¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, julho 31, 2013
 
PRIMEIRA EPÍSTOLA
AOS HOMOSSEXUAIS
DE BOA VONTADE



Perdão, leitores, por voltar à vaca fria. Acontece que ainda estou perplexo. Não com o papa. Como todos os papas, ele corre mundo montado em mentiras milenares: deus (a mais antiga e prestigiosa ficção já criada pela literatura), mãe virgem, ressurreição, três-em-um. Mentiras que sequer são originais, mas copiadas de cultos mais antigos. Ou seja, está em seu papel. Fosse eu papa, não poderia fugir do roteiro. Bergoglio interpretou bem seu personagem: repetiu as bobagens que os papas sempre repetem. Nem poderia ser diferente.

Minha perplexidade é outra. É com a subserviência da imprensa, que perdeu todo e qualquer senso crítico e atribuiu ao papa afirmações que ele não fez, mas que são simpáticas ao grande público. Vejamos esta manchete do Estadão, assinada por Jamil Chade, enviado especial a Roma:

Anulação de casamento será revista, diz papa

Na linha fina, o jornal escreve:

Francisco falou também sobre escândalos financeiros, ordenação de mulher e aborto

Vejamos então o que Francisco disse sobre o aborto:

"Aborto e casamento gay. A Igreja já se expressou perfeitamente sobre isso. Eu não queria voltar sobre isso (no Rio). Não era necessário, como também não falei sobre outros assuntos. Eu também não falei sobre o roubo, sobre a mentira. Para isso, a Igreja tem uma doutrina clara. Queria falar de coisas positivas, que abrem caminho aos jovens. E qual é a do papa? É a da Igreja, sou filho da Igreja".

Ou seja, não disse nada. Muito menos sobre o casamento gay, como afirma o intertítulo. Como pode um jornal respeitável afirmar que o papa disse o que na verdade não disse, como o próprio texto da reportagem confirma? Neste momento, o jornal perdeu toda respeitabilidade.

Em outra reportagem, escreve o enviado especial:

"O papa Francisco abre as portas da Igreja aos gays e se prepara para acolher os divorciados, facilitando a anulação de casamentos. Os anúncios foram feitos pelo pontífice que, quebrando tabus, deixa claro que estende a mão a esses segmentos. "Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?", declarou. "O catecismo da Igreja explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas devem ser integrados na sociedade."

Onde abriu portas? Bergoglio nada disse, apenas saiu pela lateral: "Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?" Não disse se aceita ou não a condição homossexual. O que disse, no fundo, foi: já que vocês estão aí, se quiserem entrar na igreja, as portas estão abertas. Não se definiu. Mas sabe – como o mercado sabe – que os homossexuais formam um considerável contingente no Ocidente. Fechar-lhe as portas seria perder fiéis, e pior, mermar ainda mais nas estatísticas da Igreja, que hoje se inclinam para as igrejas rivais, particularmente no Brasil.

O Globo acrescenta um ponto ao conto (ou o Estadão o subtraiu, sabe-se lá): “se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, para julgá-la?”.

Temos agora um novo e insólito personagem, o homossexual de boa vontade. Quem é o homossexual de boa vontade? O que procura Deus, é claro. Se não procura Deus, que tipo de homossexual será? Certamente um homossexual abominável, ao qual sua igreja não oferece redenção.

Quem é o papa para julgar? É o representante de Jeová na terra, daquele Jeová que julga, condena e manda matar. É o representante do Filho, daquele que virá num cavalo branco, para o Juízo Final. Em Mateus, Jesus diz: “Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; e todas as tribos da terra se lamentarão, e verão o Filho do homem, vindo sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória.”

Mais ainda: vem com a Sétima Frota. Lemos no Apocalipse: “E seguiam-no os exércitos no céu em cavalos brancos, e vestidos de linho fino, branco e puro (...) E vi a besta, e os reis da terra, e os seus exércitos reunidos, para fazerem guerra àquele que estava assentado sobre o cavalo, e ao seu exército”.

“Não julgueis, para que não sejais julgados – diz o Cristo -. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão”. Mas que é juízo senão julgamento? O Juízo Final é muito mais que julgamento. O Cristo volta com tropas para execução imediata dos réus condenados. É bom lembrar que, nos Evangelhos, Cristo só andou de burrico. Tampouco vemos cavalos junto à manjedoura, mas um burro e uma vaca. O cavalo era arma de guerra do invasor romano, e o Messias – pelo menos na acepção dos cristãos – não podia vir armado.

No Apocalipse, Cristo vem com tudo. Com sentença e execução. Quem é o papa para julgar? É nada menos que o representante daquele que julga. Que vem, armado, para julgar. Bergoglio sabe disso. Mas não pode rejeitar o exército de homossexuais, especialmente nesta época de vacas magras que vive a Igreja.

Como a causa homossexual hoje é causa ganha, os jornais, com unanimidade, afirmam que o papa foi ousado. Na verdade, foi covarde. Fugiu a qualquer definição com um jogo de palavras. Homossexualismo não mais se discute, é comportamento consumado e aceito. O que está sendo hoje discutido é o casamento gay, e sobre este o pio Papa não disse um pio.

El País, jornal que sempre tive como sério, se rende ao culto do argentino. Compara o papa aos bíblicos patriarcas. Pergunta-se se Francisco será um novo Moisés:

“No Brasil, a igreja - com Francisco como um novo Moisés bíblico - foi chamada a atravessar seu deserto em busca de uma terra nova para fugir da escravidão em que a havia colocado seu afastamento das pessoas.É possível que, como Moisés, Francisco também não veja a igreja chegar a essa terra prometida com que ele sonha, na qual não exista a "psicologia de príncipes" nos bispos; na qual estes sejam pobres de coração e de bens; que não suspirem pelas cebolas e os cozidos de carne que deixaram para trás e que não voltem a adorar os bezerros de ouro”.

Façamos votos para que não seja. O jornal parece esquecer que Moisés mandou passar a fio de espada três mil judeus. Continua El País: “A revolução que o papa lançou do Brasil para todo o mundo, como já se esperava, é séria”.

Que revolução para todo o mundo? Seria a Revolução de Julho de 2013, que sucedeu à gloriosa Revolução de Junho de 2013? Duas revoluções em dois meses seguidos? Decididamente, a imprensa viveu seus piores dias neste mês de julho.

terça-feira, julho 30, 2013
 
AS VADIAS SEGUEM
PRECEITOS BÍBLICOS



Está causando indignação, na imprensa e nas ditas redes sociais, as fotos das tais de Vadias, profanando e quebrando imagens sacras, rosários e crucifixos no Rio de Janeiro. De fato, a atitude é agressiva e ultraja crenças alheias. Provocação gratuita e grosseira, desejo de escandalizar. Sem falar que as moças, sob o ponto de vista legal, cometeram crime, tipificado no Código Penal, com prisão de um mês a um ano, ou multa. Claro que ninguém foi nem irá preso, afinal autoridade alguma ousará opor-se à “voz das ruas”.

Mas quem mais se ofendeu foram os católicos, que viram no ato uma ofensa à família e ao cristianismo. Em um site católico, leio:

POR QUE UM CRIME CONTRA OS CRISTÃOS E CONTRA A FAMÍLIA?

Não há como negar, que tal atitude deste grupo seja sim considerada crime e deve as responsáveis pagar pelos seus atos. O fato delas (sic!) invadirem um evento Cristão como a JMJ 2013 com calcinhas fio dental e semi-nuas, desrespeitando assim famílias, homens, mulheres e crianças que ali estavam, profanar Imagens Sacras, desrespeitar até a presença do Papa Francisco, já é um crime tipificado no Artigo 208 do Código Penal Brasileiro. (...) Tal atitude deste grupo podemos chamar “ Cristofobia”, ou seja, tudo que é sagrado, de Deus incomoda e eles fazem o “impossível” para impedir. Estamos vivendo um tempo em que qualquer manifestação desta natureza poderá resultar em destruição de igrejas católicas, violência contra religiosos, pessoas que participam de celebrações religiosas e até crianças.


Não vou discordar. Sempre teci críticas contundentes, não só ao cristianismo como também ao judaísmo, islamismo e demais religiões. Mas jamais me ocorreria profanar seus símbolos. Nada contra crer em deus ou deuses. O problema das religiões é que se sentem donas da verdade e querem impor suas crenças e práticas urbi et orbi.

