¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
segunda-feira, outubro 25, 2004
HUMORES LULESCOS Manchete de 1ª página da Folha de São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2004: LULA ESTUDA ABRIR ARQUIVOS DA DITADURA Linha fina:
Governo quer mudar decreto de FHC que permite manter documentos em sigilo, mas teme reação de militares ---------------------------- Manchete de 1ª página de O Estado de São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004:
Linha fina:
As esquerdas não nasceram ontem. Abertos os arquivos, abertos também serão seus assassinatos, delações, covardias, roubos, corrupções, depósitos em bancos no Exterior. Macaco velho não mete a mão em cumbuca. Em contrapartida, ainda hoje, segunda-feira, a Folha mancheteia, também na 1ª página: VIEGAS CONFIRMA ABERTURA DE INQUÉRITOS Linha fina: Ministro diz que 'alguma mudança será necessária' na lei que bloqueia o acesso a documentos da ditadura Questão que se impõe: quem tem autoridade neste país? O Comandante-em-chefe das Forças Armadas ou seu subordinado, o ministro da Defesa? Dúvidas de um pobre paisano.
sábado, outubro 23, 2004
O EMBUSTE DOS EXCLUÍDOS Andrés Santos, de Porto Alegre, me pergunta sobre o vocabulário utilizado pelas esquerdas e o real significado das palavras. "Cito como exemplo a palavra excluído que foi tão difundidada que é inclusive utilizada por gente 'bem esclarecida' que é anti-esquerda e que não se deu conta". Um dos melhores ensaios sobre o tema que conheço é de Roberto Campos, publicado há quatro anos. As armadilhas da semântica (27/02/2000) George Orwell, o escritor inglês que nos deu algumas das obras que melhor iluminaram o ambiente dos difíceis anos que duraram da Depressão à queda do Muro de Berlim, entre elas as duas terríveis sátiras 1984 e Animal Farm, foi antes de mais nada um homem de excepcional integridade. Firme nas suas convicções de esquerda, foi voluntário contra os franquistas, na Guerra Civil espanhola. Ferido em combate (numa campanha admiravelmente contada em Homenagem à Catalunha), enfrentou com coragem os comunistas, quando estes, na tentativa de assumirem o controle do movimento, traíram seus outros camaradas de esquerda. Foi depois objeto de um patrulhamento feroz que tentou transformá-lo numa "não-pessoa". Morreu em 1950 aos 47 anos. Águas políticas passadas, talvez. A União Soviética, a ex-formidável pátria do socialismo, não existe mais, esfarelada em repúblicas conflituosas. Para felicidade do gênero humano, não se realizaram as sombrias previsões orwellianas de 1984 - uma sociedade hipertotalitária, metida em guerras intermináveis, impondo ao povo um brutal controle do pensamento e da expressão -, o novopensar (newthink) e a duplafala (doublespeak). A televisão não se tornou um instrumento de massificação ideológica em favor do Big Brother, sendo ao contrário um instrumento de denúncia, que dificulta o ocultamento de selvagerias ditatoriais. As previsões de Orwell não se realizaram ao pé da letra. Mas os verdadeiros escritores têm o dom de entrever formas da realidade que escapam facilmente aos olhos da multidão. Porque alguma coisa do novopensar e do duplofalar se encontra em nosso quotidiano. Raramente as mensagens que a humanidade troca entre si são meramente descritivas. Em geral, atingem-nos mais pelas associações de idéias e sentidos. Não haveria poesia, nem literatura, nem mesmo prece, sem adjetivos, metáforas e toda a ilimitada teia de ligações que vão se estabelecendo entre as palavras, ao longo do tempo. Mas o que faz prece ou poesia pode fazer também intriga e malefício. Questão de intenção e de dose. Parece que mesmo línguas robustas, como o inglês, vêm perdendo a velha simplicidade por conta da duplafala. Nos Estados Unidos, parece praga. Não há muito, uma companhia que estava mandando embora 500 empregados esclareceu: "Não caracterizamos isto como dispensa de pessoal; estamos gerenciando nossos recursos administrativos". Há consultores que trabalham especialmente no ramo de mandar gente embora, e apresentam seus serviços como "consultoria para terminação e colocação externa", ou "engenharia de reemprego". No Canadá, um acidente de helicóptero foi higienizado como "desvio de um vôo normal". E os advogados do famoso jogador de futebol americano, O. J. Simpson, o tal que teria matado a mulher (em quem dava surras) e o amante dela, pintaram essa relação como mera "discórdia marital". E consta que na Universidade da Califórnia, em Berkeley, a turma de educação física passou a chamar-se de "departamento de biodinâmica humana". Exemplos inesgotáveis, alguns engraçados, outros ridículos. Mas embaçam a percepção