos: presos, ativistas políticos. Não é possível dar prioridade a determinadas pessoas que tenham determinada atuação política. Direitos humanos não podem ser ideologizados, é bom que isso fique claro".

Tarso Genro, ministro da Justiça, apressou-se em pôr o bigodinho stalinista de molho. Em declaração à Folha de São Paulo, afirmou que os grupos de esquerda que adotaram a luta armada contra a ditadura militar "não podem ser classificados como terroristas". Haja malabarismo verbal para provar que seqüestros de diplomatas, assassinatos de pessoas inocentes, assaltos a bancos e execuções sumárias de colegas de armas não constituem terrorismo.

Para sustentar sua tese esdrúxula, Tarso afirmou na época que "o terrorismo é sempre uma ação bélica que atinge uma comunidade indeterminada de inocentes que estão fora do conflito". O ministro dizia aceitar as leis internacionais e a Constituição, que "tornam o crime de terrorismo perfeitamente enquadrável" como imprescritível. Mas reiterava que as organizações de esquerda contrárias à ditadura não se guiaram por esse princípio. "Houve atos isolados."

Quantos atos isolados? Se os militares mataram 376 pessoas, os gentis militantes das esquerdas mataram 116. Não são atos tão isolados assim. Sem falar que a guerrilha não foi uma resposta à ditadura. A ditadura é que foi, isto sim, uma resposta à guerrilha. O palavroso ministro pareceu esquecer que antes de 64 Francisco Julião já montava a guerrilha comunista, com armas recebidas de seu bom amigo Fidel Castro.

Para as esquerdas, anistia tem um lado só. É perdão de seus crimes, jamais dos crimes dos adversários. Para começar, anistia nada tem a ver com perdão. Anistia é esquecimento. É como se as partes em conflito decidissem: em nome do bom entendimento da nação, esqueçamos as barbaridades do passado. Nenhum crime será perdoado. Mas será esquecido. Eu esqueço teus crimes, tu esqueces os meus. E vamos em frente. As esquerdas jamais aceitaram a dupla mão da instituição.

Continua o stalinista de plantão da Folha de São Paulo:

- Os resistentes franceses também fizeram atos violentos contra colaboradores do Exército alemão durante a Segunda Guerra, e nem por isso alguém teve a ideia estúpida de criminalizar suas ações.

Safatle não nasceu ontem. É de supor-se que saiba ler. Portanto deve saber muito bem que raros foram os colaboradores executados e dezenas de milhares foram os franceses que colaboraram com o invasor sem que tivessem sido punidos. Pelo contrário, o mundo literário e artístico francês conviveu amigavelmente com os ocupantes, a ponto de imprimir programas de ópera em alemão, para conforto dos invasores amantes do bel canto. Durante a ocupação, os parisienses continuaram cantando e dançando junto com o inimigo. Mitterrand, por exemplo, esse ícone das esquerdas, foi condecorado com a medalha Francisque pelo governo de Pétain. Se alguns franceses reagiram com violência, estavam reagindo contra um inimigo definido, declarado.

Não foi o caso das esquerdas no Brasil, que estabeleceram um dogma para uso próprio: estavam lutando contra a ditadura. Para começar, negam, contra a evidência dos fatos, que estivessem preparando um assalto ao poder antes da ditadura. No início dos 60, já havia guerrilheiros sendo treinados na União Soviética e Cuba. Moscou preparava uma reedição da fracassada Intentona de 35. Os militares reagiram, instauraram um regime de exceção e o que era luta para instalar um regime comunista virou, de repente, luta contra a ditadura. Ora, a luta era bem outra. A guerrilha toda foi de inspiração marxista. Quando, na história, alguém viu um marxista lutando por democracia?

Continua Safatle:

- Àqueles que se levantam para afirmar que "a guerrilha matou tal soldado, tal financiador da Operação Bandeirantes", devemos dizer: "Tais ações não podem ser julgadas como crimes, pois elas eram ações de resistência contra um Estado criminoso e ditatorial".

O mesmo poderia ser dito a favor dos militares. Que mataram lutando contra uma filosofia criminosa e ditatorial. Agiram com mão pesada? Deveriam então ser punidos. Ocorre que foram anistiados. Como também os guerrilheiros. Mas Safatle tem uma visão diferente:

- Como se não bastasse, integrantes da Comissão da Verdade que dizem querer investigar ações dos grupos de resistência "esquecem" que os membros da luta armada julgados por crimes de sangue não foram anistiados. Eles apenas receberam uma diminuição das penas. Ou seja, os únicos anistiados foram os militares, graças a uma lei que eles mesmos fizeram, sem negociação alguma com a sociedade civil.

Há uma imprecisão em sua afirmação. Melhor diria se afirmasse que os únicos apenas anistiados foram os militares. Os demais membros da guerrilha foram não só anistiados como também regiamente recompensados. Mais ainda, sobraram benesses para vigaristas que sequer pegaram em armas e alegaram ser vítimas da ditadura, como Ziraldo e Carlos Heitor Cony. Em 2010, segundo o Estadão, pelo menos R$ 4 bilhões de indenizações aos ditos perseguidos políticos já haviam sido pagas ou aprovadas pela Comissão da Anistia.