Se o papa se dirigisse a seu rebanho, e apenas a seu rebanho, eu não teria assunto para boa parte destas crônicas. Mas se alguém não pode reclamar do gesto das idiotas, são justamente os cristãos. Como também os judeus. Pois profanar e mesmo destruir símbolos religiosos é uma antiga prática, não apenas recomendada, mas ordenada pelo bom Jeová:

Lemos em Êxodo 34:12: Guarda-te de fazeres pacto com os habitantes da terra em que hás de entrar, para que isso não seja por laço no meio de ti. Mas os seus altares derrubareis, e as suas colunas quebrareis, e os seus aserins cortareis (porque não adorarás a nenhum outro deus; pois o Senhor, cujo nome é Zeloso, é Deus zeloso).

No Deuteronômio 7: 5: Mas assim lhes fareis: Derrubareis os seus altares, quebrareis as suas colunas, cortareis os seus aserins, e queimareis a fogo as suas imagens esculpidas. Porque tu és povo santo ao Senhor teu Deus; o Senhor teu Deus te escolheu, a fim de lhe seres o seu próprio povo, acima de todos os povos que há sobre a terra.

Com temor de não ter sido ouvido, o bom Jeová volta a reiterar, ainda no Deuteronômio 12: 1: São estes os estatutos e os preceitos que tereis cuidado em observar na terra que o Senhor Deus de vossos pais vos deu para a possuirdes por todos os dias que viverdes sobre a terra. Certamente destruíreis todos os lugares em que as nações que haveis de subjugar serviram aos seus deuses, sobre as altas montanhas, sobre os outeiros, e debaixo de toda árvore frondosa; e derrubareis os seus altares, quebrareis as suas colunas, queimareis a fogo os seus aserins, abatereis as imagens esculpidas dos seus deuses e apagareis o seu nome daquele lugar.

E volta a insistir em Números 33: 51: Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: quando houverdes passado o Jordão para a terra de Canaã, lançareis fora todos os habitantes da terra de diante de vós, e destruíreis todas as suas pedras em que há figuras; também destruíreis todas as suas imagens de fundição, e desfareis todos os seus altos.

Não bastasse isto, o grande líder religioso judeu e filósofo Maimônides – Rambam para os íntimos – recomenda em sua obra máxima, Os 613 mandamentos:

185 - Destruir todo tipo de idolatria na terra de Israel

Por este preceito somos ordenados a destruir todo tipo de idolatria e seus templos por todas as maneiras possíveis de destruição e aniquilação: quebrar, queimar, demolir e rasgar, usando, para cada objeto, o meio apropriado para que a destruição seja feita o mais completa e rapidamente possível, pois a intenção é que não reste nem traço dele. Isso está expresso em Suas palavras, enaltecido seja Ele, "Certamente destruíreis dos lugares" (Deuteronômio, 12:2), em "Mas assim fareis com elas: seus altares derrubareis etc." (Ibid. 7:5) e novamente em "Porém seus altares derrubareis" (Êxodo, 34:13).

Quer dizer, devagar nas pedras. Os que hoje se sentem ofendidos são os mesmos que um dia ordenaram destruir altares e símbolos sagrados de outras religiões. E como jamais ouvi falar de que o Velho Testamento tenha sido revogado, presumo que tais recomendações ainda vigem.

segunda-feira, julho 29, 2013
 
UM POUCO DE GUERRA


QUEM É O PAPA?

Um Deus inventado à socapa,
Um Deus para fazer o qual bastam apenas
Quatro coisas: cardeais, papel, tinteiro e penas.
Deita-se numa saca uma lista qualquer,
Qualquer nome, Gregório, ou Bórgia ou Lancenaire,
Ou Papavoine – e pronto! Em dois minutos, fica
Manipulado em Deus autêntico, obra rica,
Tonsurado, sagrado, infalível, divino...
Quer dizer, saiu Deus duma bolsa de quino!

É um Deus por concurso, um Deus feito de tretas,
Em cuja divindade ideal há favas pretas!
Apesar disso é Deus. Vai pousar-lhe no seio
O Espírito Santo, esse pombo-correio
Da Providência. É ele o redentor e o oráculo.

A humanidade vai adiante do seu báculo
Soluçando, ululando, exausta, ensanguentada,
Pavoroso tropel de sombras pela estrada
Do destino fatal. O pensamento humano
É simplesmente um cão sabujo e ultramontano,
Um cão vadio, um cão faminto, um cão impuro,
Que o papa recolheu de noite num monturo,
E a quem às vezes dá, com parcimónia bíblica
A pitança de um breve e o osso duma encíclica.

Um papa é isto, um juiz sem lei; omnipotente,
Czar das consciências. Pode irremissivelmente
Chamuscá-la em fogo, ou torrá-las em brasas.
Ou fazer-lhes nascer das costas um par de asas,
O globo é para ele a bola de um bilhar.

Domina os reis. O trono é o lacaio do Altar.
Seus templos são prisões e seus dogmas algemas
Cingem-lhe a fronte augusta e nobre três diademas
E, na potente mão, invencível chapéu.
Tem as chaves do inferno... e a gazua do céu.

Masella, o teatro é velho, a receita é pequena
E há mil anos que está a mesma farsa em cena.
Abaixo a farsa! Abaixo o pardieiro divino,
O céu, que já não tem mais sombras de inquilino,
Serafins, querubins, anjos, legião eterna
Dos eleitos, tudo isso andou, pôs-se na perna,
Deixando lá ficar, ó cáfila de ingratos!
O CADÁVER DE DEUS ROÍDO PELOS RATOS.

PARASITAS

No meio d'uma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar em cima d'um jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.

Os magros histriões, hypocritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.

E toda a gente deu esmola aos taes ciganos;
Deram esmola até mendigos quasi nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,
Eu lembrei−me de vós, funâmbulos da Cruz.
Que andaes pelo universo há mil e tantos annos
Exhibindo, explorando o corpo de Jesus.

CALEMBOUR

Ó Jesuitas, vós sois dum faro tão astuto,
Tendes tal corrupção e tal velhacaria,
Que é incrível até que o filho de Maria
Não seja inda velhaco e não seja corrupto,
Andando há tanto tempo em tão má companhia.

SEMANA SANTA
(fragmento)

E era aquella immundície humana a humanidade!
Tinha valido bem a pena na verdade
Pregado n'uma cruz morrer como um ladrão,
Para ao cabo de dois mil annos vir achar
Pilatos sob o throno e Caifaz sobre o altar
De diadema na fronte e báculo na mão!

Arrazou−se de pranto o olhar do Nazareno,
Aquelle olhar profundo, aquelle olhar sereno
Que outr'ora deu alávio a tantos corações,
E a linha virginal de seu perfil suave
Turbou−se, apresentando o aspecto mudo e grave
Das nobres afflições.

E marmóreo, espectral, com a fronte sombria
Banhada no suor sangrento da agonia
Foi deitar−se outra vez na leiva tumular,
Athleta que expirou tranzido de mil dôres
E quer dormir, dormir entre as hervas e as flores
Onde escorre piedosa a branca luz do luar.

E quando a christandade á volta do meio dia
Correu ao templo a ver o entremez da Alleluia,
Em logar d'um Jesus banal de ciclorama
Subindo ao firmamento,
D'olhos azues n'um céu d'anil, túnica ao vento,
Sobre nuvens de gloria, de algodão em rama,
Viu−se na tela um Christo em fúria, um visionário,
Truculento, febril, colérico, incendiário,
Como que um salteador fugido das galés,
Na bôca uma blasfemia e no olhar um archote,
Expulsando da egreja os christãos a chicote
E expulsando do altar o papa a pontapés!

domingo, julho 28, 2013
 
PASTOR NÃO ENTENDE SUCESSO
DE PARCEIRO DE EMBUSTES



Marco Feliciano está enciumado com a receptividade que o papa Francisco vem recebendo no Brasil – escreve maliciosamente Lauro Jardim, em sua coluna Radar-on-line -. Agora resolveu comparar-se ao pontífice.

Não é que o deputado se compare com o papa. Apenas manifesta seu espanto. Defendem, no fundo, as mesmas bandeiras. Enquanto o papa goza de aura de superstar, o Feliciano é visto como a encarnação dos males do mundo.