da realidade, embora hoje não tão sinistros como no auge dos totalitarismos.Uma ilustração recente tem pegado por aí muita gente distraída. Temos ouvido muito a expressão "excluídos", para designar grupos de pessoas de baixa renda, ou supostamente marginalizadas. Há palavras apropriadas para as situações concretas: "pobre", "analfabeto", "doente", "desempregado", "drogado", por exemplo, designam situações em que determinadas pessoas objetivamente se encontram num dado momento. No resto da sociedade, espíritos decentes certamente sentirão um dever de solidariedade, e sem dúvida pensarão no que possa ser feito para mudar esse estado de coisas. A exclusão, no entanto, supre uma ação deliberada contra o excluído, no caso, essa gente pobre, desempregada etc. Portanto, subentende que alguém impeça à força que ela tenha acesso a bens que todos desejam. O "excludente" passa a ser indiciado como "culpado" por essa situação penosa. Essa generalização é safada, porque sub-repticiamente legitima todas as demandas de supostos "excluídos", às custas dos demais. Houve políticas deliberadas (e criminosas) de exclusão, como a nazista, contra os não-arianos, e a comunista, contra os não-proletários. Mas há formas de "exclusão" legítimas, e até indispensáveis à existência do indivíduo e da espécie. Os países costumam fechar suas fronteiras para não serem atropelados por massas de imigrantes deslocados de outras paragens. O abuso da palavra "excluído" é particularmente freqüente nas conferências internacionais. Muitos países se queixam de "excluídos" pela globalização, pela revolução tecnológica ou pelo liberal-capitalismo. Ao mesmo tempo praticam um nacionalismo excludente, que hostiliza capitais estrangeiros, supridores de poupança e tecnologia. Ou se impõem auto-mutilação tecnológica como o Brasil, com sua política de nacionalismo informático. Para não falar de países recipientes de ajuda externa, que gastam dinheiro em armamentos ou guerras tribais. Essa confusão semântica atrapalha a compreensão do desenvolvimento econômico. Antes do processo de acumulação que é a civilização, os bandos dos nossos primitivos tataravós viviam em "equilíbrio" com a natureza - quer dizer, em média, pouco mais de 10 anos, chegando a em torno de 20 ao tempo de Roma, e só alcançando 40 nas sociedades industrializadas, no final do século passado. Fome, frio, doença, eram a regra geral. E permanente guerra de pilhagem entre tribos e clãs. A escassez universal era a regra que gerava a violência. A aquisição da racionalidade tem sido um longo esforço humano de "inclusão" ao longo de milênios. A globalização é um fenômeno de "inclusão" e não o contrário. Pelo menos usar as palavras sem deformar a mensagem está nas nossas mãos. E é parte da solução. quinta-feira, outubro 21, 2004
PELO JEITO, NÃO MORREU Há 28 anos, publiquei uma coletânea de crônicas, escritas entre 1975 e 1976. Imaginei que o livrinho estivesse morto. Parece que não. Achei este artigo em um site de Portugal. Merci, Flamarion! outubro 14, 2004 A Força dos Mitos, de Janer Cristaldo Por Flamarion Daia Júnior Segundo o Aurélio, uma crônica é (no quarto verbete) um "texto jornalístico redigido de forma livre e pessoal, e que tem como temas fatos ou idéias da atualidade, de teor artístico, político, esportivo, etc., ou simplesmente relativos à vida cotidiana". É por um lado uma definição muito, digamos, limitada (pois não se faz crônicas apenas em jornais, embora seja em um sentido estritamente técnico um texto jornalístico) e muito longa, sem uma qualidade das definições, que é a concisão. Poderíamos dar uma "corrigida" nessa definição, e considerar a crônica um "texto redigido de forma livre e pessoal, e que tem como temas fatos ou idéias que interessem ao autor". Mas essa definição se torna muito abrangente: afinal, um diário de uma adolescente, uma carta de amor, um bilhete de um criminoso para seu advogado ou qualquer texto sem maiores preocupações técnicas sobre qualquer assunto que interesse ao autor seria uma crônica. Então, restringindo ainda mais um pouco, talvez fosse melhor chamar crônica a um "texto redigido de forma livre e pessoal, que tem como temas fatos ou idéias próprias do autor e dirigidas a um grande público". Pois o quer o cronista é muito certamente dizer ao público: "Eu existo, eu sinto, eu penso, e o que eu sou, sinto e penso pode ser interessante para vocês". O livro de crônicas A Força dos Mitos, de Janer Cristaldo, originalmente escritas para o jornal Correio do Povo*, é certamente interessante para nós, leitores. Não se pode dizer que os assuntos do livro estão mortos, pois muito do caos porque passava o