¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
segunda-feira, maio 31, 2004
OS NOVOS LEPROSOS Hoje é o dia de combate ao fumo. Não fumo. Nunca fumei. Nem cigarro, nem maconha. Mas dá pena ver fumantes tratados como leprosos, isolados em jaulas virtuais. Em um inverno em Nova York, eu os vi enregelados nas ruas, em temperaturas abaixo de zero, segurando suas baganas com mãos nuas, porque nos escritórios é proibido fumar. Professores já pretendem que os filmes de Hollywood, em que há personagens que fumam, sejam classificados como proibidos para menores de 18 anos. No aeroporto de Zurique, eu os vi isolados por um cordão, encolhidos como animais acossados, para contemplação dos passantes. Minha pior experiência foi num trem entre Roma e Florença. Por falta de vagas em um vagão de não-fumantes, tive de comprar assento no vagão dos leprosos. A concentração de fumo era tal que até os fumantes se sentiam mal. Em uma festa no Rio, vi um conviva vetar o cigarro a todos os demais convidados, só porque ele não fumava. O cerco se fecha e a intolerância se instala. Fortalecidos pela mídia, os não-fumantes se travestem subitamente em comissários do povo, sempre alertas para denunciar o crime abominável. O tabagismo foi o grande legado indígena à civilização. Toda pessoa culta sabe, mas nem toda pessoa culta ousa afirmar, que o tabaco foi importado da América Latina, onde era consumido pelos bugres, para a França, por Jean Nicot, daí nicotina. Os atuais cânceres e enfisemas - os politicamente corretos que me desculpem - são em boa parte herança do bon sauvage de nosso continente. Desde algum tempo, o tabagismo virou prática de gente pobre. Segundo pesquisas recentes, quase 33% dos americanos adultos que vivem abaixo do nível de pobreza fumam, contra 22% dos que estão acima desse nível. Estamos entrando em uma era de uma nova Lei Seca. Desta vez, a dos cigarros. Os legisladores, em seu moralismo antitabagista, acabarão por fazer a fortuna dos mercadores do ilícito. A continuar assim, o tabaco terá em breve o mesmo ou maior prestígio que a maconha ou cocaína. Hábitos sociais largamente difundidos não se combatem com proibições. Os EUA sabem disso e não parecem ter tirado maiores lições da Lei Seca, que durou apenas treze anos, onze meses e 24 dias. Se alguma autoridade quiser reduzir o tabagismo, é simples. Basta associar o cigarro com pobreza. Até os pobres pensarão duas vezes ao levar um toco de câncer aos lábios. Nesta época de culto ao dinheiro, mais eficaz que prevenir contra doenças é marcar o fumante com o estigma de pobre. Proibir só aumenta o consumo. quinta-feira, maio 27, 2004
ELE CONTINUA... ... a nos envergonhar ante o mundo. Em Xangai, disse ser o governante mais qualificado a falar sobre os famintos do mundo por ter sido o único a passar fome. Isto é, se você teve apendicite, você está automaticamente qualificado para falar sobre os demais colegas de apendicite do mundo. ISLÃ E PRAZER Gosto de nadar. Entre outras coisas, porque permite ao pensamento viajar, totalmente dissociado do corpo e do esforço físico. Quando nado, minha mente vadia de lembrança em lembrança, elabora diálogos imaginários e até mesmo esta crônica. Não poucas vezes, me surpreendo pensando no Islã. Uma vez dentro d'água, nem vejo quem me rodeia. Em alguma pausa na borda da piscina, acabo descobrindo que a meu lado braceia uma menina linda, ela também absorta em seus devaneios. É bastante provável que tampouco tenha notado minha presença. Numa piscina de academia não existe paquera, estamos ali a trabalho. Ou por lazer - como diriam os paulistanos - em sua estranha concepção de lazer. Enfim, trabalho ou lazer, tanto faz. Falava do Islã. Por que raios um muçulmano não suporta a presença de uma mulher de maiô? Que pecado imperdoável, que ofensa inominável pode ocorrer com o fato de homens e mulheres freqüentarem uma mesma piscina? Entre braçada e braçada, minha mente voa para Varna, cidade balneária do Mar Negro, na Bulgária. Era 1981, ainda os tempos do socialismo. Foi onde, pela primeira vez, tomei contato com o absurdo. Passei por duas praias, uma ao lado da outra, separadas por um aterro. Uma para homens, outra para mulheres. Alexandra Kolontai, uma das líderes feministas da revolução comunista, deveria estar se revolvendo em sua tumba. De Varna o pensamento voa para Dom Pedrito, aquela pequena cidade da Fronteira Oeste gaúcha, onde, sem revoluções nem maiores pretensões, desde pequeno nadei junto a homens e mulheres, naquela prainha do Santa Maria, pomposamente chamada de Chiquilin's Beach. Eu era feliz e não sabia. A televisão por satélite é proibida em vários países árabes. Imagino que uma singela imagem de Copacabana ou Ipanema faça estremecer as bases do Islã. Serão os seres humanos tão distintos entre si, que cá nos trópicos possam conviver quase em pêlo nas praias e algumas latitudes adiante isto seja crime? A última reivindicação dos muçulmanos na Europa é piscina separada para homens e mulheres nas escolas francesas. E os muçulmanos já são cinco milhões na França. Mais um pouco e estes senhores pretenderão proibir o vinho. Não nos iludamos. Tivessem os árabes que vivem na França poder para tanto, não hesitariam em proibi-lo. Islã e prazer até hoje não se entenderam. Confesso jamais ter freqüentado piscinas em meus dias de Paris. Tais discriminações não deveriam, a rigor, afetar-me. Mas me sentiria muito mal flanar por um país - do Ocidente, é claro - onde pessoas fossem separadas por sexo nas piscinas. Como me senti mal em Varna, se é que a Bulgária pode ser considerada Ocidente. Por essas e por outras, falei sobre as razões que tornam a morte bem-vinda. Mas não se preocupem meus afetos, nem se alegrem meus desafetos. Não é pra já. Enquanto a voz esganiçada do muezim não sufocar o bimbalhar dos sinos, a Europa valerá ainda muitas missas. Mas que está ficando triste, isso está. quarta-feira, maio 26, 2004