Safatle, como bom stalinista, defende o sagrado direito de celerados lutarem por ditaduras, desde que comunistas. Lutar contra os que lutam por ditaduras é que é crime.

segunda-feira, maio 21, 2012
 
SOBRE AMIZADE,
AMOR E DOENÇA



Sábado passado, escrevi sobre o frívolo conceito de amizade que está se tornando usual em função das redes sociais. Se, durante séculos, amigo era um ser muito especial, hoje amigo é qualquer um. Nestes dias em que se fala de um milhão de amigos, a discussão merece mais algumas considerações.

Há uns bons dez anos, comentei L’Amicizia secondo i filosofi, de Massimo Baldini (Città Nuova, 1998), uma antologia de textos filosóficos sobre a amizade, com um ensaio do antólogo à guisa de prefácio. Trata da amizade em seu sentido mais nobre, e não da amizade irresponsável proposta por alguém que jamais vimos. Os filósofos, no caso, são aqueles que a história consagrou como tais, e não professores que os papagueiam e se julgam pensadores. A reflexão é oportuna, nestes dias em que a amizade muitas vezes passa a depender de uma visão de mundo uniforme.

Quem hoje tem 60 anos, sabe disso. Terá perdido amigos por escaramuças no Camboja ou Vietnã, por determinações de Moscou, Pequim ou Cuba, em suma, por eventos distantes que nada têm a ver com uma relação entre duas pessoas. O teórico desta perversão foi Sartre que, por questões de ideologia, rompeu laços com Camus. “A amizade, ela também, tende a ser totalitária” — disse um dia o agitador da Rive Gauche ao futuro prêmio Nobel — “urge o acordo em tudo ou a ruptura, e os sem-partido eles próprios se comportam como militantes de partidos imaginários”. É a versão xiita da amizade: ou você aceita minha ideologia, ou não podemos ser amigos.

Assim, com satisfação vejo que Aristóteles, na longínqua Atenas, distante no tempo e no espaço, desde há mais de dois mil anos concorda comigo. No livro oitavo da Ética a Nicômaco, afirma não ser possível ser amigo de muitos com perfeita amizade, como não é possível estar enamorado ao mesmo tempo de muitos. “Aqueles que têm muitos amigos e que tratam todos familiarmente, não parecem ser amigos de ninguém”. Para o estagirita, um milhão de amigos nem pensar.

Cícero, ciente das responsabilidades da amizade, recomenda atenção para que não comecemos a gostar de alguém que algum dia poderemos odiar. Amizade não é coisa para jovens, mas deve ser decidida quando o caráter está formado e a idade já é madura. Seneca, como bom estóico, acha que o sábio deve bastar-se a si mesmo. O que não impede que ele aceite com prazer um amigo que lhe seja vizinho. Para o pensador de Cordova, o sábio é impelido à amizade não “pelo interesse, mas por impulso natural”. Amizade que se funda no interesse é um “vilissimo affare”. A distância não tem o poder de prejudicar a amizade. É possível manter relações com amigos ausentes, por quanto tempo se quiser. Em verdade, a proximidade torna a amizade complicada. A amizade é sempre útil, enquanto o amor é muitas vezes absolutamente nocivo.

Abelardo acentua o caráter seletivo da amizade. “Ninguém será pobre se possuir tal tesouro, tão mais precioso quanto mais raro. Os irmãos são muitos, mas entre eles é raro um amigo; aqueles a natureza cria, mas estes só o afeto te concede”. Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, define: “é um contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. No que vão duas restrições. Os amigos devem ser sensíveis, porque um monge, um solitário podem não ser maus e no entanto viver sem conhecer a amizade. E virtuosos, porque os maus têm apenas cúmplices. Em suma, só os homens virtuosos têm amigos. O que Abelardo está dizendo, no fundo, é que um mau-caráter não pode ser amigo de ninguém.

Uma distinção mais lúcida vamos encontrar em Kierkegaard, para quem o cristianismo aboliu a amizade. Segundo o pensador dinamarquês, o amor humano e o valor da amizade pertencem ao paganismo. Pois o cristianismo celebra o amor ao próximo, o que é distinto. Para esta religião, só o amor a Deus e ao próximo são verdadeiros. O cristão deve aprender a desconfiar do amor profano e da amizade, pois a predileção da paixão é no fundo um ato de egoísmo. Entre o amigo e o próximo há diferenças incomensuráveis. A morte não pode extirpar o próximo. Se a morte leva um, a vida subitamente fornece um outro. A morte pode tomar de você um amigo, porque ao amar o amigo no fundo você a ele se une. Mas ao amar o próximo você se une com Deus, por isso a morte não pode tomar-lhe um próximo.

Para Nietzsche, a mulher é incapaz de amizade, conhece apenas o amor. Mas seus contemporâneos homens não percorreriam mais os sendeiros da amizade. Por dois motivos. Primeiro, porque o amor entre os sexos prevaleceu sobre a amizade. Segundo, porque o cristianismo substituiu o amigo pelo próximo. Para seu profeta, Zaratustra, “vosso amor ao próximo é vosso amor por vós mesmos. Fugis rumo ao próximo fugindo de vós mesmos. Não vos ensino o próximo, mas o amigo. Não aconselho o amor ao próximo. Aconselho o amor ao remoto”.