Sem falar que sua igrejinha não tem os vinte séculos de prestígio da igreja do Chico. Foram dois mil anos de exibição de poder inconteste: pregação de dogmas absurdos, arbítrio, tirania sobre as mentes, torturas, fogueiras, orgias, matanças, intrigas, mentira sistemática. Dois mil anos impõem respeito, se impõem.

Feliciano precisa de mais vinte séculos e – se tiver muita sorte – uma crucificação das boas, com muito som e luz. E suco de tomate, ao estilo Mel Brooks. Só então poderá competir com o vice-deus romano. Continua Lauro Jardim:

“Diz Feliciano:

“- O papa é político, eu também. Assim como eu, o papa condena casamento de pessoas do mesmo sexo, a descriminalização das drogas e o aborto. Mas, no caso dele, a mídia aplaude. Por que o papa é tratado como popstar, ovacionado, e eu, tão atacado?”

Elementar, meu caro Feliciano. Você pode ser um bruto que ressurge da Idade Média. Mas é honesto em sua mesquinha visão de mundo. O Chico é hipócrita, como hipócrita sempre foi a Igreja. Defende seu mesmo deus, suas mesmas idéias. Mas não é besta para ir contra a maré. Seu discurso todo, em prosa e verso cantado por jornalistas que se pretendem argutos, não passou de lugares comuns humanísticos e apelos aos “jovens”. Quem ousaria dizer algo contra os “jovens”, que paralisam as metrópoles, depredam bancos e carros e gozam do beneplácito da imprensa? Só mesmo este fascista que vos escreve.

O argentino, com a malandragem de um compadrito, não disse uma palavrinha sequer sobre aborto ou casamento homossexual. Pega mal nestes dias em que as pessoas querem ser donas de seus próprios narizes. Não falou sequer da usual condenação do sexo pelo Vaticano. Não se fala em corda em casa de pedófilos, digo, de enforcados. Falou, isto sim, das drogas, cuja condenação é majoritariamente aceita. Os temas candentes que minam a fé católica foram deliberadamente deixados de lado. Mas conclamou os “jovens” a invadir as ruas. Vandalismo em país alheio é colírio aos olhos de nuestro hermano Paco.

Você, Feliciano, pode ser um obscurantista. Mas tem a coragem de seu obscurantismo. A Igreja, desde há muito viu que coragem não é boa política. Dissimulação rende mais crentes. E tem se roçado alegremente, ao longo dos séculos, com os poderosos. De vez em quando, um banho de multidão. Praias são a geografia ideal para tais banhos. Os milhares de banhistas que para lá acorrem em busca de sol são safadamente contabilizados com fiéis. Desta vez foram três milhões, dizem os jornais. A mídia estabeleceu um parâmetro de sucesso, o milhão. Papa que reúna menos de um milhão não é papa que se preze. É um fracasso.

Ainda Lauro Jardim:

"Em seguida, o deputado pastor mirou na Rede Globo:

"- Onde estava a TV Globo, que não mostrou as manifestações contrárias ao papa, o beijaço e etc? Isso é discriminação religiosa contra mim, contra o pastor Silas Malafaia e outros".

A Globo estava onde sempre esteve, em busca de grandes audiências. Seus jornalistas já foram hostilizados por denunciar as badernas dos “jovens”. Não seria agora que iria remar contra a unanimidade em torno ao papa.

O argentino criticou, no Santuário de Aparecida, os “ídolos efémeros do dinheiro e do poder”. Errou de púlpito. Melhor faria se falasse no Senado. José Sarney, Renan Calheiros e demais pares iam achar muito engraçado. Astuto, não cometeu a ingenuidade de João Paulo II, quando foi vender vento do outro lado da cordilheira.

O único jornal a relatar este episódio, pelo que me consta, foi o parisiense Le Canard Enchainé. Perorava Sua Santidade às juventudes de Santiago do Chile:

- Hermanas y hermanos que estáis hoy aquí reunidos! Verdad que renunciáis a las tentaciones de la sociedad de consumo?

Sua Santidade ouviu um sonoro "Sííííí!"

- Hermanas y hermanos que estáis hoy aquí reunidos! Verdad que renunciáis a los placeres del dinero y del poder?
- Sííííí!
- Hermanas y hermanos que estáis hoy aquí reunidos! Verdad que renunciáis a los placeres del sexo?

A multidão fez um profundo silêncio. Sua Santidade repetiu:

- Verdad que renunciáis a los placeres del sexo?
- Nooooo! - foi o que ouviu Sua Santidade. Pediu, levou.

Na favela de Varginha, falou sobre corrupção e pediu aos jovens que "nunca desanimem, não percam a confiança, não deixem que se apague a esperança" frente as "notícias que falam de corrupção, com pessoas que, em vez de buscar o bem comum, procuram o seu próprio benefício".

De novo, palanque errado. Corrupção é a menor das pragas que infestam as favelas. Corrupção existe junto ao poder, não nos aglomerados pobres das periferias. Os coitados dos favelados não têm sequer a chance de serem corruptos. Estão longe da máquina estatal e do dinheiro farto. Corrupção é pra quem pode, não para quem quer. Favelado consegue no máximo vender serviço para traficantes. Corrupção que mereça o nome é de vereador para cima.

Mas o absurdo maior foi reservado para a homilia em Aparecida, quando pediu aos fiéis que vivam em alegria. "A terceira postura: Viver na alegria. Queridos amigos, se caminhamos na esperança, deixando-nos surpreender pelo vinho novo que Jesus nos oferece, há alegria no nosso coração e não podemos deixar de ser testemunhas dessa alegria. O cristão é alegre, nunca está triste. Deus nos acompanha".

As multidões parecem ter sido cegadas pelos séculos de cristianismo. Como pode falar em alegria o homem que porta como símbolo de sua fé um instrumento de tortura?

Até hoje não consegui entender o sucesso da cruz como logotipo. Mais que instrumento de morte infamante, é instrumento de tortura. Se para os romanos era um utensílio para a execução de sentenças, mal os cristãos chegaram ao poder transformou-se em estandarte anunciador de matanças. Em seu nome foram massacradas milhares de pessoas que não aceitavam o deus único cristão, em seu nome foram destruídos altares e cultos a outros deuses, em seu nome culturas inteiras desapareceram do mapa.

Pela primeira e única vez na história, um instrumento de tortura se transformou em bandeira gloriosa. A bandeira com a foice e o martelo ensangüentou o século XX, mas estes dois objetos pelo menos eram símbolos do trabalho e não de uma prática infame.

Se Cristo tivesse sido empalado, duvido que seus seguidores saíssem séculos afora empunhando uma estaca.

sábado, julho 27, 2013
 
TURISMO LITERÁRIO
SE DEMOCRATIZA



Há dois dias, comentei o tal de Dia do Escritor, data tão vazia que passou despercebida. O personagem já foi em prosa e verso louvado ... pelos próprios escritores, é claro. Hoje, só chama a atenção de alguns gatos pingados. Pois o escritor, antes tido como uma espécie de farol da humanidade, vendeu-se, prostituiu-se, vulgarizou-se. Y a las pruebas me remito.

Há seis anos, uma dúzia e meia de malandros desejosos de conhecer o mundo a custas do Estado, reuniu-se em um projeto intitulado Amores Expressos, elaborou um ambicioso plano de turismo e tentou passar a conta ao contribuinte. Na ocasião, comentei a maracutaia na crônica que segue abaixo.

Dia seguinte, de Rodrigo Teixeira, o mentor das prostitutas, recebi o mail abaixo. Transcrevo, como recebi, com o português ilibado do condutor de escritores:

- Para seu conhecimento, quem está pagando pela estadia dos autores sou eu Rodrigo Teixeira. para seu conhecimento investi dinheiro meu e não publico e nem menos captado via leis de incentivo em um filme que está dando o que falar pelo seu resultado artistico e qualidade chamado Cheiro do Ralo, eu invisto em cultura, do meu bolso eu me arrisco e não consigo entender as suas acusações, leia a matéria da Folha de sabado, e quer saber projeto malandro (onde?) não existe aprovação, enfiando as mãos em dinheiro publico onde? prove que faço mau uso ou que no momento estou fazendo.