VENEZA Quem viaja guarda não poucas imagens na retina. As mais recorrentes, pelo menos no que a mim diz respeito, não são as de monumentos ou grandes arquiteturas, mas pequenas percepções de fatos aparentemente sem significado maior. De Veneza, por exemplo, não foram as imagens dos canais e pontes, nem mesmo do café Florian ou da basílica São Marco, as que cultivo com mais carinho. Mas sim algo que agência de turismo nenhuma vende, o chiado de meus sapatos nas ruelas desertas daquela cidade de sonho. Eu viajava com uma amiga macedônia e, embalados por não poucas doses de bom vinho, nos perdíamos com gosto pelos vicolos e canais de uma Veneza noturna e silente. Para sorte nossa, não havia viva alma na rua que nos desse uma informação. Não sei o que pensa o leitor, mas sentir-me perdido em cidade que desconheço é um dos prazeres que mais curto em uma viagem. Bem entendido, perder-se em cidades feias e hostis não tem graça alguma. Conversando com outros viajores que por lá perderam suas almas, me surpreendi com a coincidência de nossas percepções. O que mais lhes marcara na cidade fora o ruído dos próprios passos. Mas uma viajante de longas milhagens e não menor prudência me alertou: na Europa de hoje, não é muito bom revisitar cidades que amamos em nossa juventude. Já faz um bom tempo que não volto a Veneza, mas, pelo que leio nos jornais, suponho que já não mais consiga ouvir meus passos. A cidade tornou-se uma espécie de museu, percorrida por centenas de milhares de turistas, que pouco espaço deixam ao viajante sem guia nem pressa. O mesmo está acontecendo nas demais cidades italianas e nas metrópoles européias. Ver a Capela Sixtina ou subir na Torre Eiffel exige paciência de monge e bom preparo físico, pois você, com sorte, terá de esperar duas ou mais horas na fila. Conseguir um hotel em Amsterdã, em final de semana, já é um parto. Ver os cavalos bailarinos de Viena, só reservando ingresso com três meses de antecedência. Uma ópera, idem. E as autoridades do setor de turismo da China nos acenam com a perspectiva de cem milhões de chineses turistando mundo afora, daqui a uns quinze anos. Você já imaginou um por cento dessa turba visitando Veneza? Mais outros dez anos, e o planetinha terá mais dois bilhões de habitantes. Foi neste sentido que escrevi, na semana passada, sobre as razões que tornam bem-vinda a morte. Houve leitores que viram em mim um enamorado precoce pela Indesejada das Gentes. Nada disso. Apenas acho que a vida será mais bem desconfortável daqui a vinte anos. Honestamente, não me concebo disputando espaço com cem milhões de chineses. Isso sem falar nos dois bilhões de novos condôminos. Há pessoas que não aceitam a morte. Certamente jamais tentaram imaginar o horror que seria este mundinho se desde Adão para cá não tivesse morrido ninguém. quinta-feira, maio 20, 2004
DUAS OU TRÊS RAZÕES PARA DAR BOAS VINDAS À MORTE - Daqui a 30 anos, o planeta terá dois bilhões de pessoas a mais. - Em 2020, 100 milhões de chineses estarão fazendo turismo no mundo. - Na Inglaterra, muçulmanos já fazem homenagens aos terroristas do 11 de setembro - os "Magníficos 19" - sob o olhar complacente da polícia. - Na França, um clérigo argelino defende o direito de o marido espancar a mulher e a Justiça francesa não consegue deportá-lo. domingo, maio 16, 2004
ESTRATÉGIA DE JERICO Consta que o general Ulysses Grant, herói da Guerra de Secessão e vitorioso em muitas batalhas, era um beberrão contumaz. Quando o presidente Lincoln foi informado de sua devoção pelo uísque, não teve maiores dúvidas: "digam-me qual o uísque preferido de Grant, para recomendá-lo aos outros generais". A história homenageou o general bebum, mas competente, com a marca de um uísque. Não interessa o que um homem beba. O que interessa é sua obra. Beber faz parte da idiossincrasia de cada um, da mesma forma que a vida sexual. Uma onda de puritanismo parece estar tomando conta da mentalidade dos americanos e particularmente da imprensa americana, que nas últimas décadas tem se imiscuído na vida pessoal de seus líderes. A denúncia de Larry Rohter, correspondente do New York Times no Brasil, a respeito do consumo etílico do presidente brasileiro, é decorrência daquele jornalismo que viu nas práticas sexuais de Bill Clinton motivos para um impeachment. Cá entre nós, nossos presidentes sempre beberam e fornicaram à vontade, sem que cidadão algum se preocupasse com tais peculiaridades. Esta onda de puritanismo e invasão da privacidade é recente, nem sempre existiu. Era folclórico o apetite sexual de John Kennedy, e em sua época ninguém o reprovou. Pelo contrário, fazia parte de seu charme. Além de avançar sobre secretárias, estagiárias e mesmo visitantes da Casa Branca, tinha ainda algumas profissionais de plantão para os momentos de urgência. Entre nós, ninguém ignorava o gosto de João Goulart pelas prostitutas nem o apego de Jânio Quadros ao uísque. Tivemos também um ministro, o economista Mário Simonsen, cujo apreço aos bons álcoois era tão notório quanto seus conhecimentos de ópera. Hábitos personalíssimos de cada um, ninguém tinha nada a ver com isso. Mesmo assim, a imprensa foi pródiga em piadas em relação tanto a Jânio como a Simonsen, e a nenhum dos dois jamais ocorreu processar ou expulsar jornalistas. Boris Ieltsin fez fama na imprensa internacional como alcoólatra inveterado e nem por isso expulsou algum jornalista de Moscou. Consta inclusive que aquele canhonaço na Duma, que fez a velha guarda do PC soviético desistir de qualquer veleidade de resistência, não teria ocorrido não fosse um alto teor de vodca nas veias. Ainda no final de seu governo, Fernando Henrique Cardoso foi acusado ter um filho com uma jornalista da rede Globo, que residiria no Exterior. A revista que o acusou enviou um correspondente a Barcelona para desvendar o mistério. O jornalista trouxe uma prova cabal da existência do filho: ao telefonar para a suposta mãe, ouviu uma voz de criança ao fundo. Estava provado o que o presidente queria esconder. A prova era a voz de criança ao fundo, ouvida por telefone. Para decepção dos argutos jornalistas, Fernando Henrique fez o que deveria ser feito: nada. A denúncia, com ou sem fundamento, caiu no vazio. Pisado em um calo que parece machucá-lo muito, Lula deu repercussão internacional ao que teria passado despercebido, não fosse sua reação de Besta Fera. Retoma uma lei caduca da ditadura que diz ter combatido e expulsa o correspondente do país. Ironicamente, empunhou a mesma lei que