¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
sexta-feira, novembro 30, 2012
ET DE XAPURI NÃO LÊ JORNAIS Ainda este ano, eu comentava a morte de uma das mais novas religiões, o ambientalismo. O guru da nova religião é James Lovelock, cientista inglês que trabalhou para a Nasa, que desenvolveu a Hipótese Gaia. Ou seja, nosso planetinha seria um ser com vida própria, vida esta ameaçada pelo ser humano. Em vez de ser humano, leia-se capital. Ou países ricos, como quisermos. Países africanos, por exemplo, jamais constituirão ameaça à vida de Gaia. A teoria é fundamentalmente religiosa e remete a uma espécie de neopanteísmo. É tão ridícula quanto a cientologia de Ron Hubbard, escritor de ficção científica que percebeu ser mais lucrativo criar uma religião em vez de fazer literatura. Ridícula, mas convinha às viúvas. E fez escola nas últimas décadas. Dela derivou uma outra tese, a do aquecimento global, que previa o apocalipse para as próximas décadas. O aquecimento global decorre do efeito estufa. Que decorre por sua vez da atividade industrial... dos países desenvolvidos. País pobre não produz efeito estufa. País de negros muito menos. Efeito estufa é crime cometido por Estados Unidos, países europeus e quaisquer outros que queiram tornar-se ricos. A velha bandeira, mesmo esfarrapada, continua hasteada: morte ao capital. Em entrevista para a Veja, em 2006, falando sobre seu livro A Vingança de Gaia, lançado naquele ano na Inglaterra, Lovelock brandia o apocalipse. O repórter, não por acaso um dos crentes no efeito estufa, queria saber quando o aquecimento global chegará a um ponto sem volta. Responde o guru, com a convicção dos profetas: - Já passamos desse ponto há muito tempo. Os efeitos visíveis da mudança climática, no entanto, só agora estão aparecendo para a maioria das pessoas. Pelas minhas estimativas, a situação se tornará insuportável antes mesmo da metade do século, lá pelo ano 2040. - O que o faz pensar que já não há mais volta? - Por modelos matemáticos, descobre-se que o clima está a ponto de fazer um salto abrupto para um novo estágio de aquecimento. Mudanças geológicas normalmente levam milhares de anos para acontecer. As transformações atuais estão ocorrendo em intervalos de poucos anos. É um erro acreditar que podemos evitar o fenômeno apenas reduzindo a queima de combustíveis fósseis. O maior vilão do aquecimento é o uso de uma grande porção do planeta para produzir comida. As áreas de cultivo e de criação de gado ocupam o lugar da cobertura florestal que antes tinha a tarefa de regular o clima, mantendo a Terra em uma temperatura confortável. Essa substituição serviu para alimentar o crescimento populacional. Se houvesse 1 bilhão de pessoas no mundo, e não 6 bilhões, como temos hoje, a situação seria outra. Agora não há mais volta. - O senhor vê o aquecimento global como a comprovação de que sua teoria está certa? - O aquecimento global pode ser analisado com base na Hipótese Gaia, e, por isso, muitos cientistas agora estão se vendo obrigados a aceitar minha teoria. Em abril passado, Lovelock se viu obrigado a fazer meia-volta – quem diria? – e negar sua própria teoria. Em entrevista ao site Msnbc.com, Lovelock disse ter sido alarmista: "cometi um erro". - O problema é que não sabemos o que o clima está fazendo. Pensávamos que sabíamos nos últimos vinte anos. Isto levou a alguns livros alarmistas – o meu inclusive – porque parecia óbvio, mas isto não aconteceu. O clima está fazendo seus truques usuais. Não há nada realmente acontecendo ainda. Já era para estarmos a meio caminho de um mundo tórrido. O mundo não aqueceu muito desde a virada do milênio. Doze anos é um tempo razoável... a temperatura permaneceu quase constante, enquanto devia ter-se elevado. O dióxido de carbono está aumentando, não há dúvida quanto a isso. Era tudo alarme falso. Durante alguns meses, os profetas do apocalipse tiveram de bater em retirada. Mas apenas durante alguns meses. ONGs e universidades recebem rios de dinheiro para estudar o tal de aquecimento que não existe e a bicicleta não pode parar. Hoje, o aquecimento global voltou a existir, como se seu teórico sequer o houvesse negado. Marina Silva, o ET de Xapuri, escreve hoje na Folha de São Paulo: - Mais um grande bloco de gelo (do tamanho de Nova York, disseram os cientistas) se desfaz na Antártida. As catástrofes do aquecimento global já não espantam os brasileiros, que ficam, porém, apreensivos com o início das chuvas. Pelo jeito, o ET de Xapuri não lê jornais. Ou lê e faz que não lê. Sem o aquecimento global, a biografia de Marina perde o sentido. Como as bicicletas, Marina não pode parar. Se parar, morre. BAIXARÉU Vão mau as letras jurídicas no país, comentei em julho passado. Não faltou leitor que se surpreendesse com meu uso do vernáculo. Ocorre que o “mau” era intencional. Eu ironizava o analfabetismo de nossos doutores. Na época, li um artigo no órgão oficial do PT, a CartaCapital - revista que pretende provar a virgindade de Maria, digo, a inexistência do mensalão -, de autoria de Leonardo Massud, que se assina como advogado criminal, professor de Direito Penal da PUC-SP, mestre e doutorando pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, autor do livro "Da Pena e Sua Fixação: Finalidades, circunstâncias e apontamentos para o fim do mínimo legal". Lá pelas tantas, o titulado causídico escreve: “Num Estado que se pretende democrático, só é possível punir mais gravemente alguém pelo que essa pessoa fez e não por aquilo que ela é. Assim, quando examinar uma circunstância que diga respeito ao autor, o juiz só poderia considerá-la se fosse para favorecer o réu, pois, do contrário, seria permitir a punição mais severamente por seu estilo de vida ou sua maneira de ser (mal vizinho, mal pagador, péssimo marido), sem relação com o que a lei quis proibir, ou seja, sem nexo com o crime”. A situação é mais grave do que se possa imaginar. Pois quando um advogado criminal, professor de Direito Penal da PUC-SP, mestre e doutorando pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra grafa “mal vizinho”, “mal pagador”, há muito o analfabetismo migrou do ensino superior para a pós-graduação. A Folha de São Paulo de hoje oferece mais uma pérola. Comentando as estrepolias de Dona Rose no governo federal, escreve o jornal: “Em 4 de maio, Rose pergunta qual será a formação do ex. "Baixaréu em administração", responde Vieira (o termo em português é bacharel)”. Quanto as altas instâncias do PT escrevem baixaréu, entende-se como um analfabeto foi guindado à Presidência da República. Se o primeiro magistrado é inculto, dominar o vernáculo é o de menos para os demais cidadãos. Tanto faz como tanto fez. Pior ainda fez a Folha. Ao alertar que o termo em português é bacharel, demonstra ter uma péssima idéia do nível cultural de seus leitores. quinta-feira, novembro 29, 2012
QUANDO IRÃO PARA A CADEIA OS JUÍZES QUE CONDENARAM OS MENSALEIROS? Retomei há pouco crônica que escrevi há oito anos, mais precisamente em julho de 2004, na qual eu fazia pergunta que só agora está preocupando a magistratura nacional: voto comprado vale? Para melhor entender o caso, republico os três parágrafos finais. “Começam agora a fazer sentido certos movimentos estranhos em Brasília. Por quatro vezes, os congressistas rejeitaram a taxação dos aposentados e pensionistas, por considerá-la afrontosa a princípios jurídicos como o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Mas a carne é fraca. Na quinta vez, o Congresso não resistiu e inclusive obteve do mandalete gaúcho instalado no STF a autorização definitiva para implantar a taxação da velharada indefesa. “Considera-se que pelo menos uma centena de deputados foram comprados. É um punhado considerável de prostitutas, capaz de virar qualquer votação. Pergunta que nenhum jornal ainda fez: voto comprado vale? Venalidade pode criar legislação? Pode derrubar cláusulas pétreas e extinguir direitos adquiridos? Se cassados estes deputados, não seria o caso de cassar também seus votos passados? “Esta é a pergunta que deve ser feita, a meu ver, aos ministros das supremas cortes. Se é que, humanos sendo, ainda não se renderam às tentações do mensalão”. Mais recentemente, eu comentava a obnubilação nacional pelo brilho da careca de Joaquim Barbosa. Por sua atuação no julgamento do mensalão, já foi lançado por ingênuos como candidato à Presidência da República. Os jornalistas esquecem – e parece que sou o único a lembrar – que o juiz que hoje pune a compra de votos é o mesmo que ratificou a legislação decorrente da compra de votos. O Joaquim Barbosa que hoje é visto como herói é o mesmo Joaquim Barbosa que votou pela improcedência da ADI 3104/07, sacramentando assim a compra de votos. O STF que hoje envia mensaleiros para a cadeia é o mesmo que um dia rasgou a Constituição, avalizando a tunga dos aposentados e negando o direito adquirido. Ora, direis, o ministro não sabia. (Lula também não). Difícil não saber, quando o mensalão foi denunciado em 2005. Mesmo que Joaquim Barbosa de nada soubesse, Joaquim Barbosa votou contra o direito adquirido. Será por isso que o STF faz boquinha de siri quando se fala em anular a lei comprada. Afinal seus juízes avalizaram a compra de parlamentares. Ainda há pouco me fiz uma outra pergunta: e se alguma velhota prejudicada com a tunga de sua aposentadoria entrar com uma ação, alegando que voto comprado não pode gerar lei? Não deu outra. Uma viúva do interior de Minas exige receber o valor integral da pensão que o marido recebia quando estava vivo, de R$ 4.801. O valor atualmente pago pelo Instituto de Previdência dos Servidores de Minas Gerais (Ipsemg) à mulher foi reduzido para R$ 2.575,71 com a entrada em vigor da Emenda 41, em 2003. O juiz mineiro Geraldo Claret de Arantes deu ganho de causa à viúva. Em entrevista ao jornal, disse que o próprio STF já havia afirmado que a Emenda 41 foi aprovada "sob influência da compra de votos", e que o relator Joaquim Barbosa faz "relação clara da votação com a entrega de dinheiro. Esta reforma está maculada definitivamente pela compra de votos, não representou a vontade popular. Ela padece do vício do decoro parlamentar", reitera o juiz. A decisão do juiz mineiro põe em xeque o STF. E acusa todo o Judiciário que, de 2003 para cá, conviveu serenamente com um ordenamento jurídico inconstitucional. Para o presidente da OAB-MG, Luis Cláudio Chaves, a tese do juiz tem fundamento e pode abrir precedente para mais ações nesse sentido. "O fundamento dele é interessante, amparado numa compra de votos que influenciou a vontade parlamentar. Se ficar provado que o processo legislativo sofreu uma influência por conta da compra de voto de parlamentares, ele pode ser considerado nulo", disse Chaves. Provado já está, ou os mensaleiros não seriam condenados, como estão sendo. A viúva mineira viu a nudez do Congresso. E teve a ventura de encontrar um juiz que não é míope. Quando esta sentença chegar ao Supremo, qual será a atitude dos ministros? Continuarão afirmando que isto não implica a anulação da reforma da previdência, pois já surtiu efeitos? A atitude da viúva mineira está contaminando a parte sadia do Judiciário. Leio no Jornal do Brasil que, na esteira das condenações por corrupção passiva de deputados federais e ex-parlamentares no julgamento da ação penal do mensalão, as associações nacionais dos magistrados (AMB) e dos juízes trabalhistas (Anamatra) ajuizaram, no Supremo Tribunal Federal, ação de inconstitucionalidade (Adin 4.885) em que contestam a validade da Emenda Constitucional nº 41/2003 (“Reforma da Previdência 2”), com base na qual foi instituído o regime de previdência complementar para todos os servidores públicos federais por meio de fundações (Lei 12.618/2012). A ação foi protocolada ontem no STF. O advogado da AMB e da Anamatra, Alberto Pavie Ribeiro, assinala na petição que “essa alteração – sabe-se agora – resultou de ato criminoso (corrupção) perpetrado por integrantes do Poder Executivo em face de membros do Poder Legislativo, como restou decidido por esse egrégio Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal 470”. Assim, para as entidades dos juízes, a reforma previdenciária votada pela Câmara no período dos atos de corrupção ativa e passiva “padece de vício de inconstitucionalidade formal”, já que “não houve a efetiva expressão da vontade do povo por meio dos seus representantes na votação da PEC”. Os homens do Direito precisaram, ao que tudo indica, de sete anos para descobrir que era inconstitucional a decisão do STF, que ratificou a compra dos parlamentares pelos mensaleiros. Ora, se comprar parlamentares é crime, não será crime endossar a compra de parlamentares? Cúmplice de um crime não é criminoso também? Não seriam criminosos a ministra Hellen Gracie, os ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Ricardo Lewandovski, Cármen Lúcia, Menezes Direito e Joaquim Barbosa (sim, também o Joaquim) que, cientes da compra de votos declararam constitucional a tunga dos aposentados? Não seriam os ministros Carlos Britto, Marco Aurélio e Celso de Mello, os votos vencidos no julgamento da ADI 3104, os únicos heróis desse momento sórdido do STF? Mais outras perguntas. A pretensão da viúva e a decisão isolada de um juiz não fazem verão. Farão verão as ações das associações nacionais dos magistrados e dos juízes trabalhistas? Terá o STF a hombridade de reconhecer que há cinco anos tomou a defesa dos bandoleiros que compraram o Congresso Nacional? Encerro com uma última perguntinha: quando irão para a cadeia os juízes que ora mandam para a cadeia os homens cujos atos criminosos um dia defenderam? quarta-feira, novembro 28, 2012