Sou avesso a isso que chamam de amor. Ou talvez avesso à palavrinha. Os filmes de Hollywood, que sempre terminavam com um indefectível “I love you”, vulgarizaram o tal de amor. Sem falar que, no fundo, é um sentimento que leva facilmente ao assassinato. Se você, leitora, um dia sentir que outro alguém a considera a única pessoa de sua vida, melhor sair de perto. De preferência, correndo. Há algumas décadas, surgiu uma novela na televisão brasileira intitulada “Quem ama não mata”. Solene besteira. Só mata quem ama. Ao sentir que perde o que julga ser único, o bruto raciocina: se não és minha, não serás de mais ninguém”. Daí a matar é um passo.

Prefiro a amizade, mesmo na relação com mulheres. Em algum momento do Quarteto da Alexandria, Lawrence Durrel dizia ser a amizade preferível ao amor porque mais duradoura. Verdade que amigos também perdemos, mas a ninguém ocorre matar alguém porque perdeu sua amizade. Amor é doença antiga, já diagnosticada pelos gregos. Assim narra Plutarco o caso de um jovem enfermo:

- Erasístrato percebeu que a presença de outras mulheres não produzia efeito algum nele. Mas quando Estratonice aparecia, só ou em companhia de Seleuco, para vê-lo, Erasístrato observava no jovem todos os sintomas famosos de Safo: sua voz mal se articulava. Seu rosto se ruborizava. Um suor súbito irrompia através de sua pele. Os batimentos do coração se faziam irregulares e violentos. Incapaz de tolerar o excesso de sua própria paixão, ele tombava em estado de desmaio, de prostração, de palidez.

Quando Antíoco – pois assim se chamava o enfermo – recebeu Estratonice como presente de Seleuco, seu pai, desapareceram os sintomas da doença. Que talvez tenha contagiado Seleuco, pois afinal era o marido de Estratonice. Mas isto já é outra história.

Eram bons observadores, os gregos. O tal de amor é gostoso quando o experimentamos. Mas ridículo quando visto com certa distância. Amor, diria, é coisa para jovens. Jovem tendo sido, é claro que fui acometido pelo mal. (O pior é que às vezes tem recidiva). Uma vez adulto, optei pela amizade.

Que tampouco dura a vida toda. Diria que perdi dois excelentes amigos de longa data. Um, porque recebeu o título de Dr. pela USP. Outro, porque não gostou de crônica que escrevi sobre a teoria da relatividade. Que se vai fazer? Conto outra hora.

domingo, maio 20, 2012
 
VINDE A MIM AS CRIANCINHAS *


Um dos botecos que freqüento em fim de tarde, acho que já contei, está cercado de forças místicas. De um lado, um oratório da TFP, aquele mesmo que nos idos de 1969 recebeu uma bomba. Obra de comunistas, segundo os devotos filhos de Maria. Do outro lado, fenômeno recente, um templo evangélico, mais um desses que brotam como cogumelos após a chuva, nestes dias em que tanta gente busca muletas espirituais. Nem um nem outro jamais me incomodaram. Enquanto peco no boteco, os marianos rezam ajoelhados ao lado de minha mesa, rezam talvez pela redenção deste pecador. Não são proselitistas. Fazem suas orações em voz baixa, recitam seus salve-rainhas, ave-marias e pai-nossos discretamente, muita vezes sob a chuva e em meio a madrugadas mais ou menos gélidas. Já os evangélicos, estes são mais barulhentos. Muito som, muita fúria e muito fanatismo. Como ficam a uma distância suportável do bar, não chegam a atrapalhar minhas horas de recolhimento.

Num destes dias, em que o famigerado espírito natalino paira sobre a cidade, mal acabo de pecar e estou voltando para casa, fui abordado por quatro ou cinco pivetinhas, na faixa dos dez anos, de bíblias em punho. Eivadas da palavra divina, estavam sedentas para trazer ovelhas ao rebanho.

— O senhor é católico? — perguntou-me a menor delas, pelo jeito a mais audaz.
— Não.
— É evangélico?
— Também não.
Com um ar incrédulo, de quem não queria acreditar no que iria ouvir, insistiu:
— O senhor é ateu?
— Sou.

Foi a vez de intervir uma mulatinha dentuça, que me exibiu suas canjicas e todo seu espanto, como se tivesse encontrado um dinossauro:
— Ateeeeuu? Mas Deus existe, moço. Falo com ele todos os dias.
A discussão é muito antiga e longe de mim pretender debater tema tão batido com uma criança. Ainda mais nesta época em que qualquer vedetinha da televisão fala com Deus a qualquer hora, sem sequer pedir audiência ao Supremo. Aceitei os alegados da mulatinha dentuça. Existe e matou um monte de gente, não é verdade? Em Sodoma, sabia?

Ela pensou um pouco:
— É! Mas eles estavam pecando. Deus avisou antes para pararem de pecar.
— Tudo bem, minha filha. Mas teu pai não peca de vez em quando? Os homens não pecam todos os dias? Isso é motivo para matá-los?
Ela ficou matutando.
— Vou perguntar para o pastor.
Sugeri que perguntasse também quem era o único homem justo de Sodoma.
— Isso eu sei. Era o Ló.
Muito bem. Ela conhecia bem o roteiro. E com quem dormiu Ló depois que fugiu de Sodoma?
Ela não sabia. Com as duas filhas, expliquei. Isso é exemplo?
— Vou perguntar ao pastor — defendeu-se a menina.
O pastor teria trabalho naquela noite.

