¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
sábado, março 31, 2012
JORNALISTAS E COVARDES Quem não lembra dos anos 80 e início dos 90, quando a melhor e mais barata maneira de comprar um computador era telefonar para Ciudad del Este, no Paraguai? O governo militar havia decretado a reserva de mercado da informática e quem não quisesse as carroças nacionais tinha de arcar com altos impostos de aparelhos importados. A menos que apelasse a esse importante assessor internacional de compras, o contrabandista. Que acabou sendo um agente da modernização informática do Brasil. Meu primeiro computador, comprei-o em 90. Direto do Paraguai. Era o must da época. Disco rígido enorme, 40 Mb. Atenção, eu disse 40 megabytes. Paguei quatro mil dólares, em verdinhas, e saía muito mais barato que um aparelho nacional. Sem falar que, ao comprar um computador aqui, eu tinha de preencher um cadastro quilométrico, que só faltava perguntar por meu signo zodíaco. Com meu assessor internacional de compras, burocracia nenhuma. Eu vivia em Curitiba. Telefonei para uma loja em Ciudad de Leste e, dois dias depois, recebia em casa meu PC. O contrabandista pegou meu cheque e não me pediu dado algum. In illo tempore, como diziam os evangelistas, viajar ao estrangeiro significava voltar com a bagagem cheia de garrafas. Não lembro quanto custava um Ballantines aqui. Mas em Paris fiquei perplexo ao comprar um, em um supermercado, pelo equivalente a dez dólares. O mesmo diga-se dos vinhos. O leitor mais antigo há de lembrar que os uísques importados traziam uma complicada tampa de segurança, para evitar falsificações. Na França, a tampa era singela, bastava desenroscar. É que na França não havia reserva de mercado. Uísques e vinhos estrangeiros, na época, conferiam status a quem os consumisse. Hoje, ninguém gosta de pronunciar o nome de quem nos liberou, brasileiros, desta interdição de consumo do melhor a preços acessíveis. Foi Collor de Mello, com a segunda abertura dos portos no país. As classes menos abastadas passaram então a ter acesso a carros que não eram carroças, a computadores mais ágeis e a vinhos e uísques de todas as procedências. Com isso, o brasileiro médio aperfeiçoou o paladar e grau de exigência, através do contato com os produtos de fora. Recentemente, o Estadão fez um levantamento no qual identificou quarenta medidas do governo Dilma, aplicadas ou em análise, de protecionismo da indústria nacional. O esforço engloba desde medidas abrangentes como intervenção no câmbio, maior fiscalização nos portos e preferência a produtos nacionais em licitações, até sobretaxas para produtos específicos, elevação de impostos só para importados e a renegociação do acordo automotivo com o México. Segundo o jornal, desde o início da crise em 2008, o ministério da Fazenda já alterou 13 vezes a alíquota e/ou o prazo do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para frear a entrada de dólares - seis só no governo Dilma. O Banco Central também intervém rotineiramente no mercado de câmbio para impedir a alta do real. Em março do ano passado, comentei o aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) para as compras feitas em cartão de crédito no Exterior. Desde então, o estrangeiro ficou 4% mais caro para todo brasileiro. Se antes você pagava 2,38 reais por 100 reais gastos, a partir de então passou a pagar 6,38. Em mil reais, 63,80. Em dez mil, que é uma despesa viável em cartão de crédito para uma viagem, 638 reais. Quase a metade de uma passagem de ida e volta a Paris. A medida pretendia conter a evasão de divisas, em virtude da baixa cotação do dólar. Não conteve coisa nenhuma. Os brasileiros continuaram viajando com entusiasmo. Bem que fazem. Mesmo com o aumento do IOF, viajar continua sendo convidativo. Com o que se paga por uma entrada em São Paulo, temos uma refeição completa em Paris ou Madri – entrada, prato principal, sobremesa e, conforme o restaurante, meia jarra de vinho. Até aí, nada de novo. Semana passada, Veja convocou seu estado-maior para a primeira entrevista exclusiva de Dilma Rousseff à revista. Dela participaram o diretor de redação, Eurípedes Alcântara, e os redatores-chefes Lauro Jardim, Policarpo Júnior e Thaís Oyama. Lá pelas tantas, os bravos jornalistas perguntam à ilustre entrevistada: - Quais as diferenças entre se defender e recorrer ao protecionismo? Dilma, como se estivesse falando a uma platéia de colegiais desinformados, responde serenamente: - O protecionismo é uma maneira permanente de ver o mundo exterior como hostil, o que pode levar ao fechamento da economia. Isso não faremos. Já foi tentado no passado no Brasil com conseqüências desastrosas para nosso desenvolvimento. Cito aqui o caso da reserva de computadores, que, nos anos 80, atrasou a modernização do parque industrial brasileiro e nos privou de tecnologias essenciais. Não vamos repetir esse erro. Não vamos fechar o país. Ao contrário, queremos investimentos estrangeiros produtivos. Isso não faremos, diz a presidente. E joga a conta para os governos militares. Os bravos jornalistas de Veja sequer reagem. Passam à pergunta seguinte, sem questionar o despautério proferido por Dona Dilma. Como se editor e redatores-chefes jamais tivessem ouvido falar do protecionismo do governo aos produtos nacionais. A revista, tão valente em sua oposição ao governo, se acovarda ante a proximidade física da presidente. A mesma covardia é assumida pela Folha de São Paulo. Clóvis Rossi, o enviado especial a Nova Déli, para a cobertura da viagem da presidente à Índia, escrevia ontem: “A presidente Dilma Rousseff retomou ontem seu tema recorrente em torno da crise internacional, ao condenar "políticas expansivas que ensejam uma guerra cambial e introduzem no mundo novas e perversas formas de protecionismo". E mais não disse o bravo enviado especial. É que as formas perversas de protecionismo se referiam “à catarata de recursos que os bancos centrais dos países ricos estão despejando em suas economias para destravá-las, o que provoca sobra de dinheiro e, por extensão, a invasão de mercados, como o brasileiro, que oferecem juros atrativos”. Quando falava em protecionismo perverso, obviamente Dona Dilma não se referia ao protecionismo de seu governo. E assim marcha nossa imprensa. Há jornalistas que são leões quando protegidos nas baias das redações. Mas que baixam vilmente a cerviz quando na presença do poder. sexta-feira, março 30, 2012
UMA PESQUISA FAJUTA Cerca de 75% dos brasileiros jamais pisaram em uma biblioteca, diz pesquisa do Instituto Pró-Livro, realizada ano passado, que se pretende o mais completo estudo sobre comportamento do leitor. Que cerca de 75% dos brasileiros jamais tenham pisado em uma biblioteca, vá lá. Mas isto nada tem a ver com o comportamento do leitor. A pesquisa fala de bibliotecas públicas. Sem ir mais longe, eu, que sou leitor inveterado, não freqüento bibliotecas públicas há uns bons trinta anos. Mas freqüento a minha todos os dias. Além do mais, o IPL parece ignorar os tempos em que vivemos. Biblioteca, hoje, pode estar em um computador, tablet ou pendrive. Não gosto de bibliotecas por razão da mais simples. Meu modo de apoderar-me de um livro é sublinhar. Como não posso sublinhar livros de biblioteca alheias, prefiro freqüentar a minha. Neste sentido, não gosto nem de livro emprestado. Se o livro me interessa, trato de comprá-lo e fico com ele. Da mesma forma, não gosto muito de emprestar livros. Se o livro é extraviado, perdi não um livro, mas uma leitura. Uma biblioteca foi fundamental em minha juventude, a Municipal, de Dom Pedrito, instalada na época no prédio da Prefeitura. Havia só uma livrariazinha na cidade, a do Naziazeno, e nela não chegavam os clássicos. Foi lá que me iniciei, em meus 14 ou 15 anos, em Platão, Cervantes, Descartes, Montesquieu. Para desagrado dos padres oblatos que administravam o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio. Eles preferiam que lêssemos menos. Autores que nos faltavam, mandávamos buscar em Rivera ou Montevidéu. Foi como tomei contato com José Ingenieros, para desespero do clero local. Como gosto de ler ao lado de um bom vinho, minhas salas de leitura preferidas são os bares. Foi hábito que adquiri em Paris. Desde os primórdios da Sorbonne, os cafés do Quartier Latin eram a sala de leitura ideal dos estudantes, pois tinham calefação. O hábito perdura até hoje e às vezes entramos em bares onde acabamos falando baixinho, para não atrapalhar a leitura dos clientes. Este hábito está disseminado por toda Europa. Em Viena, estive em um café que já teve trezentos jornais à disposição de seus habitués. Quando estive lá, teria uns cinqüenta. O ambiente é até um pouco escuro. Mas as mesas dispõem de lâmpadas baixas, adequadas à leitura. Foi lá também - acho - onde encontrei um bar que oferecia a seus clientes uma razoável biblioteca. Para a presidente do IPL, Karine Pansa, os dados mostram que o desafio, em geral, não é mais possibilitar o acesso ao equipamento, mas fazer com que as pessoas o utilizem. "O maior desafio é transformar as bibliotecas em locais agradáveis, onde as pessoas gostam de estar, com prazer. Não só para estudar." Boa idéia. Para começar, poderiam contratar garçons e oferecer uma boa carta de vinhos. A biblioteca é um lugar até o qual devo deslocar-me para ler. Ora, prefiro ler sem sair de onde estou. Há livros, é claro, que só lá existem. Mas estes livros são buscados por pesquisadores, não pelo leitor comum. A última biblioteca que freqüentei foi a Bibliothèque Nationale de Paris, BeNa para os íntimos. Foi no final dos 70. Ocorre que os livros de minha pesquisa não mais existiam em livrarias. Depois disso, diria que jamais entrei em tais instituições. A não ser como turista. Há muita biblioteca na Europa que não é biblioteca, mas museu. Há dois anos, visitei a Old Library, em Dublim. Linda, solene, vetusta, repleta de incunábulos. Nela, pude contemplar as páginas com iluminuras do Book of Kells, uma das mais antigas versões da Bíblia. Mas não vi nenhum leitor em suas salas. Só turistas passeando por seus corredores. Como quem vai a uma catedral. Não para rezar, mas para admirar sua arquitetura e obras de arte. Nos anos 80, fui convidado pelo governo sueco para passar duas semanas no país. Lá, visitei a Carolina Rediviva, a biblioteca de Uppsala, onde li inclusive manuscritos em sueco de José Bonifácio de Andrada e Silva. Ah! Tive também a honra de visitar a casa onde nasceu Karin Boye, de quem eu havia traduzido Kalocain. Guiado pela mulher do diretor da biblioteca, fui introduzido no Santo dos Santos, isto é, a sala onde está a Bíblia de Prata - o Codex Argenteus – assim chamado por ter sido escrito com tinta prateada. É o texto mais conhecido em gótico, língua germânica já extinta. Não chega a ser uma bíblia, mas um evangelário, ou seja, um livro contendo partes dos quatro evangelhos. O nome dos evangelistas e as três primeiras linhas de cada evangelho são ornadas com letras de ouro. É certamente o livro mais raro que já vi em minha vida – e já vi muitos, inclusive a Gramática Castellana, de Nebrija. Devo ter passado por quatro ou cinco grades trancadas a sete chaves para chegar até a Bíblia de Prata. Mas não era disto que queria falar. Uppsala é uma cidade universitária e teria na época 185 mil habitantes. Minha guia tinha uma queixa. Que o governo liberava verbas para aumentar as dependências da biblioteca, mas era avaro no que dizia respeito ao acervo. Quantos livros tem aqui? – perguntei. Nosso acervo é pequeno – me respondeu a moça, desolada -. Temos apenas quatro milhões de exemplares. Em meus dias de Madri, a rigor teria de apelar à Biblioteca Nacional, no Paseo de Recoletos. Acontece que para chegar lá há alguns acidentes de percurso. Do lado de cá do Paseo, estão dois dos mais antigos e lindos cafés de Madri, o Gijón e o El Espejo. Nunca consegui atravessar a avenida. Mas tenho muitas horas de leitura naqueles dois cafés. Sem falar que a espera entre a comunicação e o recebimento da obra exigia