O CONSTRUTOR DE MISTÉRIOS Ney Messias* Há grupos de trabalho investigando por todos os lados. Mas tudo que investigam diz respeito a bens vitais: a carne, o leite, o vestuário, as estradas, os viadutos. Se me perguntassem o que é que um grupo de trabalho deveria investigar com prioridade absoluta, responderia sem hesitar: a maneira mais fácil e urgente de construir mistérios. O grande mal do mundo é a ausência sistemática do misterioso, e a mania demasiadamente científica de desmanchar tudo aquilo que ainda apresenta uma face misteriosa. Claro que o grande sentido da vida é dado pelo mistério da decifração: não existe trabalho que não seja, em certo sentido, a procura da chave de uma charada. Pois se a vida é uma constante decifração do mistério, tão importante é o próprio ato de decifrar como a existência da coisa misteriosa. Por isso os viventes estão divididos em duas espécies, os que decifram mistérios e os que criam mistérios. O grupo dos primeiros está aumentando, e diminuindo a falange dos segundos. Por isso estamos constantemente nos aborrecendo, e tentando, sobre os destroços dos mistérios destruídos, erguer outros para a nossa fome especial de incógnitas. Acreditamos nos discos voadores, na serpente do lago Ness e no Iéti, aquele abominável homem das neves, por absoluta necessidade de ter um mistério à disposição das nossas almas, um mistério que valorize a plana e tediosa sucessão de horas que nos consomem e dos bifes que consumimos. Penso que haverá um dia de generalizar-se o uso da mescalina, da maconha e outros alucinógenos exatamente porque, com essas drogas, podemos penetrar em mundos desconhecidos e indecifráveis. Não é nada difícil criar mistérios. Descobri isso quando era muito menino, ainda na época em que as crianças furtam os doces do armário misterioso da varanda. Foi assim: naquela época remota, e não de muitas abundâncias, abriram em minha casa uma lata de compota de abacaxi. Por qualquer motivo o doce ficou na própria lata, à espera da hora da janta. Quando foram servi-lo à noite, com espanto verificaram que a caldas toda tinha desaparecido, o abacaxi estava seco. Passei a escutar, então, as teorias mais desencontradas a respeito do fenômeno. Uma criada que tinha pavores noturnos, ligados sempre aos vampiros, levantou a hipótese de um animal desses ter sugado a calda. Minha mãe pensava que o suco tinha evaporado com o calor. Uma prima levantou a teorias, mais complexa, segundo a qual,em contato com o ar, o abacaxi mesmo se punha a sugar a sua própria calda, teoria que grangeou alguns adeptos, embora fosse evidente que a compota estava seca de verdade. E eu, que havia bebido de um sorvo só aquela calda, fiquei a assistir a cópia de teorias, aquela soma fabulosa de filosofias a respeito do fato de ter secado uma compota de abacaxi. Nunca esqueci o episódio, e é por isso que sei o quanto não é difícil criar mistérios, e o quanto é fácil destruí-los: bastava que eu dissesse que havias bebido a calda para destruir a graça daquela história. E nisso que penso quando leio que o Chanceler da Cúria Metropolitana da Guanabara, cônego Castelo Branco, falando da substituição da tradicional hóstia pela broa, declarou reconhecer que as modificações introduzidas na missa irão a princípio chocar os católicos... mas "por outro lado, a Igreja conseguirá tirar do povo a impressão de mistério sobre seus ritos tradicionais". É bem assim que ele diz, não lamentando, mas gabando o afinco com que se põe a Igreja a espancar as brumas que coroam o seu lago de mistérios. Não tenho nada com isso. Apenas sorrio de quem se gaba de esfacelar mistérios, tanto mais quanto o que os esfacela é o mesmo que os deve guardar e preservar. Se lhe pudesse dizer pessoalmente alguma coisa diria que o único momento em que me senti sacerdote, e criador, foi aquele em que, menino, bebi às escondidas a calda de uma compota de abacaxi. * Ney Messias foi um dos mais brilhantes cronistas que o Brasil já teve. Como não participava de igrejas literárias ou ideológicas, morreu praticamente desconhecido, em Porto Alegre, em 1970. Boa parte das crônicas escritas enquanto agonizava foram por mim compiladas na antologia O Construtor de Mistérios, hoje só encontradiça em sebos terça-feira, novembro 27, 2012
DE VOLTA AO DESERTO VERDE Há duas semanas, fui revisitar meus pagos. Tinha estado lá pela última vez há 35 anos. Agora, minha filha queria conhecê-los, para entender melhor o pai. E para entender melhor esta volta, retomo depoimento anterior, que escrevi há quase dez anos. Nasci no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha, de quilômetro em quilômetro há um marco de concreto. De seis em seis, há um marco maior. Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos Moreiras, sobrenome paterno. Meu pai me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois, me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais adiante foi só um passo. No lado do Uruguai, no capão de árvores que ainda teimava em existir, vivia Don Floro Rocha, pai de sete guapas morochas e de um só varão, o Gojo. Gessi, uma das gurizas, cuidou de mim naqueles dias. Em 77, quando ia para a França, levei a Baixinha para conhecer aquelas coxilhas e canhadas onde nasci. Pegamos um Fusca em Dom Pedrito e rumamos até a Linha. Uma légua além do obelisco que marca a assinatura da humilhação farroupilha nos campos de Ponche Verde, olhando ao longe o vulto da Casa, coração num ritmo esquisito, o Fusca atolou num barral. Justo em frente à casa do Hilário da Siá Cantilha, que há uns trinta ou mais anos estava doente e às portas da morte. Era tuberculose. Em meus dias de colégio primário, as professoras me recomendavam passar de longe pelo rancho do Hilário e jamais beber água de seu poço, mesmo que a sede apertasse. Pois lá estava o Hilário, eterno, apoiado em um moirão, em carne e osso, mais osso do que carne, era verdade, mas mais rijo que o moirão. Abandonamos o Fusca no lamaçal. Debrucei-me no alambrado e me dispus a alguns dedos de prosa. Eu havia abandonado há cerca de trinta anos aqueles pagos e tinha a impressão que Hilário jamais se afastara daquele poste. Falou de sua doença. Que quase havia batido as botas no ano anterior, fora até mesmo levado para um hospital em Dom Pedrito. — Mas eu senti que iam me matá naquele hospital. Mal senti por perto o bafo da Moira Torta, peguei meus trapo e saí como quem roba daqueles quarto branco. Se não fujo, tava morto. E estaria morto mesmo, pensei. No entanto, ali estávamos charlando, contando as novidades do Ponche Verde, quem havia casado ou morrido. Em minha pressa urbana, me senti definitivamente expulso daquele universo primitivo onde o tempo corria com o vagar de uma lesma, se é que corria. Hilário não entendia porque eu consultava tanto o relógio. Tentei explicar que estava voltando das Europas, onde tudo tinha horário. Hilário era homem informado: — Já me falaro das Oropa. Fica meio pras banda de Passo Fundo, segundo me contaram. E ficava mesmo naquele rumo. Deixei Hilário escorado no moirão e fui revisitar minha infância. Mas já era um intruso naquele mundo de tempo infinitamente lento, preguiçoso. À medida que me aproximava do Cerro da Tala, onde estava a Toca da Onça, um nó foi me estrangulando a garganta. Lá adiante, no Uruguai, frente ao Marco dos Moreiras, o rancho de Don Floro Rocha. No lado do Brasil, minha tapera e a casa do Tio Ângelo. Para nós, piás, era simplesmente a Casa, onde se reunia a família toda. Um cinamomo generoso abrigava os viventes com suas copas, de dia para proteger do sol, de noite do sereno. Cheguei à porta da Casa, acocorei-me em uma pedra de amolar facas, e gritei: “Ô de casa!”. Corina, minha prima, veio lá dos fundos. Não me reconheceu, é claro. “O senhor, quem é?” Balbuciei: “Vim ver o tio Ângelo”. Ele não mais vivia. Eu sabia disso. Falei para identificar-me. Ela me reconheceu: “Negrinho!”. Nos abraçamos chorando. Corininha. Quando ela ia lavar roupas na sanga, eu pegava um caniço de bambu e ia pescar joaninhas. Pescar joaninhas umas ovas. O que queria mesmo era acocorar-me do outro lado do riachinho e ficar olhando, não para as joaninhas, mas para aquela coisa escura e cheia de mistérios, meio que entreaberta, entre as coxas da priminha. Ela sabia que as joaninhas pouco me interessavam e sentia-se muito bem esfregando as roupas no pedregal, frente a meus olhos arregalados. Tio Ângelo era um precursor. Lá no meio do deserto verde da pampa, ouvira falar no tal de rádio e tomara a decisão de ter o seu. Em um raio de léguas em torno ao rancho, nos bolichos de Ponche Verde, Três Vendas, Villa Indarte, Upamaruty, Puntas de Jaguary, Cerrilhada, enfim, onde chegasse a notícia de seu projeto, era visto como louco ou mentiroso, onde se havia visto um pobre diabo com tais luxos da cidade? Mas o homem falava sério e fazia repetidas viagens a Livramento e a Dom Pedrito, de onde voltava sempre de mãos vazias, mas com um jeitão pensativo, de quem pesa as conveniências e inconveniências de um gasto absurdo. Um belo dia, cortou o mais retilíneo e mais alto dos eucaliptos, despiu-lhe os galhos, falquejou-o de forma a deixá-lo quadrado e o pintou de vermelho, enquanto se avolumavam nas imediações o boato de que estava enlouquecendo. Não lhe foi fácil reunir vizinhos para erguê-lo, mediante um complexo sistema de máquinas de alambrar, e os que conseguiu reunir o ajudaram com certa piedade, o homem estava louco mesmo, seria pior contrariá-lo: onde se viu derrubar um eucalipto, pintá-lo de vermelho e tornar a plantá-lo na terra? Mantenho ainda viva a lembrança da operação. Levara um dia todo, o poste colossal fora erguido com quatro fios de arame puxados de árvores próximas pelas máquinas de alambrar. Havia o risco de que algum fio rebentasse, e adeus rancho! Erguido o poste, Tio Ângelo, contente, carneou uma ovelha e, em meio ao churrasco e à cachaça, a vizinhança até mesmo esqueceu aquela torre absurda. Semana seguinte, atrelou um matungo a uma aranha e se tocou para Villa Indarte, no Uruguai. Voltou tarde da noite e à meia-guampa, com um imenso volume quadrado no pescante da aranha. Ainda não era o rádio, apenas duas baterias e um