A mais novinha me atacou com o Velho Testamento:
— O senhor conhece este livro?
— Claro que conheço, moça. Era aquele que falava de Adão e Eva, não era? Os dois viviam sós no paraíso, tiveram dois filhos...
— Caim e Abel — atalhou a apostolazinha.
— Exato. Depois o que aconteceu?
— Caim matou Abel.
— Isso mesmo. Depois Caim procriou, teve filhos, não é isso?
— É — disse a pivetinha.
— Muito bem. Com quem Caim teve filhos?
A menininha pensou um pouco, botou um dedo na boca, e teve de admitir:
— Com Eva, ué!
— E quem era Eva?
Ela puxou mais um pouco pela memória e respondeu, já um pouco assustada:
— Era a mãe dele, não é?

Era, e aí começa o problema. O mito bíblico explica o mundo a partir de um incesto. Não quis explicar à menina que nada tenho contra incesto, aliás tampouco nossa legislação, quem quiser levar a mãe para a cama que tenha bom proveito. Mas nesse momento já havia chegado reforço. Mais três ou quatro meninos, mais crescidos, nos cercavam e seguiam com interesse a discussão. Um deles, o mais taludo, aventou:

— Ah! Mas o Caim foi procurar mulher em Ur.
Tão pequeno e já falacioso. Ali estava uma vocação irreversível para o jornalismo mentiroso. Ur dos Caldeus, expliquei ao futuro safado, é uma cidade no sul da Babilônia, de onde teria vindo Abraão. Não existia nos tempos de Adão. Aliás, nem é preciso conhecer a bíblia para saber disto. Basta fazer palavras cruzadas.

Um outro, gorduchinho mas já sofismador, tentou salvar a turma:
— É, mas tem primo casando com prima.
— Sei disso. Nada melhor que namoro de prima em cozinha, diziam os antigos. Mas pai com filhas — e com as duas — me parece um pouco pesado.
— Vamos perguntar ao pastor — responderam num coral improvisado.

O pastor, já inquieto, estava chegando e recolheu a meninada, que atacava este pobre incréu como uma matilha de cães ensandecidos. Orre, bem feito! Quem manda os pais soltarem criancinhas imaturas na fé nas ruas desta São Paulo, infestada de ateus empedernidos? Liberto do cerco, continuei meu caminho, um vago sorriso me perpassando a alma. Havia confundido meia dúzia de crianças e dado trabalho ao pastor. Antes tarde do que nunca. Estava feita minha boa ação do ano.

* 29/12/2000

sábado, maio 19, 2012
 
FACEBOOK DESGASTA
UMA ANTIGA PALAVRA



Já comentei há quase dez anos. O século passado, entre outros atributos, foi sem dúvida o da desvalorização das palavras. A começar por democracia.Sistema de governo almejado por todos os povos no Ocidente, onde cada indivíduo tinha seus direitos e liberdades garantidas, logo foi tomado de assalto pelos comunistas e passou a significar o contrário. As sedizentes repúblicas democráticas do Leste europeu não passaram de tiranias brutais,onde o direito mais ao alcance do cidadão era a prisão ou o gulag.

Paz foi outra palavrinha que sofreu bastante. Quem talvez mais a tenha desfigurado no mundo foi esse vigarista de mão cheia, chamado Pablo Picasso, com sua pombinha da paz, sempre sobrevoando os países que só queriam e faziam guerra. Não adianta cercar uma boa doutrina, dizia Nietzsche. Os porcos criam asas.

Quem definiu com verve o fenômeno foi George Orwell, em 1984, certamente a ficção mais significativa do século passado. Na sociedade controlada pelo Grande Irmão, guerra era paz, liberdade era escravidão e ignorância era força. Esta estratégia tem-se repetido ad nauseam. Sem ir mais longe, aí está o PT, brandindo um projeto em nome da liberdade de imprensa, que no fundo pretende exatamente o contrário: sufocá-la.

Nestes dias de Internet, a palavra que mais se desgastou foi certamente amigo. O fenômeno terá começado com o Orkut e se intensificou no Facebook. Fulano quer ser seu amigo, nos informa o site. Ora, não é assim que uma amizade se inicia. Como posso aceitar como amigo pessoa que não conheço?

Qual a intimidade com um milhão de amigos? – pergunta-se o Nouvel Observateur. A revista qualifica o Facebook, com seus 900 milhões de utilizadores em apenas oito anos de existência, como o terceiro país do mundo, por sua população. Uma de suas características seria redefinir as relações sociais e mesmo as práticas culturais.

Pode ser. Mas se mexe com a vida de muita gente, na minha não mexeu quase nada. Verdade que, através destas ditas redes sociais, reencontrei pessoas que há décadas não via. Isto desde o Orkut. Esta me parece ser uma função importante do Facebook. Também o utilizo para divulgar meus artigos. Serve também como meio de comunicação rápida entre pessoas. Sei que há gentes encontrando o amor de suas vidas na rede. Vá lá. Eu prefiro os métodos antigos, de encontro pessoal, seja em universidade, bares, ambiente de trabalho.

O Facebook serve para dar voz a quem antes não a tinha. As pessoas podem discutir, manifestar-se, chiar, protestar, denunciar. Mas para isto existem os blogs, ao alcance de quem quiser mostrar sua cara ao mundo. Esta é, a meu ver, a grande revolução da Internet. Se antes eu precisava de meio de comunicação para dizer ao mundo o que tenho a dizer, agora posso dizê-lo dispensando as mídias tradicionais. Neste sentido, a Internet começou tímida e blog era, em suas origens, uma espécie de diário íntimo de adolescentes. Logo os jornalistas descobriram o poder de comunicação destas páginas e hoje os blogs competem em pé de igualdade com a grande imprensa. A tal ponto que já começam a ser censurados. Sinal de que incomodam.