mundo de quase trinta anos atrás (época das crônicas) ainda está nos perturba hoje com personagens diferentes em lugares um pouco, só, diferentes. Mas o mais interessante é que ainda diverte e por vezes encanta a argumentação inteligente e isenta, trabalhando com os fatos, como aparecem para o leitor de jornal, simplesmente. Aqui, deve se chamar à atenção para o material das crônicas de Cristaldo: não se trata dele, nem do que acontece diretamente a ele, mas principalmente dos principais assuntos do momento, como ele os vê, como ele os pensa e principalmente como ele os sente. Um filme de Bergman, claro, muito o faz pensar sobre a natureza humana, e quando ele escreve sobre o filme não o faz realmente sobre o filme, mas sobre o que ele, Cristaldo, sentiu ou pensou ao ver o filme - sento essa, essencialmente, a diferença entre uma resenha sobre uma obra e uma crônica inspirada pela obra em questão, e que faz a crônica ir além da obra. Fossem as crônicas de Janer Cristaldo apenas as reações de Janer Cristaldo face ao seu mundo (um mundo que envolve suas lembranças pessoais, seus amigos, os livros que leu e os filmes que viu), elas ainda assim interessariam ao leitor, pois o mundo em que ele viveu é interessante e muito dele faz parte do nosso, do dia a dia de um brasileiro de classe média urbana. Há mais, porém: são as reações, antes de tudo, de uma pessoa inteligente, com muito bom humor, e espírito. Espírito tem Janer Cristaldo quando associa as crises internacionais a uma suposta corrente como as que recebemos pelo correio (hoje em dia pelo e-mail), ou quando compara o machismo brasileiro as taras de Jack, o Estripador (Janer Cristaldo foi um dos lutaram contra a absurda tese de legitima defesa da honra para justificar o assassinato de esposas adulteras). Espírito que aparece quando ele pensa no que leva um homem a procurar um motel caro para uma "transa" que acaba mal, ou quando ele se lembra de Swift ao ler o noticiário internacional em sua Porto Alegre. Não mudou muito a natureza humana em trinta anos ("Infelizmente", diria Cristaldo). A Porto Alegre daquele tempo tem muito das grandes cidades brasileiras de hoje. E o mundo de então era muito parecido com o de hoje, com alguma diferença nos nomes talvez. Ainda vemos tipos grotescos se tornarem ditadores de países exóticos, celebridades por um dia envolvidas em fofocas meio pueris, meio bizarras, a malta se divertindo com a dor de seu próximo. Ainda nos divertimos conversando amenidades, e ainda paramos de conversar quando passa uma moça bonita. Tivemos a benção, pelo menos essa, neste nosso Brasil tão carente de uma intelligentsia realmente séria e de grandes obras nas artes, de termos muitos bons cronistas, homens que traduziram de forma leve e bem humorada a inadaptação tipicamente brasileira ao mundo moderno. Um deles, ainda desconhecido da maioria do público, é Janer Cristaldo. * As crônicas foram publicadas, em verdade, na Folha da Manhã. domingo, outubro 17, 2004
BRASIL RUMA AO BALBUCIAR Ricardo Bonalume Neto, excelente redator de ciências da Folha de São Paulo, nos trouxe há pouco uma notícia reconfortante: que os bilíngües têm massa cinzenta mais densa. Segunda a revista científica britânica Nature, aprender uma segunda língua modifica a anatomia do cérebro. E, quanto mais cedo se aprende, maior a modificação. O achado seria uma comprovação neurológica de algo que qualquer imigrante que tenha filhos sabe muito bem: crianças tendem a aprender idiomas com mais facilidade do que adultos. Pesquisadores do Reino Unido e Itália - prossegue a revista - fizeram imagens por ressonância magnética funcional do cérebro e constataram que os bilíngües têm uma densidade maior da chamada massa cinzenta na região cerebral conhecida como córtex parietal inferior esquerdo."O grau de reorganização estrutural nessa região é modulado pela proficiência obtida e pela idade de aquisição", afirmam Andrea Mechelli e colegas do Departamento Wellcome de Imageamento de Neurociência, de Londres, e da Fundação Santa Lúcia, de Roma, que assinam o estudo. Os primeiros testes foram feitos com pessoas que tinham o inglês como língua nativa - nos traduz Bonalume. Foram recrutados 25 monoglotas com pouca exposição a línguas estrangeiras. Mais 25 bilíngües "precoces", isto é, que aprenderam uma segunda língua européia antes de cinco anos de idade e a continuaram praticando. E 33 bilíngües "tardios", que só aprenderam outra língua entre os 10 e os 15 anos. Todos os voluntários tinham idades e grau de educação semelhantes. Independentemente deste mero dado físico, a densidade maior ou menor da massa cinzenta, não são necessárias grandes