aerodínamo. Instalado o catavento no poste, seu conceito mudou nos bolichos da região, parece que o homem vai mesmo trazer o tal de rádio, dizia-se. O que de fato ocorreu no domingo seguinte, quando tio Ângelo voltou mais uma vez da Villa Indarte, agora com um volume um pouco menor, um imenso Telefunken, e num porre federal. Descera a coxilha cantando, mal pulou da aranha gritou feliz: “agora não preciso cantar mais, tenho quem cante pra mim. E esses hijos de la gran puta china de mierda vão ver o que é rádio”. A notícia correra como um raio na redondeza. Nos dias seguintes não houve tardinha em que não chegassem dois, três vizinhos a cavalo, com um ar meio sem jeito, com o pretexto esfarrapado de uma visita, “onde se viu visita em dia de semana, dia de trabalho”, resmungava feliz tio Ângelo. E judiava dos curiosos, lhes oferecia mate, perguntava sobre as novidades, sempre embaixo do cinamomo antiquíssimo, ao lado do catavento, cujas pás se moviam impelidas pela brisa do entardecer. O sol se escondia, as visitas hesitavam em dizer ao que vinham e tio Ângelo, num misto de desprendimento e vingança, convidava: “o compadre quer passar pra sala, escutar um pouco de rádio?” Com o tempo atenuara-se aquele ímpeto de desforra, como também o complexo de culpa dos vizinhos - por vizinhos entendia-se pessoas que moravam a léguas de distância - e a cada noite tio Ângelo recebia gente vinda de longe para escutar rádio. Ao chegar, já iam desencilhando os matungos, pois a sessão de escuta só terminava lá pela meia-noite. Orgulhoso, tio Ângelo não permitia a ninguém, nem mesmo a mim, mexer nos botões do Telefunken. Qual sacerdote oficiando sua liturgia, solenemente ligava o rádio e girava o dial, perguntando à roda, com picardia, se queriam escutar brasileiro ou castelhano, tangos ou rancheiras, música ou notícias. Tarde da noite, alegava ter de madrugar para o trabalho, a indiada se despedia, encilhava os cavalos e saía perfurando a noite na pampa com vozes que aos poucos morriam nas canhadas. Tio Ângelo então me chamava, “vem cá, guri, o melhor vem agora”. E mudava de onda. Ouvíamos então, silentes, ruídos que pareciam vir de estrelas distantes, línguas estranhas que escutávamos durante horas tentando entender ao menos uma palavra, notícias de outros povos e costumes, canções de outras gentes. A mim, na época, parecia-me impossível que um ser humano pudesse falar outra língua que não os dois únicos idiomas existentes no mundo, o brasileiro e o castelhano. Com o tempo, quando o rádio já não mais constituía milagre, os vizinhos, se passavam por Dom Pedrito, lhe enviavam um chasque pela rádio Ponche Verde, endereçado à Estância do Pau Vermelho, o que fazia tio Ângelo sorrir divertido, não pelo duplo sentido do nome, mas pelo fato de chamarem de estância suas poucas braças de terra. Bueno, agora voltei aos pagos. Fui conduzido por um amigo dos dias de Dom Pedrito, o Pacase, mais a Chica, minha prima, e minha fotógrafa particular. Do obelisco em diante, taperas por todos os lados. Tapera do Ivo, pai de minha prima. Tapera do Dalmácio, seu avô. Tapera do Raul, nosso tio. Mais as taperas da Toto Ferreira, do Hilário e da Siá Cantilha. Tapera do Camilo Morales. Todos morreram e os filhos bateram na marca e se mandaram para o povoado. Tapera do Dr. Christiano Fischer, médico cujo centenário assisti em 1952, quando tinha cinco anos. Só não estava tapera a igreja São Domingos, administrada por meu padrinho de batismo, o Érico Berruti Corsini. Catolicíssimo, fez uma tumba solene para sua mulher atrás da capela. Em 2004, quando andei por Dom Pedrito, soube que vivia em Rivera e tinha 101 anos. Achei que estivesse já mais pra lá do que pra cá e preferi não visitá-lo. Ano passado, uma prima – coincidentemente a que me acompanhou nesta volta à infância - me escreveu. Dizia ter estado com o Berruti. Não acreditei. Pois estava com 107, saudável e lúcido e escrevendo nos jornais de Livramento. Vivito y coleando. O homem atravessou o século passado inteiro! Segundo minha prima, estava recebendo um teólogo italiano em sua fazenda. E ainda lembrava de mim. Era um desses raros homens que podem chamar o papa de “aquele rapaz”. Morreu aos 108. Adelante! Ocorreu que furamos o pneu em plena Linha, justo ao lado do Marco dos Moreiras. Do lado do Uruguai, o rancho de Don Floro Rocha, também tapera. No Brasil, minha tapera e a agora tapera do Tio Ângelo. Em idade já provecta, na faixa dos 60, não conseguíamos descer o estepe, além do mais trancado por uma corrente. Urgia gente mais moça. Náufragos entre duas nações, ficamos à espera de um milagre. Foi quando passou um personagem para mim novo naquela geografia, uma moça de moto com uma filha na garupa. Prometeu ajudar-nos. Que chamaria o Gojo, que ainda ficara num restinho de campo frente à tapera do pai. Me preparei espiritualmente para passar à noite no pampa. Gojo era uns dez anos mais velho do que eu. Estaria caindo aos pedaços – comentei com o Pacase. Mas era o Gojo ou nada e melhor o Gojo do que nada. Dali a meia hora chegou nosso socorro, também em uma moto. Outra moça havia passado de moto pela Linha. O campo havia mudado. Cavalo já pertencia a meu passado. Chegou um paisano de barba e bigode brancos, franzino mas rijo como um touro. Minha memória me traiu, pensei com meus botões. Vai ver que o Gojo era mais novo do que eu. Sem me apresentar, fui logo perguntando pela Gessi. Ele naturalmente não me reconheceu e teve um momento de perplexidade. - Mi hermana? - Si, tu hermana. Eu nasci ali na frente, sou filho do Canário. Deves lembrar de mim. Lembrava, apesar de mais de meio século passado. Mi hermana está en Nova Jorque. - E a Gleci? - Está em Paris. - E as outras? - Ah, uma está em Madri, outra em Dom Pedrito... Uma sensação de raro bem-estar me tomou conta da alma. Mulherada alarifa, barbaridade! Mais esparramadas que filhotes de perdiz. Haviam saído das mesmas grotas que eu, daquele deserto verde onde nasci, e viviam no mundo, em plena civilização. Gojo, e mais alguns outros que haviam chegado, nos trocaram o estepe. Ocorreu-me então uma pergunta: - Que idade tens, Gojo? - 78. Os tauras daqueles pagos não são chegados à morte. Diante de nós, decrépitos urbanos, Gojo parecia um gurizote. Voltando a Dom Pedrito, Pacase falou-me no Dezé. Era o cartorário do Ponche Verde, em meus dias de guri. Sim, eu lembrava do Dezé. Quando morreu? - Não morreu. Está com 99. Decididamente, a Indesejada das Gentes não é muito popular naquelas plagas. De volta a Porto Alegre, fui revisitar dois amigos dos dias de universidade, na flor dos 80. Me assustei com o que me espera, salvo alguma providencial queda de avião. Estão ambos mais para lá do que para cá. A urbe mata. Reposto o pneu, fui até onde nasci. No hallé ni rastro del rancho: ¡sólo estaba la tapera! ¡Por cristo si aquello era pa enlutar el corazón! – como decía Fierro. Logo adiante, ainda em pé mas abandonado aos cardos e à flechilha, o rancho do tio Ângelo. Nem sombra do cinamomo, muito menos do catavento. O mato e o pastiçal fizeram um cerco implacável à tapera, como se, longe do olhar humano, a natureza se entregasse a uma orgia obscena. Fui até a cacimba onde, em 77, ainda me debrucei e bebi, minhas lágrimas se misturando à água salobra. Estava seca, muda e atulhada. E assim foi minha volta ao deserto verde onde nasci. segunda-feira, novembro 26, 2012
MI TAPERA Elias Regules Entre los pastos tirada como una prenda perdida y en el silencio escondida como caricia robada, completamente rodeada por el cardo y la flechilla que como larga golilla van bajando a la ladera está una triste tapera descansando en la cuchilla. Alli, en ese suelo fué donde mi rancho se alzaba, donde contento jugaba, donde a vivir empecé, donde cantando ensillé mil veces al pingo mio, en esas horas de frío en que la mañana llora, cuando se moja la aurora com el vapor del rocío. Donde mi vida pasaba entre goces verdaderos, donde en los años primeros satisfecho retozaba, donde el ombú conversaba con la calandria cantora, donde noche sedutora cuidó el sueño de mi cuna, con un beso de la luna sobre el techo de totora. Donde resurgen valientes, mezcladas con los terrones, las rosadas ilusiones de mis horas inocentes, donde delirios sonrientes brotar a millares ví, donde palpitar sentí, llenas de afecto profundo, cosas chicas para el mundo pero grandes para mí. Donde el aire perfumado está de risas escrito, y donde en cada pastito hay un recuerdo clavado: tapera que mi pasado con colores de amapola entusiasmada enarbola, y que siempre que la miro dejo sobre ella un suspiro para que no esté tan sola. domingo, novembro 25, 2012
PONCHE VERDE, 80 ANOS O primeiro artigo a gente nunca esquece. Foi num jornaleco estudantil, O Pirilampo, que – se não me falha a memória – teve dois números: o primeiro e o último. Eu teria uns quatorze anos. Não lembro bem do artigo em si, mas segundo o bom amigo Pacase, escrevi um editorial intitulado “Esses padres...”, assim mesmo, com reticências. Ao que tudo indica, vêm de longe minhas restrições ao clero. Pacase tem exemplares do jornalzinho em seus arquivos e está em dívida comigo. Há boas décadas lhe cobro esse artigo. Na época – final do governo Goulart – a grande questão nacional era decidir se a reforma agrária já estava prevista na Constituição, ou se seria necessário reformá-la para dividir as terras. Lançamos então – éramos uns cinco ou seis pivetes, na faixa dos 14 ou 15 anos – um manifesto no Pirilampo, em defesa da reforma agrária, solidamente fundamentado em Direito Constitucional. Era impresso na gráfica do Ponche Verde, de propriedade de Bernardo Munhoz, jornalista e fazendeiro. Na mesma semana, o jornal nos desancava em furioso editorial, assinado pelo Dr. Márcio Bazan. O editorialista, advogado ao estilo antigo, em um texto pontilhado de muito latim, alertava a comunidade para os perigos do comunismo. O que preocupava as "forças vivas do município" era saber onde nós, constitucionalistas imberbes, havíamos encontrado tantos argumentos jurídicos. Só podia ser coisa de comunista. Não estavam longe da verdade. Naquela época, chegavam a Dom Pedrito dois exemplares do jornal Brasil, Urgente, editado em São Paulo por dominicanos de esquerda. Um dos exemplares era nosso, o outro do partido. Quem os distribuía era o Gerson Prabaldi, operário e militante, um dos raros comunistas que até hoje merece meu respeito. Funileiro, patrão de si próprio, lutava por uma sociedade mais justa, nada a ver com os filhos da classe média que fizeram carreira e fortuna montados nos ideais socialistas. Final de tarde, fechava a funilaria, pegava uma bicicleta e saía a fazer seu apostolado, o porta-cargas repleto de ideologia. Líamos as revistas China e Unión Soviética, em espanhol, mais aquele catecismo em edições mensais do PC, a revista Problemas, e muita imprensa de esquerda. O funileiro acreditava na utopia e dedicava suas horas de lazer à construção do socialismo. Homem de uma era pré-televisiva, na qual mesmo os jornais que eventualmente chegavam a Dom Pedrito desconheciam o que se passava no mundo soviético, Gérson acreditava piamente nos panfletos vindos de Pequim ou Moscou. Fosse um dia ao paraíso que louvava, ou tivesse melhores fontes de informação, tenho certeza de que faria marcha à ré. Era homem desinformado, mas honesto. Em sua oficina, rodeado de pneus e aros de bicicletas, recebi minhas primeiras aulas de marxismo, baseadas em um livrinho de Georges Politzer, Curso de Filosofia - Princípios Fundamentais. Primeiras e primárias: sua argumentação simplória não me convencia. No entanto, este divulgador menor foi bastante significativo. Em sua tentativa de trocar em miúdos o marxismo para um público operário, Politzer despe a doutrina de sua retórica e a exibe em sua indigência. Nem por isso deixo de admirar o apóstolo da bicicleta, apesar de sua visão simplista do mundo. Com sua assessoria, argumentos para debate ideológico