Mas se em algo o Facebook mexeu, foi sem dúvida com as palavras. Particularmente com esta antiga palavrinha, amizade. Segundo a socióloga Divina Frau-Meigs, entrevistada pelo Nouvel, a boa escala de interatividade é em geral de 60 a 80 pessoas, podendo ir até uma centena para os mais extrovertidos. Essas pessoas são verdadeiros "amigos", com os quais se tem contato freqüente e com os quais se evolue na vida.

Ora, tenho concepção bem mais estrita de amizade. Tanto que divido meu mundinho entre amigos, relações de bar e conhecidos. Amigos, a meu ver, são sempre poucos. Relações de bar é círculo mais amplo e conhecidos é a soma dos dois anteriores e mais os outros tantos com quem tropeçamos na vida. Já amizade é plantinha que exige tempo para crescer, muitas vezes décadas. Uma das coisas que mais detestei em meus dias de Florianópolis foi a mania dos ilhéus de dirigir-se a quem quer que seja com esta palavrinha: "amigo!" Há quem ache simpático e hospitaleiro este comportamento. Eu o considero abominável. Desvaloriza uma palavra cheia de significado.

Que os freqüentadores do Facebook convencionem chamar de amigos a todo e qualquer interlocutor, isto é uma convenção que a ninguém está proibida. Mas nada tem a ver com amizade. Pode até que, destes contatos, surja uma relação de amizade, e mesmo namoros e casamentos. Nem sempre sei do que gosta meu vizinho. Mas posso descobrir afinidades com uma pessoa do outro lado do oceano.

De minha curta experiência no Facebook – dois anos, talvez – encontrei bons interlocutores. Mas a maioria deles eu já conhecia através do blog. Já me encontrei com muita gente, aqui e no Exterior, que conheci via Internet. Como mudei de cidade mais de dez vezes em minha vida, gosto de reencontrar na rede as pessoas que deixei para trás. Hoje converso com amigos de Paris ou de Dom Pedrito como se estivesse sentado com eles numa mesa de bar. Esta é, sem dúvida, uma das grandes vantagens do Facebook. Mas minha relação de amizade era anterior.

Existe um milhão de amigos? – pergunto eu. Minha pergunta é meramente retórica. Claro que não existe. Amigos são sempre poucos e raros. Ainda há pouco eu comentava o perverso ranço cristão do “amai-vos uns aos outros”. Como perceberam Nietzsche e Kierkegaard, esta ordem exclui o sentimento de amizade. Amizade é eleição, afinidade eletiva. Se tenho de amar o próximo, não sobra espaço para o amigo.

Pessoalmente, só ouso qualificar como amigo alguém com quem já convivi uns bons vinte anos. E a experiência de minhas últimas décadas tem me sussurrado que é melhor esperar uns quarenta. Já ultrapassei a sexta década e meus amigos, se for contá-los nos dedos, sobra dedos. E me sinto muito feliz por tê-los tantos. Sem falar que, em função de meu espírito nômade, estão dispersos por várias geografias e nem consigo reuni-los numa mesma mão ou mesa.

Para o Facebook, amigo virou sinônimo de qualquer um. Amizade passa a ser sentimento de quem está conectado à rede. Não deve estar longe o dia em que a primeira providência para conseguir amigos será comprar um computador.

sexta-feira, maio 18, 2012
 
SOBRE A PERICULOSIDADE DOS ORNITÓLOGOS *


Ano passado, comentei o perigo que os ornitólogos representam para a economia de um país. A idéia que temos destes senhores é a de pacatos cidadãos que adoram observar essas maravilhas da natureza, os passarinhos. Até pode ser. Mas sempre é bom desconfiar quando ornitólogos apresentam um pássaro na televisão. Normalmente, há grossa sacanagem de ONGs e ambientalistas atrás disto.

Nos dias em que vivi no Paraná, durante semanas foi vedete dos noticiários televisivos um pequeno pássaro, uma espécie de pardal, que estaria ameaçado de extinção. Chamava-se curiango-do-banhado e habitava nos arredores de Curitiba. Durante longos minutos, o bichinho era exibido em seus ângulos mais simpáticos, sempre com a mensagem: corre perigo de extinção. Ano seguinte, foi a vez de uma nova espécie de tapaculo, da família Rhinocryptidae, batizada com o nome popular de macuquinho-da-várzea. Também vivia nos arredores de Curitiba. Algumas semanas mais tarde se soube ao que vinham o curiango-do-banhado e o macuquinho-da-várzea. Para preservá-los, era preciso preservar seu habitat natural. E para preservar seu habitat natural, as tais de ONGs fizeram uma ferrenha campanha para impedir a construção de uma barragem que abasteceria a capital paranaense. Me consta que o projeto de barragem morreu na casca.

Há alguns anos, vi uma reportagem no 60 Minutes sobre uma região da Índia que abrigava quarenta milhões de habitantes. O programa começava mostrando mulheres e crianças carregando em baldes, para próprio consumo, uma água preta e lamacenta. Outras juntavam esterco de vaca, usado como combustível. Havia um projeto de uma represa para abastecer de energia elétrica e água potável a região toda. Uma ONG vetou o projeto junto ao Banco Mundial, com a argumentação de que a represa ameaçava uma espécie qualquer de tigre. A represa gorou e quarenta milhões de pessoas continuaram a beber água podre e cozinhar com esterco de vaca.