pelo menos uma hora. Sem que eu pudesse entrar com algum livro ou jornal para ler enquanto esperava. Ora, não consigo ficar uma hora olhando o vazio. Segundo a pesquisa do IPL, vão à biblioteca freqüentemente apenas 8% dos brasileiros, enquanto 17% o fazem de vez em quando. Isso não quer dizer que brasileiro não leia. Vão à biblioteca pesquisadores... e pessoas que não têm o hábito da leitura. Quem gosta de ler monta a sua. Por outro lado, se há livros que você encontra só nas bibliotecas, há outros que só existem em livrarias. Ainda segundo o mesmo estudo, o brasileiro lê em média quatro livros por ano e apenas metade da população pode ser considerada leitora. A Bíblia aparece em primeiro lugar entre os gêneros preferidos – como se a Bíblia fosse um gênero – seguida de livros didáticos, romances, livros religiosos, contos, literatura infantil, entre outros. Se a escassa freqüência às bibliotecas não significa que brasileiro leia pouco, isto tampouco quer dizer que brasileiro leia. Nem mesmo quatro livros por ano. Bíblia não conta, é imposição de igrejas e seitas. Pelo que conheço desta gente, geralmente só usam a Bíblia para portá-la sob o sovaco. Ou para papaguear versículos como um mantra. Isto não é ler. Livro didático muito menos. É instrumento de ensino e imposição das escolas. Ler, a meu ver, é buscar leitura sem que a leitura seja imposta. Assim sendo, é bastante provável que um brasileiro não leia nem mesmo quatro livros por ano. Entre estes leitores, devemos incluir os de Paulo Coelho, padre Marcelo, Gabriel Chalita. Melhor não tivessem aprendido a ler. A pesquisa levou em conta apenas os livros em papel. Por mais que editores, distribuidores e livreiros não gostem desta idéia, ebook também é livro. E as bibliotecas digitais, portáteis e o mais das vezes gratuitas, só têm aumentado nos dias que correm. O IPL ignorou o século em que vivemos. Fora da leitura não há salvação, costumo afirmar. Não é preciso fazer pesquisa para concluir que brasileiros lêem pouco ou quase nada. Basta ver os governantes que elegem ou os ídolos que cultuam. quinta-feira, março 29, 2012
BENTO XVI LEGITIMA DITADURA CASTRISTA Não pretendia voltar ao assunto. Mas leitores me chamam a opinar sobre a viagem do vice-Deus a Cuba. Nem tanto sobre a viagem, mas sobre os ternos olhares trocados por Ratzinger e Fidel Castro. Cá entre nós, nada vejo de anormal. João Paulo II também já trocou afagos com o tirano. É curioso constatar que quando um Fernando Henrique ou um Lula abraçam Castro, um alarido de católicos indignados se arma na mídia. Quando um papa abraça o mais antigo ditador do planeta, o silêncio é de ouro nas hostes de Roma. Mas isso de abraçar tiranos é rotina entre potestades. Diplomacia oblige. E o Bento deve estar de olho no rebanho da ilha, já exausto de comunismo e santeria. Ratzinger fez um chamado aos cubanos para renovar a fé e construir uma nova sociedade mais justa e aberta com a ajuda da Igreja Católica, depois de cinco décadas de socialismo. Até aí, nada inconveniente ao regime. Suplicou à Virgem pelos prisioneiros, tendo o cuidado de não falar em prisioneiros políticos. Já que foi recebido por Raul e encontrou-se com Fidel, melhor faria se suplicasse a estes pela abertura das prisões. Em vez disso, papagueou como uma Dilma, Tarso ou Luciana Genro, ao condenar o embargo financeiro feito pelos Estados Unidos, que chamou de "medidas econômicas restritivas, impostas fora do país, um fardo injusto para este povo". É um homem de extraordinária coragem intelectual. Em Havana, não disse uma palavrinha contra a ditadura dos Castros. Preferiu, destemidamente, xingar o governo americano. O serviço de informações do Vaticano deve estar com seus arquivos desatualizados desde décadas. Que embargo é esse, no qual a colônia de cubanos de Miami sustenta com seus salários os parentes que não conseguiram fugir da ilha? Isso sem falar que empresários do Ocidente todo há muito estão investindo em turismo e hotelaria na Disneylândia das Esquerdas. Não vi, nos jornais que costumo ler, nenhum comentário sobre a pontifícia covardia. Em fotos que inundaram as primeiras páginas, vemos Bento apertando carinhosamente as mãos do assassino e torturador, ou falando na Praça da Revolução, com a efígie do celerado argentino Che Guevara ao fundo. Enfim, apertar as mãos de um torturador é café pequeno para o representante de uma Igreja que fez da tortura um método de apostolado e teve torturadores sentados na cadeira de Pedro. Era uma bela tarde do ano da graça de 1385. Esta é uma história que gosto de contar e recontar, já que ninguém a conta. Sua Santidade o papa Urbano VI passeava inquieto pelos jardins do castelo de Nocera, na Itália. Por mais que aguçasse os ouvidos, não ouvia a música que gostaria de ouvir. Naquele ano, seis cardeais foram acusados de conspirar contra Sua Santidade. Que, incontinenti, os jogou numa cisterna do castelo em que habitava. A cisterna era tão estreita que o cardeal di Sangro, grande e corpulento, não podia nem mesmo se espichar. Foram aplicados a estes infortunados todos os métodos postos em honra pela Inquisição. Quando se tratou do cardeal de Veneza, Sua Santidade confiou o trabalho sujo a um antigo pirata, que ele havia nomeado prior da Ordem de São João, na Sicília, com a ordem de aplicar a tortura à vítima até que o papa ouvisse seus berros. O suplício durou desde a manhã até a hora da janta. Durante este tempo, Sua Santidade passeava no jardim, sobre a janela da câmara de tortura, lendo seu breviário em alta voz, de maneira que o som de sua voz lembrasse ao executor as ordens que ele lhe havia dado. Mas foi em vão que o pirata apelou aos recursos da polé e do cavalete. Embora a vítima fosse idosa e enferma, só foi possível extrair dela um único grito: "Cristo sofreu por nós". Isso sem falar na história de Formoso, papa desde 891 até sua morte em 896. Seu sucessor Estevão VI trouxe à tona o juízo de sua proclamação. Estevão acusava seu predecessor de haver ocupado o trono de Pedro ilegitimamente. Como Formoso havia falecido nove meses antes, foi preciso exumá-lo para que estivesse presente no processo que o condenou. Seu juízo póstumo passou a ser conhecido como o Concílio do Cadáver. Como Formoso não conseguiu negar as acusações, foi condenado. Cortaram-lhe os três dedos que havia usado em vida para bendizer e seus restos foram lançados ao Tibre. Isso sem falar em Sérgio III, que inaugurou o período chamado pelos historiadores de pornocracia, como também de "reinado das prostitutas". Ou em Alexandre VI, amante de sua filha, Lucrécia Bórgia, que por sua vez era também amante de seu irmão, o cardeal César Bórgia. Alexandre VI organizou no Vaticano famoso baile das castanhas, em que sessenta prostitutas nuas dançaram para os cardeais no Vaticano. Foram jogadas castanhas ao chão, e as bailarinas tinham de apanhá-las. Mas não com as mãos. Mas não precisamos ir tão longe no tempo para encontrar papas cujos feitos aviltam qualquer doutrina. Em dezembro de 2009, Bento XVI nomeou Pio XII "venerável", o que abre caminho para beatificação e possível canonização. Pio XII é o papa que foi conivente com o nazismo. Velha tradição de uma Igreja que teve seu território, o Vaticano, doado por Mussolini. Que faz um papa? – quis saber Fidel em seu encontro com Bento. Ora, comandante, os papas não mais ordenam torturas nem organizam bailes memoráveis. Um papa, hoje, faz política, proselitismo e apelos pelo paz. Serve também para legitimar junto às nações do Ocidente o mais antigo ditador da América Latina e a mais longeva ditadura do mundo. quarta-feira, março 28, 2012
FINALMENTE MORRE UM HUMORISTA NO BRASIL A imprensa nacional saudou, na semana passada, a morte de um humorista. Em verdade, quem morreu foi um piadista vulgar. O humorista morreu hoje. Millôr Fernandes, enfim um escritor sem estilo, como se definia. Acompanho Millôr desde meus dias de guri, quando assinava coluna em O Cruzeiro. Guardo até hoje comigo sua “Verdadeira História do Paraíso”, em dez páginas, publicada em outubro de 63, que lhe valeu a expulsão da revista. "Eva, de repente, descobrindo uma bela cascata, resolveu tomar um banho de rio. A criação inteira veio então espiar aquela coisa linda que ninguém conhecia. E quando Eva saiu do banho, toda molhada, naquele mundo inaugural, naquela manhã primeval, estava realmente tão maravilhosa que os anjos, arcanjos e querubins, ao verem a primeira mulher nua sobre a Terra, não se contiveram, começaram a bater palmas e a gritar, entusiasmados: "O AUTOR! O AUTOR! O AUTOR!". P.S. - Este discurso do Todo-Poderoso está sendo divulgado pela primeira vez em todos os tempos, aqui neste livro. Nunca foi publicado antes, nem mesmo pelo seu órgão oficial, a BÍBLIA". Fechava a historieta com chave de ouro: “Toda essa pressa, demonstra-o incompetente. Porque fazer a humanidade em sete dias, Se tinha a eternidade pela frente?” Nos anos 80, encontrei Millôr em um restaurante da Avenida da Rendeiras, em Florianópolis, acompanhado pela Cora Rónai. Me apresentei como seu freguês de livreta e conversamos boa parte da tarde. Comentei ter recortado a “Verdadeira História” da Cruzeiro. - Não acredito. Não tens idade para isso. Tinha. E recitei alguns trechos da história. Mas passo a palavra a Millôr, para que conte o episódio. - Posteriormente, a história foi apresentada, também, na TV Tupi do Rio, e num espetáculo teatral, Piftac-Zigpong, antes de ser vendida como matéria especial com contrarecibo e pagamento adiantado, pois eu conhecia bem a administração da empresa, para a revista O Cruzeiro, em maio de 1963. A revista, creio que por motivos de programação, só publicou a história seis meses depois, em outubro, ocasião em que eu viajava pela Europa. Uma noite, estando numa festa em Lisboa, me lembro de que havia, na festa, uma ilustre companhia, desde a senhora Princesa da Fátima à não menos senhora condessa de Paris, pois eu, Proust e Ibrahim Sued estamos sempre nessas, o cantor Juca Chaves se aproximou de mim com aquele ar satânico de quem vai anunciar a repetição do terremoto de 1755 e perguntou: "Você viu o que O Cruzeiro escreveu contra você?" Vi no dia seguinte, na embaixada. - Na primeira página da revista, na qual eu tinha trabalhado 25 anos (seis meninos, tínhamos elevado a vendagem da revista de 11.000 a 750.000 exemplares semanais, a maior da imprensa brasileira em todos os tempos) havia um incrível editorial contra mim, naturalmente não assinado, no qual se dizia que eu tinha publicado a história, dez páginas em quatro cores (!), sem conhecimento da redação, da secretaria e, conseqüentemente, da direção do semanário. Acho que o fato é inédito na história da imprensa e da pusilanimidade internacional e só foi mesmo possível devido ao caos moral em que se transformaram os Diários Associados, desagregação essa que, pelo gigantismo da organização, influenciou, e influencia ainda hoje, no pior sentido, a imprensa brasileira. Em minha biblioteca, tive por vários anos os quatro exemplares de O Pif-Paf. Infelizmente, sumiram. Ainda nos anos 80, tive oportunidade de fazer uma rápida correção a Millôr. Em sua coluna na Veja, ele escrevera que Shakespeare e Cervantes haviam morrido na mesma data, 23 de abril de 1616. No mesmo dia, sim, comentei. Mas não na mesma data. Castela utilizava o calendário gregoriano desde o século XVI, enquanto a Inglaterra só o adotou em 1751. Ou seja, Shakespeare morreu dez dias depois de Cervantes. Millôr recebeu a observação com simpatia. Colunista no Pasquim, Millôr acabou se incompatibilizando com os vivaldinos que faziam da contestação seu pé de meia. Foi um dos raros intelectuais do país a definir a verdadeira natureza dos revolucionários pós-64. "A luta armada não deu certo e eles agora pedem indenização? Então, eles não estavam fazendo uma rebelião, mas um investimento". Ziraldo e Jaguar receberam, cada um uma bolsa-ditadura, de R$ 1,2 milhão e R$ 1 milhão respectivamente. Autodidata - não teve universidade, exceto a do Meyer, como gostava de chamar a