pesquisas para perceber-se que o bilíngüe - e mais ainda o poliglota - tem mais acuidade mental que o prisioneiro de um só idioma. O homem que fala várias línguas conhece étimos, a migração de uma palavra de uma língua a outra, suas diferentes acepções em diversos países ou períodos históricos. Claro que seu cérebro é privilegiado. No aprendizado das línguas - dizia-me um amigo poliglota - o mais difícil são as primeiras quinze. Depois destas quinze, tudo se torna mais fácil. O cérebro agiliza-se de tal forma que as demais passam a ser praticamente intuídas. Conheço de perto alguns destes seres. Eles já não mais estudam uma língua. Estudam grupos de línguas ao mesmo tempo, o que facilita o aprendizado. Ironicamente, nestes dias em que os cientistas constatam a superioridade do cérebro bilíngüe ou poliglota, mergulhamos em pleno governo de um pobre diabo monoglota. As conseqüências não se fizeram esperar. No início deste outubro - lemos ainda na Folha - o ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores, anunciou mudanças no Instituto Rio Branco, que forma os diplomatas do país. Não será mais eliminatória a prova de fluência em línguas estrangeiras na admissão ao curso. Ou pretender-se-ia que o cérebro de um reles diplomata fosse superior ao bestunto do chefe da nação? No que diz respeito a línguas, eliminatória será só o português. O candidato inseguro no vernáculo sempre fará melhor se desistir do Rio Branco e candidatar-se à Presidência da República. Terá boas chances de ser melhor sucedido. Até aqui, eram eliminatórias as provas escritas de francês, inglês e espanhol e a oral de inglês. Para Amorim - que vê isto como um grande avanço - o exame atual desestimula pessoas que não tiveram vivência no Exterior e que não aprimoraram conhecimentos de línguas estrangeiras. Nesta filosofia, reside todo o projeto do atual governo: nivelar por baixo. Quem um dia teve a curiosidade intelectual de estudar línguas, de abrir janelas para o mundo, aqueles jovens que foram - cheios de coragem mas sem um vintém - para os Estados Unidos ou Inglaterra, que lavaram pratos e venderam pastéis para subsidiar seus estudos de inglês, estes não terão mérito nenhum por seus esforços. A partir do ano que vem, o Itamaraty será invadido por monoglotas atrozes, que precisarão preparar-se desde o b-a-bá nos instrumentos fundamentais de seus ofícios. Esta medida é um remendo óbvio ao Programa de Ação Afirmativa, anunciado em março deste ano pelo Instituto Rio Branco. Num gesto de racismo às avessas, o Instituto passou a oferecer bolsas de estudo no valor de R$ 25.000,00, a candidatos negros que queiram ingressar na carreira diplomática. Se você um dia pensou nessa carreira, é melhor que seja negro e analfabeto. Se for branco e culto, vá tirando o cavalinho da chuva, que cultura não é moeda que tenha curso nesta era Lula. Onde se viu ser mais culto que o Supremo Apedeuta? Não bastasse este escândalo que aos céus clama justiça, o governo está distribuindo um kit "para combater racismo nas escolas". Será ensinado que não provém de ignorância expressões como "muié" (mulher), "simbora" (ir-se embora) e "zoiá" (olhar). O dicionário Aurélio está na alça de mira dos novos pedagogos, já que no verbete "cabelo" estão variantes que depreciam o negro: cabeça cocô-de-rola, cabelo ruim, cabelo de cupim e carapinha. Neste trote em que marcham as mulas, até o Monteiro Lobato arrisca a ir para a fogueira. Em O Presidente Negro, o escritor taubateano nos fala de um instituto de desencarapinhamento, já que na sociedade futura concebida pelo autor, os negros tinham conseguido libertar-se do estigma da cor, mas não da carapinha. Neste mesmo trote, vai também para a fogueira o samba já clássico, Nega do cabelo duro, de Rubens Soares e Davi Nasser. Não bastasse esta censura que, ao melhor estilo stalinista, pretende reescrever dicionários, em um dos livros do "kit racismo", a palavra mulato é condenada como termo desumano e pejorativo. E mulata será que pode? Esta glória da micigenação brasílica, cantada em prosa e verso deste que existiu, tanto em romances como em poesia, canções e sambas, terá virado palavrão? Vamos reeditar obras literárias, reescrever sambas, criar novas rimas, só para satisfazer a sanha racista destes burocratas stalinistas do Planalto que pretendem se apropriar da língua? Logo da língua, que quem faz é o povo? O atual governo começa a mostrar as garras. Não conseguindo censurar a imprensa, ataca o mal pela raiz: quer censurar as palavras. De quebra, desqualifica quem quer que queira fazer um uso correto do vernáculo. Não satisfeitos em desqualificar as pessoas cultas, os