A reportagem entrevistava em Nova York, em um elegante apartamento, a porta-voz da ONG que conseguiu sepultar a represa. Não sei se a moça percebeu a ironia, mas o repórter a filma enchendo um copo de límpida água de torneira. O repórter quer saber porque privar milhões de pessoas de água limpa. A moça dizia mais ou menos o seguinte (cito de memória): não queremos que aquelas populações adquiram os hábitos de consumo do Ocidente. É como se dissesse: esses hábitos do Ocidente são privilégios de ocidentais. Vocês aí, continuem catando esterco de vaca.

Claro que a moça jamais viveu naquelas condições. Eu, água preta à parte, vivi. Em meus dias de guri, esterco de vaca era um dos combustíveis que usávamos. Outro eram gravetos de chirca, um arbusto daninho que invade os campos. E também madeira de árvores, particularmente de eucaliptos. Mas hoje o Ibama proíbe derrubar qualquer árvore. Quanto à água, tinha-se água limpa. O problema é que tinha de ser buscada, operação que tomava uma boa hora de cada dia.

Primeiro era preciso encilhar um cavalo, atrelar uma rasta com uma barrica, levar a barrica até a cacimba - a mais de quilômetro de distância -, enchê-la pacientemente balde a balde, usando um pano qualquer para coar a água. A fauna macroscópica ficava se contorcendo sobre o pano. Quanto à microscópica ninguém ligava e jamais vi morrer alguém por beber daquela água. A água gelada daquela cacimba até hoje me dá saudades. Quando migrei para a cidade, vi a água correndo da torneira como se estivesse diante de um milagre. Todas as casas de Roma tinham água encanada antes de Cristo. No Brasil, até hoje, milhões de pessoas não dispõem deste conforto.

Mais de trezentos projetos de barragens já foram engavetados no mundo, especialmente na África, Ásia e América Latina, por obra de ONGs. Estas organizações estão cometendo crimes contra a humanidade, ao condenar milhões de pessoas a viver longe da água potável e energia elétrica. Seus militantes são sempre oriundos de países desenvolvidos, todos pontilhados de represas. Sua ação sempre incide sobre países do Terceiro Mundo, que precisam de energia para abandonar esta condição. É preciso olhar com cautela para os defensores aguerridos da fauna. Tigres ou passarinhos, bichinhos comoventes tipo o mico-leão-dourado, constituem uma ameaça ao desenvolvimento de países pobres quando manipulados por ongueiros.

Semana passada, dois simpáticos passarinhos ameaçados de extinção ilustraram uma reportagem na Folha de São Paulo, o papa-formigas-de-topete-branco e o rapazinho-carijó. Segundo recente estudo feito por cientistas brasileiros - e americanos, como não poderia deixar de ser - as unidades de conservação pequenas têm potencial limitado na conservação da biodiversidade na Amazônia quando se trata de espécies de pássaros. A conclusão é de um novo estudo de cientistas do Brasil e dos Estados Unidos, a partir de levantamentos feitos desde 1979 numa área desmatada perto de Manaus. Os cientistas tentam entender qual é fator mais crucial para a sobrevivência de espécies em um determinado fragmento de mata que tenha restado numa região desmatada. É mais importante que esse fragmento seja grande ou é mais importante que ele não esteja muito isolado de outros trechos de mata?

Seja qual for a conclusão, é óbvio que se oporá a qualquer iniciativa para desenvolver a região. 'Fragmentos de cem hectares perdem a metade do número de espécies de ave em cerca de 15 anos", diz o pesquisador, que alerta para um problema: "Para diminuir dez vezes a velocidade de perda, é preciso aumentar cem vezes a área". Confesso que não sei o que está sendo projetado para a região. De qualquer forma, desde quando passarinho é prioritário ante um projeto de agricultura ou pecuária? Por outro lado, pássaros voam. Se um território tornou-se hostil, eles buscam outro. Pássaros migram. Não é preciso ser ornitólogo para saber disto. Quando migram, não migram a pé. Asas vão longe e a Amazônia é vasta.

Isto pode ser observado no Sul do país. Afugentadas pelos agrotóxicos, muitas aves do campo estão buscando as cidades. O quero-quero, ave campestre que jamais pousou em árvores, já aprendeu até mesmo a pousar em cumeeiras de casas. Necessidade obriga. Mais algumas décadas e talvez estejam pousando em fios de telefone. Se é que até lá existirão fios de telefone. Nos anos 70, uma foto feita por um fotógrafo do Estadão ganhou prêmios internacionais, a foto de um ninho de pomba. Isolada na urbe, sem a matéria-prima usual para a construção de seu ninho - folhas e gravetos - a pomba inovou: fez um ninho de clips. Man tager vad man haver, dizia uma profunda escritora sueca, Kajsa Varg. Em bom português: a gente pega o que a gente tem. (Em tempo: Kajsa Varg é autora de livros de culinária). Os pássaros se adaptam. Quem não se adapta são os ambientalistas, aferrados a seus dogmas ecológicos.