ou constitucional era o que não nos faltava. Enquanto os oblatos nos falavam em corpo místico de Cristo, estávamos mergulhados em estudos de materialismo dialético. Hoje, sabemos que as duas religiões pouco diferem uma da outra. Na época, eu julgava estar manipulando um método científico para encontrar um pouco de luz em meio às trevas clericais. Esconjuradas as trevas, acabei jogando no lixo o suposto método científico. Foi precioso como instrumento de libertação de uma fé. Eu conseguira escapar de uma religião, com não pouco sofrimento. Não estava disposto a submeter-me ao jugo de outra. No dia seguinte às catilinárias do Ponche Verde, estávamos batendo às portas do Dr. Munhoz, de Constituição e Lei de Imprensa em punho, indignados. Exigíamos direito de resposta, o que nos foi concedido. Apelávamos aos sentimentos cristãos da comunidade, talvez até antecipando a dita teologia da libertação. Título: Exigência de Cristo: amor aos comunistas Para não fazer feio ante o latinista, jogamos cá e lá alguns datas venias e quousque tandens na réplica, mais ou menos ao azar, assim como quem joga sal em uma picanha. O artigo foi publicado, cercado de editoriais. Novo mistério, nosso conhecimento do latim dos juristas. O único a matar a charada foi o padre Francisco, outro oblato vindo da Alemanha, professor de matemática: "Focês non me enganan, focês lerram as páchinas finais do Aurrélio". Na época, havia uma edição do Aurélio com expressões latinas ao final. Mas pesquisa nunca foi pecado. Em meio a réplicas e tréplicas, um de nossos professores de português – o João Bosco Dihl – começou uma frase com um pronome oblíquo. Éramos jovens mas rigoristas quanto à gramática e não perdemos a vaza. Até hoje não esqueço nossa resposta ao final do artigo: "Admoestamos o ínclito mestre da língua vernácula que as mais elementares regras gramaticológicas coarctam o emprego do pronome oblíquo nos proêmios de uma frase". A resposta veio curta e grossa: "Rui Barbosa não foi presidente da República". Gerson Prabaldi voava em sua bicicleta, difundindo a polêmica. Me consta que as edições do semanário se esgotaram naqueles dias. Dia 09 passado, o Ponche Verde completou 80 anos de existência. Junto a outros companheiros daqueles dias, fui homenageado com um diploma. A lembrança me comove e me remete àquelas polêmicas de adolescência. Receber o diploma foi ainda uma ocasião de revisitar Dom Pedrito, minha gente e minha tapera. Conto mais adiante. sábado, novembro 24, 2012
PORQUE FIZ OS CURSOS QUE FIZ Leitor quer saber se fiz curso de Filosofia e doutorado em Letras apenas para defender a tese de que os cursos de Filosofia e Letras são inúteis. Nada disso, meu caro. A conclusão é a posteriori. Antes de ter feito estes cursos, não tinha noção alguma de suas inutilidades. Ocorre que, quando jovens, ao escolhermos uma universidade, não temos noção alguma do que vamos encontrar. Até pode ser que alguém nascido em família de acadêmicos possa ter uma idéia do que o espera. Não era meu caso. Eu era filho de camponeses e jamais tive quem me orientasse. Quando você escolhe Medicina, já se imagina uma espécie de Dr. Kildare, aliviando o sofrimento dos enfermos. Entra na profissão e cai na dura realidade do pagamento ínfimo dos convênios. Tem de desdobrar-se em dois ou três empregos para levar o pão para a casa. Pode até ter sucesso na carreira e muitos chegam lá. Mas isto não é para todos. Escolhe Direito e se imagina um bem sucedido defensor dos fracos e oprimidos, usando sua tribuna para fazer justiça aos que dela necessitam. O Direito Penal sempre atrai os jovens idealistas. Quando você vai ver, se transformou em um burocrata encerrado em um escritório, analisando questões do Direito Tributário. Isso quando você não acaba dirigindo um táxi. Em minha adolescência, li um livro de Will Durant, onde ele listava um mínimo de autores que um homem culto deveria conhecer. Começava com Platão e Aristóteles, passava por Agostinho e Tomás de Aquino, incluía Descartes, Rousseau, Montesquieu e por aí vai. Fui atrás desses autores todos. Eu vivia então em Dom Pedrito, onde havia apenas uma pequena livraria, que só tinha livros didáticos. Ainda pivete (teria uns quinze anos) viajei a Santa Maria, cidade universitária, onde havia uma sucursal da livraria Globo. Pedi para o balconista ir baixando os livros de minha listinha. Tive sorte. A editora Globo, nos anos 50 e 60, montou uma excelente coleção, a "Biblioteca dos Séculos", que continha boa parte dos livros fundamentais para um homem que se pretenda culto. O que eu não sabia é que a Suma Teológica tinha dez volumes. Ainda bem que naquela época ainda não fora traduzida. Hoje tenho os dez volumes, em português e latim, quando quero rir um pouco volto à leitura do Boi Mudo. Não li todos os livros sugeridos por Durant, mas li muitos deles. Se hoje considero que nem todos eram fundamentais, foi bom lê-los para saber que não eram. Daí meu apreço pela filosofia. Achei que se enveredasse por estes rumos, entenderia o homem e o mundo, em suma, a vida. Fiz vestibular também para direito. Primum vivere, deinde philosophare. Como considerava que a filosofia não me daria de comer, pensei em garantir-me com a advocacia. Foi uma bela aventura intelectual começar com os gregos, socráticos e pré-socráticos. Os Diálogos de Platão me fascinaram, particularmente o Fédon e o Crátilo. Até hoje não esqueço – e seguidamente cito – as considerações do grego sobre as palavras. Crátilo considera que os nomes das coisas estão naturalmente relacionados com as coisas. As coisas nascem — ou são criadas, descobertas ou inventadas — e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. Já Hermógenes pensa que as palavras não são senão convenções estabelecidas pelos homens com o propósito de entender-se. As coisas aparecem ou se apresentam ao homem e este, defrontando-se com a coisa recém nascida, a batiza. O significado das coisas não é o manancial do bosque, mas o poço escavado pela mão do homem, diz Camilo José Cela, comentando Platão. O animal doméstico e familiar do qual há muitas espécies e todas ladram, poderia ter-se chamado lombriga, e o che muove il sole e l'altre stelle, de Dante, poderia chamar-se reumatismo, se assim os homens o quisessem. No curso, fiz quatro anos de História da Filosofia. À medida que a filosofia avançava, tornava-se obscura e confusa, a ponto de confundir-se com a poesia. Foi quando perdi meu entusiasmo pela coisa. Abominei os filósofos contemporâneos. Terminei o curso por teimosia. Quanto ao Direito, lá pelo segundo ano já tive consciência de que não conseguiria advogar. Teria de usar terno e gravata e usar linguagem de arcano. Teria também de atualizar-me o tempo todo, dada a fúria legislativa do Brasil. Sem falar que um advogado não pode afastar-me muito de seu escritório. E eu queria viajar. Optei então pelo jornalismo. Terminei o curso também por teimosia. Quando criticasse o Direito, não queria ouvir objeções tipo “ele critica o Direito porque não conseguiu concluir o curso”. Quanto ao doutorado em Letras, nada tinha a ver com doutorado. Era uma chance de curtir Paris e eu queria curtir Paris. Se o preço a pagar era um ensaio de algumas centenas de páginas, eu o pagava com prazer. Ou seja, não fiz Filosofia ou Letras só para concluir que estes cursos eram inúteis. Minha vida aventurosa me levou a estas opções. E por que são inúteis? Porque tanto Filosofia como Letras você pode estudar no conforto de sua casa, sem ter de ouvir aulas monocórdias nem ler livros inúteis. Em um curso acadêmico, você será obrigado a ler disciplinas e obras que não interessam. Em Letras, por exemplo, terá de fazer cadeiras de Teoria Literária e Lingüística, puro lixo intelectual que só serve para dar emprego a professores de Teoria Literária e Lingüística. Se optar pelo autodidatismo, você pode se dar ao luxo de ler apenas o que lhe traz prazer. Tenho um amigo, o Carlos Freire do Amaral, que hoje fala cerca de cem línguas. Deve ter estudado regularmente umas dez. As outras, ele as aprendeu por conta própria. No aprendizado de línguas, o mais difícil são as primeiras quinze línguas. Depois, como diria Heráclito, panta rei. Tudo flui. Considero um absurdo, por exemplo, cursos universitários de espanhol para brasileiros. Quatro anos para aprender uma língua que se aprende em seis meses. Sem precisar professor algum. Pegue livros e jornais em espanhol, ouça música para adquirir a pronúncia e consulte uma gramática para pegar algumas regrinhas. Em quatro anos, pode-se aprender muito bem quatro ou cinco línguas. Jamais fiz curso de espanhol e devo ter traduzido uns quinze livros do espanhol. Um outro leitor acha que estou sendo muito utilitarista, afinal nem só de pão vive o homem. Quanto à última premissa, de acordo. Que as pessoas estudem o que lhes dá mais prazer, seja sânscrito ou grego, seja metafísica ou matemática profunda. O que afirmo é que muitas áreas do conhecimento dispensam universidade. Admito até que alguém postule uma bolsa no estrangeiro para estudar coisas inúteis. Sempre voltará com um acervo útil: o conhecimento eficaz de uma outra língua e de uma outra cultura. Foi o que fiz. Minha tese é de utilidade ínfima, apenas esclarece um pouco uma obra literária. O mais importante foi conhecer Paris, França e Europa. E este é o legado mais importante de uma bolsa. sexta-feira, novembro 23, 2012
CÚMPLICE DOS MENSALEIROS ASSUME PRESIDÊNCIA DO STF O país todo parece estar obnubilado pelo brilho da careca de Joaquim Barbosa. Por sua atuação no julgamento do mensalão, já foi lançado por ingênuos como candidato à Presidência da República. A imprensa toda, demonstrando um racismo empedernido, saúda o primeiro ministro negro do STJ. Que interessa a cor da pele? O que importa é que tenha competência, isenção, cultura jurídica. Outros, mais apressados, defendem que a nomeação de Barbosa evidencia o absurdo da lei de cotas: o afrodescendentão teria sido nomeado por seus próprios méritos. “O novo presidente tem origem humilde. Filho de pedreiro, aos 16 anos viajou sozinho à capital federal, onde trabalhou como faxineiro e em uma gráfica. Formou-se em Direito pela Universidade de Brasília, foi oficial de chancelaria e advogado de órgãos públicos até iniciar sua carreira como procurador”. Devagar com o andor, gente. Como por seus próprios méritos? Barbosa pode ter chegado à magistratura por seus próprios méritos. Mas foi nomeado ministro exatamente por ser negro. Lula quis ser o primeiro presidente a colocar um negro na Suprema Corte e hoje deve estar se arrependendo amargamente de sua idéia. Ao assumir a Presidência do STJ, Barbosa defendeu o tratamento igualitário das pessoas que apelam ao Judiciário. "É preciso ter honestidade intelectual para dizer que há um grande déficit de justiça entre nós. Nem todos os brasileiros são tratados com igual consideração quando buscam o serviço público da Justiça. O que se vê aqui e acolá, nem sempre, é claro, é o tratamento privilegiado, o by-pass (ignorar, em inglês), a preferência desprovida sem qualquer fundamentação racional", disse Barbosa durante seu discurso. Quem está afirmando isto é o homem que votou pela instituição das cotas raciais. Isto é, defendeu a idéia de que negro tem mais direitos que branco só por ser negro. Votou pelo tratamento privilegiado, pela preferência desprovida sem qualquer fundamentação racional. Pior ainda, rasgou a Constituição ao fazer letra morta do artigo que versa sobre a igualdade de todos perante a lei. A bem da verdade, desta decisão racista participaram todos os demais membros do egrégio sodalício - como eles, ministros, adoram definir o STF. Não bastasse esta manifestação evidente de racismo às avessas, Barbosa criou agora uma nova categoria, a dos jornalistas brancos. Quando o jornalista Luiz Fara Monteiro, da TV Record, perguntou-lhe se estava "mais tranquilo, mais sereno", após a sua primeira sessão presidindo o STF, Barbosa reagiu com animosidade. "Logo você, meu brother! Ou você se acha parecido com a nossa Ana Flor [repórter da agência Reuters, que é loira]? A cor da minha pele é igual à sua. Não siga a linha de estereótipos porque isso é muito ruim. Eles [os demais jornalistas, majoritariamente brancos] foram educados e comandados para levar adiante esses estereótipos. Mas você, meu amigo?" Fara é negro. Ou seja, há perguntas que um jornalista negro não pode fazer. Só são admissíveis em jornalistas brancos. Assim é o homem que a imprensa hoje saúda como salvador da pátria. Os jornalistas esquecem – e parece que sou o único a lembrar – que o juiz que hoje pune a compra de votos é o mesmo que ratificou a legislação decorrente da compra de votos. O Joaquim Barbosa que hoje é visto como herói é o mesmo Joaquim Barbosa que votou pela improcedência da ADI 3104/07, sacramentando assim a compra de votos. O STF que hoje envia mensaleiros para a cadeia é o mesmo que um dia rasgou a Constituição, avalizando a tunga dos aposentados e negando o direito adquirido. Ora, direis, o ministro não sabia. Difícil não saber, quando o mensalão foi denunciado em 2005. Mesmo que Joaquim Barbosa – aliás, como Lula – de nada soubesse, Joaquim Barbosa votou contra o direito adquirido. Será por isso que o STF faz boquinha de siri quando se fala em anular a lei comprada. Afinal seus juízes avalizaram a compra de parlamentares. Barbosa, caríssimos, foi cúmplice dos mensaleiros. E jornal algum fala nisso. quinta-feira, novembro 22, 2012