os militares usaram para expulsar em 1980 do Brasil um apparatchik italiano, o padre Vito Miracapillo. Se sua fama de beberrão contumaz era conhecida apenas no Brasil, Lula divulgou-a urbi et orbi. O fato foi noticiado em cerca de quarenta jornais do Ocidente e inclusive na China e no mundo árabe. De tal performance, nem Duda Mendonça seria capaz. Internamente, o escândalo veio a calhar. Em meio ao total desgoverno do governo, a imprensa deixou de falar por uma semana dos desmandos dos sem-terra e dos sem-teto, dos bantustões do Rio onde o Estado não manda mais, dos índios que massacram brancos às dezenas e permanecem impunes e do mísero aumento do salário mínimo, para dedicar-se aos pileques presidenciais. A primeira defesa de Sua Alteza ofendida foi identificar-se à nação. Em sua tosca visão de mundo, o ofendido foi o país, não ele. "Le Brésil c'est moi" foi o que disse, em outras palavras. Ora, o país da cachaça jamais se ofenderia com tal constatação. E aqui vai um primeiro equívoco do jornalista americano, julgar que o país se preocupa com os hábitos etílicos presidenciais. Estes hábitos são conhecidos desde suas candidaturas anteriores à Presidência. Sua eleição é a prova definitiva que brasileiro nunca ligou para isto. Outro equívoco foi julgar que as gafes cometidas por Lula são efeito do álcool. Lula deveria agradecer tal afirmação, ela só o beneficia. Pela primeira vez, suas estultices são atribuídas não à sua atroz incultura, mas a um fator ocasional, os eflúvios etílicos. Tampouco procede a insinuação de Rohter de que a predileção do presidente por bebidas fortes esteja afetando sua performance no cargo. O governo Lula nada tem dos passos erráticos de um bêbado. Para garantir a perpetuidade da Nomenklatura petista, tem avançado com muita lógica e coerência no bolso do contribuinte. Começou tungando 30% dos pensionistas, está tentando tungar mais 11% dos aposentados em geral e já pensa em aumentar para 35% o imposto de renda. Isto não é porre. É lúcida determinação de quem quer se manter no poder às custas do empobrecimento da classe média. Não estamos diante de um bateau ivre à deriva, mas diante de uma nau com rota muito precisa. Lula diz ter ficado particularmente ofendido com a alusão de Rohter aos problemas etílicos de seu pai. Melhor não falasse. Neste domingo, Veja e Folha de São Paulo publicaram artigos demolidores, que fazem avançar o alcoolismo dos da Silva duas gerações para trás. "Meu pai bebia sempre - diz um dos irmãos do presidente -. Tomava pinga. Depois passou para o conhaque, que era melhor. Depois passou para a cerveja, que era melhor. Se ele pudesse beber cinqüenta pingas, ele bebia. Ele não tinha controle. Chegava em casa de fogo". De sua avó materna, diz o próprio Lula: "Minha vó, coitada, bebia uma cachaça!", lamenta Lula. "Quantas vezes meus irmãos tiveram que pegar ela dormindo no meio do mato, na estrada, na beira do asfalto. [...] Ela bebia muito, muito". Estas declarações estão no livro Lula - O Filho do Brasil, da jornalista Denise Paraná, elaborado a partir de depoimentos de Lula e de seus familiares. Choveram ainda na imprensa enfáticas declarações de amor de Lula pelo álcool. Há quem diga que a reportagem de Rohter é inconsistente no que se refere ao alcoolismo do presidente. É que Rohter não pesquisou a fundo. Entre as dezenas de declarações publicadas, pinço apenas duas. Em 1978, interrogado pelo Pasquim sobre sua recente preferência pelo uísque, diz: - Olha, se você tivesse aqui uma garrafa de 51 eu tomaria o dobro desse uísque. Bebo o que tiver, né, mas na minha sala do sindicato a gente abre garrafa de 51. E esta outra, definitiva, extraída do depoimento a Denise Paraná: - A verdade é o seguinte: política é como uma boa cachaça. Você toma a primeira dose e não tem mais como parar, só quando termina a garrafa. Confissão cabal de bebedor bruto, capaz de emborcar de uma só vez uma garrafa de cachaça. Irá Lula banir Lula do Brasil? A trapalhada toda terminou pior do que começara, com uma farsa deslavada. Por razões de ordem jurídica, o governo não podia manter sua decisão. Pela obstinação de jerico de Lula , estava impossibilitado de voltar atrás. Para salvar a cara, viu uma retratação do correspondente do NYT em uma carta em que o jornalista não se retrata de modo algum. Tanto que seu jornal reiterou que não se desculpava nem se retratava. O episódio foi salutar. O projeto de tiranete que se escondia sob a capa de democrata mostrou suas garras ao mundo todo. AS GRANDES FRASES DA HISTÓRIA "A verdade é o seguinte: política é como uma boa cachaça. Você toma a primeira dose e não tem mais como parar, só quando termina a garrafa". Luís Inácio Lula da Silva. quarta-feira, maio 12, 2004
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XIII) Ainda Dom Pedrito. Depois que Bertrand Delanoë, homossexual assumido, foi eleito prefeito de Paris, a França passou a gabar-se na imprensa de sua mentalidade liberal. No mesmo ano da eleição de Delanoë, Veja nos informava que o Estado que reúne a maior quantidade de piadas machistas havia assumido a dianteira na defesa dos direitos dos homossexuais. A revista paulistana referia-se ao fato de a Justiça do Rio Grande do Sul ter emitido julgamentos favoráveis em causas relacionadas a reivindicações dos gays. A ausência de preconceitos da gauchada, no que se refere à homossexualidade, não é atitude de hoje, nem mesmo de ontem, mas data de muito mais longe. Antes mesmo que os parisienses ousassem eleger um prefeito homossexual, o Rio Grande do Sul já teve um, e dos mais queridos por seus conterrâneos. Ora, direis, Dom Pedrito não é Paris. Claro que não é. Dom Pedrito é uma pequena comuna isolada do mundo. Já Paris é uma das capitais deste mesmo mundo, com todo cosmopolitismo que isto implica. Feliz de quem tem uma província no coração, disse alguém. Final dos anos 50, há quase meio século, portanto. Naquela cidadezinha da fronteira gaúcha, nos confins da fronteira seca entre Brasil e Uruguai, então com 13 mil habitantes, tive minhas primeiras lições de tolerância. Um dos líderes políticos locais, voz de estentor, bom de voto e temível nos debates, jamais escondeu suas preferências por jovens efebos. Nem por isso deixava de contar com o apreço dos pedritenses. Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes. Comentário indiferente na cidade: "O Brasil vai perder muito com esta cassação". Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. "Já procurei até médico" - confessou-me um dia Bastide -. "Mas que vou fazer? É a minha natureza." Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide. Sua detenção pelos militares virou folclore. O vereador estava prestando seus serviços ao Brasil, quando batem na porta de seu apartamento. Ainda pelado, entreabriu a porta. Três militares o procuravam, um oficial e dois soldados, de metralhadoras em punho. - O senhor é o Rui Bastide? - perguntou o oficial. - Sou. - Então o senhor está convidado a comparecer às dependências do 14º Regimento de Cavalaria. - Acho que vou declinar do gentil convite - respondeu Bastide. Ocorre que não é bem um convite. O senhor terá de ir. Agora e como está. - Então me levem - disse o Rui - abrindo a porta e os braços, em plena glória de sua nudez. "Os soldadinhos enrubesceram - me contava o Rui -, não sabiam para onde apontar as metralhadoras. Aí, me deram tempo. Tomei banho, me perfumei, me despedi do Brasil, não sabia quanto tempo ia ficar preso". Pelo jeito, a prisão foi produtiva. Em vez de xingar a ditadura, Rui encenou um balé, onde bravos lanceiros do Ponche Verde, envergando diáfanas bombachas brancas, executavam impecáveis pas de deux enquanto cantavam uma ode ao 14º RC: "Querido Exército..." A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso pedritense. E vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados. Há fatos que na infância nos marcam a memória e só depois de muito viver lhes conferimos a verdadeira dimensão. Ocorreu no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira com o Uruguai, onde vivi meus dias de guri. Torrão de gente rude, onde qualquer adulto tinha de cuidar-se com a língua. Lá na Linha Divisória - como era mais conhecida a região - uma palavra mal empregada, ou mal entendida, podia custar uma vida. Lá, conheci Seu Alvarino. Fora trazido da cidade, como cozinheiro do Peixoto, um bolicheiro local. Negro, enorme, espadaúdo, durante o dia cuidava da cozinha e das coisas do Peixoto. Nas tardes de domingo, cumpridas suas tarefas caseiras, vestia uma blusinha de rendas cor-de-rosa, punha sua mais rodada saia longa e sentava na porta do bolicho, munido de agulhas e novelos. A gauchada ia chegando, boleando a perna e atando os cavalos no alambrado. Em meio àquela gente armada, revólveres e facões pendendo da guaiaca, seu Alvarino, indiferente às charlas e ruídos de esporas, permanecia absorto em seu crochê, como se ali estivesse tricotando desde o início dos tempos. Jamais ouvi qualquer piada a respeito das prendas domésticas de Seu Alvarino. Também, pudera! Seria uma empreitada um tanto arriscada dirigir qualquer comentário desairoso àquele par de munhecas. Seria homossexual? Ou o travestir-se seria apenas uma prosopopéia que o acometia aos domingos? Fosse como fosse, se gostava de usar saias e fazer crochê, isto era algo que só a ele dizia respeito. "A principal explicação para o Rio Grande do Sul estar na vanguarda da defesa dos gays encontra-se no bom nível educacional da população do Estado", diz o redator de Veja, que certamente jamais teve notícias do Bastide ou do seu Alvarino. "Uma classe média instruída e formada com base na imigração européia tende a ser mais crítica e aberta a atitudes liberais", afirma o historiador Luiz Roberto Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pura conversa fiada de acadêmicos. Lá na Linha, não era hábito local imiscuir-se na vida de ninguém. O preconceito veio através dos padres europeus, que lá introduziram as noções de pecado e culpa entre gaúchos que viviam imersos em uma espécie de paganismo crioulo pré-cristão. domingo, maio 09, 2004
MANHÃ DE DOMINGO (conto) Espiou o céu por uma fresta da quincha. Noite limpa, bueno há de ser o domingo. Não esperou pelos galos. Levantou de manso pra não acordar Joana. Vestiu-se em silêncio. Na cozinha, deu uma enxaguada na boca, apanhou baldes e canecos e se dirigiu à mangueira. As vacas, habituadas ao apojo depois do raiar do sol, protestavam com coices e mugidos. Meio balde de leite se misturou à terra. Juvêncio retribuiu o coice da oveira e sampou-lhe o balde pelas guampas. Não seria uma vaca quem lhe estragaria o domingo. Por segurança, maneou as outras. Até os guaxos se mostravam baldosos. Azar, não beberiam o apojo. Nas pedras da cerca assomou Negrinho, o mais madrugador: “Paiê, quero com bastante escuma!” ao soltar as vacas sentiu-se cristeado, os terneiros mamavam o leite escondido. Na cozinha, Joana quase sem fôlego assoprava na boca do fogão. A madeira verde resistia ao fogo, as lágrimas caíam pelas bochechas infladas, mentalmente maldizia a gurizada que não havia juntado graveto seco. Quando Juvêncio entrou, derramando leite do balde e canecos, Negrinho ao lado com um bigode branco de espuma, Joana já cuspia fora o primeiro mate. - Que é que te deu na telha, levantar a esta hora? Não há vivente que não perca o respeito pelo outro com a intimidade. Até cachorro estranho, quanto mais mulher. Cachorro começa rosnando, é só passar a mão na nuca e já vem lambendo as botas. Mulher também, só que com uma diferença. Em vez de fazer carinho, encrenca. Quando cortejava Joana e pernoitava na casa do sogro, ela surgia acanhada na cozinha, mas cumprimentava com um bom dia mais fresco que ar da manhã. Casou, taí! Já acorda em pé de guerra. Lei da vida. Vai olhando e aprendendo, guri. Todo índio tem sua hora de bobeira. É justo nessa que elas prendem o maula. Respondeu com um vago “não amola, mulher! Tava sem sono e levantei”. Em verdade, não era bem isso. Chegara tarde da noite, banho de gado em estância grande rebenta qualquer cristão, até os ovelheiros haviam deitado cedo. Caíra na cama sem dar nem ao menos uma areada no cascão dos pés. Acordara mais cedo do que de costume. Nem havia esfregado os olhos, decidira uma troteada até o Aliás Bendigo. Já estava em tempo de pagar os fiados no bolicho. Como Aliás nunca tinha troco, aceitaria umas que outras por câmbio. Qual