Escola Ennes de Souza, onde estudou de 1931 a 1935 – Millôr tinha amplo domínio de línguas e da cultura ocidental. Publicou mais de cinqüenta livros, quinze peças e uma centena de traduções de dramas, tragédias e comédias. Considerado o melhor tradutor de Shakespeare no Brasil, tinha da tradução uma concepção nada teórica, mas rigorosa: - Fica dito: não se pode traduzir sem ter uma filosofia a respeito do assunto. Não se pode traduzir sem ter o mais absoluto respeito pelo original e, paradoxalmente, sem o atrevimento ocasional de desrespeitar a letra do original exatamente para lhe captar o melhor espírito. Não se pode traduzir sem o mais amplo conhecimento da língua traduzida mas, acima de tudo, sem o fácil domínio da língua para a qual se traduz. Não se pode traduzir sem cultura e, também, contraditoriamente, não se pode traduzir quando se é um erudito, profissional utilíssimo pelas informações que nos presta – que seria de nós sem os eruditos em Shakespeare? – mas cuja tendência fatal é empalhar borboleta. Não se pode traduzir sem intuição. Não se pode traduzir sem ser escritor, com estilo próprio, originalidade sua, sendo profissional. Não se pode traduzir sem dignidade. Nada a ver com o vulgar piadista da Globo. Compartilhava comigo – e suponho que era o único a compartilhar – minha visão de Machado de Assis como um escritor banal. Sempre considerei absurdo o fato de a crítica tupiniquim considerar como o grande drama nacional o fato de Capitu ter ou não ter traído Bentinho. Dizia Millôr: - Machado de Assis é um bobo, mas todo o mundo o coloca no céu. É difícil a pessoa recuar naquilo que absorve na juventude. Minha cabeça funciona o tempo todo. A questão da Capitu em Dom Casmurro, por exemplo. Fica todo o mundo preocupado se a Capitu deu ou não para o Escobar. Ora, é evidente que sim. O livro diz que o filho da Capitu tem a cara do Escobar. Demonstro com evidências que Capitu traiu. Bentinho descreve de tal maneira Escobar que ele parece mesmo apaixonado pelo amigo. Peguei trechos sintomáticos do Bentinho no livro. Escobar se afasta no ônibus e Bentinho fica triste porque ele não lhe dá adeus. Eles ficavam de mãos dadas no colégio de padres e os padres achavam aquilo estranho. Não era normal. Dom Casmurro é um livro fraco. Assino embaixo. Requiescat in pace, caríssimo. Que o inferno te seja ameno. Lá, encontrarás boa companhia, Swift, Voltaire, Nietzsche. No paraíso estão os puxa-sacos de Jeová, que não deve ter gostado de tua versão da Criação. terça-feira, março 27, 2012
ISLÃ ESTIMULA A PRODUÇÃO DE CENOURAS Ao contrário do que possam pensar os infiéis, o Islã se liberaliza a passos céleres, pelo menos no que diz respeito aos direitos da mulher e ética sexual. Senão, vejamos. Há pouco mais de um quarto de século, o aiatolá Sayyid Ruhollah Musavi Khomeini publicava sua tese teológica – um comentário ao Corão – intitulada Valayaté-Faghih, Kachfol-Astar e Towzihol-Masael. Traduzindo, pela ordem: O Reino do Erudito, A Chave dos Mistérios e A Explicação dos Problemas. Excertos desta obra magna foram traduzidos na França, em 1979, quando o aiatolá pregava a derrubada do xá em Neauphle-le-Château, arredores de Paris, sob o título Principes politiques, philosophiques, sociaux et religieux par l’Ayatollah Khomeyni. A partir desta edição, foi feita uma tradução brasileira, pela Record, nos anos 80, sob o título genérico de O Livro Verde dos Princípios Políticos, Filosóficos, Sociais e Religiosos do Aiatolá Khomeini. Em 1989, eu comentava alguns dos princípios do grande líder muçulmano. Pinço cá e lá algumas reflexões do erudito autor: O homem que ejaculou após ter tido relações com uma mulher que não é sua e que de novo ejaculou ao ter relações com a legítima esposa, não tem o direito de fazer orações se estiver suado; mas, se primeiro tiver tido relações com a sua mulher legítima e depois com uma mulher ilegítima, poderá fazer as suas orações mesmo se estiver suado. Por ocasião do coito, se o pênis penetrar na vagina da mulher ou no ânus do homem completamente, ou até o anel da circuncisão, as duas pessoas ficarão impuras, mesmo sendo impúberes, e deverão fazer as suas abluções. No caso de o homem — que Deus o guarde disso! — fornicar com animal e ejacular, a ablução será necessária. Durante a menstruação da mulher, é preferível o homem evitar o coito, mesmo que não penetre completamente — ou seja, até o anel da circuncisão — e que não ejacule. É igualmente desaconselhável sodomizá-la. Dividindo o número de dias da menstruação da mulher por três, o marido que mantiver relações durante os dois primeiros dias deverá pagar o equivalente a 18 nokhod (três gramas) de ouro aos pobres; se tiver relações sexuais durante o terceiro e quarto dias, o eqüivalente a 9 nokhod e, nos dois últimos dias, o eqüivalente a 4½ nokhod. Mas atenção, leitor: sodomizar uma mulher menstruada não torna necessários esses pagamentos. Se o homem tiver relações sexuais com a sua mulher durante três períodos menstruais, deverá pagar o eqüivalente em ouro a 31½ nokhod. Caso o preço se tiver alterado entre o momento do coito e o do pagamento, deverá ser tomado como base o preço vigente no dia do pagamento. De duas maneiras a mulher poderá pertencer legalmente a um homem: pelo casamento contínuo e pelo casamento temporário. No primeiro, não é necessário precisar a duração do casamento. No segundo, deve-se indicar, por exemplo, se a duração será de uma hora, de um dia, de um mês, de um ano ou mais. Enquanto o homem e a mulher não estiverem casados, não terão o direito de se olhar. É proibido casar com a mãe, com a irmã ou com a sogra. O homem que cometeu adultério com a sua tia não deve casar com as filhas dela, isto é, como suas primas-irmãs. Se o homem que casou com uma prima-irmã cometer adultério com a mãe dela, o casamento não será anulado. Se o homem sodomizar o filho, o irmão ou o pai de sua esposa após o casamento, este permanece válido. O marido dever ter relações com a esposa pelo menos uma vez em cada quatro meses. Se, por motivos médicos, um homem ou uma mulher forem obrigados a olhar as partes genitais de outrem, deverão fazê-lo indiretamente, através de um espelho, salvo em caso de força maior. É aconselhável ter pressa em casar uma filha púbere. Um dos motivos de regozijo do homem está em que sua filha não tenha as primeiras regras na casa paterna, e sim na casa do marido. A mulher que tiver nove anos completos ou que ainda não tiver chegado à menopausa deverá esperar três períodos de regras após o divórcio para poder voltar a casar. Qualquer comércio de objetos de prazer, como os instrumentos musicais, por menores que sejam, é estritamente proibido. É proibido olhar para uma mulher que não a sua, para um animal ou uma estátua de maneira sensual ou lúbrica. De lá para cá – pouco mais de um quarto de século -, muitas águas rolaram sob o olhar complacente de Alá e o Islã modernizou-se. A agência France Presse nos trouxe hoje uma alvissareira notícia. Um célebre teólogo islamita marroquino autorizou as mulheres solteiras que se masturbem usando cenouras ou garrafas para evitar que mantenham relações sexuais proibidas fora do casamento. "O uso de uma cenoura ou uma garrafa está autorizada pelos ulemás (teólogos) e a sharia (lei muçulmana)", confirmou à AFP Abdelbari Zemzemi, um teólogo cujas fatwas geralmente provocam polêmica na imprensa. Segundo Zemzemi, ex-deputado e presidente de uma associação religiosa de Casablanca, esta autorização "diz respeito a casos excepcionais: mulheres solteiras que não querem manter relações sexuais sem se casar e têm dificuldade de controlar sua libido". O teólogo considera normal que suas declarações possam causar polêmica "porque a sexualidade é um tema tabu no Marrocos". No entanto, a "sharia evoca esses temas íntimos com muita liberdade e o objetivo é evitar as relações sexuais fora do matrimônio". Os ventos do liberalismo ocidental começam a soprar sobre o Magreb. A masturbação é proibida pelo Islã, mas tolerada por algumas das escolas. Segundo essas escolas, se uma pessoa está dominada pelo desejo, não consegue controlar seus instintos e teme cair em Zina (pecado), pode recorrer à masturbação para acalmar-se, seguindo o princípio de que "entre dois males, é melhor escolher o menor". Zemzemi veio para quebrar tabus. Verdade que as sexshops ocidentais há muito suprem este mercado, oferecendo centenas de gadgets eróticos, bem mais eficazes, e não só ao público feminino. Sobre esta oferta, o bom ulemá silencia. Que mais não seja, são objetos produzidos pelo Grande Satã. Melhor cenouras, o que será certamente um grande incentivo à produção hortifrutigranjeira nos oueds marroquinos. Mas ... cenouras e garrafas são permissíveis apenas a mulheres solteiras. As casadas, que se contentem com os serviços do amo e senhor. Liberalismo, sim. Mas devagar. segunda-feira, março 26, 2012
PAÍS PERDE PIADISTA Havia em Dom Pedrito uma pequena biblioteca no prédio da Prefeitura. Pequena, mas bem nutrida. Lá, degustamos Cervantes e Platão, Balzac e Maupassant, Diderot e Descartes, para desespero dos padres oblatos que nos lecionavam. A Biblioteca dos Séculos, coleção editada pela Globo, de Porto Alegre, era nossa festa. Adolescentes, provavelmente não chegamos a entender muito bem estes e outros autores. Mas deles ficou algo importante: havia muitas maneiras de se ver o mundo, quase todas divergentes, todas com maior ou menor parcela de razão. Naquela biblioteca, quando guri, tomei contato com o que entendo por humor. Não lembro quem chegou primeiro, se Voltaire, com Zadig, ou Cervantes, com o Quixote. "Dichosa edad y siglo dichoso aquel donde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse em bronces, esculpirse en mármoles y pintarse en tablas, para memoria en lo futuro. Oh tú, sabio encantador, quienquiera que seas, a quien ha de tocar ser cronista desta peregrina historia! Ruegote que no te olvides de mi buen Rocinante, compañero eterno mío em todos mis caminos y carreras". Considero Cervantes antes de tudo um humorista. Este trecho, a meu ver, dá o diapasão de toda sua obra. Ali está o personagem e aquilo a que vem: desfazer tortos, para glória na eternidade. Esta divertida ironia em relação a si mesmo é o que mais me fascina no Quixote. Swift veio um pouco depois, nos dias de universidade. Eu tinha uma vaga idéia de Liliput e das viagens de Gulliver, mas considerava que era literatura infantil. Foi quando um bom amigo alertou-me: nada disso, tchê, Swift é gênio. Isso de literatura infantil é decorrência das adaptações que editores fazem para adolescentes. Mergulhei na obra e até hoje o azedo dublinense é um dos meus autores de cabeceira. Humor é algo muito britânico. Os ingleses deram ainda outras contribuições ao gênero, como Sterne e Thackeray. Fora estes, curti muito o americano Ambrose Bierce e o austríaco Karl Kraus. Dos italianos, fui leitor atento de Papini e Pitigrilli. Entre nós, gosto muito de Nelson Rodrigues (o cronista, particularmente) e de outro pouco conhecido autor, o Campos de Carvalho. Quem não leu A Lua vem da Ásia, A Vaca de Nariz Sutil, O Púcaro Búlgaro, A Chuva Imóvel, perdeu os melhores momentos da literatura nacional. Nesta altura, já deve existir leitor me perguntando porque não cito o Machado. De fato, o carioquinha não deixa de ter seus momentos de humor. Em “A Sereníssima República”, conto de 1882, tido pelos machadistas como uma “vigorosa sátira política ao sistema eleitoral brasileiro”, o cônego Vargas comenta: “[...] faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, - é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: - as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tabula rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma”. Verdade que, um século e meio antes, Swift escrevia: “Embora o nosso Estado pareça florescente aos olhos do estrangeiro, o que é certo é que temos dois grandes males a debelar: de dentro, uma poderosa facção; de fora, a invasão de que estamos ameaçados por um formidável inimigo. Com