CRONISTA CAI NO CONTO DO DOCUMENTÁRIO Comentei, há mais de ano, filme que estava sendo exibido nas salas de cinema no Brasil, Diário de uma Busca, de Flávia Castro. Segundo a Folha de São Paulo, o filme entusiasmou o público e a crítica franceses. Para o jornal, “o filme é um mergulho na história pessoal da diretora, que o realizou para entender as condições obscuras da morte de seu pai. Celso Castro foi encontrado morto em 1984, em Porto Alegre, na casa de um alemão suspeito de fazer parte de uma rede de ex-nazistas. (...) Por meio de cartas de Celso, ela conduz o espectador à realidade da clandestinidade, da militância dos jovens que faziam a luta armada no turbilhão da grande história: o Brasil, a Argentina e o Chile dos anos 60 e 70. Paris é a última etapa antes da anistia de 1979, da volta ao Brasil e do drama da morte do pai, em circunstâncias que o filme se presta a tentar elucidar”. Agora foi a vez do emérito cronista Contardo Galligaris cair no conto do documentário. Lemos em sua coluna na Folha de hoje crônica sobre uma menina que preferiu ver 007 ao filme de Flávia Castro: - Assisti, nesses dias, a um documentário bonito e tocante, Diário de uma Busca, de 2011. A autora, Flávia Castro, investiga a morte misteriosa de seu pai, Celso Afonso Gay de Castro. Junto com um amigo, também militante de esquerda durante a ditadura, Celso morreu ou foi morto, em 1984, no apartamento de um alemão que teria sido oficial nazista. Não morreu nem foi morto. Se suicidou. E o alemão nunca foi oficial nazista. Que tal embuste engane franceses ou paulistas, até que se entende. São jornalistas que não conhecem Porto Alegre e muito menos o que ocorreu naqueles dias. A morte do pai da cineasta não teve mistério algum e nada tem a ver com rede de ex-nazistas. A moça quer transformar um maluco – seu pai – em herói. Vivia em Porto Alegre um velhote, obscuro sargento da Wehrmacht – e não oficial da SS, como foi propalado então – que nada tinha a ver com os crimes do nazismo nem era procurado por nenhum tribunal. Corria a lenda de que teria em seu apartamento um tesouro secreto nazista. Castro e mais um outro bobalhão decidiram assaltá-lo. Após tomar um porre – no Fusca que utilizaram havia uma garrafa de uísque quase vazia – invadiram o apartamento do alemão. Quem os recebeu foi sua mulher, que foi agredida. O velhote reagiu com uma bengala. Em meio a isso, foi disparado um tiro, que não feriu ninguém. Mas alertou os vizinhos, que chamaram a polícia. Encurralados, Castro e seu assecla se suicidaram. Um matou o outro e depois se suicidou. Dois militantes de esquerda assassinados no apartamento de um nazista, foi a primeira versão a correr nos jornais. Primeira pergunta: que faziam dois militantes de esquerda no apartamento de um nazista? O caso acabou sendo encerrado por Luís Pilla Vares – jornalista da Zero Hora, também trotskista – conhecido por seu itinerário intelectual de Trotsky a Sirostky. Pilla atestou o duplo suicídio e o episódio foi abafado. Flávia Castro pode enganar os franceses, mas não engana quem viveu em Porto Alegre na época. O duplo suicídio foi uma besteira de dois desvairados que acreditavam na lenda de gibi de um tesouro secreto nazista. Até aí, estamos no território da vigarice intelectual, e vigarice intelectual nunca foi crime no Brasil. O que espanta é ver um jornalista gaúcho, que vive na geografia e história dos fatos, engolir tais potocas. Na ocasião, Daniel Feix escrevia na Zero Hora: Uma das melhores e mais emocionantes crônicas do exílio produzidas pelo cinema nacional – para o mestre do documentário João Moreira Salles trata-se da melhor – Diário de uma Busca estreou em cartaz esta semana no CineBancários e no Cine Santander. O filme, que foi premiado em Gramado, no Rio, em Biarritz e em Punta del Este, está começando sua carreira no circuito brasileiro por Porto Alegre. Isso porque Diário conta uma história porto-alegrense – com abrangência e interesse internacionais. No filme, a diretora Flávia Castro investiga a misteriosa morte de seu pai, Celso Afonso Gay de Castro, ocorrida em 4 de outubro de 1984. Jornalista e militante de esquerda que viveu muitos anos fora do país fugindo dos militares, ele tinha 41 anos à época. A versão inicial da polícia era de que Celso e seu parceiro Nestor Herédia (que também morreu no local) invadiram o apartamento do alemão e ex-cônsul do Paraguai Rudolf Goldbeck, localizado na Rua Santo Inácio, no Moinhos de Vento, para um assalto. Foram encurralados e, por isso, teriam se suicidado. O caso, no entanto, nunca foi totalmente esclarecido. Flávia e alguns familiares, sobretudo o seu irmão João Paulo, o Joca, vão fundo na história em busca de respostas. Ouvem amigos de Celso, outros militantes, policiais, peritos e repórteres que investigaram o caso, além de vasculhar documentos e visitar locais onde ele morou no Chile, na Argentina, na Venezuela e na França. Só deparam com mais dúvidas. Vamos por partes. É preciso ser muito desinformado para escrever tais bobagens. Não se trata de “uma das melhores e mais emocionantes crônicas do exílio produzidas pelo cinema nacional”. E sim de uma das maiores mentiras do exílio produzidas pelo cinema nacional. Os exilados sempre contaram mentiras, tanto na Europa como na volta, numa tentativa canhestra de justificar suas vidas estúpidas. Todo marxista é, ipso facto, um mentiroso. A mentira é uma segunda natureza de todo comunista. Disto não escapou Celso de Castro que cumpriu o que chamávamos em Paris de la grande randonée. Derrotadas no Brasil, as esquerdas foram fazer a revolução na Argentina. Derrotadas na Argentina, foram apoiar o marxista Allende no Chile. Derrotadas no Chile, migraram para Portugal, para apoiar um outro maluco, Otelo Saraiva de Carvalho. A Celso, só faltou este último passo. De repente, até virou jornalista. Eu o conheci e vivi em sua época. Não tenho notícias de que tenha trabalhado em qualquer jornal de Porto Alegre. Vasculhar documentos e visitar locais onde ele morou no Chile, na Argentina, na Venezuela e na França podem até render um filme com vocação turística, mas jamais trará alguma luz ao gesto de dois malucos, que estavam bêbados na hora do crime. Não vi o filme nem pretendo vê-lo. Mas, pelo que leio nos jornais e na crônica de Calligaris, a vítima é fotografada como um nazista, fato que ninguém provou. E os criminosos são vistos como heróis, sabe-se lá de qual causa. Nunca foi tão fácil mentir. O século foi perpassado de biografias mentirosas, como as de Lênin, Stalin, Mao, Luís Carlos Prestes, Castro, Che Guevara. O triste nisto tudo é ver uma filha mentindo descaradamente para resgatar a vida estúpida do próprio pai. E um cronista que se pretende inteligente caindo na potoca da moça. VEJA VIRA MORALISTA? Do Marcus Rossi, recebo: Como assim vira? Isso aconteceu agora na ultima edição? Sempre foi moralista e ultimamente está atacando com a força de um Vaticano. A edição anterior o J.R. Guzzo escreveu aquele artigo idiota das cabras e espinafres para falar dos homossexuais, sem falar das carolices habituais. Abraço. quarta-feira, novembro 21, 2012
VEJA VIRA MORALISTA A última Veja não resistiu ao jornalismo marrom e deu sua capa à prostitutazinha catarinense que fez leilão de sua virgindade. Até aí, nada surpreendente, a revista está gostando cada vez mais de atrair o populacho. Veja raramente comenta um filme ou livro que preste. Comenta o que o povão gosta. É direito seu. Mas o que é difícil de engolir é a pergunta retórica que se faz a mais importante revista do país. Será que estamos virando uma sociedade em que tudo se compra? Santa ingenuidade! Tudo sempre foi comprável neste país, desde o corpo de uma mulher aos votos de um congressista. Para o redator, até parece que vivemos em uma sociedade onde sempre vigeu a ética. A indignação da revista teria talvez algum sentido se a prostituição fosse crime no Brasil. Não é. O que parece chocar no caso é o fato de a menina ter vendido suas primícias. Mas se é normal vender o corpo, por que não vendê-lo mais caro? Com um valor agregado, o não-uso. Se é que não foi usado. Não há como conferir. “O mercado é a melhor ferramenta para criar e distribuir riquezas, mas há um enorme perigo em acreditar que se possa pôr um preço em tudo. Valores familiares, ideais e senso cívico são inegociáveis” – afirma a reportagem. Veja de repente virou moralista. Desde quando valores familiares, ideais e senso cívico são inegociáveis? São perfeitamente negociáveis, tanto que estão sendo negociados. A membraninha da moça foi avaliada em 1,6 milhão de reais. Ora, milhões de meninas devem estar sonhando com uma proposta destas. Está estipulado que a contrapartida deve durar uma hora. Só mesmo um Maluf ou Zé Dirceu para faturar tanto em tão pouco tempo. Sem falar que a moça não prejudica o erário nem gera leis espúrias. Veja aponta, sem ousar afirmar claramente, para a imoralidade da prostituição. Ora, ética depende de cada um. Se a lei é coercitiva, a moral não o é. Cada um tem a sua. Pode ferir certos setores da sociedade, mas crime não é. Curiosamente, a decisão da moça de vender seu hímen tem sido vista pela imprensa como um direito seu, jamais como prostituição. Que é um direito dela, disso não resta dúvidas. Como tampouco restam dúvidas de que é prostituição. Não que eu tenha restrições ao ofício. Mas as coisas devem ser chamadas pelo nome. Quem não gosta de um milhão e meio de uma tacada só? No que a mim diz respeito, depende. Se alguém me desse tal bolada para promover um bom livro, eu aceitaria prazerosamente. Mas nutro um sonho. Irrealizável, é claro. Adoraria que uma agência me oferecesse não um, mas cinco milhões de reais, para dizer uma palavrinha louvando a Pepsi. Eu teria sumo prazer em dizer não. Princípios é para quem os tem. Antigamente, falava-se em um “homem de princípios”. As gerações novas certamente não conhecem a expressão. Adelante! Prostituição é vender o corpo? Quantas mulheres não o vendem, ao leiloá-lo a eventuais maridos? O mundo está cheio de mulheres em leilão, dispostas a entregar-se a quem paga mais. Só que não se vendem no varejo. Mas por atacado e a um só cliente. O amor sublime amor é coisa dos tempos das cruzadas. Tudo depende de assessoria de imprensa. Quem era Marilyn Monroe senão uma vagabundinha que se entregava aos homens do poder? Alguém acha que Jaqueline Kennedy casou com Onassis por