novos pedagogos colocam no ror de delinqüentes quem quer que aponte um erro de prosódia na fala de um aluno. O PT, finalmente, confessa seu rumo: a barbárie. Senhores professores de português, sejam "homis" ou "muiéres", abram os "zóio". Cuidado ao corrigir provas. Nem ousem reprovar um aluno por questões vernáculas. Pode render um belo processo por racismo. Crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, conforme reza a Constituição-cidadã. E muita cautela se você fala duas ou mais línguas. Será, ipso facto (ops!), um inimigo da nação. Caso você tenha adquirido alguma cultura, disfarce. É um perigo. Remember Pol Pot. Bárbaro é palavra intimamente ligada a balbuciar. Para os helênicos, bárbaros eram os estrangeiros que apenas balbuciavam o grego. Os neopedagogos de Brasília estão rumando, entusiasticamente, para lá. sábado, outubro 16, 2004
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXXIII) Na Folha de São Paulo, o agravamento do conflito. Comecei a trabalhar como redator de Internacional. Foi meu primeiro contato com o jornalismo eletrônico. Para enfrentar relaxado o terminal, já que pouco ou nada entendia dos comandos, tomava duas cervejas antes de ir para a redação. O recurso funcionava na Era da Máquina de Escrever. Mas dada a velocidade exigida pelo jornalismo computadorizado, qualquer ingestão maior de álcool transparece na tela: letras engolidas, dobradas ou invertidas dentro da palavra. Na medida em que passei a dominar melhor a máquina, deixei de lado o recurso inútil. Esta, me parece, é uma das transformações que o computador impôs ao jornalista: álcool, só depois de fechada a edição. Antes de ser contratado, vivia em Curitiba. A cidade é linda. Mas parada como água de poço, como diria um gaúcho. Nas primeiras semanas de São Paulo, comecei a vomitar diariamente pela manhã, mesmo antes de ter comido qualquer coisa. Atribuí o fenômeno à poluição, procurei médicos e não encontrei solução alguma. "Você pode trocar de cidade?", perguntavam-me os médicos. Poder, poderia, mas o mercado de trabalho estava em São Paulo. Em abril de 92, após um ano de arcadas e convulsões diárias, fui passar férias em Paris. Parei de vomitar. A cura parecia elementar, só que um pouco cara: para parar de vomitar, bastava sair de São Paulo e ir para Paris. Ao voltar para São Paulo, já antevia as arcadas matutinas, que nos últimos meses começavam a ocorrer à noite, na saída do jornal. Ao chegar, soube que fora demitido. Santo remédio, os vômitos desapareceram. Trabalhei depois seis meses no Estadão, náusea nenhuma. Voltei à Folha, voltaram os vômitos. Não vai nisto nenhuma ojeriza ao jornal, tampouco a meus colegas. A Folha foi um upgrade em minha trajetória, me fez descobrir São Paulo e o universo da informática. Também me reconciliou com os jovens. Durante o magistério em Florianópolis, minha confiança nas "gerações vindouras" ficou seriamente abalada. Exigir de meus alunos um mínimo de cultura histórica seria utópico: se escrevessem corretamente o português já era muito. Na Folha, encontrei uma criançada de vinte e poucos anos, boa de texto e de terminal, e com sangue frio para enfrentar qualquer autoridade ou desafio, e mesmo um fechamento de jornal desesperado. Ocorre que somatizo minhas rejeições. Considero o trabalho de redator como um trabalho manual. Ofício rigoroso, exige especialização e alta competência, conhecimento de línguas, agilidade e sangue frio. Mas é trabalho manual. Redator não opina, não discute, não polemiza. Pode até opinar de vez em quando, mas está atrelado à confecção diária do jornal. Escravo do deadline, raramente dispõe da pausa necessária para elaborar um artigo de mais peso. Sem nada entender de medicina, suponho que vomitar era a forma como meu organismo rejeitava um trabalho que me desagrava executar. Sem falar em implicações ideológicas. O jornalismo atual está sendo tratado como ficção. O massacre dos ianomâmis, noticiado em 1993, é o exemplo mais gritante deste tipo de jornalismo. Foi anunciada a morte de 16 índios, depois 40, depois 73, a cifra foi a 120 e voltou a cair para 16. Ora, não houve indício algum de massacre, cadáver algum que pudesse justificar denúncia de genocídio. A aldeia onde "teria" ocorrido o suposto massacre, descobriu-se depois, ficava na Venezuela. A cobertura do caso rolou por mais de mês na imprensa nacional e internacional, e jornal algum voltou atrás de suas informações. Artigos isolados puseram em dúvidas a denúncia. No entanto, nas hemerotecas permanecerá registrado, para a pesquisa dos historiadores, a ocorrência do massacre. Faz bem às viúvas do socialismo a ocorrência de um massacre de