Esses estudos que surgem de tempos em tempos nos jornais, visando criar santuários para pássaros, não passam de pretextos de ecochatos para impedir projetos agrários, usinas, estradas. Num país que não consegue sequer dar segurança a seus cidadãos, ainda há quem queira preservar o bem-estar dos pássaros. Os pássaros-vítimas-do-desenvolvimento - ou animais - têm de ser simpáticos para comover a opinião pública. Ninguém se comoveria com a preservação dos morcegos. Que nojo! Muito menos de aranhas, escorpiões ou lacraias. Já o mico-leão-dourado é podre de charme.

Assim, quando você vir ornitólogos passeando pela floresta, de binóculos em punho, como quem inocentemente observa pássaros, cuidado: algo devem estar tramando contra a humanidade.

* Janeiro 2007

quinta-feira, maio 17, 2012
 
DO CÁLCULO RENAL À EPIFANIA


Nada se cria, tudo se copia, dizem as gentes. Se existe um campo onde este axioma impera, este campo é o das religiões. A começar pelo judaísmo. Não existe Bíblia sem o Egito, dizia Thomas Römer, especialista em história bíblica. O monoteísmo judaico já está em Akenathon. Com a diferença de que Akenathon teve existência atestada na história. E de Moisés, o patriarca dos judeus, não temos sequer um sinal de sua passagem no tempo. A autoria da Torá – Pentateuco, para os cristãos – não procede, pois no último dos cinco livros, o Deuteronômio, Moisés narra sua própria morte. Nem Cristo ousou tanto, deixou este relato para os evangelistas. Freud, em Moisés e a religião monoteísta, faz de Moisés um discípulo de Akenathon que teria se associado aos judeus para ensinar-lhes a religião monoteísta.

Quanto aos cristãos, tiveram ainda mais religião de quem copiar. O Novo Testamento é uma apropriação indébita – para não dizer roubo – do livro dos judeus, acrescido de mitos gregos e do pganismo. A História está repleta de deuses nascidos de virgens e mortos no solstício de inverno. A vasta proliferação de denominações cristãs era tendência já embutida no próprio cristianismo. No Brasil contemporâneo, elas brotam como cogumelos após a chuva e fazem feroz concorrência aos católicos.

Não há religião hoje que não seja uma sopa de religiões antigas. Os tais de neopentescostais, que infestam as cadeias de televisão no mundo todo, são outros que se apossam do Livro a seu modo. O mesmo fizeram os espíritas. Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, misturou evangelhos com a teoria do magnetismo animal do austríaco Franz Anton Mesmer e construiu sua ficção. Mesmer era médico, estudava teologia e retomou a antiga picaretagem da imposição das mãos. Curiosamente, Kardec, que é francês e está sepultado no Père Lachaise, em Paris, é praticamente desconhecido em seu país. Sua tumba está sempre cheia de flores, colocadas geralmente por brasileiros.

Há alguns anos, recebi visita de amiga que há décadas não via. Para minha surpresa, revelou-se espírita e umbandista. Profundo mistério. Sempre vi o espiritismo como uma religião de origem francesa, inspirada nas teorias de Mesmer, e a umbanda como um culto animista de origem africana. Não via como alguém podia assumir coisas tão díspares. Saí então a pesquisar. E descobri coisas que, como a jaboticaba, só ocorrem no Brasil.

Segundo J. Alves Oliveira, em Umbanda Cristã e Brasileira, no dia 15 de novembro de 1908, o Caboclo das Sete Encruzilhadas se manifestou numa sessão espírita kardecista em Neves, São Gonçalo, município fluminense próximo ao Rio, então capital federal. “Foi um escândalo" – escreve Matinas Suzuki, na Folha de São Paulo -. “Embora haja indícios de incorporações de espíritos de índios e de escravos negros nas diversas formas de macumba que existiam no Rio de Janeiro do século 19, os kardecistas não os admitiam por considerá-los espíritos marginais e pouco evoluídos. Quem recebeu o caboclo indesejado, e logo em seguida o preto-velho Pai Antônio, foi Zélio Fernandino de Moraes, um rapaz de 17 anos que se preparava para entrar para a Escola Naval”.

O achado do Zélio Fernandino parece ter vindo de encontro a alguma inconsciente aspiração brasílica e fez escola. Assim como os católicos se apossaram do livro judaico, os umbandistas reivindicaram para si o mediunismo, trouvaille de Allan Kardec. Segundo Alves Oliveira, o caboclo teria assim se revelado: "Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios [caboclos], devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho [o médium Zélio de Moraes] para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou".

O espiritismo então abrasileirou-se, para desalento de seus mentores europeus. Contei então a história do Zélio Fernandino à minha amiga. Que a desconhecia totalmente. Ou seja, nem sabia como se havia operado a fusão de duas religiões em seu cerebrinho. A lambança é tal que já há centros orixás da umbanda, santos católicos e retratos de pregadores do Santo Daime posicionados em lugares estratégicos dos terreiros. E já existe inclusive o umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião afro-brasileira.

O Santo Daime desbundou. É um culto sem pé nem cabeça, criado por um seringueiro da Amazônia, cujas cerimônias consistem na ingestão da ayahuasca, beberagem feita de um cipó, que produz vômitos e diarréias, as chamadas “peias”. A nova empulhação cultua o Cristo, a Virgem... e a floresta amazônica, ecologia oblige. Pelo jeito, as tais de peias não eram muito convincentes a ponto de por si só arrebanhar acólitos. O Santo Daime então adaptou-se. Assumiu elementos de hinduísmo, umbanda e hare krishna. Deus para todos os gostos. Aqui pertinho de São Paulo, em Nazaré Paulista, a escola espiritual tem dois gurus, um tal de Sri Prem Baba, o mestre da cerimônia, que pelo jeito é tupiniquim com nome indiano para melhor enganar. Mais o guru Sri Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, mas já apita no Santo Daime. Mais o sedizente mestre Raimundo Irineu Serra, seringueiro brasileiro neto de escravos, que morreu em 1971, e teria sido o fundador da doutrina do chá de cipó.