seria o nome de pia do Aliás? Havia chegado há muito naqueles pagos, se alguma vez disse o nome a alguém, foi logo esquecido. Com ar de granfa, insistindo nos erres e esses de cada palavra, mal abria a boca dizia “aliás, bem digo!”, daí o nome. Tinha muita plata escondida, juntada não se sabia como. No lugarejo, dinheiro só tinham os estancieiros, e esses jamais pisavam em bolicho. Havia quem falasse em tropeadas noturnas, contrabandos, mas ninguém havia visto nada, só ouvira dizer. E diz-que-diz-que é ocupação de mulher em tarde de mate doce. Falta de assunto. Aliás mourejava de sol a sol, ganhava no arroz e na canha, carneava e distribuía a carne, levava coima do carteado e do osso, era justo que ganhasse o seu. Viver todos vivem, saber viver é que é! O baio, flete de domingo, ficara preso durante a noite pra adelgaçar. Cavalo no trabalho vira matungo. O baio ficava solto a semana toda, tinha trote faceiro e nervoso. Mesmo velho, conservava o garbo da época em que conhecera Joana. Não fosse o baio, talvez não ganhasse a mulher. Bem aperado, fazia bela figura. O pelegão vermelho já estava desbotado e meio rasgado, as rédeas brancas de brancas só tinham o nome. Nunca as usava em serviço, mas é assim mesmo, índio que casa perde a elegância. Também! Não tem mais precisão de andar arrastando a asa. Pra que elegância, então? Entre um mate e outro foi afiando a gilete num copo, fez espuma de sabão numa lata enferrujada de sardinha, ajeitou o espelho rachado na cadeira, sentou num cepo, Joana trouxe a bacia com águia quente. Negrinho olhava calado aquele ritual todo, Juvêncio forçava a vista pra se afeitar à luz do fogão. Em seguida vai chegar tua vez, guri! E não pensa que barba é privilégio. Barba é maldição que cresce com o sono. Se afeitava pra quê? Bueno, mesmo casado, um tem que manter certo asseio. Com o rosto ainda sangrando, deu uma aparada no bigode. Uma chama mais viva iluminou o espelho, Juvêncio viu em meio às rachas do cristal um corpo estranho - o seu. Um calafrio lhe percorreu a espinha, devia ser o vento entrando pelas frestas da porta. Ou seria talvez que pela primeira vez olhava seu rosto? Joana amassava o pão, largava a massa de vez em quando para tomar um mate. Estava arisca. - Que requintes são esse, até parece que tu vai pra um baile? Mulher não merece resposta. Negrinho ia guri bom. Via as coisas, aprendia pra si, não falava muito. Madrugava, bom sinal. Os outros ainda roncavam, as nulidades, nem pareciam crias do mesmo pai. Eram mais como filhotes de chupim em rancho de joão-de-barro. Puxaram a algum inútil da família, pois Joana também era despachada. Secou a gilete - se a gente não seca, enferruja -, despejou a bacia pela janela, uma claridade fria começava a se infiltrar por baixo do carramanchão de glicínias. Com o barulho da água despejada o galo cantou, com um ar de tapeado. O galo do Martim respondeu. Em silêncio tomou mais uns mates, só se ouvia o chiado da cuia seca e Joana sovando a massa. O rancho era pobre, mas visita que chegasse no domingo não podia se queixar de ser mal recebida. Os anuns começaram a charlar no bambuzal, as corruíras chiavam no oitão da casa. Amanhecia. Bateu a porta, foi encilhar o baio. Negrinho largou a cuia, saiu atrás como cachorro. Via e aprendia. Esse guri merecia ir pra escola. Os tempos haviam mudado, qualquer rapazote bom nas contas valia mais que um domador. Negrinho mal dava na barriga do cavalo e já encilhava o seu, trepado num tronco. Os arreios ficavam meio frouxos, mas o que importa é a boa intenção. A crina estava desparelha, Juvêncio deu uma tosada rápida. Encurtou um pouco a cola do baio e, num repente, decidiu sair de cola atada. Por que só solteiro havia de sair com o cavalo de cola atada? Não tá morto quem tá casado! Pela barriga do animal corriam arrepios, o cavalo todo estava indócil. Negrinho ia alcançando os arreios. Deixou a cincha frouxa, o animal só de cabresto e foi se vestir. O lenço estava encardido, mas vermelho quando encarde é sempre vermelho. Só fica um sebo na linha do cogote, mas isso ninguém nota. A camisa estava recém no terceiro domingo. Bombacha remendada mas limpa, pior se estivesse inteira e suja. Bota lustrada, o problema era meter o pé dentro, acostumado o dia todo nas chinelas. Mas com talco e jeito, não há bota que não sirva. Pé de pobre não tem número. De espora o baio não precisava, mas enfiou os pés nas cujas. Há muito não se pilchava, queria hoje sair lampeiro, ainda que pela última vez na vida. Enfiou o pala calamaco, que mais não fosse servia pra esconder o nagão. Recheou de balas o dito, nunca se sabe que insolente um vai encontrar no bolicho em dia de cachaceira. Ajustou o sombrero ensebado na cabeça, puxou o lenço vermelho pra fora do pala branco, ajustou o barbicacho logo abaixo do bigode. Devia estar lindo o tipo todo. Resolveu embromar Joana. Entrou despacinho por baixo do parral, abriu sem bulha a janela da cozinha. Joana virou-se com a luz que entrava, arregalou os olhos de susto. - Não te reconheci. Tu não vai durá muito. Mulher agourenta, caramba! Não era à toa que cada vez mais parecia uma coruja. Queria só lhe fazer uma broma e recebia uma respostada daquelas. Ficou até meio sem jeito. Quis fazer um carinho, não pôde. “Bueno, já me vou!” - foi só o que conseguiu dizer. Enquanto enfrenava o baio, buscou Negrinho com o olhar pelo galpão. Não estava mais lá. Uma revoada de pássaros indicou que já andava caçando pelo eucaliptal. Le traria umas rapaduras. Açúcar é ruim pra dentição, mas mais vale um gosto do que cem pesos. Apertou a cincha, já a cavalo fechou a porteira, saiu a trote manso pelo lançante da coxilha. Na sanga, enquanto o baio tomava água, olhou para trás. Em frente à casa senhorial, se delineava contra o horizonte o cinamomo que dera sombra a tantas gerações. Imóvel contra o céu já claro, suas ramadas mais altas acenavam como que em despedida. Talvez fosse aquela árvore, com sua copa generosa, a causa do empobrecimento e decadência dos Moreiras. Sua sombra convidava sempre para o mate. Pela manhã, batia no portal da casa, o sol já ia alto mas sua sombra era sempre fresca. Depois da sesta, a sombra estava do outro lado da cerca que rodeava o pátio. Quanto