respeito ao primeiro, preciso é que saiba que há setenta luas existem dois partidos contrários neste império, sob os nomes de Tramecksan e Slamecksan, termos derivados de altos e baixos tacões dos seus sapatos, pelos quais se distinguem. Não falta quem seja de opinião, é fato, que os tacões altos são mais conformes à nossa antiga constituição; apesar disso Sua Majestade resolveu servir-se apenas dos tacões baixos na administração do governo e em todos os cargos de Sua Majestade imperial são, pelo menos, mais baixos um drurr do que os de qualquer outra pessoa da corte. (O drurr é aproximadamente a décima quarta parte de uma polegada). O ódio dos dois partidos — continuou Keldersal — estão em tal grau, que não comem, não bebem juntos, nem se falam. Temos quase que a certeza de que os Tramecksans ou tacões altos são em maior número do que nós; a autoridade, porém, está na nossa mão. Contudo, andamos suspeitosos de que sua alteza imperial, o presuntivo herdeiro da coroa, tem alguma inclinação para os tacões altos; pelo menos tivemos ocasião de ver que um dos tacões é mais alto do que outro, o que o faz coxear um pouco”. Paráfrase, dirão machadianos e machadistas. Para mim, paráfrase é eufemismo. Mas não é disto que pretendia falar. E sim do humorismo, gênero literário com o qual se preocuparam os grandes criadores de todos os séculos, desde Luciano de Samosata ao deão de Saint Patrick. A imprensa – e particularmente a televisiva – tem o extraordinário condão de empobrecer as palavras. Aconteceu, por exemplo, com herói. Palavra que antes designava o autor de feitos notáveis, geralmente fora do alcance de suas forças, passou a significar simplesmente qualquer profissional que cumpre sua obrigação. Se antes heróis eram Alexandre, Napoleão, Churchill, Fernão de Magalhães ou Vasco da Gama, Hernán Cortez ou Pizarro, Amundsen ou Cook, herói hoje é o bombeiro que salva alguém de um incêndio ou um salva-vidas que retira alguém das águas. No Brasil, andam tão escassos que até animais são promovidos a heróis. Quem não lembra da Catita, a cadelinha que defendeu uma criança atacada por dois pitbulls? "Heroína!" - berraram as manchetes. O episódio foi emblemático. Catita, mãe de vários cachorrinhos, arriscava a vida em defesa de um filhote alheio. O velho mito da Madonna, desta vez em versão canina, tão utilizado pelos jornalistas para comover leitores. Mais ainda: Catita era uma cadela plebéia, vira-lata latina e nativa. Os agressores eram cães de elite, alienígenas e com sotaque anglo-saxão. A finada luta de classes ressuscitava e se manifestava mesmo entre caninos. Em falta de heróis, vai cadela mesmo. Outra palavra que a televisão desvalorizou brutalmente foi humorismo. Humor, gênero de longa tradição literária, virou sinônimo de piada barata. De preferência, ao alcance da mente de uma criança. Semana passada, por exemplo, a imprensa toda celebrou a morte de um “humorista”. Em verdade, o defunto não passava de um piadista vulgar. domingo, março 25, 2012
BENTO XVI NO MÉXICO: ENTRE A VIRGEM, IXIPTLAS E PEDÓFILOS Ontem, em sua primeira visita ao México, Bento XVI rezou diante de uma imagem da Virgem de Guadalupe, padroeira da América Latina. O mesmo fez João Paulo II, em suas três visitas ao país. Papas, quando vão ao México, não perdem a ocasião de reverenciar a origem do embuste. Em 1990, comentei a segunda visita de João Paulo II ao México. Na época, o vice-Deus de plantão foi até lá, não para degustar tequila ou ouvir mariachis, e sim para beatificar Juan Diego, o índio em cuja túnica as rosas teriam deixado gravada a imagem da Virgem de Tepeyac, mais conhecida como Virgem de Guadalupe, não por acaso a mesma venerada nas montanhas de Estremadura, e muito querida pelos conquistadores. João Paulo, padre astuto, intuindo que a tal de teologia de libertação está em franca decadência com o desmoronamento do fascismo eslavo, investiu no mistério. E conferiu odor de santidade ao coitado do íncola manipulado pelo barroco europeu. Tudo começou nos anos 1550, quando na colina de Tepeyac os indígenas mexicanos prestavam culto a um ixiptla, ou seja, estátua ou imagem de uma deidade que, na linguagem dos conquistadores, é traduzida como ídolo. O ixiptla, no caso, é o da deusa Toci-Tonantzin, nome que, traduzido do náuatle, dá - maravilhosa coincidência! - Nossa Mãe. Alonso de Montufar, arcebispo do vice-reino, não vai perder esta oportunidade - como direi? - divina, de sobrepor, como sempre fez a Igreja romana, aos símbolos e cultos pagãos, a tralha católica. Encomenda a Marcos, um pintor indígena, uma obra inspirada em um modelo europeu e a coloca ao lado do ixiptla asteca, gesto aparentemente inocente se visto daqueles dias, mas carregado de conseqüências quando o olhamos com o distanciamento de quatro séculos. Pelo período de aproximadamente um século, a imagem da Virgem permanece, sem trocadilhos, em banho-maria, sem que se fale de epifanias ou milagres. Em 1648, com a publicação de Imagen de la Virgen Madre de Diós de Guadalupe, do padre Miguel Sánchez, o culto mariano toma novo impulso. "Segundo esta versão destinada a tornar-se canônica" – escreve Serge Gruzinski, em La Guerre des images - a Virgem teria aparecido três vezes em 1531 a um índio chamado Juan Diego. Segundo Juan de Zumárraga, primeiro bispo e arcebispo do México, Juan Diego abriu sua capa sob os olhos do prelado: "em lugar das rosas que ela envolvia, o índio descobriu uma imagem da Virgem, miraculosamente impressa, até hoje conservada, guardada e venerada no santuário de Guadalupe". Mas nada surge do nada, muito menos imagens. Antes da publicação do livro de Miguel Sánchez, que oficializa a versão das rosas imprimindo os traços da Virgem na capa de Juan Diego, haviam chegado ao México pelo menos duas levas de pintores e arquitetos, profundamente influenciados pela escola flamenga. Colocando seus talentos a serviço da Igreja, estes artistas transportam ao novo continente o imaginário europeu. Vasto é o mercado. Para Gruzinski, a clientela dos artistas cresce e se diversifica: "A corte, a igreja, as autoridades municipais, a universidade, a Inquisição, as confrarias e os ricos entregam-se a uma concorrência cada vez mais viva e rivalizam em encomendas que afirmam publicamente, aqui como alhures, poder, prestígio e influência social. Eis então reunidos todos os meios de uma predileção pela imagem e de uma produção em larga escala, conforme o gosto europeu, impulsionada pela Igreja, posta sob a vigilância da Inquisição e de prelados de zelo por vezes intempestivo". Faltava apenas o ingênuo para descobrir, sob as rosas, a imagem da Virgem. Como seria pouco convincente apresentar uma imagem sendo descoberta por seus criadores, foi escolhido Juan Diego, hoje alçado à condição de beato pela igreja que destruiu seus ixiptlas e sua cultura. E assim, como quem não quer nada, semeando marias mundo afora, vai o Vaticano alastrando seus domínios. Nesta visita, Bento enfrentou problemas dos quais João Paulo – coincidentemente o responsável por tais problemas – conseguiu furtar-se. Enquanto o papa orava diante da imagem da virgem, as vítimas dos abusos sexuais cometidos pelo fundador da Legião de Cristo, o sacerdote mexicano já falecido Marcial Maciel, manifestaram sua repulsa pela ocultação do escândalo por parte do Vaticano durante décadas. Leio a notícia no El País. A imprensa tupiniquim, pelo menos até hoje, não deu um pio sobre o assunto. Bento XVI não aceitou receber a vítimas da sanha de seus padres. Se há algo que não invejo na vida, é a condição destes senhores que regem o mundo, sejam estadistas ou religiosos. Por questão de ofício, mais dia menos dia têm de posar junto a outros dignitários que mais tarde se revelam nada frequentáveis. O caso mais recente foi o de Kadafi. Tony Blair recebeu afavelmente o ditador e o qualificou como parceiro na guerra contra o terror. Logo Kadafi, que deu apoio aos terroristas que explodiram um avião sobre Lockerbie, matando 270 pessoas. Silvio Berlusconi encontrou em Kadafi uma alma gêmea. Condoleeza Rice foi homenageada pelo assassino com jantar de gala. Obama apertou alegremente sua mão em um encontro na ONU. Em 2007, Nikolas Sarkozy, sorridente, em gesto afável apertou a mão do ditador, que por sua vez ergueu o braço esquerdo em sinal de plena adesão. Lula o considerava “amigo e irmão”. Ao longo de seus oito anos de mandato, teve quatro encontros com o ditador. Em um deles posa com Kadafi, ornado com um de seus berrantes parangolés, de um amarelo de doer os olhos. Justifica: - Quando o primeiro-ministro britânico se reúne com o Kadafi, todo mundo acha o máximo, mas quando eu me reúno com ele, todos criticam - rebateu Lula à época do segundo encontro. Cidadão comum e anônimo, me reservo o luxo de jamais ter de apertar a mão destes senhores. O mesmo não ocorre, por exemplo, com papas, que muitas vezes têm de confraternizar alegremente com celerados. Karol Wojtyla, por exemplo, mais conhecido como João Paulo II. Além de notório acobertador de pedófilos - sobre sua mesa haviam-se acumulado acusações de pedofilia contra milhares de sacerdotes e também queixas pelo encobrimento desses delitos por alguns prelados nos EUA, Irlanda, Itália, Áustria e inclusive na Espanha - foi o grande protetor de Marcial Maciel. Ainda no ano passado, comentei a biografia do fundador dos Legionários de Cristo. Acusado de abusar sexualmente de mais de 20 seminaristas - incluindo os próprios filhos - Maciel teve filhos com várias mulheres e, como um outro santo moderno, o Martin Luther King, foi plagiador emérito: plagiou descaradamente o livro de cabeceira da legião, intitulado Saltério de Meus Dias, e impôs a toda a organização um quarto voto de silêncio para se proteger de denúncias. Um de seus antigos colaboradores o acusa inclusive de ter envenenado seu tio-avô, o bispo Guízar, que apoiou a bem-sucedida carreira eclesiástica do sobrinho no México dos anos 1930. Deste santo senhor, temos fartas fotos sendo abençoado pelo papa João Paulo II, recebido em audiência especial no Vaticano. Centenas de denúncias sobre o padre Maciel chegaram à mesa de Wojtyla. O papa as desprezou. Maciel enchia praças e estádios de futebol em suas viagens pelo mundo. Era merecedor da benção papal. Como também da proteção de Bento XVI. Verdade que Ratzinger o expulsou do Vaticano, obrigando o padre Maciel a levar "uma vida reservada de oração e penitência, renunciando a qualquer forma de ministério público". Punição no mínimo carinhosa para um notório pedófilo. Mas em 1999, quando responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger recebeu uma carta do ex-legionário Alberto Athié, na qual os desmandos de Marcial Maciel eram denunciados. Na ocasião, respondeu o papa que ora visita o México: - Lamentavelmente, o caso de Marcial Maciel não pode ser aberto porque é uma pessoa muito querida do papa João Paulo II e além disso fez bem à Igreja. Lamento, não é possível. Bento XVI, protetor de pedófilos, quer santificar João Paulo II, outro notório protetor de pedófilos. Ano passado, Ratzinger beatificou Wojtyla. A seqüência lógica é a canonização. Beatificar criminosos já está se tornando norma no Vaticano. João Paulo II não beatificou aquela freira albanesa, Agnes Bojaxhiu, mais conhecida como madre Teresa de Calcutá, vigarista de alto bordo e apoiadora de ditadores como Envers Hodja e Baby Doc? Entende-se porque Bento, em sua visita ao México, procura evitar as vítimas de Maciel. Melhor visitar o ixiptla da virgem "descoberto" pelo bugre mexicano. sábado, março 24, 2012