seus belos olhos? Ocorre que no mundo das artes e da política tudo é permissível. E tudo se transfigura numa aura de liberalismo e sofisticação. O insólito no caso da catarinense é o preço. Insólito também é o gesto do cliente. É preciso ser muito pobre de espírito – e rico em dinheiro – para pagar tal preço por um reles capricho. E com regras definidas. Como em qualquer puta de rua, não pode beijar na boca. Nem tentar outras modalidades que não o papai-mamãe. Haja panacas neste mundo. Se eu pago um milhão e meio, quero tudo, ora bolas. Além do mais, a moça está inflacionando o preço dos hímens. Virgens se consegue por muito menos, nas boas casas do ramo. Veja apela a Kant para analisar o caso da catarinense. “Um pensador moral como Kant discorda. Trocar sexo por dinheiro é degradante para ambos os parceiros, pois fere a dignidade humana. ‘O homem não pode dispor de si próprio como se fosse uma coisa; ele não é sua propriedade’”. Ou o redator quis matar um mosquito com um canhão, ou quis demonstrar erudição. Voltamos à batida e obsoleta noção de coisificação do ser humano, muito em voga nos anos 70, por obra das feministas. O homem toda ora vende seu corpo, seja para um banco, uma loja, enfim, uma empresa qualquer. Neste sentido, a prostituição tem até uma vantagem. Enquanto a mulher cede seu corpo, seu espírito permanece livre. A revista chama o “filósofo” Michael Sandel, estrela em Harvard, cujo livro O que o Dinheiro Não Compra discute os limites éticos do mercado. Sandel disse à Veja que os casos de Ingrid Migliorini e do mensalão são exemplos da aplicação da lógica de mercado em domínios em que ela deveria ficar ausente. O “filósofo” está confundindo as coisas. A venda do hímen da catarinense pode ser uma transgressão ética, pelo menos para alguns. A compra de votos é crime. Nestes dias que correm, a reportagem de Veja parece mais os conselhos de uma tia velha, daquelas que ainda acreditam em valores como virgindade e moral familiar. terça-feira, novembro 20, 2012
Em homenagem à data: ARMADILHA PARA NEGROS * Ainda há pouco, os movimentos negros brasileiros reivindicavam a eliminação do item cor nos documentos de identidade. Com a malsinada lei de cotas que hoje assola o ensino superior, os negros insistem em declarar a cor na inscrição no vestibular. Estes mesmos movimentos negros sempre consideraram que qualquer critério supostamente científico para determinar a cor de alguém é racista. Quem então é negro para efeitos legais? No caso da lei estadual no Rio e do projeto de lei federal, o critério é o da auto-declaração. Pardo ou negro é quem se considera pardo ou negro, mesmo que branco seja. Ora, neste país em que impera a chamada lei de Gérson, não poucos brancos se declararam negros no último vestibular da UERJ, a primeira universidade pública brasileira a estabelecer o sistema de cotas. Grita dos líderes negros: vamos determinar cientificamente quem é branco e quem é negro e processar os brancos que se declaram negros. Ou seja, as palavras de ordem da afrodescendentada são mais cambiantes que as nuvens. Mas mudam num só sentido, na direção de obter vantagens para os negros, não só dispensando méritos como também passando por cima dos eventuais méritos de quem se declara branco. O atual presidente da República está longe de ser o primeiro apedeuta a assumir o poder neste país. Câmara e Senado estão repletos de analfabetos jurídicos, que nada entendem da confecção de leis nem sabem sequer distinguir lei maior de lei menor. Embalados por palavras de ordem estúpidas, em geral oriundas dos Estados Unidos, criam leis irresponsáveis, com a tranqüilidade de quem não precisa prestar contas a ninguém. É o caso da lei de cotas. Só agora, após o vestibular da UERJ e de uma enxurrada de ações judiciais, argutos analistas descobriram que a famigerada lei fere o artigo 5º da Constituição: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza." Não bastasse esta tremenda mancada jurídica, que daqui para frente só servirá para entupir ainda mais os já entupidos tribunais — gerando grandes lucros aos advogados, os reais beneficiados pela lei de cotas — o presidente da República, mal assumiu o poder, sancionou lei que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino Fundamental e Médio. As aulas abordarão desde a história da África e dos africanos até a luta dos negros no Brasil. A medida é de um racismo evidente. E por que não a História de Portugal e a luta dos portugueses no Brasil? Ou a história da Itália e as lutas dos italianos? Ou a história do Japão e a luta dos japoneses? O Brasil é um cadinho de culturas e a contribuição africana a seu desenvolvimento está longe de ser a única ou a mais importante. O estudo da história afro-brasileira tem no entanto suas complicações. Para os próceres do movimento negro, não basta historiar a cultura afro-brasileira. É preciso embelezá-la. É o que se deduz da proibição do livro Banzo, Tronco e Senzala, de Elzi Nascimento e Elzita Melo Quinta, na rede pública do Distrito Federal por ordem do governador Joaquim Roriz, em acatamento ao pedido do senador petista Paulo Paim. Um garoto teria ficado impressionado com as informações contidas no livro dizendo que os "negros perdiam a condição humana assim que eram aprisionados na África para se tornarem simples mercadoria à disposição dos brancos" e que aprisionar os negros não era difícil. "Principalmente, depois que os traficantes passaram a contar com o auxílio de negros traidores que prendiam elementos de sua própria raça em troca de fumo, cachaça, pólvora e armas." "Qual é a auto-estima de uma criança negra quando recebe um livro que diz que, se seu povo um dia foi escravo, os culpados foram os negros, e não os europeus da época, mercadores de escravos?" — pergunta Paim. O deputado parece ignorar — ou propositadamente omite — o fato de que a escravidão não é invenção dos europeus. Ela já está na Bíblia e em momento algum é condenada pelos profetas ou patriarcas. Nem mesmo Paulo, reformador do Livro Antigo, a condena. Foi norma na Grécia antes de a Europa existir. Séculos antes de o primeiro navio negreiro europeu aportar no continente africano, ela lá já existia, sem a interferência do Ocidente. O presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, que o diga. Comentando as reivindicações dos movimentos negros, identificou-se como descendente de uma rica família de senhores de escravos e perguntou se alguém iria pedir-lhe indenização. Ainda bem que não o fez em jornais do Distrito Federal, ou seria censurado pelo governador Joaquim Roriz. Que os chefes tribais negros facilitavam a tarefa dos negreiros, vendendo escravos de outras tribos, isto tampouco é ignorado. Vendiam e continuam vendendo até hoje, em pleno século XXI. Na Mauritânia, Sudão e Gana, no Benin, Burkina Fasso, Mali e Niger, a escravidão ainda persiste como nos tempos dos navios negreiros. Ano passado, a GNT mostrava brancos europeus comprando escravos no Sudão. Não que fossem negreiros. Eram representantes de Ongs européias, que compravam negros para libertá-los. O propósito pode ser nobre. Mas toda procura gera oferta e os dólares dos ongueiros só serviram para estimular o tráfico de escravos. Esta é a história da África. E se algum autor relega a escravidão para tempos passados, o livro está desatualizado. A nova lei assinada pelo presidente da República acrescenta ao calendário escolar o dia da morte de Zumbi (20 de novembro) como o Dia Nacional da Consciência Negra. Esta ambição patrioteira de ter heróis, típica de países subdesenvolvidos, levou políticos negros a elegeram Zumbi como herói da raça. Ora, o herói negro também era proprietário de escravos. Como é que ficamos? Irão as autoridades censurar qualquer livro que ateste esta condição de escravagista de Zumbi? Ao defender os sistemas de cotas na universidade, os negros caíram em uma tosca armadilha. Podem hoje ter facilidades na obtenção de um diploma. Mas quem, amanhã, irá contratar os serviços de profissional que entrou na universidade pela porta dos fundos? Ao exigir a inclusão da história africana nos currículos, caíram em armadilha mais sofisticada. A história da África é a história das guerras tribais e da escravidão, da lapidação por adultério, da mutilação física como punição e da mutilação sexual como costume. Democracia, direitos humanos, liberdade de imprensa, emancipação da mulher, são instituições desconhecidas no continente. Seis mil meninas têm o clitóris extirpado, diariamente, em vinte países do Oriente Médio e da África. Por barbeiros locais ou parteiras, com instrumentos não-esterilizados. A África, até hoje, está mais para Idi Amin Dada do que para Mozart. Mais para Bokassa que para Einstein. Estudar sua história, seja a passada, seja a presente, não leva criança alguma a nenhuma auto-estima. Jamais tivemos leis Jim Crow — Em crônica passada, comentei o sistema de cotas para negros na universidade e o estudo obrigatório da História africana nas escolas brasileiras. O artigo rendeu uma saraivada de mensagens, em geral iradas, nas quais invariavelmente sou acusado de racista. “A doença do racismo é uma invenção européia” – escreve um dos leitores – “Você não pode infetar uma pessoa com a doença sem esperar ficar doente. Seu artigo mostra a doença que você ainda tem”. Tantas foram as objeções, que responder a todas é impossível. Atenho-me então a comentar os pontos mais recorrentes, como racismo, sistema de cotas, escravidão e história da África. Deixo de lado minha surpresa ao tomar conhecimento de que os hutus e tutsis que se cortam aos pedaços em Ruanda estão contaminados por uma invenção européia. Comecemos por meu suposto racismo. Nasci no Rio Grande do Sul, Estado que, por sua forte colonização européia, tem a fama de ser o Estado mais racista do Brasil. Apesar de ser constituído por uma expressiva maioria branca, foi o primeiro Estado do país a eleger um governador negro, Alceu Collares. Ora, nem a Bahia, Estado majoritariamente negro, teve um governador negro. Collares não só foi governador, como também prefeito de Porto Alegre, capital também majoritariamente branca. Antes de ser prefeito da capital gaúcha, foi prefeito de Bagé, cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, onde os brancos constituem maioria esmagadora. Desde minha infância, de meus estudos primários aos universitários, convivi afavelmente com negros. Em meus anos de Porto Alegre, por noites a fio participei da mesa de Lupicínio Rodrigues, no bar da Adelaide, e por ele sempre nutri admiração. Lupicínio –que compôs os mais belas letras de samba do Brasil – era universalmente querido pelos gaúchos. Hoje, noto que tive entre os negros bons amigos. E por que hoje? Porque na época nem notava que eram negros. Com o acirramento recente da luta racial, passamos a conviver com pessoas que insistem em se definir como negras, quando nem cogitávamos de que o fossem. Entre os mails recebidos, sou acusado de defender a tese de que no Brasil não existe racismo. De certa forma, a defendo. Algum racismo existe entre nós, ou humanos não seríamos. Mas jamais ao nível dos EUA ou países europeus. O negro, quando rico ou bem-sucedido, é estimado e mesmo invejado no Brasil. Milhões de brancos brasileiros se sentiriam sumamente honrados sendo fotografados junto a um Pelé. O rechaço existe em relação ao negro pobre ou miserável. Neste caso, o fator de distanciamento não é a negritude do negro, mas sua miséria. Exceto padres católicos e assistentes sociais, ninguém gosta de miséria. Nem negro gosta de negro pobre. Nunca tivemos, no Brasil, leis proibindo a negros qualquer direito. As chamadas leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954, constituíram a partir de 1880 a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça. No Alabama, nenhum hospital podia contratar uma enfermeira branca se nele estivesse sendo tratado um negro. As estações de ônibus tinham