namoro não começou com mate doce debaixo daquela ramada! Já que a água estava quente, os barbados aproveitavam pra tomar um amargo junto com o mulherio. Enquanto isso, a lavoura se enchia de jujo brabo, os alambrados deitavam mal um caturrita pousava no fio de cima. Fosse como fosse, cumprira sua obrigação, a de dar sombra. Se os Moreiras não haviam cumprido a sua, a culpa nãso era do cinamomo. Atravessou a sanga pelo passo do vime. Tinha histórias aquele vime. Ali pescara suas primeiras joaninhas (um dia uma Joana o pescou, mas isso já era outro causo), ali possuíra sua primeira ovelha. No tronco deitado à guisa de barranco, cavalgara a primeira égua. E numa tarde quente de dezembro, quando levava os animais pra aguada, encontrou Joana acocorada esfregando roupa nas pedras. Não resistiu, homem não é de ferro. O sabão caiu na correnteza, foi descendo, fazendo borbulhas sanga abaixo. Largou as rédeas do baio, que partiu num galope suave. A brisa dobrava as abas do chapéu de feltro, o barbicacho se enredava nos flecos do pala. Uma perdiz assustada alçou vôo, interrompida em seu passeio matinal. De um cardo a outro brilhavam babas-de-boi. Em zona de pedregal, os quero-queros mergulhavam com puas e gritos de guerra. Juvêncio galopava com o rebenque apoiado no lombilho, gesto pelo qual os Moreiras eram reconhecidos a léguas. Não que o baio precisasse de mango, no necesita el rebenque el que tiene buen cavallo, diz o paisano, mas em toda cancha de osso sempre há um atrevido implorando um mangaço. O campo havia mudado, e como! Nos tempos de rapazote, era só se chegar no bolicho e já se sabia onde havia bate-coxa. Tudo tinha terminado, hoje só sobrava jogo de taba e missa no último domingo do mês. Não havia mais churrasqueada em eleição, ninguém dava mais baile pra despachar as machorras. Não havia mais estímulo pra uma penca, já nem se podia matar negro em fandango que a Rural Montada não dava mais folga ao índio. Se um ia calmamente pela estrada, nunca faltava um caminhão ou jipe roncando para atirar o cavalo nas macegas. Qualquer dia o Aliás Bendigo juntava uma boa plata e botava armazém na cidade. E nada mais haveria pra se fazer no domingo. Não era por nada que a rapaziada mais nova se mandava pros povoados. O cavalo resfolegava, passou pra um trote largo. Ao passar pelo rancho das Tujas, o baio exibiu suas manhas de marchador. Mas as Tujas já tinham se mandado à la cria, há muito o rancho era tapera. A última que ficara se afogou numa cacimba ao saber que tinha doença ruim, ninguém consegue esquecer a infeliz nem beber daquela água. Só o baio não via isso, insistia em ser galante. Mulher da vida só no povo, agora. Os pagos ficavam cada dia mais tristes. Chegou cedo no bolicho, nenhum cavalo na frente. De longe avistou o Aliás no meio dos eucaliptos, molhando a cancha de osso. Certa volta foi descoberto um pelego enterrado numa ponta. Por mais clavador que fosse o índio, só dava culo. Não saiu morte porque ninguém sabia a quem matar. Ninguém falou nada, mexerico é coisa de china. Mas não houve quem não pensasse no Aliás. Ao chegar ao palanque, Aliás se aproximou com uma faca e uma chaira. - Buenas, Juvêncio. Me ajudas a coreá uma vaca? - Se não for roubada, te ajudo. Broma de mau gosto. Com três mangangás no peito, Juvêncio Moreira mordeu o pó do terreiro. Cumprida sua sina, o baio voltou ao trotezito pelo caminho real, os estribos balançando na manhã de domingo. sexta-feira, maio 07, 2004
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XII) Havia em Dom Pedrito uma pequena biblioteca no prédio da Prefeitura. Pequena, mas bem nutrida. Lá, degustamos Cervantes e Platão, Balzac e Maupassant, Diderot e Descartes, para desespero dos oblatos. A Biblioteca dos Séculos, coleção editada pela Globo, de Porto Alegre, era nossa festa. Adolescentes, provavelmente não chegamos a entender muito bem estes e outros autores. Mas deles ficou algo importante: havia muitas maneiras de se ver o mundo, quase todas divergentes, todas com maior ou menor parcela de razão. Os livros, em silêncio, mostravam-nos que não havia Deus, mas deuses, ou quem sabe até mesmo nenhum. Não havia a Lei, mas leis que mudavam mal se avançava na geografia. Não havia uma ética absoluta, eterna e imutável como um teorema, mas diferentes sistemas morais, que variavam conforme as épocas ou coordenadas. Em suma, morria o Dogma e crescia a Dúvida. "Divertida Justiça que um rio limita, erro aquém, verdade além dos Pirineus", disse alguém, hoje não saberia dizer se Pascal ou Voltaire, Rousseau ou Diderot. Mas a frase ficou. Não sei como reagiria hoje um adolescente à leitura de Cervantes. Mas ainda mexem comigo as palavras do Quixote, quando monta no Rocinante e sai mundo afora a desfazer tortos: Dichosa edad y siglo dichoso aquel donde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse em bronces, esculpirse en mármoles y pintarse en tablas, para memoria en lo futuro. Oh tú, sabio encantador, quienquiera que seas, a quien ha de tocar ser cronista desta peregrina historia! Ruegote que no te olvides de mi buen Rocinante, compañero eterno mío em todos mis caminos y carreras. Dom Pedrito deve seu nome a um fidalgo espanhol contrabandista, Don Pedro de Ensuateguy, que teria estabelecido no rio Santa Maria sua passagem, o Passo de Dom Pedrito. Não será por acaso que o Quixote chegou às nossas mãos, a fronteira gaúcha sempre esteve mais próxima da cultura hispânica que da brasileira. (É possível que hoje, a televisão do centro do país tenha recuperado aquela região para o Brasil). Em Gaúchos e Beduínos, Manoelito de Ornellas – excelente ensaísta gaúcho, relegado ao pó das bibliotecas – desenvolveu a fundo esta tese, o gaúcho platino como um espécime oriundo do mundo arábico, via península ibérica, e por isso foi ostracisado do mundo acadêmico. Viajando pelos descampados da Mancha, vi o Quixote mesmo sem ver ninguém nas estradas. Ele, ou seu espírito, vagavam pelo planalto, eu o vi, juro que vi, em cada curva de estrada. Só um analfabeto poderia vagar pela Mancha sem vê-lo. Nos 80, lecionando em Florianópolis, recebi de aluna uma das raras gratificações que tive na UFSC. Ela se queixava ao colegiado que, antes de minhas