indígenas, perpetrado por brancos em busca de ouro. Logo, cria-se ficcionalmente o massacre e depois se trata de acreditar nele. Nas editorias de Internacional, a ficção é cotidiana. África do Sul, por exemplo, é um prato feito para manipulação. Quem leu diariamente os jornais de 93, se for leitor arguto, terá notado que em boa parte do ano, todas as segundas-feiras, no máximo na terça, era noticiada a morte de 20, 40 ou 60 negros durante os fins-de-semana na África do Sul. Invariavelmente, os jornais afirmavam: "pistoleiros mataram", "atiradores dispararam contra", "grupo armado atacou". As manchetes geralmente falavam em "violência política". O que não era noticiado é que os pistoleiros, atiradores ou grupos armados eram sempre negros que matavam negros. Não me recordo de ter visto um só telegrama noticiando a morte de negros por brancos na África do Sul em 93. Se ocorreu alguma morte de negro por branco, constituí exceção diante dos massacres semanais de zulus por khossas e vice-versa. Os surtos de violência na África do Sul, nos últimos anos, têm sido fundamentalmente tribais, e não políticos. Os massacres, iniciados geralmente nas sextas-feiras e terminando no domingo, foram sempre de negros contra negros, de tribo contra tribo. Como não é politicamente correto negro matar negro, o jornalista substitui a palavra negro para pistoleiros ou atiradores, quando se trata de falar do agressor. Quanto às vítimas, ele as trata por negro mesmo. No pé da notícia, uma declaração qualquer do líder afrikânder Terreblanche e está feita a manipulação: milhões de leitores passam a acreditar que a minoria branca sul-africana está exterminando os negros do país. segunda-feira, outubro 11, 2004
TEÓLOGO RIDES AGAIN Ano passado, surgiu no pensamento brasileiro mais um especialista em assuntos bíblicos. O novel teólogo chamava-se Luís Inácio Lula da Silva, e não esperou dez dias para deitar cátedra. Já no nono dia de governo, pontificou: "Não está escrito em lugar algum, nem mesmo na Bíblia, que alguém precisa ficar dias sem comer". Ora, além de o jejum ser preceito bíblico, a fome permeia o Livro de ponta a ponta. Na ocasião, comentei ser normal que um homem inculto ache que entende da Bíblia, só por ter ouvido trechos dela várias vezes no decorrer de sua vida. Já em um presidente, tal declaração depõe contra a cultura toda do país. Na reunião internacional de prefeitos realizada sexta-feira passada em São Paulo, o exegeta atacou de novo. "Temos que pensar não só com a cabeça mas também com o coração", disse então aos presentes, ao destacar que os pobres do mundo esperam que lhes seja estendida uma mão que possa "garantir o direito bíblico e constitucional" de comer três vezes ao dia. O Supremo Apedeuta da nação mais uma vez fez jus ao título. Não só sua cabeça, como também seu coração, andam pensando torto. No início de suas campanhas, com sua Weltanschaaung de pau-de-arara, prometia uma dieta de transatlântico de luxo: cinco refeições ao dia. Pelo menos está rumando à sensatez, hoje já fala em três. Quanto ao direito bíblico e constitucional de três refeições ao dia, parece que jornalista algum se preocupou em consultar a bíblia ou a constituição, para checar se o novel constitucionalista e teólogo se fundamenta em algum documento ao falar. Comecemos pela Bíblia. "Três vezes no ano me celebrarás festa", diz o Livro. "Três vezes no ano todos os teus homens aparecerão diante do Senhor Deus". Quando Balaão espanca uma jumenta, o Senhor abre a sua boca, e a jumenta pergunta a Balaão: "Que te fiz eu, para que me espancasses estas três vezes?" Quando Balac, filho de Sefor, rei de Moab, julgando que Balaão não tem coragem de combater Israel com as armas, manda-o amaldiçoar o inimigo. Em vão: "Para amaldiçoares os meus inimigos é que te chamei; e eis que já três vezes os abençoaste". Diz Dalila a Sansão: "Já três vezes zombaste de mim, e ainda não me declaraste em que consiste a tua força". O rei Davi lança-se sobre o rosto de seu amado Jônatas e inclina-se três vezes: "e beijaram-se um ao outro, e choraram ambos, mas Davi chorou muito mais". Salomão oferecia três vezes por ano holocaustos e ofertas pacíficas sobre o altar edificado ao Senhor. Quando Elias vê morrer o filho da viúva que o hospeda, estende-se sobre o menino três vezes, e clama: "Senhor meu Deus, faze que a vida deste menino torne a entrar nele". O Senhor ouve e o menino revive. Ameaçado pelos sírios, Jeoás, rei de Israel, consulta Eliseu. Este lhe diz para ferir com flechas a terra. "E ele a feriu três vezes, e cessou". Contra Jeoás se indigna o homem de Deus e diz: "Cinco ou seis vezes a deverias ter ferido; então