FGV ADERE AO BUDISMO A prestigiosa Fundação Getúlio Vargas, quem diria, pelo jeito aderiu ao budismo. Pelo menos é o que leio no Estadão: “A riqueza do País pode começar a ser mensurada de outra forma. No lugar do Produto Interno Bruto (PIB), a Felicidade Interna Bruta (FIB). A Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) está empenhada na elaboração da metodologia do novo índice. A intenção é fornecer os resultados ao governo federal para auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas”. Ou talvez a FGV tenha ouvido o galo cantar, mas não sabe bem onde. Escrevi sobre o assunto há nada menos que seis anos (segue artigo abaixo). FIB foi um golpe de publicidade muito bem sucedido, bolado por Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck, o rei do Butão. A fórmula caiu como bálsamo neste Ocidente que não gosta muito de si mesmo. Obviamente, foi logo endossado pelas esquerdas, que detestam a idéia de PIB, esse índice tipicamente capitalista. Felicidade não depende de riquezas, esta é a idéia que o novo conceito traz embutida. Faz muito sucesso nos Estados Unidos, este fértil celeiro de ideologias malucas. Ano passado ainda, eu comentava o sucesso fulgurante do monge budista negro Steven Kabogosa, nascido em Uganda e que hoje vive nos EUA e viaja pelo mundo ensinando técnicas de meditação. Segundo Bhante Buddharakkhita, seu novo nome budista, a verdadeira felicidade depende de circunstâncias internas, e não externas. “A felicidade dependia de eu desenvolver qualidades internas, meditar, ter bons pensamentos”. Buddharakkhita deve ser um ugandês privilegiado. Tem hoje 45 anos e viveu em seu país até 1990, quando foi estudar na Punjab University. Depois foi ao Nepal e visitou o Tibete. Em 99, foi aos EUA para um retiro em Massachusetts e viajou pela América Latina. Ou seja, as circunstâncias externas da felicidade parecem ter-lhe sido muito favoráveis. Ninguém voa de graça. Estas deambulações ninguém faz sem uma quantidade razoável de dinheiro. Há quem seja feliz com muito pouco. Há muitos anos, aqui em São Paulo, numa fria madrugada de agosto, vi um mendigo que ria sozinho, atirado na rua, apoiado em uma garrafa de cachaça. “Como eu sou feliz”, dizia. E não seria eu quem duvidaria de que ele fosse feliz. Mas Bhante Buddharakkhita que me desculpe. O mendigo sentia-se feliz porque estava bêbado. O álcool torna feliz qualquer desgraçado. Sóbrios, precisamos de algum substrato econômico para a felicidade. Esse substrato o monge parece ter, já que vive viajando de um continente a outro. Assim é muito fácil dizer que felicidade depende de qualidades internas, meditar, ter bons pensamentos. Mais difícil é ser feliz morando mal, comendo mal, sem ter um vintém para pagar um prazerzinho qualquer. Quando se viaja pelo mundo, sem precisar trabalhar – porque monge não trabalha, sua profissão é ser monge, isto é, um inútil como o Dalai Lama – soa a cinismo afirmar que felicidade depende de bons pensamentos. Volto à FGV. O primeiro passo do desenvolvimento da metodologia do FIB brasileiro já teria sido dado pela fundação, e mostra que a riqueza econômica não é o principal fator de felicidade da população. Um questionário com jovens adultos de São Paulo e de Santa Maria, pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, mostrou que o índice de satisfação dos jovens gaúchos é 22,5% maior que o dos paulistanos. Entre os 11 aspectos de vida estudados, os mais relevantes para a percepção de satisfação foram vida social, situação financeira e atividades ao ar livre. O índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) será produzido pelo núcleo de Estudos de Felicidade e Comportamento Financeiro, que terá gestão de Fábio Gallo e Wesley Mendes. Ora, São Paulo é uma das maiores e mais cosmopolitas metrópoles do mundo, com aeroportos que despejam gentes para todos os cantos do planetinha, passagem quase obrigatória de qualquer viajante que queira atravessar o oceano. Tem o mundo universitário e editorial e a imprensa mais influentes do país. E onze milhões de habitantes. Santa Maria é uma tímida cidade gaúcha, com uma base aérea, quatro universidades, 300 mil habitantes e lá só chega um exemplar da Folha de São Paulo, que fica à disposição dos leitores em uma biblioteca. Exceto uma pequena linha aérea que faz três vôos semanais, não há como chegar de avião à cidade. De centro ferroviário do Rio Grande do Sul, trem hoje é lembrança dos antigos em Santa Maria. (Eu sou um desses antigos). Cidade universitária, só tem uma livraria. É óbvio que as ambições de um paulistano serão bem mais amplas que as de um santa-mariense. De minhas andanças, conclui que a cabeça de uma pessoa depende muito das dimensões do país em que vive. Certa vez, convidei uma parisiense a ir até Estocolmo. Mais c’est le bout du monde! – espantou-se. Se para a francesinha ir até a Suécia era o fim do mundo, para mim era como ir de Porto Alegre ao Rio e ainda sobrava muito Brasil pela frente. Foi comigo só até Amsterdã, era longe mas não muito. Certa vez, voltando da Europa, o barco entrou em águas brasileiras na altura de Recife. Já no mar da Bahia, uma outra francesa me manifestava seu espanto: mais ce pays ne finit jamais! E não terminava mesmo. Havia ainda muito mais país rumo ao sul. A França tem apenas mil quilômetros em sua extensão máxima. Conheci nicas e ticas em Paris. Provenientes de países diminutos, para elas fim de mundo era Barcelona. Para mim, brasileiro, fim de mundo ficava um pouco mais adiante. Talvez em Pequim. Os pesquisadores da FGV estão comparando uvas com melancias. É óbvio que um paulistano tem mais ambições que um santa-mariense. Nos dias em que vivi por lá, ir a Porto Alegre era para mim uma ventura. Hoje, em São Paulo, me entedio como uma ostra se passo um ano sem jantar no Procope ou Sobrino de Botín. Para um santa-mariense, ir até Rivera e comprar na zona franca já é um sucedâneo da felicidade, um atestado de cosmopolitismo. Os paulistanos já estão comprando até sabão em pó em Miami. Em minha infância no Ponche Verde, conheci um personagem peculiar, de apelido Peão Viajado. Me consta que conhecia Dom Pedrito, Bagé e Livramento. Para mim, era viajado mesmo. Na época, nem Dom Pedrito eu conhecia. “Se eu casasse com a filha de minha lavadeira, talvez eu fosse feliz”, dizia Pessoa. Ocorre que não casou. Se eu ficasse no Ponche Verde, talvez eu fosse feliz. Ocorre que não fiquei. Se a FGV mantiver esta pesquisa como critério para estabelecer a felicidade bruta nacional, chegará talvez a algo próximo a um ornitorrinco. Com uma diferença: o ornitorrinco tem existência real. O FIB é uma utopia esquerdista que só encontra abrigo no bestunto dos eternos descontentes com o Ocidente. Não há denominador comum entre um homem que se sente bem ouvindo Mozart e degustando um bom vinho e um bruto que vibra, de cerveja em punho, ante um jogo de futebol. O PSDB já contratou, a peso de ouro, um guru indiano para fazer a última campanha de José Serra. Não seria de espantar que a FGV chamasse o Dalai Lama ou Bhante Buddharakkhita para discutir os rumos do país. PIB & FIB * Estudiosos dessa inefável ventura, a felicidade, estão preocupados em saber onde ela reside. Nas últimas semanas, fomos bombardeados por pelo menos três pesquisas. Para o economista britânico Richard Layard, em Happiness: Lessons From a New Science, a felicidade residiria no reino budista do Butão. O Butão é um país isolado no Himalaia, cujo rei, Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck – o primeiro marajá da dinastia dos Wangchuk a auto-intitular-se rei – decidiu abandonar os obsoletos índices de Produto Interno Bruto e substitui-lo por um índice de Felicidade Interna Bruta. Abaixo o PIB, viva a FIB. Sua jogada de marketing parece ter agradado às eternas e azedas esquerdas, que acham que PIB não quer dizer nada. Não que acreditem nisso, mas como o PIB das nações capitalistas sempre foi superior ao das socialistas, então o PIB “é do mal”. Mais dia, menos dia, o mal acabou entrando no paraíso. Não através da serpente, mas de algo muito mais insidioso, a televisão. Segundo Layard, "os butaneses puderam então ver a mistura comum de futebol, violência, traição sexual, propaganda, lutas e afins. Eles adoraram, mas o impacto em sua sociedade fornece um experimento notável sobre como a mudança tecnológica pode afetar atitude e comportamento. Logo se observou um aumento profundo em rompimentos familiares, crimes e consumo de drogas." Ou seja, a realidade circundante invadiu o país. O bode a ser banido para o deserto é a televisão. “Nos últimos anos, o governo butanês vem tentando banir do país a televisão, ou ao menos os programas mais odiosos.” Confesso que jamais vi justificativa tão linda e nobre da censura. Oremos para que o Supremo Apedeuta não a ouça nem se converta ao budismo. Poderia ser tentado a acabar com a violência, os crimes e o consumo de droga mediante uma medida singela, a proibição da televisão. Segundo pesquisa feita por Layard nos EUA, quanto mais uma pessoa assiste televisão, menos feliz ela é. A solução então é simples: retire a televisão da sala e suas chances de ser feliz aumentarão. Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck parece ter conseguido vender ao Ocidente a idéia de que, para a felicidade geral das nações, é melhor renunciar ao presente e encerrar-se nas trevas do passado. Sob o repúdio à televisão, o livro do economista britânico esconde uma tese safada: informação é infelicidade. Do fundo de seu sarcófago, Stalin deve ter esboçado um sorriso: “finalmente fui entendido”. De qualquer forma, não se entusiasme. Não é fácil visitar o país onde a felicidade mora. Só é permitida a entrada de pessoas autorizadas por Sua Majestade ou pelo ministério de Turismo. Essas pessoas devem efetuar o depósito de cerca de US$ 200 por dia a favor do governo. Qualquer semelhança com a velha União Soviética e a Intourist não é mera coincidência. Sua Majestade, a título de curiosidade, é casado com quatro mulheres, todas irmãs. Sua FIB deve ser muito alta. Por outro lado, a New Economics Foundation e a ONG Friends of Earth criaram o Happy Planet Index, segundo o qual a felicidade teria estabelecido sua morada no arquipélago de Vanuatu – 83 ilhas no Pacífico, com 209 mil habitantes, na maioria pescadores e agricultores que vivem numa economia pouco além do nível da subsistência. Os vanuatuenses tiveram a melhor média de três indicadores básicos: esperança de vida ao nascer, bem-estar humano e nível dos danos ambientais causados ao país. Nesse índice, o Brasil ficou em 65º lugar, atrás da Colômbia, da Argentina, do Chile e do Paraguai – até de Bangladesh. Os Estados Unidos ficaram com o 150º lugar, um dos últimos entre 178 países. O Happy Planet Index quer evidenciar que "não é necessário esgotar os recursos naturais da Terra para se ter uma vida relativamente longa e feliz". Seus critérios são, no fundo, um panfleto contra tudo o que de bom o Ocidente oferece. Se os vanuatenses se sentem felizes numa economia que vai pouco além da subsistência, estão confundindo ignorância do mundo contemporâneo com felicidade. “Se estamos em um quarto escuro e dizemos que não há luz é porque alguma vez vimos a luz. Algo parecido acontece com a felicidade”, escreveu Swami Tilak. A pesquisa cheira à estratégia dos ecochatos que, uma vez morto o socialismo, querem empunhar novas bandeiras contra o capitalismo triunfante. Ora, uma comunidade de 200 mil pessoas isoladas num mar oceano, que vivem numa agricultura de mão pra boca, jamais reunirá aqueles elementos que tornam a vida prazerosa. A universidade britânica de Leicester, por sua vez, elaborou o que seria o primeiro mapa mundial da felicidade, em estudo que reúne 177 países. Segundo este, os dinamarqueses e os suíços são os mais felizes. Depois destes, vêm os cidadãos da Áustria, Islândia, Bahamas, Finlândia e Suécia. Zimbabuanos e burundineses estão nos postos mais baixos e os brasileiros em 81º lugar. Dentro de meu conceito, já não digo de felicidade, que é muito relativo, mas de bem-estar, parece-me um mapa sensato. Que a vida é agradável na Dinamarca e Suíça, disto estou ciente. Que deve ser dura no Zimbábue e Burundi, disto também estou ciente, mesmo sem jamais ter postos os pés naquelas plagas. Ao que tudo indica, as ideologias invadiram a geografia da felicidade e a disputam palmo a palmo. Como se felicidade tivesse geografia. Sentimento personalíssimo e subjetivo, não vejo muito bem como possa ser