aulas, tinha certezas. Que depois delas estava confusa, não sabia mais em que acreditar. Ao tomar conhecimento da queixa, me senti feliz e plenamente professor: eu havia derrubado nela as crenças oficiais, aquelas mentiras tradicionais que pais e professores em geral transmitem a filhos e alunos, tipo Deus é um só e tu vais casar bonitinho na igreja, de véu e grinalda, Deus é único e o teu marido também, Deus existe e o aborto é um crime. E outras que tais. Esta é, a meu ver, a função principal do magistério, está lá em Sócrates e em sua maiêutica, está em Swift e em seu humor corrosivo, em Nietzsche e sua luta contra o deus cristão. "Considero que, pelo menos junto a um aluno, cumpri minha função de mestre" – respondi a meu perplexo interlocutor, o chefe de departamento. Verdade que jamais coloquei em dúvida o teorema de Pitágoras, afinal estamos no campo dos axiomas. Já o resto me parece discutível. sábado, maio 01, 2004
ESCRITOR DESCOBRE A AMÉRICA "O Código Da Vinci" é uma vertiginosa descida aos maiores segredos da história ocidental, que, tirando o fôlego do leitor, desvenda o que o autor se refere como "a maior conspiração dos últimos 2.000 anos" - que Jesus Cristo era um mero mortal e que sua santidade foi construída através dos tempos, para justificar o poder da Igreja Católica. Folha de São Paulo, 01/02/04 DOM PEDRITO: O PÂNTANO COMO FUGA conto in Correio do Povo, Porto Alegre, 20/07/1968 - ... ou vais deixar de amar um artista, apenas por temor ao sofrimento e dilaceração que isto implica? Por ocasião das cheias, o Santa Maria aumenta uns cinco ou seis quilômetros em sua largura. Ao descerem as águas, resta uma várzea lamacenta e extensa. Entardece. Afasto-me com ela da cidade e sentamo-nos diante desse transitório pântano, que exerce curioso fascínio sobre mim. A cidade fica exatamente às nossas costas. Os reflexos não agressivos das poças de água pútrida enviam-nos paz. Uma brisa constante que não dá trégua aos cabelos separa-nos do mau cheiro. O pensamento divaga, do mesquinho ao belo, das minhas possibilidades aos seus vislumbres de amplidão, do silêncio rouco e pensativo de Cíci às minhas mãos claras, punhos negros contra a grama cinza. Estamos deitados num promontório seco, à beira do lodaçal, virados um para o outro, absorvendo o que de plástico o pútrido oferece, distantes dos vinte mil homens secos da cidade. Simples habitantes. Eu estava fazendo tudo para que minha pergunta fosse a última. Passáramos a tarde conversando. Vã fase das palavras. Mas como levá-la ao meu pântano particular, sem dizer-lhe? Ela ficara atordoada ante minha última pergunta. Antes de responder-me, quase perguntou para onde iríamos. Apertei-lhe suavemente o braço, dirigindo-a para longe da cidade. Agradeci que sua resposta fosse esquecida. Caminhávamos leves, como se há pouco tivéssemos emergido de um banho total. Todos os lugares com possibilidades de acolher-nos insatisfaziam nosso consciente desejo de aproximação. Se os nativos vissem-nos de mãos dadas, sua reputação estaria perdida. Visitá-la em casa estava fora de nossas cogitações. Entrar comigo no hotel constituiria demissão do emprego, agressões e abordagens que lhe impossibilitariam a vida naquele pequeno aglomerado urbano. Passáramos a tarde sentados em um antiortopédico banco de praça, desajeitadamente virados um para o outro, sem um lugar decente – e permissível pelos ciosos cidadãos, que sem discrição alguma vigiavam os deslizes éticos de seu monstro sagrado – onde pôr as mãos. Que profunda e carnal percepção da sem-razão humana. Dom Pedrito: uma organização de perfeito funcionamento, visando impedir que um homem descanse a boca no bico dos seios de uma mulher, sem seguir as normas burocráticas usuais do rebanho, estabelecidas para quem quiser descansar a boca no bico dos seios de uma mulher. Caminhávamos para o ocaso, sedentos de sua paz sanguínea. Tirei-lhe as luvas de couro e aqueci suas mãos. Primeiras palavras da pele. Escapáramos do raio de ação embrutecedor e mesquinho do clima humano pedritense. Em cinco anos, ela não fenecera. Curioso. Todas as meninas que conheci em seus 15, 16 e 17 anos satisfizeram-se com um lustro de bocas joviais e olhares límpidos. As revi murchas, com vestes horrendas ocultando-lhes as formas, gordos anéis em qualquer dos anulares, ostentados a qualquer despropósito, gestos exemplarmente recatados. Sutiãs quase metálicos, protetores, calcinhas enormes, anti-sensuais, desenhadas sob alguma veste mais justa. Cinco anos. Eu crescera, ela conservara-se viva, a cidade mantivera perfeitamente seu ritmo de declínio. Desejei perguntar-lhe como preservara a saúde do olhar e dos lábios da doença intrínseca ao lugarejo, mas – justiça façamos às palavras – tal idéia era por demais complexa para uma transmissão simpática. Ainda que fracassasse o encontro, prometi-me não repetir o que até então fora meu grande erro. Os homens todos da cidade, inconscientes de suas impotências, a desejavam. O próprio delegado encarregara-se de virar a terra e carpir o jardim de sua mãe viúva. Pusera inclusive um guarda-noturno à sua disposição para, à noite, acompanhá-la da emissora onde fazia a locução até sua casa. Se todos a possuíam em seus sonhos lúbricos, ocultavam tais desejos sob uma elegante crosta de extrema delicadeza e prestatividade. O sol venceu-nos na corrida até o horizonte. Eu julgava, sinceramente, impraticável um pôr-de-sol naquela terra. Não gosto de sentir pena dos seres que amo. Ainda bem que a ternura associou-se à piedade que senti, ao notar a avidez com que ela absorvia aqueles raios de luz de uma intensidade provinciana. Uma sensação desagradável invadiu-me ao pensar no que restaria de minhas ambições se não tivesse fugido: aquele pouco era-lhe tudo. Chegados até onde o barro nos permitia, estendi minha japona num lugar seco, delicadamente fi-la deitar e apertamo-nos com fraca força, dizendo-lhe assim o que até então fora impossível. A brisa pura fazia com que sentíssemos nitidamente os contornos de nossas feições. O sol já bandeara a linha longínqua e a várzea toda mutou-se em cinza. Sapos e grilos iniciaram, numa harmonia improvisada, a bordar o silêncio. Éramos dois pequenos pontinhos negros ante