feririas os sírios até os consumir; porém agora só três vezes ferirás os sírios". Jeoás fere três vezes Bene-Hadade, filho de Hazael, e recupera as cidades de Israel. Dario, o medo, baixa decreto determinando que qualquer um que, pelo espaço de trinta dias, fizesse uma petição a qualquer deus, ou a qualquer homem, exceto a ele, o rei, fosse lançado na cova dos leões. Daniel, ao saber do edital, abria as janelas de seu quarto que davam para Jerusalém e "três vezes no dia se punha de joelhos e orava, e dava graças diante do seu Deus". Disse Jesus a Pedro: "esta noite, antes que o galo cante três vezes me negarás". Quando Simão Pedro tem fome, um objeto desce do alto, no qual havia de todos os quadrúpedes e répteis da terra e aves do céu. Uma voz os manda matar e comer por três vezes. Simão Pedro não mata nem come e o objeto é recolhido aos céus. Na segunda epístola aos coríntios, Paulo diz ter sido três vezes açoitado com varas, três vezes sofrido naufrágio, três vezes roga ao Senhor que dele afaste um emissário de Satanás. Você pode ler a Bíblia toda, do Gênesis ao Apocalipse, e em momento algum encontrará a tal de obrigação bíblica de comer três vezes ao dia. Não satisfeito em posar de especialista em assuntos bíblicos, o Supremo Apedeuta ataca de constitucionalista, e qualifica as três refeições por dia de dever constitucional. Pego a bendita Constituição-cidadã de 88, tão precisa a ponto de especificar que o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal (sic!). Só uma única vez, no artigo 93, aventa-se uma tríplice obrigação: a promoção do juiz que figure por três vezes consecutivas ou cinco alternadas em lista de merecimento. E mais não diz. Sobre refeições, nem um pio. Desde há muito defendo a tese de que um nordestino não resiste a proparoxítonas e polissílabos, vide Augusto dos Anjos. Onde consegue encaixar um vocábulo assim, encaixa-o sem perguntar-se pela pertinência ou não do que diz. É o que deve acontecido, quando falou no direito bíblico e constitucional de comer três vezes ao dia. A menos que prevaleça a tese de Larry Rohter, Leonel Brizola e Hector Babenco. É espantoso como apenas duas palavras podem demonstrar a abissal incultura de um presidente. Adjetivos para Lula é como sal na salada. Ele os joga a torto e a direito em seus improvisos, sem importar-se onde caiam. Que profira tais sandices, entende-se. Faz parte de sua falta de leituras. O que não se entende é como toda a dita grande imprensa permaneça silente ante tais despautérios. domingo, outubro 10, 2004
IMBECIS INTELECTUAIS Não resisto a transcrever entrevista feita por Jamie Glazov, em 08 de outubro de 2004, com Daniel J. Flyn, autor de Imbecis Intelectuais: Como a Ideologia Faz Pessoas Inteligentes Apaixonarem-se por Idéias Estúpidas, transcrita em http://www.midiasemmMascara.org Título original, que pode ser comprado neste link: Intellectual Morons : How Ideology Makes Smart People Fall for Stupid Ideas. ---------------
quinta-feira, outubro 07, 2004
MOSCOU AVANÇA CÉLERE... ... rumo ao capitalismo. A propriedade privada já é admitida na Rússia. Se você quer comprar um apartamento, tudo bem. Pode até fazer escritura. Segundo pessoa bem informada, soube que você só compra o espaço interno do apartamento. Paredes e escadas continuam sendo propriedade do Estado. Assim, no dia em que o Estado quiser demolir suas paredes e escadas, você ainda continua proprietário de seu apartamento, embora este espaço seja virtual. Mais um passo à frente, senhores russos, e chegareis à Idade Média! domingo, outubro 03, 2004
DAS VANTAGENS DO ANALFABETISMO Estou sendo vítima de assédio. Não de assédio sexual. Mas religioso, que me parece ser crime mais grave. Não passa dia sem que católicos, marxistas ou espíritas me repassem bibliografias. Recebi até mesmo insinuações da exótica Bola de Neve Church, que descobriu no cérebro de camarão dos surfistas um promissor campo de plantio. Recebo mails de pessoas que se pretendem imbuídas de fé cristã, mas jamais leram a Bíblia. De uma surfista da Bola de Neve, por exemplo, recebi mensagem me recomendando ler os "Evangélios". Porque nós, "cristões"... dizia a menina, a propósito já nem lembro de quê. Ora, a Bíblia é livro muito bem escrito, e certamente melhor traduzido. Quem a leu jamais escreveria "evangélios" ou "cristões". Que o presidente da República assim escreva, não me espantaria. Mas não quem tenha lido o Livro. Isso é coisa de gente que não lê e só capta a oralidade. De gente que só ouve a lavagem cerebral do pastor. Quando o Supremo Apedeuta fala sobre saúde, nunca sabemos se está pronunciando a palavra com s ou ç. Essa é vantagem da