mensurada. Para populações que desconhecem uma gastronomia elaborada, qualquer gororoba que mate a fome deve dar uma sensação de paraíso. A gastronomia, a meu ver, é algo altamente espiritualizado. O gastrônomo não come para satisfazer a vil premência física, mas a uma necessidade do espírito. Para civilizações que desconhecem bons vinhos, suco de laranja deve saber a néctar dos deuses. Faltou a prova dos nove nas três pesquisas: investigar se os vanuatenses ou os butaneses continuariam sendo felizes em suas economias precárias após degustar os requintes do Ocidente. Não vejo grandes FIBs sem altos PIBs. Os rosseaunianos adoradores da vida frugal que me desculpem. Altos PIBs significam mais opções de lazer, mais conforto no dia-a-dia, mais acesso à cultura e à saúde, medicina de ponta na hora da doença. E essa grande aventura do espírito – as viagens – ao dispor de qualquer veneta. Quanto à felicidade, é uma questão de ambições. Já vi mendigos rindo sozinhos em uma noite gelada, felizes com uma garrafinha de cachaça. E conheço não poucas pessoas, de muitas posses e com altos saldos bancários, mergulhadas na depressão e próximas ao suicídio. Conheço inclusive pessoa que comprou carro blindado para proteger sua vida e hoje teme olhar para o revólver, por medo de não resistir a matá-la. Certa vez, no aeroporto de Cumbica, puxei conversa com uma moça que servia cafezinho. O trabalho é duro, oito horas em pé, circulando dentro de um brete. “Eu estou feliz da vida” – me dizia a moça – “Não fosse este trabalho, eu estaria na roça, no cabo da enxada”. Conheci o cabo da enxada e já fui feliz com uma bicicleta. Cresci, me eduquei, zanzei pelo mundo e hoje, meu conceito de paraíso mudou, mas não deixa de ser singelo: uma manhã de inverno ensolarada, na terrasse de um café em Paris – pode ser também em Copenhague ou Zurique. Ou Madri ou Roma – temperatura de uns dez graus, jornais de dois ou três países, dois ou três livros para dar as primeiras folheadas e uma Leffe radieuse. Detesto a idéia de eternidade. Mas se for assim, topo. Buñuel tinha um desejo parecido. Gostaria de, depois de morto, sair de vez em quando da tumba, esgueirar-se lívido pelos muros, ir até uma banca de jornais e voltar com alguns debaixo do braço. Claro que PIB não significa automaticamente felicidade. Prova disto são os altos índices de suicídio dos países desenvolvidos. Mas sem altos PIBs, a tal de FIB não passa de mais uma utopia das esquerdas. Há gentes de todo azimute tentando vender a idéia de que há virtudes na pobreza. São em geral pessoas ricas, que jamais viram a miséria de perto. Ou que só a viram como turistas. * 31/07/2006 sexta-feira, março 23, 2012
THIS IS BRAZIL! O Estatuto do Torcedor – lei 10.671/03 – proíbe o consumo de bebidas alcoólicas nos estádios, ou arenas, como prefere o jornalismo contemporâneo. Proíbe ou proibia? Com a proximidade da Copa de 2014, o governo quer suspender a restrição imposta pelo Estatuto. Com isto, a venda de bebidas nos estádios ficaria liberada no âmbito federal, mas continuaria proibida nos estados que possuem legislação própria. É o caso de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Bahia e Rio Grande do Sul. A Fifa teria então de negociar com cada governo local o fim da restrição. O governo quer ou queria? Difícil saber. Ora diz que quer, ora que não quer. Ocorre que a Copa, entre outros produtos, é patrocinada pela Budweiser. E quer vender seu peixe nos estádios. Mais ainda, com reserva de mercado: só a Budweiser poderá ser vendida. Para tranquilizar a Fifa, nos últimos dias o governo prometeu - in extremis, se for o caso - uma medida provisória que liberaria o álcool em todos os Estados. Mas atenção: só durante a Copa. Suspende-se a lei para atender os interesses do futebol. Passada a Copa, a lei volta a viger. Em 2007, o então presidente Lula e os governadores dos 12 estados que vão abrigar os jogos de 2014 assumiram, o compromisso de permitir a venda de bebidas nos estádios. A lei? Ora, a lei... A lei que se lixe. O que importa é a Copa. Divertido país este nosso, onde a vigência de leis pode ser interrompida para atender a interesses econômicos. Mais que divertido, ridículo. O Brasil emergente se equipara à África. Em 2010, para atender à Fifa, o ministério da Indústria e Comércio da África do Sul liberou a venda de bebidas alcoólicas nos estádios, até então proibida. Se alguém pensa que isto é novidade no Brasil, é porque não tem memória. Memória que está faltando à imprensa tupiniquim. Nesta discussão toda, não vi jornalista algum lembrando o precedente levantado por Marta Suplicy, em 2003. Naquele ano, a então prefeita de São Paulo, renovou o contrato para a realização do Grande Prêmio de Fórmula 1 em São Paulo, que passou a vigorar até 2009. O problema é que várias das escuderias de F-1 eram patrocinadas por empresas fabricantes de cigarro. O então presidente Lula desatou o nó górdio baixando medida provisória, a pedido de Marta. E assim foi revogada uma lei de 1996, que proibia a propaganda de cigarros em eventos esportivos. Foi também contrariada outra lei de 2000, que restringia a propaganda de cigarros aos pontos de venda. Na ocasião, até mesmo José Serra, ex-ministro da Saúde, andou declarando que eventos de grande apelo internacional, como a Fórmula 1, têm grande importância turística para o país e que a solução seria aproveitar a mídia que geram para propaganda contra cigarros. Solução de jerico: permitir a propaganda de cigarros para gerar propaganda contra cigarros. O que não é de espantar em Serra. Em algum momento de sua campanha presidencial – lembro muito bem – esteve em Santa Cruz do Sul (RS) prometendo seu apoio à indústria do tabaco. Semana passada, eu comentava a insólita decisão do Supremo Tribunal Federal, a de legalizar o caos legislativo para evitar o caos jurídico. Na ocasião se descobriu que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) não podia existir legalmente. Foi criado por medida provisória (MP), que por lei tem de passar por comissão especializada antes de ir ao plenário. Mas não passou. O ICMBio foi criado pela lei 11.516, de 28 de agosto de 2007, em função de lobbies ianques que queriam criar um herói amazônico, na figura de um comunista obsoleto, que pretendia impedir o desmatamento através dos "empates” - manifestações em que os seringueiros protegiam as árvores com seus próprios corpos. A única coisa que o Instituto gerou até agora, pelo que se sabe, foi a candidatura de Marina Silva - o ET de Xapuri - à Presidência da República. O Supremo Tribunal Federal (STF) – que tem entre suas funções julgar o que é constitucional ou não – decidiu então que o ICMBio tinha existência ilegal. E deu ao Congresso o generoso prazo de 24 meses para que aprovasse uma nova norma sob pena de a autarquia ser extinta. Até aí, o imbróglio teria conserto. Ocorre que, desde 2007, mais de 400 outras MPs haviam chegado ao plenário sem cumprir aquele requisito legal. Hoje, cerca de 50 MPs tramitam no Senado, sem terem passado pela tal comissão. Se a decisão prevalecesse elas caducariam imediatamente. Então deixa estar como está. Uma lei foi revogada por ser descumprida sistematicamente. No Brasil, como diria Pessoa, leis são papéis pintados com tinta. Ou talvez papeizinhos, como diria Serra. São coisas que se revogam a qualquer momento e conforme os interesses do momento. A partir deste ano da graça, que ninguém mais se queixe de projetos de lei que não passam no Congresso. Já existe um recurso infalível para fazer passar leis: chame a Fifa. Por ocasião do Grande Prêmio Brasil em São Paulo, Bernie Ecclestone, o dirigente da F-1, demonstrou entender este país nosso: - This is Brazil! quinta-feira, março 22, 2012
SERPENTES PÕEM OVOS TAMBÉM À ESQUERDA Suponho que alguém ainda lembre de Anders Behring Breivik. O nome parece familiar, não? Há menos de um ano, o maluco norueguês matou cerca de oitenta pessoas, em nome de uma "guerra de sangue" a imigrantes e marxistas. Estranhamente, matou jovens noruegueses, que não eram imigrantes e certamente nada tinham a ver com marxismo. O massacre de Breivik foi uma festa para as esquerdas. Finalmente um europeu de boa cepa, loiro e de olhos azuis, demonstrava a natureza assassina da cultura europeia. Alusões a O ovo da serpente, de Ingmar Bergman, seriam inevitáveis. Na ocasião, uma jornalista tupiniquim, pretendendo ser original, escreveu: “Breivik é um fanático, que parece não recuar diante de nada para eliminar de sua frente aqueles que considera indesejáveis ou ameaçadores para o “sonho europeu” que persegue e difunde em suas mensagens pela internet. Os ataques que protagonizou, fundamentados por teorias de extrema-direita, deixam a Europa e o mundo em estado de alerta, já que uma onda de repulsa a imigrantes, declínio econômico, aumento do desemprego e medo crescente de retaliação de fundamentalistas islâmicos têm tomado conta de vários países do velho continente. “O que os tristes acontecimentos da Noruega nos dizem é que parece que o apoio a teorias xenófobas, como as que segue o atirador fanático de Oslo e da ilha de Utoeya, está crescendo. Vem da Bíblia o conceito de que a coexistência com idéias e companhias maléficas equivale a chocar o ovo de uma serpente. Em 1977, o notável cineasta Ingmar Bergman fez um filme com o título O ovo da serpente, ambientado entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, quando o nazismo nasceu e prosperou na Alemanha, encantando governantes de índole totalitária em vários cantos do mundo. O resultado é bastante conhecido e lamentado até os dias de hoje. “Eventos como o da Noruega parecem assustadoramente apontar nesta direção. Através do gesto tresloucado e das palavras mais ainda de Breivik, pode-se discernir o futuro provável da Europa e do mundo se providências enérgicas não forem tomadas para reprimir a expansão desta ideologia de extrema-direita que retorna. Através das membranas finas do ovo, pode-se vislumbrar o réptil peçonhento e letal, perfeitamente concebido e pronto para atacar”. Vinte anos após a queda do Muro de Berlim, Breivik prestou um serviço inestimável a uma doutrina já putrefata. Um maluco sai a matar e a idéia de Europa é posta em xeque. As esquerdas, penhoradas, agradecem. Segunda-feira passada, outro alucinado matou três crianças e um rabino em uma escola judia em Toulouse, França. Quatro judeus de uma tacada só? Pensei logo em algum Mohammed ou Mahammoud, como seria lógico. Ocorre que a loucura não é lógica e ataca em todos azimutes. Melhor não apostar na loucura. Durante quase 48 horas, a imprensa francesa foi tomada por um wishful thinking, a hipótese de que o assassino fosse um europeu de boa cepa. Não era. Era um Mohamed. Enquanto sua identidade era desconhecida, Gilles Lapouge, o correspondente do Estadão em Paris, apostou numa doença tipicamente ocidental, o serial killer. E evocou desde Breivik até uma condessa húngara do século XVI: “O homem da moto seria o clássico "serial killer"? Um fanático que mata por ideologia, como Anders Behring Breivik, o norueguês nazista que assassinou recentemente 69 jovens numa ilha? Ou um imitador dos 2 rapazes que, na escola de Columbine (Colorado), massacraram 12 estudantes e um professor em 1999? Evidentemente, as pessoas dirão que os serial killers costumam agir mais frequentemente nos Estados Unidos, e a França não tem grande tradição nesse tipo de ação. “Mas um ser delirante agiu na França: Francis Heaulme, o responsável pelos crimes, assassinou sete pessoas. Na 2.ª Guerra, o doutor Marcel Petiot matou 26 mulheres e guardou os cadáveres em sua casa. Mas os dois, embora entes abomináveis, não são os campeões mundiais. Eles não rivalizam com a condessa húngara Elizabeth Báthory que, no século 16, obcecada pela beleza, assassinou 610 jovens para banhar-se no seu sangue a fim de preservar sua juventude. “Esse personagem desconhecido, ainda não identificado, embora tenha sido fotografado por cerca de 40 câmeras de segurança, tornou-se um fantasma de filme de terror, uma figura de pesadelo vagando pelas ruas das cidades, que poderá, quando quiser, fazer nova matança em pleno dia. Os criminologistas afirmam que os serial killers não param nunca”. Ocorre que o assassino não era exatamente um serial killer. Muito menos um loiro europeu de olhos azuis. Nem era preciso ir tão longe no tempo para entender seu gesto. O celerado era de fato um Mohammed, francês de origem argelina, treinado em terrorismo no Paquistão e Afeganistão. Decepção no seio das esquerdas: o massacre pode favorecer a recandidatura de Sarkozy e mesmo a candidatura de Marine Le Pen. Em declarações para o Nouvel Obs, Christian Etelin, o advogado que o defendeu em pequenos delitos, o descreve como “um jovem muito doce, com rosto de arcanjo, de linguagem policiada”, que sabia ser “cortês e elegante”. Para seu antigo empregador, era “um bom elemento, de uma habilidade fora do comum no trabalho e de uma grande amabilidade”. Em declarações ao Libé, a concierge de seu prédio o descreve como um locatário geralmente só, gentil, polido, a rigor boa gente em todos os sentidos. “Se você o visse, você lhe ofereceria um café. Parecia doce como um cordeiro e você lhe daria o perdão sem confissão”. Para um de seus companheiros de bairro, “um mês ele era um bom muçulmano, na religião, sadiamente. No mês seguinte era totalmente uma outra coisa. Como se ele fosse duas pessoas”. O doce cordeirinho de rosto de arcanjo revelou-se um assassino frio e eficiente. Seu único arrependimento é não ter matado mais gente. Vai ver que Mohammed matou não em seu mês de bom muçulmano. Mas no mês em que era outra coisa. quarta-feira, março 21, 2012