o vento e a várzea, bem menores que seus olhos cor-de-espanto. Até então eu pensara ser possível uma relativa resistência à ação corrosiva do meio. Nosso relacionamento provou-me o contrário. Há cinco anos, ela fora apresentada a um adolescente tímido, que além de dizer “muito prazer”, disse-o trêmulo, gaguejando ante seu porte, sua voz, enfim, sua força. Apaixonados mutuamente, como bons adolescentes nos relacionávamos com todos, menos conosco mesmos. Ah! Falávamos muito de sexo, amor livre, emancipação da mulher. Ei-la agora temerosa ante minha voz grave, intimidada com minha calma e desembaraço preguiçoso. Ei-la pequena, mas viva. Fisicamente, eu não crescera até sua altura. Mas o tempo psicológico deu-me maturação mais intensa, longe de meu berço odioso. Ela não pudera fugir, exaurira quase que suas forças na apenas tentativa de não barbarizar-se. Aceradas que estavam minhas faculdades telepáticas, consegui ler em suas faces tristes: “Sonho: longe, só, sem passado. Começar de zero. Amputar, ainda que doendo, as raízes todas. Como se, então nascesse de mim mesma, num consciente e desejado autoparto. Crescer eu só”. Rocei a boca fechada e imóvel na sua, dizendo-lhe assim certos detalhes que havia omitido no primeiro gesto. Quando a insultara, na noite anterior (o primeiro encontro após minha longa fuga) não sabia ainda dos problemas psicológicos que a cidade lhe causara. As palavras cruas com que a esbofeteara foram de enorme eficácia terapêutica. Fizeram-na chorar e sofrer. Ela confessara-me alguns namoros, fora inclusive noiva do Evilásio. Estigmatizei-a: “foste imbecil ao ser assim complacente com os imbecis”. Só eu a merecia. Perdoei-a, pois estivera ausente. Sua doença. Os pedritenses têm concepções bastante diferentes das minhas quanto a esta palavra. Em uma reunião dançante, devidamente anatematizada por mim, ela sofrera um longo desmaio convulsivo, após ter-se sentido gradativamente sufocada. Desmaiara ainda uma outra ocasião, quando seu namorado, ao perder uma pequena disputa intelectual, tentara estrangulá-la. “É claro, não vamos chegar a extremos, mas alguma demonstração de virilidade é necessário darmos à noiva”, justificara-se em voz máscula. Diagnóstico de médicos locais: disritmia. Disritmia ou não, neste nosso encontro, embora eu portasse esses bacilos tão conscientizadores da condição humana, os de Koch, éramos as pessoas mais saudáveis do lugarejo. Dois seres quentes, humanos, conversando sem lógica alguma, absolutamente ininteligíveis pela subvida que fluía, diante de nós, na tarde na praça. Bem público da urbe, nenhum a possuía, pois todos pretendiam possuí-la. Cada qual atribuía-se direitos a seu corpo do mesmo modo que à sua voz. Seu emprego como locutora a fazia onipresente na cidade, suscitando comentários e alusões no cinza sem calor dos lares, no vermelho tépido dos cabarés, nas horas mecânicas do dia, nos minutos vivos das madrugadas. Se para escutá-la bastava a cada um ligar o receptor e girar o dial, para conquistá-la julgavam-se também todos aptos. Não chegariam a limites extremos, é claro, pois todo pedritense, na acepção lata deste termo, tem lúcida consciência de que o namoro é, não o amor, mas um prelúdio deste. Mesmo assim, reagiam curiosamente quando ela namorava alguém. Agrediam-na e injuriavam-na através de um eficiente ramal de donas-de-casa, sensatas mães de moças-de-família, estas inclusive. Mesmo os senhores casados da localidade sentiam-se então esbulhados. As próprias prostitutas, que com ela simpatizavam bastante, eventualmente não escondiam uma certa inveja cortante. A partir dos comentários, julgando-a amante deste ou daquele bon-vivant local, também julgavam irônico e inexplicável seu acesso a qualquer grupo social. Há muito o sol se pusera, nem mais resquícios seus restavam, e nós cada vez mais atolados no promontório seco, em nós mesmos e na paz das poças pálidas. Cada veste e cada minuto que caíam nos agrilhoavam cada vez mais a uma espécie de fatalidade imprevista. Na tarde, quando passeávamos, homens e mulheres aglomeravam-se curiosos atrás das portas de bares e lojas, buscando reconhecer-me. Ao olharmos para alguma vitrine, chegavam a diminuir os passos, na esperança de que voltássemos os rostos antes de cruzarem por nós. Quando, curioso, perguntei-lhe porque gostava tanto daquelas escassas vitrines, ornadas com um mau gosto exemplar, respondeu-me que, de fato, só gostava de uma. Não dos objetos, utensílios de plástico, nem da disposição dos mesmos, mas da profusão e intensidade das cores. Pena e ternura. Amo esta cidade quando os seus dormem. Além de Cíci, amei então os cães e os galos. Ladridos agressivos, lúdicos, profissionais. Sem convicção, todos, e por isso os amei, pois a convicção é que dá aos nativos uma ilusão de força. Nus, enrolados nas japonas. Esmago-a com desespero: certas sutilezas que havia esquecido no gesto anterior. A realidade em Dom Pedrito é mais caricatural que a própria ficção. Pela manhã, estivéramos no topo de um monumento intrínseco à cidade, uma colossal caixa-d’água, situada no centro geométrico da praça e da cidade, em cujo bojo funciona uma biblioteca. Conseguíramos as chaves com o gerente da hidráulica local, entramos pela biblioteca, algumas portas, escadas em ziguezague, e saímos num terraço. Dali já dominávamos toda a cidade, mas nossa ambição era maior. Mais algumas escadas, agora verticais, e acabamos trêmulos numa última plataforma de menos de dois metros quadrados de superfície. Estávamos no lugar mais visível de toda a cidade, víamos os comuns sentados nos bancos da praça, em frente ao clube, entrando na igreja, apanhando sol na porta do hotel, trabalhando nos bancos ou repartições. Divisávamos qualquer ponto da cidade e de qualquer ponto poderíamos ser vistos. Mas pedritense algum cogitaria... Poderíamos ter feito amor naqueles dois metros sobre as cabeças de todos. O lugar mais público e mais discreto. Mas nem beijá-la quis, pois o beijo situa-se no resvaladiço limite entre o desejo e a ternura. A brisa reboja no pântano, o cheiro é de barro bom. Com toda a ternura selvagem de sua raça na voz, sussurrou: - Xemboraihu... |
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