São Paulo, com a maior clientela de crentes potenciais do país, é um semental de novas fés. Outro dia, zapeando na televisão, descobri uma nova igreja, a bereana. E porque bereana? Porque em Atos está escrito: “E logo, durante a noite, os irmãos enviaram Paulo e Silas para Beréia; ali chegados, dirigiram-se à sinagoga dos judeus. Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim”. A palavrinha se repete só mais duas vezes e já deu origem a uma igreja. Afinal os judeus de Beréia era mais nobres que os de Tessalônica. E mais nada sabemos de Beréia. Mas quando descobri a nova crença – há coisa de uma semana – as igrejas já eram três: temos a Igreja Evangélica Bereana, a Batista Missionária Bereana e a Adventista Bereana. Com tantos pastores proclamando a independência, a igreja deve ser das mais lucrativas.

E as religiões continuam saltando como pipocas na panela. Em 11 de novembro do ano passado foi criada a Igreja Templária de Cristo na Terra. Seus adeptos seriam nada menos que a reencarnação dos Cavaleiros Templários, braço militar da Igreja Católica formado por monges com voto de pobreza que aceitaram a tarefa de proteger os cristãos dos muçulmanos. De novembro para cá, são apenas seis meses. E a novel igreja já tem um primeiro-ministro, quatro bispos, 20 ministros e 560 mestres, cada qual encarregado de cuidar de 70 fiéis. Walter Sandro Pereira da Silva, o apóstolo fundador, vive “uma vida simples”, em uma casa em São Bernardo do Campo (o “solo sagrado”), com nove dos ministros, sua mãe e cerca de 80 cães e gatos – a igreja tem como tarefa tirar animais da rua.

Quem nos conta é Willian Vieira, repórter da CartaCapital. Com 70 fiéis para 560 mestres, temos 39.200 seguidores. Tudo isso em seis meses, o que dá mais de 6.500 adeptos por mês. O que dá mais de 1600 conversões por semana. Mais de 230 por dia. Mesmo sentado à mão direita do Pai, o Cristo – que, após três anos de pregação, mal teve um gato pingado para acompanhá-lo ao monte Calvário – deve estar se roendo de inveja.

Walter Sandro, pernambucano pobre de Gravatá, descobriu cedo sua missão. Tinha 2 anos e meio e procurava desesperado a chupeta perdida, quando o Arcanjo Miguel veio em seu auxílio pela primeira vez. “Foi quando apareceu este ser dizendo que ela estava debaixo da cama e que eu devia procurar o Salmo 91.” Quando os pais encontraram o pequeno, ele tinha a chupeta na boca e a Bíblia na mão: milagre. “Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos”, dizia o premonitório texto bíblico.

Walter Sandro veio para São Paulo bebê e só voltou a falar com o arcanjo aos 13 anos, quando foi visitar sua cidade natal. Miguel disse-lhe que deveria pregar. Virou evangélico. Anos depois, quando começou a vender seguros, descobriu o dom da retórica e passou a dar palestras motivacionais: deixe de fumar, emagreça, conquiste o amor.

A epifania mesmo só ocorreu em novembro passado, quando Walter Sandro estava prestes a entrar no ar pelo canal UHF 58. Um novo milagre se deu. “O Arcanjo Miguel materializou-se e disse para eu abrir a igreja. Foi tão forte que tive uma crise de cálculo renal. Fui ao banheiro e ele veio e disse pra botar a mão na urina. Eu pus. E saiu uma pedra do tamanho de meio grão de feijão.” À meia-noite o programa foi ao ar já com o nome de Igreja Templária. As reuniões começaram como uma espécie de maçonaria, que aos poucos incorporou doses de Reiki, ioga e passe espírita. Uma pitada de Oriente, outra de espiritismo. Jogue tudo num caldo de cristianismo, misture e agite bem. Está criada uma nova religião.

Com apenas seis meses de existência, além do prédio na Rua Leais Paulistanos, a igreja tem sedes no Rio de Janeiro, no Espírito Santo e em Minas Gerais. É mantida pelo “Carnê da Gratidão”, um boleto com depósito de 33 reais em uma conta do Banco do Brasil. “A pessoa não paga. Ela doa.” E ganha, de quebra, o número do celular de um dos mestres para ligar quando quiser, todo dia até as 2 da manhã. “Qual seu problema? Bem, às vezes Deus não cura agora para testar sua fé”. Vinte pessoas se revezam em três turnos para atender 3 mil ligações por dia no telemarketing. Se tudo der certo e o arcanjo ajudar, em breve a igreja terá seu canal UHF (que custou 120 mil reais) para levar, “em cadeia nacional”, a mensagem do fim do preconceito. “Nós não temos nenhum.”

Você está desempregado e o mercado não está para peixe? Crie uma religião. É aposta segura. Nenhum outro ramo do trabalho lhe proporcionará tais retornos em apenas meio ano.