de ter salas de espera e guichês de bilhetes separados para cada raça. Os ônibus tinham assentos também separados. E os restaurantes deveriam providenciar separações de pelo menos sete pés de altura para negros e brancos. No Arizona, eram nulos casamento de qualquer pessoa de sangue caucasiano com outras de sangue negro, mongol, malaio ou hindu. Na Florida, proibia-se o casamento de brancos com negros, mesmo descendentes de quarta geração. Neste mesmo Estado, quando um negro compartilhasse por uma noite o mesmo quarto que uma mulher branca, ambos seriam punidos com prisão que não deveria exceder 12 meses e multa até 500 dólares. Na Geórgia, cerveja ou vinho tinham de ser vendidos exclusivamente a brancos ou a negros, mas jamais às duas raças no mesmo local. No Mississipi, mesmo as prisões tinham refeitórios e dormitórios separados para prisioneiros de cada raça. No Texas, cabia ao Estado providenciar escolas para crianças brancas e para negras. As leis Jim Crow explicam a mauvaise conscience ianque, que se traduziu na ação afirmativa. Racismo negro no Brasil - Brasileiros, desconhecemos este racismo institucionalizado. Negros e brancos casam-se com brancas e negras, bebem e comem nos mesmos restaurantes, estudam e confraternizam nos mesmos bancos escolares. Se há menos negros que brancos na universidade, isto se deve a fatores econômicos, mas jamais legais. O branco pobre – e eles são legião – tem a mesma dificuldade de acesso aos bancos universitários que o negro pobre. O negro rico – e eles também existem – tem a mesma facilidade de acesso que o branco rico. É inteligível o ódio que um negro americano possa sentir por um branco americano. Não há no entanto razão alguma para que este ódio seja exportado ao Brasil. Neste país, do ponto de vista legal, o negro nunca foi discriminado. O Brasil costuma importar as piores práticas do Primeiro Mundo, costumo afirmar. No censo de 2.000, quase sete milhões de norte-americanos, pela primeira vez, foram autorizados a identificar-se como integrantes de mais de uma raça. As categorias inter-raciais mais comuns citadas foram branco e negro, branco e asiático, branco e indígena americano ou nativo do Alasca e branco e "alguma outra raça". Os Estados Unidos deixam de lado a onedrope rule, pela qual um cidadão é considerado negro mesmo que tenha uma única gota de sangue negro em sua ascendência, e descobrem o mestiço. Enquanto os Estados Unidos reconhecem a multi-racialidade, alguns movimentos negros no Brasil pretenderam que até os mulatos se declarassem negros no último censo. O propósito é óbvio, exercer pressão legislativa. A população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus. O presidente José Inácio Lula da Silva, em sua já proverbial incultura, caiu nesta armadilha, ao afirmar que o Brasil é a segunda nação negra do mundo. Não é. Negro é minoria ínfima no Brasil. A menos que, como fizeram os EUA, se pretenda negar este espécime híbrido, o mulato. Quando os americanos descobrem o mestiço, os ativistas negros brasileiros querem eliminá-lo do panorama nacional. Em uma imitação servil da imprensa ianque, os jornais tupiniquins passam a usar o termo afrodescendente para definir a população que o IBGE classifica como negra ou parda. Mas se um negro é obviamente afrodescendente, o pardo é tanto afro como eurodescendente. A adotar-se a nova nomenclatura, sou forçado a declarar-me eurodescendente. E não vejo nisso nenhum desdouro. A palavra racismo, pouco freqüente na imprensa brasileira em décadas passadas, passou a inundar as páginas dos jornais a partir da queda do Muro de Berlim. Apparatchiks saudosos da Guerra Fria, vendo desmoralizadas suas bandeiras de luta de classes, proletariado versus burguesia, trabalho versus capital, trataram logo de encontrar uma nova dicotomia, para lançar irmãos contra irmãos. Existem negros e brancos no Brasil? Maravilha. Vamos então lançá-los em luta fratricida. Criaram-se leis absurdas que, a pretexto de combater o racismo, só servem para estimulá-lo. Hoje, no Brasil, se você insultar um negro, incorre em crime hediondo, com prisão firme e sem direito à fiança. Mas se matar um negro, a lei é mais leniente. Se você for primário, pode responder ao processo em liberdade. Ou seja: se você, em um momento de ira, insultou um negro e quer escapar de uma prisão imediata, só lhe resta uma saída: mate-o. Segundo a lei absurda, assassinato é menos grave que ofensa verbal. Vamos às cotas. Em virtude deste hábito nosso de importar do Primeiro Mundo seus piores achados, acabamos instituindo as cotas raciais na universidade. Mais uma dessas tantas leis que fabricam racismo. Como pode um jovem pobre e branco encarar sem animosidade um negro que lhe tomou a vaga na universidade, só porque é negro? Em 2002, o programa 60 Minutes entrevistou um professor que mostrava a injustiça do sistema. De 51 estudantes brancos candidatos a um programa da faculdade, apenas um foi aceito. Entre dez candidatos negros, foram aceitos os dez. A universidade adota uma espécie de lei Jim Crow às avessas, aceitando qualquer candidato negro e recusando brancos. Quando os americanos descobrem que a política de afirmação positiva não constituiu uma idéia boa ou justa, autoridades brasileiras aderem a esta política infame. Já existe projeto, aprovado Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal, segundo o qual deverão ser escalados 25% de atores negros ou mulatos em peças de teatro, filmes e programas de televisão. Só no teatro, o leitor já pode imaginar as peripécias de um diretor. Se pensa em encenar Ibsen ou Tchekhov, como inserir negros em contextos eslavos ou nórdicos? E se a peça tiver um só personagem? Pelo menos um quarto do monólogo terá de ser feito por um negro? Só mesmo no bestunto de um analfabeto poderia ocorrer esta pérola do politicamente correto. Quando os EUA passam a abandonar o sistema de cotas, deputados brasileiros querem adotá-lo até mesmo no universo do lazer. A escravidão na Bíblia - Quando afirmei que negros capturavam negros na África, para vendê-los como escravos aos brancos europeus, não faltou interlocutor que alegasse que, se escravidão existia, é porque na Europa havia uma procura de escravos. Vários leitores jogaram sobre a Europa a pecha da escravidão. Tal atitude intelectual denota falta de leituras históricas. A escravidão é muito anterior à Europa. Ela já existe na Grécia socrática, quando Europa era apenas o nome de uma virgem raptada por Zeus, travestido em touro. Que mais não seja, a escravidão é vista como algo perfeitamente normal no livro que embasa o Ocidente. Um leitor cita o Eclesiastes, quando Salomão fala de um homem que domina outro homem para arruiná-lo. Considera que esta declaração é universal, não se aplicando a uma raça, mas a todas as raças. E considera ser intelectualmente irresponsável invocar a Bíblia sem realçar este fato. O leitor esqueceu de ler o Êxodo: “Quando comprares um escravo hebreu, seis anos ele servirá; mas no sétimo sairá livre, sem nada pagar. Se veio só, sozinho sairá; se era casado, com ele sairá a esposa. Se o seu senhor lhe der mulher, e esta der à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão do senhor, e ele sairá sozinho. Mas se o escravo disser: ‘eu amo a meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero ficar livre’, o seu senhor falo-á aproximar-se de Deus, e o fará encostar-se à porta e às ombreiras e lhe furará a orelha com uma sovela: e ele ficará seu escravo para sempre”. À semelhança de ativistas negros que não gostam de ouvir que chefes tribais africanos vendiam escravos aos brancos europeus, muitos católicos não gostam de ouvir que a Bíblia endossa a escravidão. Mas que se vai fazer? No Livro está escrito: “Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido. Mas, se sobreviver um ou dois, não será punido, porque é dinheiro seu”. O Levítico legitima a aquisição de escravos estrangeiros: “Os servos e servas que tiverdes deverão vir das nações que vos circundam; delas podereis adquirir servos e servas. Também podeis adquiri-los dentre os filhos dos hóspedes que habitam entre vós, bem como das suas famílias que vivem conosco e que nasceram na vossa terra: serão vossa propriedade e deixá-los-eis como herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam como propriedade perpétua. Tê-los-eis como escravos; mas sobre os vossos irmãos, os filhos de Israel, pessoa alguma exercerá poder de domínio”. Ou seja, não há originalidade alguma no fato de a Europa ter sido escravista. Estava apenas seguindo os ditames do livro que a embasa. A escravidão percorre o Livro de ponta a ponta, só não vê quem não quer ver. Portugal, país bom cristão, não deixaria de dar continuidade à tradição bíblica. Negros brasileiros exigem hoje indenizações milionárias da República, em nome da escravidão passada. Ocorre que o Brasil república não conheceu a instituição da escravatura. A Lei Áurea é de 1888 – coincidentemente da mesma época em que nos EUA vigiam as hediondas leis Jim Crow. A república foi proclamada em 1889. Se os negros querem indenização, a conta deve ser enviada a Portugal. Existe hoje trabalho escravo no Brasil? Sim, existe. Mas nenhuma lei o legitima, pelo contrário. É crime e como tal é punido. Seria insensato de nossa parte negar a existência de nossas mazelas, em nome de um enjolivement da história pátria. E aqui entramos no ponto que mais protestos provocou em meu artigo, a afirmação de que a história da África é a história das guerras tribais e da escravidão, da lapidação por adultério, da mutilação física como punição e da mutilação sexual como costume. Choveram e-mails citando feitos passados, antigas culturas e houve quem empunhasse o Egito como um dos expoentes da cultura negra. Não bastasse a tese furada de que Atenas era negra, vemos agora o Egito inserido no debate afro. De Dakar, um leitor me envia referências sobre Cheikh Anta Diop, estudioso senegalês que parte da idéia de que o antigo Egito faz parte da África negra. Pode ser. Mas tal tese está longe de constituir unanimidade entre historiadores. Mesmo que assim fosse, de nada vale o argumento. Se um dia um hipotético Egito negro teve uma trajetória gloriosa, hoje não mais a tem. Essa trajetória foi em algum momento interrompida, e hoje o Egito vive a hora nada gloriosa do Islã. Que mais não seja, o antigo Egito era escravagista — os hebreus que o digam! — e isto tampouco depõe a favor da África. Não faltou quem me acusasse de ser filho ingrato, afinal nossos ancestrais todos teriam surgido em solo africano. O argumento é contraproducente. Se todos de lá descendemos, foi preciso abandonar Mãe África para que o homem evoluísse. Que mais não seja, apegar-se a passados gloriosos de um país para alimentar auto-estima é doença de nacionalistas tacanhos. Pior ainda quando o apego é ao passado de uma etnia: estamos entrando na estreita fímbria que separa orgulho étnico de racismo. Antes de pertencermos a uma ou outra nação, a esta ou aquela etnia, pertencemos à raça humana. Sobre Idi Amin Dada e Mozart - Afirmei que estudar a história africana, seja a passada, seja a presente, não leva criança alguma a nenhuma auto-estima. Vejo que magoei muitos leitores. Inúmeros destes, munidos de um computador, enviaram suas mensagens por modem, em velocidade quase instantânea, via Internet. São pessoas alfabetizadas, o que neste nosso mundo já constitui privilégio. Em geral com curso superior, pelo que entendi. Usufruem das atuais facilidades de comunicação e da liberdade de expressão de pensamento nos países onde vivem. São nutridas por informação via satélite e podem acompanhar quase em tempo real os conflitos no planetinha, confortavelmente sentadas frente a um televisor. Certamente são usuárias de jatos e automóveis em seus deslocamentos, comem em bons restaurantes e foram formados em boas universidades. Ou seja, gozam do melhor do Ocidente. Isto, caríssimos, não é