CENSURA AO OUTONO Nas últimas décadas, minha vida tem sido uma fuga constante do verão. No inverno eu me defendo. Uma lã por baixo e um bom casaco e estamos conversados. Contra o verão não há defesa, a não ser ficar dentro de casa com ar condicionado. Nas últimas décadas, tenho viajado quase sempre em dezembro. Fujo do verão tropical e caio no inverno europeu. Fujo também do Natal brasileiro e do Ano Novo. Se bem que estas duas datas não são muito confortáveis na Europa. Comer se torna complicado e, se você se descuida, pode até passar um dia em jejum. Nem sempre fugi do verão. Em meus dias de guri, verão era festa. Significava férias e volta ao campo, às vacas, ovelhas e cavalos. O verão é escaldante nas cidades da Fronteira Oeste e as cidades – inexplicavelmente desprovidas de árvores – o tornam mais quente ainda. Isso é algo que não consigo entender na formação daquela gente fronteiriça. Nas cidades brasileiras não há quase verde nas ruas. Você se desloca uns 100 ou 200 quilômetros e entra no Uruguai. Ruas verdes de árvores. E sombra. Nos dias de universidade, também fui devoto do verão. Um dos motivos era de novo as férias. Havia um outro, a colônia de férias da então URGS (ainda não era federal) em Tramandaí. Ou seja, cachaça, chope, paquera, sexo, em suma, o melhor da vida para um adolescente. Naqueles dias, nos fins-de-semana, Tramandaí atraía uns cem mil visitantes. Era suportável. Hoje, pelo que me contam, atrai mais de milhão. Terminada a vida universitária, verão nada mais tem a ver com férias. É época de suar – literalmente – a camiseta. E verão em Porto Alegre é coisa que não desejo a ninguém. Temperatura próxima aos 40º, asfalto quase se derretendo, amigo nenhum nas ruas. Todo mundo – isto é, aquela parcela que tem condições de bancar um veraneio – foi para a orla. Foi no começo de minha profissional que o verão, de refrigério, virou inferno. Suponho que não estou sendo original. (Outro dia, circulou na internet uma foto de um termômetro público em Porto Alegre marcando 47º. Narcisismo climático, de provincianos que gostam de gabar-se de temperaturas extremas. Naquele dia, a meteorologia deu a máxima de 41º no Estado todo. É que o aparelho estava exposto ao sol, o que inflacionava a temperatura. Gente de província, na falta do que orgulhar-se, se orgulha de eventuais picos de temperatura, sejam negativos ou positivos. Menos 10 em São Joaquim. Talvez em algum aparelho situado no alto de um morro exposto ao vento e à geada e onde não vive ninguém). Há quem busque o verão. Eu prefiro fugir. Quando alguém me pede informações sobre viagens, minha primeira recomendação é: evite o verão. Primeiro, muito calor. Em Madri, ao meio-dia a temperatura bate nos 40º e ali fica até às seis da tarde. Roma e Paris também são desconfortáveis. Lisboa, vá lá, há sempre as brisas marinhas. Ocorre ainda outro desconforto, é época em que todo mundo viaja – isto é, aqueles que se podem permitir viajar. Aviões sem um só assento vazio, aeroportos repletos, museus e monumentos com filas impraticáveis. Não vá. Mas abro uma exceção para o verão, a Escandinávia. Os preços de hotel caem e você vai curtir o sol da meia-noite. Com o calor, não se preocupe. Em um verão boreal, você pode muito bem curtir zero grau. Aprendemos na escola que as estações são quatro. Deve ser herança do ensino europeu. Porque aqui no Brasil elas são escassamente duas, inverno e verão. E digo escassamente porque inverno é coisa do Sul. Do Rio para cima, inverno é ficção de meteorologistas. Outono e primavera mal se fazem notar nestes trópicos. Inverno mesmo fui descobrir na Suécia. Já vira neve em minha primavera viagem, na Inglaterra e Alemanha. Mas era uma neve mansa, gentil, com algum resquício de sol. Caí em pleno dezembro em Estocolmo. Aterrissei em Arlanda lá pelas duas da tarde. Noite fechada, céu plúmbeo, frio de enregelar os ossos. Jamais estive em Plutão, mas pareceu-me ter chegado lá. Era o que eu queria: distância dos trópicos. Lá por março, quando já começara a fazer dia durante o dia, tive uma abrupta percepção do valor do sol. Mal surgia uma fresta entre as nuvens, nos parques, ruas e paradas de ônibus, as adoráveis louras nórdicas, imóveis, fechavam os olhos e expunham o rosto e os seios àquele solzinho medíocre. Não por acaso existe na cidade uma estátua que celebra o Soldyrkare, o Adorador do Sol. Foi quando me bateu uma leve saudades do Sul. Naqueles dias, morei na Karlaplan, uma praça redonda cercada de árvores. Ali tive uma real percepção das estações. Karlaplan não era uma, mas quatro. Havia a Karlaplan de inverno, a de primavera, a de verão e a de outono. Quando cheguei, as árvores eram mirrados esqueletos de árvores, nem sombra de verde. No verão, se cobriram de um verde histérico. Na primavera, a praça era florida e no outono de um vermelhão infernal. Há 40 anos - nossa! -, vivi um dia magnífico em Estocolmo. Eu estudava sueco num prédio em frente ao Kungsträdgården, praça que em língua de gente quer dizer Jardim do Rei. O dia era 22 de março, um dia após a entrada da primavera. Ao aproximar-me do parque, levei um choque. Estava repleto de flores. Mas no dia anterior, eu tinha certeza, não havia flor nenhuma. Era de manhã, eu não havia bebido. Aos poucos, entendi a coisa. Foi como se o rei, ou alguma outra autoridade, tivesse ordenado: “hoje é primavera. Tirem as flores das estufas e joguem-nas na cidade”. Era uma primavera instantânea, brotada de repente. As estações se impõem com fúria na Europa. Com o tempo, fui me tornando um adepto do outono. O inverno é lindo. Mas o outono é soberbo. No Sul do continente, a natureza se tinge de um amarelo pujante, mas comedido. Quando mais você viaja ao norte, mais vermelhas se tornam as árvores. Em novembro passado, vivi dias encantados em meio ao vermelhão de Copenhague, Praga, Karlovy Vary e Budapeste. Com uma vantagem a mais: no outono você não arrisca trens e aeroportos paralisados pela neve. O encanto do outono reside não tanto nas árvores, mas nos sendeiros, praças e ruas amarelecidas pelas folhas que caem. Os parques se cobrem de uma espessa camada de outono, que só é removida – por tratores – ao final da estação. Entre nós, o outono é tímido, captado às vezes à unha por fotógrafos, em meio ao verde remanescente do verão. Pior que tudo, o outono é censurado. Pelo menos aqui em São Paulo. Mal começam a cair suas primeiras folhas, um exército de faxineiros sai dos condomínios, de vassouras em punho, para expulsá-lo das ruas. É como se seu exibicionismo constituísse um atentado ao pudor público. Quanto a mendigos deitados nas ruas, estes ninguém varre. Fazem parte da identidade nacional. terça-feira, março 20, 2012
PRÊMIO NOBEL DA PAZ DEFENDE A PUNIÇÃO DE HOMOSSEXUAIS Em meu ensaio Como ler jornais, relacionei uma série de vigaristas, que vão de plagiários a terroristas, contemplados com o prêmio Nobel. Comecei com o santo homem Martin Luther King, que plagiou sua tese de doutorado e, mesmo tendo cometido este crime de lesa-academia, recebeu o Nobel da Paz em 64. Isso sem falar que desviou verbas de suas campanhas em prol da igualdade racial para orgias com profissionais do sexo. Yasser Arafat, que defendeu na ONU, em 74, a tese de que um povo que luta pela própria independência tem o direito de apelar para atos terroristas, foi brindado com o prêmio da Paz em 94. Esta tolerância norueguesa a condutas criminosas não foi estranha aos suecos. Em 1965, no auge da Guerra Fria, o escritor russo Mikahil Aleksandrovich Sholokhov recebeu o Nobel de Literatura por sua obra Don Silencioso, epopéia em torno à vida, aspirações e tragédia dos cossacos do Don durante a guerra e a revolução. Descobriu-se mais tarde que o livro era uma apropriação indébita. Sholokov tinha na época 23 anos e não poderia ter acumulado a necessária bagagem de cultura cossaca exigida para tal empreitada. O verdadeiro autor chamava-se Fédor Dimitrievitch Krioukov, diretor do jornal Donskié Viédomosti, com o qual colaborava Sholokhov. Cossaco de origem e de coração, Krioukov esteve no front nas épocas descritas no romance, juntou-se à contra-revolução e conheceu de perto seus chefes. Krioukov, obviamente, foi banido dos anais da literatura russa. Sholokhov é hoje conhecido como o primeiro grande escritor russo a ter introduzido o tema dos cossacos na literatura. Em dezembro de 1965, recebeu das mãos do rei Gustavo Adolfo a láurea máxima da literatura ocidental. Mistificação semelhante ocorreu com Rigoberta Menchú Tum, Nobel da Paz de 1992, porta-voz e símbolo dos direitos dos povos indígenas, premiada em boa parte por sua biografia, Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la Conciencia. (Perdão, leitores, se volto ao assunto. Mas vigarices devem ser sempre lembradas). Apresentando-se como uma índia sem instrução e militante dos Direitos Humanos, a guatemalteca comoveu gregos e troianos com sua infância miserável. Daí ao galardão recebido em Oslo foi um passo. A data escolhida é emblemática: nos 500 anos do descobrimento da América outorga-se, pela primeira vez na História, o Nobel a uma indígena. Mas ninguém sai diretamente de Tegucigalpa para aterrissar em Oslo. A biografia de Menchú Tum não é obra de Menchú Tum. Foi fabricada em Paris, pela venezuelana Elisabeth Burgos-Debray, mulher de Régis Debray. Ao premiar Menchú Tum, só conseguiram desmoralizar ainda mais um título já enxovalhado por Mikahil Sholokhov, Martin Luther King, Pablo Neruda, Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá. Não bastassem os nórdicos conferirem estes prêmios prestigiosos a vigaristas notórios, em 2004 Oslo concedeu o Nobel da Paz à bióloga e ativista queniana Wangari Maathai. Após a entrega do Nobel, a bióloga reiterou sua opinião, muito divulgada na África subsaariana, de que o vírus da Aids foi criado por cientistas para a guerra biológica, para dizimar os negros africanos, como se alguma nação no mundo ganhasse algo com dizimar negros na África. Afirmou também que o uso do preservativo não é eficaz contra a transmissão do vírus. Em verdade, o Ocidente não é lá muito inocente quanto a esta assertiva. Em março de 2009, voando rumo a Iaundé, capital do Cameroun – que a imprensa brasileira insiste em traduzir por República dos Camarões – Bento XVI afirmava que o problema da Aids não pode ser resolvido pela distribuição de preservativos e o uso destes só servia para agravar o