Um desmemoriado, o Rodrigo. Na Folha de São Paulo do sábado anterior, lá estava:

"O projeto, idealizado pelo produtor Rodrigo Teixeira e pelo escritor João Paulo Cuenca, tem um custo total de R$ 1,2 milhão e pleiteia verba de renúncia fiscal. Por enquanto, o processo ainda está em tramitação no Ministério da Cultura. Se a grana de incentivo não rolar, Teixeira diz que pagará do próprio bolso as viagens dos autores".

Seis anos depois, a maracutaia volta às manchetes. Leio na Folha de hoje:

Amor por encomenda

"Nem tanto amor, nem tão expresso. Mesmo com problemas, o projeto literário Amores Expressos, que levou há seis anos 17 escritores brasileiros a 17 cidades do mundo para que escrevessem histórias de amor, ainda rende rebentos. E uma "DR": obra de encomenda é arte menor?

"Mais dois livros da coleção acabam de chegar às livrarias: "Ithaca Road", de Paulo Scott, e "Digam a Satã que o Recado Foi Entendido", do colunista da Folha Daniel Pellizzari. O próximo, "Barreira", de Amilcar Bettega, será lançado no começo de agosto. Com esses, a série chega a dez livros publicados pela Companhia das Letras, editora oficial do projeto. Dos sete restantes, um foi recusado pela Companhia e saiu pela Rocco; outro, também recusado, está em negociação com outras editoras; e cinco estão sendo reescritos ou revisados, sem previsão de lançamento. (...) A possibilidade de financiamento público despertou a ira de escritores e blogueiros, que criticaram ainda a temática e o critério de escolha dos autores, que teria privilegiado amigos de Teixeira e do escritor João Paulo Cuenca, também idealizador da série”.

O problema parece ter sido o pequeno número de eleitos. Fosse o projeto mais abrangente, seria defendido com unhas e dentes pela guilda. Não é justo que apenas uma dúzia e meia de amigos do Rei saiam a gozar as delícias deste vasto mundo, quando todos delas querem usufruir.

O generoso mecenas não conseguiu enfiar a mão no bolso dos contribuintes. Pelo menos por enquanto. “Com a polêmica, Teixeira desistiu das leis de incentivo e, com dois sócios, financiou o projeto, reduzido a R$ 560 mil”.

Do que – permita—me o mecenas – muito duvido. Ninguém tira do bolso 560 mil para investir em um delírio fadado ao fracasso. Só louco rasga dinheiro e o benemérito incentivador das Letras de louco nada parece ter. De qualquer forma, Rodrigo ainda tem chances. Em troca, teria o direito de adaptar os romances para o cinema. Teríamos uma bela safra no glorioso cinema nacional, nada menos que 17 filmes.

Rodados a partir de histórias sem nexo de escritores desconhecidos. Mas algum leitor viu cineasta investir dinheiro próprio no cinema? Isto não existe no Brasil. Desta vez, lei Rouanet na certa. Se você, leitor, foi poupado em 2006, caso o projeto chegue a seus fins, agora você marcha, inexoravelmente.

Encomenda travou escritores da coleção – diz a Folha em manchete. “O tema fechado inibiu a imaginação e atrasou conclusão das histórias, dizem autores do projeto Amores Expressos (...) Crises de inspiração, acúmulo de trabalho e dificuldade em lidar com o tema da série partiram o coração de muitos escritores do projeto”.

O redator está sendo gentil. O projeto não era literário, mas turístico. É preciso ser estrangeiro ao mundo das Letras para imaginar que basta enviar um escrevinhador para um país que não conhece e cuja língua nem entende, para daí produzir um romance.

Reinaldo Moraes, que foi fazer turismo na Cidade do México no final de 2007, voltou de mãos vazias. "Esse negócio de livro de encomenda não deu certo para mim. Queria fazer um thriller simples, mas me enrolei com a genealogia do protagonista. Já estava com umas 200 páginas escritas e ele ainda não tinha chegado ao México."

Idem Lourenço Mutarelli. Concluiu seu livro sobre Nova York no começo de 2009, mas a Companhia das Letras – cúmplice da maracutaia - fez uma série de restrições. "Mas o romance era muito ruim mesmo, acabei concordado com eles", diz.

Antonio Prata – que em 2002 viu um Potosí a céu aberto no bolso do contribuinte e pedia ao governo uma carteirinha de escritor – também deu com os burros n’água. Suas vilegiaturas em Xangai deram em nada. "A dificuldade é uma questão inerente à escrita. A produção de um romance é sempre difícil, demorada, independentemente de ser encomenda ou não", argumenta.

Antonia Pellegrino foi para Bombaim em setembro de 2007. Nada feito. Adriana Lisboa foi contemplada com Paris, a pérola da coroa. Mas deparou-se com uma "questão estrutural quase insolúvel". O romance seria inspirado em uma história real, e a escritora não sabe se deixa isso explícito logo no início do livro ou não.

O turismo literário está se democratizando. Se antes era privilégio da universidade, agora se estende a escritores. Não bastasse já viverem de favores do Estado, exigem agora viagens a países distantes. Se voltam de mãos abanando, tanto faz como tanto fez. Ninguém vai cobrar mesmo.

CORRUPÇÃO NO MUNDO DAS LETRAS

26/03/2007

Está dando o que falar o último caso de corrupção no mundo das letras. Digo o último porque está longe de ser o primeiro. Trata-se do Amores Expressos, projeto malandro de um tal de Rodrigo Teixeira, que pretende enviar dezesseis escritores para dezesseis cidades do mundo, entre elas Paris, Berlim, Roma, Nova York, Tóquio, São Petersburgo, Praga e outras que tais. Dessas cidades, os escritores devem trazer uma história de amor. Quem pagará a conta? Claro que não serão os escritores. O projeto buscará os subsídios da famigerada lei Rouanet, que já serviu para financiar até mesmo a apresentação no Brasil de uma companhia milionária, o Cirque du Soleil. O leitor já deve estar intuindo: no fundo quem pagará o turismo privilegiado dos meninos serei eu.

Exato, meu caro. Aparentemente, você não paga nada. O que financia os jovens literatos é a chamada renúncia fiscal, parcela da tributação que a Receita perdoa aos grandes contribuintes desde que sejam aplicadas nessa palavra mágica e elástica, a "cultura", que significa tanto Julio Iglesias como Xuxa ou Gilberto Gil. Ora, a corda sempre rebenta na ponta mais fraca. Quando falta dinheiro ao Erário para pagar a vagabundagem e as farras de nossos deputados, professores universitários, sindicalistas e artistas, a União cria as CPMFs da vida, aumenta impostos. Em suma, enfia a mão no bolso do pagante final, você.

Em reportagem da Folha de São Paulo da semana passada, Rodrigo Teixeira é pintado como um "um jovem Quixote de pés bem plantados no chão". E as mãos enfiadas no dinheiro público, cabe acrescentar. Que me conste, Don Quixote nunca enfiou a mão no bolso dos contribuintes de sua época para financiar suas aventuras ou amores com a Dulcinéia del Toboso. Nem Cervantes foi pago para escrever sua obra em nenhuma capital européia ou asiática. A primeira parte foi escrita na prisão. Que a Folha encare o projeto com simpatia e o considere quixotesco, nada de espantar. Uma de suas colunistas, Cecília Giannetti, vai para Berlim. Sem carregar vergonha alguma em sua bagagem.

O projeto está orçado em 1,2 milhão de reais. As "obras" produzidas pelos escritores serão publicadas pela editora Companhia das Letras no decorrer de quatro anos. Ao investir 1,2 milhão de reais em autores praticamente desconhecidos do público, Luiz Schwarcz revela-se um editor de uma audácia extraordinária. Aposta no escuro, pois não tem idéia alguma de que os dezesseis produtos dos dezesseis autores sejam editáveis ou pelo menos vendáveis. Verdade que não é difícil ser audaz quando o investimento é a fundo perdido e não vem do próprio bolso. E é bom lembrar que o projeto do nosso Quixote - que certamente desdenha moinhos de vento, mas não é cego a uma pilha de reais, dólares ou euros - prevê uma segunda passada de chapéu, a transformação das narrativas em filmes. De novo, a mão no seu bolso.