oralidade. Escrever é um pouco mais complicado. Munir-se de bibliografias e estudar a fundo doutrinas é terrível perda de tempo. Imagine que você, para conhecer o cristianismo, tenha de ler desde a Bíblia a Santo Anselmo, Orígenes, Tomás de Aquino, Agostinho, Hans Kung e teólogos outros. Só a leitura da Bíblia já é empreitada que exige tempo e conhecimentos históricos. A Suma Teológica, por exemplo, tem doze volumes. Imagine então que você, ao ler a Bíblia, embrenhar-se pela Suma, Cidade de Deus, Ser Cristão, etc., passou a descrer do cristianismo. Busca então outra fé. Sem ir mais longe, o marxismo, como fizeram boa parte dos católicos que se desiludiram dos preceitos do Nazareno. Aí vem outra bibliografia colossal. Para entender os prolegômenos, você precisa ir às fontes, desde os socialistas utópicos a Hegel, Engels e Marx. Teria depois de ler aquele calhamaço religioso travestido de pensamento científico, O Capital. Depois os comentaristas, que são centenas. Mais os dissidentes. Só aí, você empenhou metade de sua vida. Digamos então que, dadas as reviravoltas do século, você perdeu a fé no marxismo. Procura então outra. Espiritismo, freudismo, talvez islamismo. Novas bibliografias. Você vai desperdiçar sua vida lendo, sem talvez chegar a nada. Recebo continuamente sugestões bibliográficas. Como se livro fosse atestado de verdade. Ora, um olhar perfunctório sobre as crenças que o mercado oferece, nos mostra sobejamente que os livros têm sido os objetos mais mentirosos da história da humanidade. Conheço não poucos destes eternos migrantes. O mais conhecido deles foi Roger Garaudy. Do catolicismo migrou para o marxismo, percurso banal no Ocidente. Insatisfeito com o marxismo, refugiou-se no islamismo. Em Porto Alegre, conheci um jornalista que repetiu este turismo espiritual. De católico virou stalinista e do stalinismo migrou para o islamismo. Me consta que morreu virando o bumbum pra lua na hora das preces e cumprindo o ramadã. Às vezes, a ordem do percurso se inverte. Do marxismo passam ao islamismo e do islamismo ao catolicismo. Constituem um exemplo perfeito do antigo axioma: a ordem dos fatores não altera o produto. São eternos buscadores de fés, e não encontram sossego fora de uma crença em um Absoluto qualquer. Recentemente, recebi vasta bibliografia sobre espiritismo, de um leitor com alma de apóstolo. Surpreendeu-se quando confessei-lhe ser um estudioso de religiões. Não entendia como um estudioso de religiões pudesse ser ateu, quando é precisamente o estudo aprofundado das religiões o que nos leva ao ateísmo. Revelei ter também uma extensa biblioteca marxista em casa, sem nunca ter sido marxista. Então você pode começar a ler Kardec, me sugeriu. Declinei o convite. Disse-lhe que só me interesso pelas grandes mentiras da humanidade, não me sobra tempo para as pequenas. Passei outro dia no setor de livros da Fnac. Estantes e mais estantes de ficção. Mas deixemos estas de lado. Ficção, por definição é mentira. Ao comprarmos um romance, sabemos que não se trata de uma história real, mas de fruto da imaginação. Ficção não é o problema. A mentira mais sutil está nos ensaios, que pretendem dissertar sobre verdades. Prateleiras e mais prateleiras de livros apologéticos sobre o cristianismo, catolicismo, protestantismo, islamismo. Tudo mentira. (Excluo disto os estudos sérios sobre religião, mas estes são raros). Mais prateleiras de auto-ajuda. Tudo embuste. O mercado da auto-ajuda cresceu a tal ponto que até mesmo um líder religioso, que vive da caridade pública enquanto não realiza seu sonho de uma teocracia, o Oceano de Sabedoria - conhecido também por Dalai Lama - resolveu nele investir. Paulo Coelho e Lya Luft também. Não por acaso, muitas vezes os encontramos juntos na lista dos autores mais vendidos, e não estou fazendo trocadilho. Sem falar em misticismos outros, psicanálise, astrologia, budismo, bruxaria, Wicas, feng shui, quiromancia, xamanismo, bruxaria, cabala, lingüística, neurolinguística e sei lá quantas outras religiões, crenças e teorias, que seres humanos mais dotados para o engodo criaram para enganar seus próximo, mais vulneráveis à vigarice . Houve época em que as obras marxistas cobriam paredes. Literatura sobre Cuba virou gênero literário, cada livraria tinha uma estante exclusiva dedicada a Castro e ao Che. Tudo mentira e nada mais que mentira. Nestes dias de indústria do livro, procurar neles verdades é aposta arriscada. No mais das vezes, o livro é instrumento de proseletismo e enganação. Diz um provérbio oriental: quem acredita em tudo que lê, melhor não tivesse aprendido a ler. |
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