herança africana. Que a África seja uma terna lembrança de um passado imemorial,vá lá. Hoje, não tem lição nenhuma a dar ao Ocidente. Quando na África existir eleições livres e democracia, noções de direitos humanos, imprensa e liberdade de imprensa, mulheres com os mesmos direitos que os homens, quando na África clitóris não mais sejam mutilados nem mulheres lapidadas, voltamos a conversar. A África trouxe contribuições à humanidade? Viva a África. O que não se pode, sob pena de falsificar a história, é ignorar suas mazelas presentes. Olhe para os países africanos... e olhe para os países europeus. Olhe para as cidades esplendorosas do Velho Continente... e para as cidades miseráveis do continente negro. Você jamais encontrará um Mozart ou um Cervantes nas culturas africanas. Mas encontrará às pampas os Idi Amin Dadas e Mobutus Sessos da vida. Na Europa há Estados constituídos. Na África há arremedos de Estado e tribos e guerras tribais. Democracia é flor que viceja na Europa. Não há democracia em países africanos. Por enquanto, repito, a África está mais para Idi Amin Dada que para Mozart. Quando alguém me fala da excelência de certas culturas primitivas, costumo lembrar de A Vida de Brian, dos Monty Python. Reunidos os conspiradores judeus, o líder pergunta: que nos trouxeram os romanos? Estradas, responde alguém. Certo. Mas além das estradas, que nos deram? Hospitais, responde outro. É! Mas que mais além das estradas e hospitais? Aquedutos, sugere um terceiro. E assim continua a discussão, até que sai um manifesto: apesar de nos terem trazido estradas, hospitais, aquedutos, escolas, esgotos, romanos go Rome! Entendo o estudo da história como o estudo do acontecido. Não pode um historiador subtrair fatos só porque tais fatos são desonrosos à história de um povo. Durante todo um século – o passado – os comunistas construíram uma história fictícia para mostrar como paraíso o que em verdade era um inferno aqui na Terra mesmo. Não queiram os ativistas negros repetir esta infâmia. A do século passado ainda nos pesa e está longe de ser extirpada de nossa memória. * Abril 2003 Leia também A Trap for Blacks - http://www.brazzil.com/p107apr03.htm segunda-feira, novembro 19, 2012
SE AINDA SOU GAÚCHO Me pergunta um leitor: ainda és gaúcho? É uma boa pergunta. Minha definição de gaúcho não é a que vige no Brasil, a de gentílico de quem nasceu no Rio Grande do Sul. Entendo como gaúcho o homem que nasce no campo, entre vacas, ovelhas e cavalos. Não concebo como gaúcho gente nascida no asfalto. Quanto aos cetegistas, recorro à definição dos catarinenses. Qual é o menor circo do mundo? São as bombachas. Só cabe um palhaço dentro. Nasci na pampa, entre vacas, ovelhas e cavalos. Sei o que é o gaúcho. É homem que geralmente nasceu pobre, vive afastado do mundo contemporâneo e tem uma visão peculiar de mundo, que nada tem a ver com a do homem urbano. Para começar, um gaúcho sabe o que é horizonte, noção cada vez mais rara nas cidades. Em minha infância, tive 360º graus de horizonte, que se situava a mais de légua de distância. Isso mexe com a psicologia de qualquer um. Nasci em um deserto verde, salpicado de capões de árvores e umbus solitários. Quando fui para a cidade, meu primeiro espanto foi ver que nossa propriedade terminava no pátio. Lá no Upamaruty, terminava no horizonte. Meu espanto só foi maior quando passei a morar em apartamento. Meu espaço terminava na janela. Meu pai, quando foi para o "povoado" – em função de minha educação – sentiu-se como peixe fora d’água. Cheguei em Dom Pedrito numa época em que botas e bombachas eram sinônimo de “grosso lá de fora”. Mesmo assim, Canário enfrentava a cidade com suas pilchas. Que não eram para bailes, mas seus trajes costumeiros lá no campo. Quanto a mim, larguei as botas, por uma questão de conforto. Mas mantive as bombachas. Com sapatos. O que me valeu muitas piadas no colégio. Acabei traindo os meus. Optei pela calça corrida. Meu pai morreu amargurado, longe dos pagos. Jamais se adaptou à vida urbana. Sentia falta das lides do campo, das vacas e dos cavalos. A tapera ficou lá fora. Por muitos anos a visitei, meus tios e primos ainda viviam lá. Um belo dia, um fazendeiro da região procurou-me em Porto Alegre. Precisava de uma saída para o Uruguai e me perguntou se eu não queria vender meu “campinho”. Pensei um pouco e considerei que aquele rancho fazia parte do passado, eu jamais voltaria para lá. Virei bicho da cidade e não tinha mais vocação para fazendeiro. Com dor na alma, passei-lhe a escritura. Naquele dia, morri um pouco. Mas que fazer? Não havia porque manter um pedaço de terra ao qual eu jamais voltaria. Em 77, antes de ir para Paris, levei até lá minha companheira, para mostrar-lhe os campos onde havia nascido. Foi certamente a viagem mais dolorosa que já fiz. O Fusca atolou uma boa légua antes de chegarmos a meu rancho e continuamos a pé. Era inverno e um mar revolto de alhos-bravos e flechilhas agitava as coxilhas e canhadas. Subi pelo Cerro da Tala, em cujo cume havia a Toca da Onça. Era um buraco sob uma pedra onde, crianças, nos escondíamos, para tratar de nossos mistérios. De minha lembrança, me parecia uma imensa caverna. Tentei entrar na Toca da Onça. Já não cabia. Desci o Cerro da Tala, e entrei pela sanga no Passo do Vime, onde a prima Corininha, acocorada, lavava roupas sobre o empedrado. Eu me postava do outro lado do filete de água, para espiar aquele intrigante triângulo escuro que as mulheres tinham entre as pernas. Rumei à Casa, último resquício da herdade, onde em meus dias vivera tio Ângelo. Era um precursor. Um belo dia entre os dias, decidiu que teria um rádio. Era tido como um visionário. Sua primeira providência foi cortar o mais reto e alto dos eucaliptos, no eucaliptal do Toto Ferreira, a uma boa légua de distância. Teria uns quinze, talvez vinte metros de altura. Falquejado, foi levado por uma junta de bois até a Casa. Providência seguinte, pintá-lo de vermelho. O erguimento do poste foi uma operação mais ou menos como a construção das pirâmides, da qual participei com muito orgulho. Com quatro máquinas de alambrar, levantamos o poste e o colocamos num buraco frente ao oitão do rancho. Era o primeiro passo para a instalação do rádio, o cata-vento. Depois chegaram as baterias, de Villa Indarte, no Uruguai. Depois, finalmente chegou o rádio, um Telefunken mastodôntico, que só meu tio sabia operar. O universo começou a entrar em nosso pequeno mundinho. A propriedade do tio Ângelo passou a ser conhecida como Estabelecimento do Pau Vermelho. Quando o sol começava a cair, a gauchada chegava de longe, para escutar rádio. Meu tio, com a solenidade de um sacerdote, girava o dial e viajava pela Argentina e Uruguai. À medida que me aproximava da Casa, o coração batia com mais força. Tudo deserto. Sentei-me na laje onde meu tio afiava facas e gritei: “Ô de casa!” Corininha apareceu na porta e perguntou: o que o senhor deseja? Com a voz já embargada, respondi: o tio Ângelo está? Não estava mais. Ela reconheceu-me e nos abraçamos chorando. Meu rancho ficava a uma meia légua dali. Desci pela canhada e fui revisitar nossa cacimba. Era julho e escorria pelas bordas. Debrucei-me sobre o pedregal e sorvi com gosto aquela água salobra, com sabor de infância. Minhas lágrimas se misturaram às águas da cacimba. Chorei como terneiro desmamado. Aquela canhada, desci milhares de vezes, sempre em pânico. Ficava até tarde da noite, sob o cinamomo à frente da Casa, ouvindo dos adultos histórias de assombração. Geralmente voltava para meu rancho lá pela meia-noite, hora sinistra, sob um luar gelado que tornava a noite clara. E corria desesperado de um vulto que me perseguia e não me dava quartel, juro que não minto. Era minha sombra. Durante muitos anos, tive medo de passar à noite por um cemitério. Também, pudera, até meu cavalo ficava sestroso, quando uma alma penada montava na garupa. Nunca mais voltei lá. Nem quero voltar. Dói muito. Se ainda sou gaúcho? Diria que não. Tive um passado de gaúcho, mas este passado ficou perdido no tempo. Bati na marca e saí a correr mundo. Vivi em cidades onde a geada é grossa de mais de palmo. Vaguei por terras onde no verão o sol não se põe e no inverno é noite o dia todo. Ouvi línguas que mais parecem doença da garganta. Estou mais longe dos cavalos e vacas que dos restaurantes da Europa. Faz 33 anos que não volto aos pagos onde nasci. A Paris ou Madri, vou todos os anos. Nasci na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha, de quilômetro em quilômetro há um marco de concreto. De seis em seis, há um marco maior. Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos Moreiras. Canário me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois, me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais adiante foi só um passo. Em verdade, diria que nem brasileiro sou. Nasci voltado para o Prata, me sinto melhor em Montevidéu, Buenos Aires ou Madri do que em Porto Alegre ou São Paulo. Martín Fierro foi o primeiro poema que ouvi em minha vida, recitado por meu pai nas fogueiras do galpão. Falar espanhol me proporciona mais prazer do que falar português. Foi minha língua de cuna. Mas isto pouco importa. Não há lei no mundo que obrigue quem nasceu no Brasil a sentir-se brasileiro. Minha infância foi mais platina que rio-grandense. Infeliz do ser humano que morre igual como nasceu. Não evoluiu. A vida, as viagens, as cidades me transformaram. Virei cidadão do mundo e não consigo mais viver no deserto. Seria um tour de force dizer hoje que sou gaúcho. Mas à minha infância, continuo fiel. domingo, novembro 18, 2012
SÓ FALTOU GALINHA MORTA Tudo ok? Senti na pele, duas vezes, a ´vergonha alheia´ que o senhor citou em recente crônica sua...estive em Mônaco no final do ano passado junto dos meus pais e eu, estava um casal também do RS, e o marido da gaudéria desfilava com a camiseta do Internacional. Uma pergunta que não saia da minha mente? Será que esse senhor, numa noite portoalegrense ´normal´, não de jogo futebolístico, em Porto Alegre, sairia para jantar fantasiado de hooligan pampeano? O segundo episódio foi na Disneyland, quando eu morava na Califórnia, quando eu passei por um ônibus de turistas, e de lá desceram umas oito mulheres (cinquentonas, não adolescentes, vale dizer), com camisetas, bandanas e bermudas com motivos da bandeira brasileira e ao pisar no solo, já improvisaram uma rodinha de samba. Preciso dizer a ti que não esperei para o momento em que provavelmente uma galinha morta com farofa fosse adicionada ao rendez-vous? Abração, Marco A. S. Freitas COMPORTAMENTO ARROGANTE Caro Janer, Sou leitor assíduo do blog e acompanhei com muito interesse as recentes postagens sobre o comportamento dos brasileiros no exterior. Me pergunto se esse comportamento arrogante nos restaurantes, lojas etc. não tem suas origens na escravidão. Não sei nos outros lugares mas a impressão que eu tenho, convivendo com a classe média/média alta de São Paulo, é que os brasileiros de nível socioeconômico um pouco mais elevado se consideram todos muy fidalgos, e esperam submissão total daqueles que os servem - a cultura do se eu estou pagando, tudo posso. Depois, quando esses sinhozinhos e sinhazinhas do século XXI vão à civilização e não são tratados com a reverência a que acham que têm direito, saem falando mal do país que os acolhe. Talvez isso explicasse também um pouco a histeria por status que acomete nossas classes mais abastadas. E tudo potencializado pelo ufanismo assustador que observamos nos últimos anos. Parece que os brasileiros estão convencidos de que o Brasil agora é uma espécia de luz a guiar o mundo, invejado nos quatro cantos da Terra, e que os europeus coitados, estão todos falidos mendigando nas ruas e querendo mudar para cá. Séculos de ressentimento agora são combustível para uma arrogância sem limites. Abraços, Felipe Grigolon |
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