Não vejo nada demais em uma editora financiar um escritor para escrever um livro. A primeira escritora que conheci, face a face, foi uma suissesse, em Estocolmo. Era jovem, chama-se Federica de Cesco, já havia escrito 25 livros, estava redigindo o vigésimo oitavo e tinha dois no prelo. Perguntei-lhe que fazia naqueles nortes. "Estou aqui para escrever um romance ambientado em Estocolmo. Sou paga para isso e tenho um ano para entregar meu trabalho". Primeira providência de Federica: inscreveu-se em um curso de sueco - onde a encontrei - para poder entender o país. Naquele momento, invejei a profissão de escritor. Quem a pagava era sua editora, e não o contribuinte suíço. E o editor estava apostando em uma profissional que tinha mais de 25 títulos no currículo.

Luís Schwarcz também não vê nada demais. Considera que se cinema e teatro são subsidiados, porque não o seria a literatura? Não deixa de ter razão. Ocorre que esta lógica é aquela do Stanislaw Ponte Preta: restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos. Mas isto não é o que acontece. Produtores e diretores de cinema ou teatro, no Brasil, jamais investem do próprio bolso. Só dignam-se a oferecer seu engenho e arte aos pobres mortais se os pobres mortais os financiam. Se a peça ou filme é uma solene empulhação e não tem público algum, tanto faz como tanto fez. A grana já foi embolsada e investida em mansões em ruas nobres, as únicas dignas de um grande diretor de teatro ou cinema.

Os editores parecem ter gostado dos tais de subsídios à cultura. Essas mordomias oferecidas a grupelhos de amigos nada têm de novo. Os Amores Expressos estão dando o que falar devido à desfaçatez do projeto. Em um país em que crianças estão estudando - quando estudam - em escolas de lata, é dose excessiva pagar o turismo de meninos apadrinhados com dinheiro público.

A prática é antiga no mundo acadêmico, particularmente na área de Letras. Acadêmicos brasileiros cruzam os ares, de Porto Alegre a Tóquio, de São Paulo a Paris, para fazer vitais comunicados - de vinte minutos - sobre lingüística, literatura comparada, teoria literária. Professores são enviados ao Exterior para defender teses sobre a obra de Machado de Assis ou Villa Lobos, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector. Boa parte deles volta sem ter defendido tese alguma. Jamais vi, em minha não tão curta existência, um só professor ser demitido da universidade ou pelo menos obrigado a ressarcir o erário público. A farra é grossa, antiga e atende por intercâmbio acadêmico. Curiosamente, não ocorre a nenhum jornalista denunciar esta corrupção escancarada. O que parece soar insólito no trem dos Amores Expressos é que meros escritores queiram usufruir de privilégios privativos da universidade.

Há muitos leitores questionando a escolha das cidades para onde irão nossos bravos escritores, em geral capitais do Ocidente bastante próximas de nós. Ora, estamos fartos de histórias de amor em Paris e Berlim, Roma ou Nova York, o cinema as fornece à exaustão. Seria bem mais interessante, para o público brasileiro, ter notícias de histórias de amor em Irkutsk, por exemplo, na Sibéria. Ou Pyongyang, na Coréia do Norte. Quem sabem em Ashgabat, no Turcomenistão. Nada sabemos do amor em Grozni, na Chechênia e apesar do Iraque estar todos os dias nas primeiras páginas dos jornais, nenhuma notícia temos do amor em Bagdá. Mas suponho que escritor algum se digladiaria para pesquisar o amor em tais rincões.

Tenho sugestão melhor. Nossos escritores deveriam ir para a cadeia. Não estou fazendo piada, não. A prisão, ao longo da história, tem sido muito produtiva para escritores. A começar pelo manco de Lepanto, que escreveu na prisão a obra magna da ficção ocidental. Permanecesse em sua condição de coletor de impostos, Cervantes certamente não nos daria o Quixote. Ou ainda Dostoievski, que nos legou o imortal Recordações da Casa dos Mortos. Um fuzilamentozinho simulado - como aquele ao qual foi submetido Dostoievski - talvez não fosse fora de propósito. Ressuscitar quando achamos que estamos mortos será sempre uma experiência interessante para quem escreve sobre o ser humano e seus abismos.

Quem leu Cartas do Cárcere - sem entrar no mérito da obra - terá de constatar que a prisão permitiu que Gramsci sistematizasse seu pensamento. Mesmo entre nós, temos um Graciliano Ramos e suas Memórias do Cárcere. O escritor alagoano considerava muito salutar para sua literatura o fato de ser prisioneiro: "Naquele momento, a idéia de prisão dava-me quase prazer: vi ali um princípio de liberdade. Eximira-me do parecer, do ofício, da estampilha, dos horríveis cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras maçadas, gotas espessas, amargas, corrosivas".

Conhecendo como conheço as capitais do Ocidente, em nome da pujança da literatura nacional, acredito, honestamente, que a prisão seria melhor para nossos escritores. As noites de Berlim e Praga, a gastronomia de Paris ou Roma, as noites brancas de São Petersburgo e suas kagebetes, não sei não! Acho que tais apelos iriam desviar um tanto os jovens corruptinhos do nobre ofício de escrever.

Melhor prisão, mesmo. Sem falar que não oneraria o contribuinte brasileiro. Quem não adoraria ler um título como O Amor em Abu Ghraib?

sexta-feira, julho 26, 2013
 
O BOM LIVRO


A propósito da crônica de ontem, um leitor me faz uma singela pergunta. Singela porém complexa: o que é um bom livro? Para começar, o conceito de bom é relativo. Há quem ache caju bom. Eu não suporto. Há quem se deleite com Paulo Coelho. Eu não consigo ler nem cinco frases. Canso. Só me resta então falar do que considero, de meu ponto de vista, um bom livro.

Para começar, tem de ser bem escrito. Escritor que escreve mal é mau caráter, dizia o implacável Agripino Grieco. No que tem toda a razão. Quem não domina o ofício não devia se meter no assunto. Toda grande obra é bem escrita. Leia os Diálogos de Platão. Escritos há 2.300 anos, são de uma clareza e de um frescor extraordinários. 23 séculos depois, você tenta ler um Tarso Genro ou Marilena Chauí e não entende nada.

Mas escrever bem não basta. O escritor há de ter o que dizer. Há quem escreva muito bem mas nunca produziu o que eu chamaria de bom livro. J. G. de Araújo Jorge, por exemplo. O nome deve ser desconhecido para as gerações atuais. Em meus dias de jovem, era coqueluche. Seus poemas – em função dos quais foi eleito e reeleito deputado federal - são de uma sonoridade extraordinária. Você os espreme e não sai nada.

Livro bom é o livro que nos transforma, que nos faz entender melhor os homens e o mundo, que nos torna mais honestos conosco mesmo e com os demais. Neste sentido, um bom é quase sempre um livro que nos contesta, que ataca a educação que nos foi dada e que muitas vezes nos faz sofrer ao ser lido. Diria que o primeiro bom livro que li foi El Hombre Medíocre, do pensador argentino José Ingenieros. O autor fazia ver em mim o medíocre que eu era, e é claro que isso dói. Ingenieros teve boa fortuna no Brasil, mas hoje ninguém mais fala dele. Ingenieros ficou distante no tempo, não sei dizer o que pensaria dele em uma releitura. Mas foi decisivo em minha formação.

Adelante! O bom livro pode ser irritante. O segundo autor contra o qual lutei foi Nietzsche. Aconteceu nos dias de Porto Alegre. Um colega um tanto inquieto, cujos interesses oscilavam do pugilismo às matemáticas, me abordou com o olhar desvairado. Empunhava um livro com verve. "Tens de ler este alemão. Urgente". Era o Ecce Homo - Como se chega a ser o que se é, de Nietzsche. Seriam umas dez da manhã. Acostumados àqueles humores repentinos, pensei dar uma vista de olhos no livro, para que meu instável amigo não mais me chateasse. Já no índice, comecei a irritar-me. Primeiro capítulo: porque sou tão sábio. Segundo: porque sou tão sagaz. Terceiro: porque escrevo bons livros. O último capítulo, uma pergunta: porque sou uma fatalidade? É o tipo de introdução que convida o leitor desavisado a jogar o livro longe. Mas uma música qualquer, uma cantata de eremita que volta do deserto, emanava das páginas sublinhadas com fúria naquele livro ensebado. Deixei-me levar pela música, fui entrando na atmosfera rarefeita do pensador. "Ouvi-me!" - alerta Nietzsche já na introdução - "eu sou alguém e, sobretudo, não me confundais com qualquer outro".