problema. Em 2007, os infectados camerunenses somavam 510 mil, contra 43 mil em 2004. Não por acaso, o Cameroun é um país de forte influência católica, onde esta religião é professada por 40% de seus nacionais. Dos 39,5 milhões de acometidos pela doença no mundo, 25 milhões estão na África subsaariana. (Estes dados são de 2006). Desde há muito se sabe que a propagação da Aids no continente negro se deve em boa parte à influência da Igreja, que proíbe a seus fiéis o uso de preservativos. O cachimbo entorta a boca. Habituado a professar dogmas e convicções na base do credo quia absurdum, não soa estranho a Bento um absurdo a mais ou um absurdo a menos. Daí a compartilhar o obscurantismo da prêmio Nobel queniana, foi apenas um passo. Diga-se de passagem, João Paulo II preconizava o mesmo. Desde há muito defendo, para espanto de muitos leitores, a denúncia da política vaticana ao Tribunal Penal Internacional ou à Corte de Haia. Porque o que a Igreja de Roma está promovendo, em bom português, chama-se genocídio. Mas falava de Nobéis. A Libéria – isto é, a Terra Livre - foi fundada no século XIX por escravos libertos dos Estados Unidos, não tendo conhecido o domínio colonial. O país foi criado pela American Colonization Society, organização criada em 1816 por Robert Finley, cujo objetivo era levar para a África negros livres ou negros que tinham sido libertos da escravidão. Segundo Finley e outros líderes americanos, os negros jamais seriam capazes de se integrar na sociedade do país. A única solução seria reenviá-los para a África, para evitar tanto a criminalidade como o casamento inter-racial. Em 1821, a American Colonization Society adquiriu uma parcela de terra na África, onde se fixariam os primeiros colonos negros oriundos dos Estados Unidos. Em 1847, a Libéria declarou a sua independência, tornando-se o primeiro país africano a tornar-se independente. Independência para quê? Hoje, a Libéria é ainda mais pobre que o Haiti. No mesmo ranking de 180 países, seu PIB per capita ocupa o 159º lugar. Conclusão? Antes que me chamem de racista, apelo ao testemunho de George Samuel Antoine, cônsul do Haiti no Brasil. Sem saber que estava sendo gravado pela reportagem do SBT Brasil, Samuel Antoine disse: “O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano lá tá fodido". Verdade que logo depois se apressou em dizer que foi mal interpretado. Mas não vejo muito como interpretar mal sua afirmação. Disse, está dito. Como cônsul, deve conhecer bem o país que representa. Ano passado, a Libéria teve seu primeiro prêmio Nobel, a presidente Ellen Johnson Sirleaf. A Noruega atribuiu conjuntamente o prêmio à também liberiana Leymah Gbowee e à "mãe da revolução" iemenita Tawakkol Karman. Ontem, Sirleaf mostrou ao que vem. Acompanhada do ex-premiê britânico Tony Blair, defendeu a legislação que pune a homossexualidade com cadeia em seu país. "Temos certos valores tradicionais em nossa sociedade que gostaríamos de preservar", afirmou Ellen, em depoimento divulgado ontem pelo site do jornal britânico The Guardian. Ao ser questionada sobre se assinaria alguma proposta que descriminalize o homossexualismo, a resposta da presidente foi negativa. "Já tomei uma posição sobre isso. Não assinarei essa lei ou nenhuma lei que tenha a ver com essa área, de maneira nenhuma. Gostamos de nós mesmos exatamente da maneira que somos." Na Libéria, a "sodomia voluntária" é punida com até um ano de prisão – diz o jornal. Dois projetos de lei em tramitação propõem sentenças mais duras contra os gays, obrigados a esconder a homossexualidade para viver tranquilamente na sociedade liberiana. Seria interessante perguntar também a Leymah Gbowee, conterrânea da presidente, se participa do mesmo ponto de vista. Os hiperbóreos homens do Norte estão sendo muito complacentes em seus ímpetos de homenagear o Terceiro Mundo. Ao conceder o Nobel à bióloga queniana que afirmou não ser eficaz o uso do preservativo contra a transmissão do vírus do Aids, Oslo endossou o obscurantismo vaticano, que está produzindo cadáveres às pencas nos países católicos africanos. Ao premiar a presidente liberiana, os noruegueses estão endossando a prisão de milhares de pessoas cujas opções sexuais são condenadas tanto pelo Vaticano como pelas ditaduras mais cruentas da África e do mundo árabe. Os prêmios Nobel, particularmente os da Paz e de Literatura, estão sendo desmoralizados a passos rápidos por seus contemplados. segunda-feira, março 19, 2012
A INQUISIÇÃO É VOSSA! Carlos Alberto di Franco, Doutor em Comunicação, professor de Ética e diretor do Master em Jornalismo, membro da Opus Dei, celibatário, virgem e usuário confesso do cilício por duas horas por dia, decidiu entrar na discussão sobre o uso do crucifixo em tribunais. Em seu apoio, chama Carlos Brickmann, a quem define como jornalista arguto e politicamente incorreto. Só esqueceu de dizer que Brickmann foi assessor de imprensa de Paulo Maluf, mas afinal para que enumerar todas as virtudes do homem em uma simples citação? Diz Brickmann: “Há religiões; também há a tradição, há também a história. A Inglaterra é um estado onde há plena liberdade religiosa e a rainha é a chefe da Igreja. A Suécia tem plena liberdade religiosa e uma igreja oficial, a Luterana Sueca. A bandeira de nove países europeus onde há plena liberdade religiosa exibe a cruz”. Ora, que a heráldica européia use a cruz não é coisa que espante. Uma das bases culturais do continente – que um dia se chamou Respublica Christiana – é precisamente o cristianismo. Que na Inglaterra a rainha seja chefe da Igreja anglicana muito menos, mas é bom lembrar que a igreja anglicana é uma ruptura com a tradição católica. O mesmo diga-se da Suécia. De qualquer forma, isto não é nenhum dogma que implique necessariamente a aceitação da cruz nos tribunais do Brasil. Cuja independência, sem ir mais longe, foi uma ruptura com a tradição portuguesa. Como o cristianismo foi uma ruptura com o judaísmo. Não fosse Cristo opor-se à tradição, o cristianismo não existiria. “O Brasil tem formação cristã; a tradição do país é cristã. Mexer com cruzes e crucifixos vai contra esta formação, vai contra a tradição. A propósito, este colunista não é religioso; e é judeu, não cristão. Mas vive numa cidade que tem nome de santo, fundada por padres, numa região em que boa parte das cidades tem nomes de santos, num país que já foi a Terra de Santa Cruz. Será que não há nada mais a fazer no Brasil exceto combater símbolos religiosos e tradicionais?” O assessor de Maluf não admite ir contra a tradição. Se sempre foi assim, que assim seja eternamente. Brickmann não aceita a idéia de progresso. Se durante séculos a Igreja dominou soberana sobre os Estados europeus, a divisão entre Estado e Igreja foi certamente obra de celerados que não admitiam a tradição. Democracia, sem ir mais longe, foi idéia que feriu tradições antiqüíssimas. O mesmo se diga da libertação dos escravos e da jornada de trabalho de oito horas. Será que não há nada mais a fazer no mundo exceto combater instituições tradicionais? O assessor, impertérrito, vai adiante: “Se não há, vamos começar. Temos de mudar o nome de alguns Estados e cidades como Natal, Belém, São Luís e tantas outras. E declarar que a Constituição do País, promulgada 'sob a proteção de Deus', é inconstitucional”. Ninguém está propondo mudar o nome de cidades e Estados. O assessor brande um argumento ad absurdum, para comover seus leitores. Isso de mudar nomes de cidades é coisa dos antigos comunistas, que gostavam de homenagear seus tiranos de plantão. Tsarytsin já foi Stalingrado e depois Volgogrado. São Petersburgo virou Petrogrado, depois Leningrado e hoje voltou a ser São Petersburgo. Nesta mania, os comunistas foram seguidos por seus herdeiros, as esquerdas tupiniquins, que querem mudar os nomes de avenidas e elevadas. É expediente também usado na Espanha, onde as viúvas do Kremlin querem exterminar da memória das gentes a lembrança do homem que salvou a Espanha do comunismo. No Brasil, exceto alguns florianopolitanos, jamais ouvi falar de quem queira mudar o nome de cidades. Quanto à Constituição, o assessor usou um jogo de palavras. Uma Constituição não pode ser inconstitucional, já que nenhuma outra constituição a rege. Pode ser, isto sim, absurda, incoerente, ilógica, inviável, utópica, colcha de retalhos. Mas jamais inconstitucional. Quem a pariu, que a engula. Continua Brickmann: “Há vários símbolos da Justiça, sendo os mais conhecidos a balança e a moça de olhos vendados. A balança vem de antigas religiões caldeias. Simboliza a equivalência entre crime e castigo. A moça é Themis, uma titã (sic!) grega, sempre ao lado de Zeus, o maior dos deuses. Personifica a Ordem e o Direito. Como ambos os símbolos são religiosos, deveriam desaparecer também, como o crucifixo?" Ocorre que ninguém mais cultua Zeus ou Têmis. A mitologia grega nunca nos foi empurrada goela abaixo nem embasa o ensino ou a cultura nacionais. Os gregos, politeístas, nunca tiveram como dogmas suas crenças. Quando Alexandre, trezentos anos antes de Cristo, ao ver-se cultuado como deidade no Oriente, pediu aos gregos que o entronizassem como deus, os atenienses foram generosos. Que assim seja. Mais deuses menos deuses, tanto faz como tanto fez. O Cristo é impositivo. Exige obediência a seus preceitos e se imiscui no universo das leis. As restrições ao sexo fora do casamento e ao homossexualismo são resquícios do cristianismo. A exigência de fidelidade conjugal também. São cracas que um dia impregnaram nossas leis e que ainda hoje sobrevivem nos costumes. Ora, nem todos são cristãos neste país. Não temos porque conviver, em nossas instituições de Estado, com a presença de um deus obsoleto. O jornalista virgem, por sua vez, vai mais longe. “Na escalada da intolerância laicista, crescente e ideológica, não surpreenderia uma explosão de ira contra uma das maravilhas do mundo e o nosso mais belo e festejado cartão-postal: o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro”. De novo a reductio ad absurdum, argumento de quem não tem argumentos. Ninguém está pedindo a demolição do Redentor. O que se pede é a retirada de símbolos religiosos dos tribunais. Como é usual neste tipo de fanáticos, Di Franco cria inimigos que não existem, para melhor combatê-los: “O laicismo militante atual é uma "ideologia", ou seja, uma cosmovisão - um conjunto global de idéias, fechado em si mesmo -, que pretende ser a "única verdade" racional, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, no ensino, etc. Por outras palavras, o laicismo é um dogmatismo secular, ideologicamente totalitário e fechado em sua "verdade única", comparável às demais ideologias totalitárias, como o nazismo. Tal como as políticas nascidas dessas ideologias, o laicismo execra - sem dar audiência ao adversário nem manter respeito por ele - os pensamentos que divergem dos seus "dogmas" e não hesita em mobilizar a "Inquisição" de certos setores para achincalhar - sem o menor respeito pelo diálogo - as idéias ou posições que se opõem ao seu dogmatismo”. Como se existisse um organismo laicista no país, “ideologicamente totalitário e fechado em sua verdade única”. Quem pediu a exclusão dos crucifixos foi uma liga de lésbicas, não um dogmatismo secular. Esta reivindicação não é exclusivamente brasileira e surgiu originalmente na Itália, berço do cristianismo. Por outro lado, jamais vi movimentos laicistas pretendendo “ser a única verdade racional, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, no ensino, etc”. Verdade única é cacoete de monoteístas, não de pessoas que não acreditam em deus. Mas o melhor de tudo no discurso de di Franco é chamar de Inquisição a mobilização dos leigos contra o crucifixo. Que me conste, ninguém está pretendendo mandar para a fogueira ou submeter a ordálias os juízes que insistam em usar o antigo instrumento de tortura em seus tribunais. O velho católico se traiu. Inquisição é coisa vossa, senhores papistas. |
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