Mergulhei com fúria na leitura. Sentia estar perto de algo vital. Este livro, no qual o alemão furibundo se apresenta aos pósteros com as palavras com que Pilatos entrega o Cristo às turbas - Eis o Homem - foi escrito pouco antes de seu mergulho na loucura. É certamente o pensador que com mais energia lutou contra a hipocrisia do cristianismo e contra o próprio Cristo, a ponto de assinar-se, em seus dias de insanidade, como o Anti-Cristo. Ao falar da morte dos deuses pagãos, completava: sim, os deuses gregos morreram. Morreram de rir, ao saber que no Ocidente havia um que se pretendia único.

A manhã se foi, entrei meio-dia adentro, esqueci de almoçar e, lá pelas três da tarde, tive de engolir esta: "Não me são desconhecidas as minhas qualidades de escritor; em determinados casos compreendi como se corrompia o gosto com o manuseio de minha obra. Acaba-se, simplesmente, por não suportar mais a leitura de outros livros, pelo menos os filósofos. (...) Disseram-me que é impossível interromper a leitura dos meus livros, porque eu perturbo até o repouso noturno. Não existem livros mais soberbos e, ao mesmo tempo tão refinados quanto os meus".

Vontade de jogar fora o livro. Mas já era tarde demais para voltar atrás.

Bom livro é o que nos traz novas idéias, novos universos. Ou mesmo antigos, mas por nós desconhecidos. O Quixote, sem ir mais longe. Para mim, o fascínio de Cervantes, se por um lado está em seu estilo, sempre elegante e irônico, por outro reside em trazer-me uma Espanha de quatro séculos atrás. O futuro, hoje, nos é bastante familiar: está muito próximo de nós. Já o passado, este se perdeu na poeira dos séculos. Visitá-lo é turismo dos mais pedagógicos.

Livro bom é aquele que desvenda o substrato oculto de determinadas doutrinas. Coloco entre estes dois livros bastante distantes no tempo. O Discurso Verdadeiro, de Celso – ou melhor, o que restou dele – do qual falei há poucos dias. E 1984, a meu ver o mais importante livro do século passado. Em ambos, fala-se não da parte emersa do iceberg, mas do que fica oculto sob a água. Celso não se preocupa muito com as pretensas verdades afirmadas pelo cristianismo, mas dos baixos – e ocultos – instintos que movem os cristãos. (O mesmo faz Nietzsche em sua obra, particularmente em Anti-Cristo).

Orwell, por sua vez, não se preocupa com os gulags ou extermínios do comunismo. Mas com sua verdadeira essência, a manipulação do sentido das palavras. 1984 é, a meu ver, não exatamente um romance. Mas um tratado de linguística. É livro que vai perdurar no tempo, tanto quanto o de Celso.

Já afirmei que, no fundo, todo livro é de auto-ajuda. Nos bons autores vamos procurar respostas a nossas angústias. Mas há uma diferença entre dar como resposta falsas e fáceis esperanças, e mostrar ao ser humano sua grandeza, mas também sua miséria. Zíbia Gasparetto pode trazer ao leitor momentos de grande alegria. Mas Zíbia Gasparetto mente. Nietzsche pode levá-lo à depressão, se você tem espírito frágil. Mas não lhe mente.

Livro bom não é exatamente livro de leitura fácil. Dostoievski é um dos grandes momentos da literatura universal, mas sua leitura é pesada. Livro bom também pode ser aborrecido. Não vou negar o valor das metáforas de Kafka. Mas o tcheco é de leitura entediante. Genial? Pode ser. Mas não precisava ser tão chato.

Bom autor é aquele que vê adiante. Por ver tão longe, geralmente se insurge contra sua época. Este é o mal da nossa. Em busca do grande público, os autores já não ousam contestar as convicções de seus leitores. Preferem bajulá-los. Este deve ser um dos motivos pelos quais os bons livros pertencem ao passado, quando escrever nada tinha a ver com busca de sucesso ou dinheiro.

quinta-feira, julho 25, 2013
 
DATA VAZIA


Comemora-se hoje, sem brilho algum, o Dia do Escritor. O personagem já foi em prosa e verso louvado ... pelos próprios escritores, é claro. Hoje, só chama a atenção de alguns gatos pingados. Pois o escritor, antes tido como uma espécie de farol da humanidade, vendeu-se, prostituiu-se, vulgarizou-se.

Homero, se é que existiu, jamais deve ter-se preocupado se teria ou não leitores. Muito menos os hagiógrafos. Escreviam para comunicar algo ao ecúmeno, e reduzido era o ecúmeno naqueles dias. É de supor-se que Cervantes ou Swift jamais tenham se preocupado com direitos autorais. O Quixote foi concebido – e talvez escrito - na prisão.

Com o correr do tempo, escrever virou profissão. Tanto Dostoievski como Balzac escreveram para pagar dívidas de jogo. De lá para cá, escrever para enriquecer virou sonho de muito escritor. E para vender bem, é conveniente seguir o gosto do grande público. Como este gosto hoje é dos mais vulgares, a literatura seguiu este rumo. Não temos mais escritores levando aos leitores, contra ventos e marés, sua visão de mundo. Hoje os escritores tentam adivinhar a visão de mundo do público, para bajulá-lo. Daí os códigos da Vinci e harrys potters da vida.

Se antes os leitores procuravam na literatura uma tentativa de explicação da alma humana e seus mistérios, hoje buscam evasão e auto-ajuda. O escritor virou uma espécie de palhaço, muito bem pago para divertir os frequentadores do circo.

Livro é um objeto relativamente barato. Para ganhar muito é preciso vender muito. Não vivemos mais nos dias de Beccadelli Panormita, que vendeu uma porção de terra para adquirir, por 120 escudos de ouro, as obras de Tito Lívio. Nem na época da condessa d’Anjou, que comprou as Homilias de Aimon d’Halberstadt por duzentas ovelhas, três moios de trigo e boa quantidade de peles de marta. A propósito, estas informações eu as colho em Guerra sem Testemunhas, de Osman Lins, um dos bons escritores nacionais, cujas obras hoje só encontramos em sebos.

Já que falei no autor... Osman Lins é dos tempos – em verdade não muito distantes – em que havia uma certa sacralidade no escrever. “A condição do escritor será a de um perpétuo combatente, a de um homem sempre em luta consigo próprio e com um mundo que jamais o aceita integralmente; que nunca poderá aceitá-lo”.

Dichosos tiempos aquellos... em que literatura era ofício nobre. Ernesto Sábato é outro destes românticos, ao predicar a “clericatura” do escritor. O artista assume o papel de mártir. É o homem que, por sua revolta, continua não contaminado pelo meio ambiente. Interrogado se considera efetivamente a revolta como condição essencial para o criador de ficções:

— Evidentemente, se é grande, se não pratica essa fabricação de best-sellers de temporada, que hoje substitui em boa parte aquela missão sagrada que Jaspers menciona nos trágicos gregos, é um rebelde, um delegado das Fúrias, mesmo sem sabê-lo e, é claro, sem querê-lo.

Sábato vê a literatura como um ato sagrado. Perguntei-lhe certa vez se, nesta época publicitária, um livro poderia ainda preservar esta sacralidade.

— É difícil, com efeito, mas é possível. As religiões são por sua natureza mesma sagradas, mas devem lutar contra a dessacralização contínua que promovem as igrejas. Assim, surge certo tipo de religioso, talvez o mais profundo, que é, que tem de ser, anticlerical. As igrejas materializam a religião e a pervertem. Os místicos têm de voltar às fontes. O mesmo acontece com a literatura.

Os escritores – pelo menos os profundos – já foram guias de gerações. Eram poucos. Sempre houve uma subliteratura, mas seus autores antes não punham a cabeça para fora. Hoje, você se você joga uma pedra em um cachorro e erra, tem boas chances de acertar um escritor.

Eles são legião e surgem às fornadas. São publicados em milhares de exemplares e lidos por ninguém. Escritor que se preze, hoje, tem 30 ou 40 livros publicados. Difícil é lembrar algum destes títulos. Não passa dia sem que leiamos nalgum jornal: morreu o escritor Fulano de Tal. E vemos um nome do qual jamais ouvimos falar.

Adeus dias de Somerset Maugham, Aldous Huxley, Herman Hesse, Thomas Mann, Lawrence Durrel, Witold Gombrowicz, Jerzy Kosinski, Albert Camus, Margaret Yourcenar, Gore Vidal, Ernesto Sábato. Até mesmo Borges parece ter desaparecido das livrarias.

No Brasil, os jovens escritores brotam como cogumelos após a chuva. São centenas, senão milhares. Se lessem uns aos outros, esgotariam gordas edições. De um lado, o custo das edições barateou. De outro, muitos são financiados pelas leis Rouanets da vida. Ou indicados como leitura obrigatória nos colégios e universidades. Este é o mais sórdido dos espécimes. Claro que não será indicado se disser uma só palavrinha contra o governo, se desobedecer ao politicamente correto. É prostituta desde o berço.

Há ainda os premiados em concursos com cartas marcadas. Já há quem faça profissão da vidinha de palestras aqui e ali, feiras do livro, festivais de literatura. São sempre os mesmos. Em um panorama onde um dia tivemos escritores de vulto – Osman Lins, Pedro Nava, Campos de Carvalho, Nelson Rodrigues, Aníbal Machado – hoje vemos uma planura onde nenhuma cabeça desponta.

Despontam, isto sim, filhotes de pavões, sempre dispostos a dar entrevistas sobre “meu fazer literário”. Já ouvi – juro que ouvi – um desses escrevinhadores falar sobre “meu universo ficcional”. Tinha 60 anos e havia publicado seu primeiro livro de contos. A profissão se tornou tão banal no Brasil que já temos nobelizáveis – com mais de 60 livros publicados – estendendo o chapéu ao contribuinte para continuar tomando seus vinhos.

É o caso de relembrarmos aquela antiga piadinha: uma poetisa palestrava quando um dos ouvintes a interpelou:

- Poeta, li um de seus livros.
- Ah! Foste tu?

Quem viu isto muito bem foi Fernando Pessoa: "A mesquinhez, a estreiteza imaginativa são os vícios definidores da nossa época. Somos incapazes de escrever, ou de querer escrever, ou de saber ler sem escrever, epopéias. Em compensação, escrevemos romances. O romance é o conto de fadas de quem não tem imaginação".

Os contos de fada de quem não tem imaginação aí estão, atulhando as vitrines de livraria e páginas de jornais. Aquele antigo escritor, que cultuávamos como um ser dotado de uma visão privilegiada do mundo – e que nos servia como guia no emaranhado da vida – parece ter desaparecido. Se quisermos ler estes mestres, temos de voltar aos antigos.

A data de hoje é vazia. Celebra um personagem que um dia teve sua importância e hoje virou prostituta. Vende sua alma a quem melhor paga.

quarta-feira, julho 24, 2013
 
TABELIÃES TAMBÉM JÁ
PODEM RASGAR A CARTA



Em agosto do ano passado, comentei a insólita união conjugal entre três pessoas lavrada em um cartório em Tupã, interior de São Paulo. Segundo Claudia Domingues do Nascimento, tabeliã do cartório e redatora do texto, a escritura estabelecia regras relativas aos bens dos parceiros, na hipótese de algum deles adoecer, morrer ou mesmo desistir da relação. “É como um contrato particular de compra e venda.”

A tabeliã afirmou que o trio tentou, sem sucesso, formalizar a escritura de união estável em outros cartórios. “Aí eles descobriram que minha tese de doutorado é sobre união poliafetiva [entre mais de duas pessoas] e me procuraram”, disse. Se antes era o Legislativo que determinava o regime legal do casamento, ao que tudo indica hoje tese de doutorado produz legislação. Segundo o UOL, o documento lavrado “pode ser a primeira escritura de união conjugal entre três pessoas no país”.

Pelo jeito, os neojornalistas perderam a memória – escrevi na ocasião -. Ou têm preguiça de pesquisar. Há cinco anos, em Porto Velho, Rondônia, uma mulher obteve na Justiça o direito de receber parte dos bens do amante com quem conviveu durante quase 30 anos. Ele era casado e morreu em 2007, aos 71 anos. O juiz Adolfo Naujorks, que concedeu à moça o direito de herança, baseou-se em artigo publicado num site jurídico segundo o qual uma teoria psicológica, denominada "poliamorismo", admitia a coexistência de duas ou mais relações afetivas paralelas em que casais se conhecem e se aceitam em uma relação aberta.

Ou seja, a teoria não surgiu ontem. E sites jurídicos não só estão substituindo o Legislativo, como modificando o regime de transmissão de bens entre herdeiros. Mais ainda, estão legitimando a poligamia. Nada contra. Eu apenas constatava.

Leio hoje no Estadão – quase um ano depois do fato - que a união estável "poliafetiva" lavrada no interior de São Paulo pela tabeliã Claudia do Nascimento Domingues entre um homem e duas mulheres trouxe à tona um debate que divide juristas e a sociedade. Num momento pós-união estável homossexual, já aceita pela Justiça, até onde vai o conceito de família no Brasil? – pergunta-se o repórter.

A imprensa, que por definição deveria ser ágil, no fundo é lenta. Os jornalistas parecem ter levado um ano para perceber que a Constituição havia sido ferida. Para a oficial do cartório de notas de Tupã, no entanto, não há lei na Constituição brasileira que impeça mais de duas pessoas de viverem como uma família e a ausência da proibição abre caminho para um precedente.

Até aqui, está cheia de razão. Sem falar que há milhares, senão milhões, de pessoas vivendo esta condição. A Perpétua e a Outra são personagens recorrentes na família brasileira. Por outro lado, tampouco há na Constituição nada que impeça 15 pessoas viverem como família. No fundo, a tabeliã abre portas para o casamento islãmico no Brasil, que permite quatro (ou mais) fêmeas ao macho muçulmano.

Alvíssaras! Novidade na cultura ocidental. Finalmente o Direito reconhece que o tal de amor não precisa ser monogâmico. Mas minhas dúvidas permanecem. A sentença não estabelece quantas pessoas se pode amar ao mesmo tempo. Só duas? Ou vinte também vale? E o harém do rei Salomão? Pode? Tampouco esclarece se uma mulher pode amar dois ou mais homens. Pelo que se deduz da questão, quando um homem ama duas mulheres é poliamor. Já uma mulher amando dois ou mais homens, vai ver que é puta mesmo.

Já os juristas são relutantes ante o achado da tabeliã. "É um absurdo. Isso não vai para frente, nem que sejam celebradas milhares dessas escrituras. É algo totalmente inaceitável, que vai contra a moral e os costumes brasileiros", avalia a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Comissão de Direito da Família do Instituto de Advogados de São Paulo (Iasp) e doutora na mesma área pela USP. "É uma escritura nula, sem valor algum, por não cumprir os requerimentos constitucionais", diz.

Penso um pouco diferente. Mais que escritura nula, é a instituição da bigamia. E bigamia, pelo que lembro de Direito, constitui crime. Não deveria o poliamoroso marido estar na cadeia? Junto com a tabeliã, como cúmplice? José Carlos de Oliveira, professor de direito e doutor pela Unesp, diz que o documento é inválido por "contrariar frontalmente a Constituição" e que o Supremo jamais referendaria o novo tipo de família.

"A escritura em questão alterou de forma unilateral aquilo que já é tipificado pela lei, ou seja, que uma família é constituída por duas pessoas somente, sejam heterossexuais ou homossexuais. Fizeram um contrato de acordo com os interesses deles, que, se chegar ao STF, será prontamente julgado como ilegal".

A tabeliã insiste. Para ela, há chances de que as uniões poliafetivas tenham uma trajetória semelhante às uniões homoafetivas, entre duas pessoas do mesmo sexo, que após muitos anos de recursos e trâmites em diferentes instâncias do país foram consideradas válidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu por uma "revisão" do texto constitucional no ano passado.

Não é de duvidar. Se o STF rasgou a Constituição baseado em um neologismo – a tal de homoafetividade – ao sacramentar o casamento homossexual, por que uma tabeliã não poderia expandir a união conjugal para três cônjuges? Ou mais, quem sabe, já que, segunda a moça, nada obsta?

"Como é que vão resolver? – pergunta-se a tabeliã -. Não sei. Estamos vendo decisões surpreendentes, e é como um dos juízes do STF colocou muito bem na votação da união homoafetiva no ano passado: 'a realidade não pode ser afastada'".

A proposta é revolucionária. Mas se a realidade não pode ser afastada, ponham-se todas as leis no lixo. A lei existe para delimitar determinados aspectos da realidade, que lesam direitos alheios. Se a lei deve seguir junto à realidade, vamos então legalizar logo o jogo do bicho, a droga, o aborto (que na verdade já não constituem crime), como também os ditos crimes de honra, os assaltos, os arrastões, o latrocínio, enfim, tudo que faz parte dessa realidade, “que não pode ser afastada”.

Não imagine o leitor que sou contra o tal de poliamor. Que, em meus dias de jovem, se chamava amasiamento, adultério, infidelidade. Ou, mais eufemisticamente, donjuanismo, casanovismo. (Poliamor parece soar melhor nestes dias politicamente corretos que correm). Só me parece conveniente antes mudar a lei que transgredi-la com neologismos. Ou cairemos em um caos legislativo do qual será difícil emergir. Aliás, já estamos nele nos atolando.

Já não precisa ser ministro do Supremo para rasgar a Carta. Basta ser tabeliã.

terça-feira, julho 23, 2013
 
SOBRE AMIZADE,
AMOR E DOENÇA *



Sábado passado, escrevi sobre o frívolo conceito de amizade que está se tornando usual em função das redes sociais. Se, durante séculos, amigo era um ser muito especial, hoje amigo é qualquer um. Nestes dias em que se fala de um milhão de amigos, a discussão merece mais algumas considerações.

Há uns bons dez anos, comentei L’Amicizia secondo i filosofi, de Massimo Baldini (Città Nuova, 1998), uma antologia de textos filosóficos sobre a amizade, com um ensaio do antólogo à guisa de prefácio. Trata da amizade em seu sentido mais nobre, e não da amizade irresponsável proposta por alguém que jamais vimos. Os filósofos, no caso, são aqueles que a história consagrou como tais, e não professores que os papagueiam e se julgam pensadores. A reflexão é oportuna, nestes dias em que a amizade muitas vezes passa a depender de uma visão de mundo uniforme.

Quem hoje tem 60 anos, sabe disso. Terá perdido amigos por escaramuças no Camboja ou Vietnã, por determinações de Moscou, Pequim ou Cuba, em suma, por eventos distantes que nada têm a ver com uma relação entre duas pessoas. O teórico desta perversão foi Sartre que, por questões de ideologia, rompeu laços com Camus. “A amizade, ela também, tende a ser totalitária” — disse um dia o agitador da Rive Gauche ao futuro prêmio Nobel — “urge o acordo em tudo ou a ruptura, e os sem-partido eles próprios se comportam como militantes de partidos imaginários”. É a versão xiita da amizade: ou você aceita minha ideologia, ou não podemos ser amigos.

Assim, com satisfação vejo que Aristóteles, na longínqua Atenas, distante no tempo e no espaço, desde há mais de dois mil anos concorda comigo. No livro oitavo da Ética a Nicômaco, afirma não ser possível ser amigo de muitos com perfeita amizade, como não é possível estar enamorado ao mesmo tempo de muitos. “Aqueles que têm muitos amigos e que tratam todos familiarmente, não parecem ser amigos de ninguém”. Para o estagirita, um milhão de amigos nem pensar.

Cícero, ciente das responsabilidades da amizade, recomenda atenção para que não comecemos a gostar de alguém que algum dia poderemos odiar. Amizade não é coisa para jovens, mas deve ser decidida quando o caráter está formado e a idade já é madura. Seneca, como bom estóico, acha que o sábio deve bastar-se a si mesmo. O que não impede que ele aceite com prazer um amigo que lhe seja vizinho. Para o pensador de Cordova, o sábio é impelido à amizade não “pelo interesse, mas por impulso natural”. Amizade que se funda no interesse é um “vilissimo affare”. A distância não tem o poder de prejudicar a amizade. É possível manter relações com amigos ausentes, por quanto tempo se quiser. Em verdade, a proximidade torna a amizade complicada. A amizade é sempre útil, enquanto o amor é muitas vezes absolutamente nocivo.

Abelardo acentua o caráter seletivo da amizade. “Ninguém será pobre se possuir tal tesouro, tão mais precioso quanto mais raro. Os irmãos são muitos, mas entre eles é raro um amigo; aqueles a natureza cria, mas estes só o afeto te concede”. Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, define: “é um contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas". No que vão duas restrições. Os amigos devem ser sensíveis, porque um monge, um solitário podem não ser maus e no entanto viver sem conhecer a amizade. E virtuosos, porque os maus têm apenas cúmplices. Em suma, só os homens virtuosos têm amigos. O que Abelardo está dizendo, no fundo, é que um mau-caráter não pode ser amigo de ninguém.

Uma distinção mais lúcida vamos encontrar em Kierkegaard, para quem o cristianismo aboliu a amizade. Segundo o pensador dinamarquês, o amor humano e o valor da amizade pertencem ao paganismo. Pois o cristianismo celebra o amor ao próximo, o que é distinto. Para esta religião, só o amor a Deus e ao próximo são verdadeiros. O cristão deve aprender a desconfiar do amor profano e da amizade, pois a predileção da paixão é no fundo um ato de egoísmo. Entre o amigo e o próximo há diferenças incomensuráveis. A morte não pode extirpar o próximo. Se a morte leva um, a vida subitamente fornece um outro. A morte pode tomar de você um amigo, porque ao amar o amigo no fundo você a ele se une. Mas ao amar o próximo você se une com Deus, por isso a morte não pode tomar-lhe um próximo.

Para Nietzsche, a mulher é incapaz de amizade, conhece apenas o amor. Mas seus contemporâneos homens não percorreriam mais os sendeiros da amizade. Por dois motivos. Primeiro, porque o amor entre os sexos prevaleceu sobre a amizade. Segundo, porque o cristianismo substituiu o amigo pelo próximo. Para seu profeta, Zaratustra, “vosso amor ao próximo é vosso amor por vós mesmos. Fugis rumo ao próximo fugindo de vós mesmos. Não vos ensino o próximo, mas o amigo. Não aconselho o amor ao próximo. Aconselho o amor ao remoto”.

Sou avesso a isso que chamam de amor. Ou talvez avesso à palavrinha. Os filmes de Hollywood, que sempre terminavam com um indefectível “I love you”, vulgarizaram o tal de amor. Sem falar que, no fundo, é um sentimento que leva facilmente ao assassinato. Se você, leitora, um dia sentir que outro alguém a considera a única pessoa de sua vida, melhor sair de perto. De preferência, correndo. Há algumas décadas, surgiu uma novela na televisão brasileira intitulada “Quem ama não mata”. Solene besteira. Só mata quem ama. Ao sentir que perde o que julga ser único, o bruto raciocina: se não és minha, não serás de mais ninguém”. Daí a matar é um passo.

Prefiro a amizade, mesmo na relação com mulheres. Em algum momento do Quarteto da Alexandria, Lawrence Durrel dizia ser a amizade preferível ao amor porque mais duradoura. Verdade que amigos também perdemos, mas a ninguém ocorre matar alguém porque perdeu sua amizade. Amor é doença antiga, já diagnosticada pelos gregos. Assim narra Plutarco o caso de um jovem enfermo:

- Erasístrato percebeu que a presença de outras mulheres não produzia efeito algum nele. Mas quando Estratonice aparecia, só ou em companhia de Seleuco, para vê-lo, Erasístrato observava no jovem todos os sintomas famosos de Safo: sua voz mal se articulava. Seu rosto se ruborizava. Um suor súbito irrompia através de sua pele. Os batimentos do coração se faziam irregulares e violentos. Incapaz de tolerar o excesso de sua própria paixão, ele tombava em estado de desmaio, de prostração, de palidez.

Quando Antíoco – pois assim se chamava o enfermo – recebeu Estratonice como presente de Seleuco, seu pai, desapareceram os sintomas da doença. Que talvez tenha contagiado Seleuco, pois afinal era o marido de Estratonice. Mas isto já é outra história.

Eram bons observadores, os gregos. O tal de amor é gostoso quando o experimentamos. Mas ridículo quando visto com certa distância. Amor, diria, é coisa para jovens. Jovem tendo sido, é claro que fui acometido pelo mal. (O pior é que às vezes tem recidiva). Uma vez adulto, optei pela amizade.

Que tampouco dura a vida toda. Diria que perdi dois excelentes amigos de longa data. Um, porque recebeu o título de Dr. pela USP. Outro, porque não gostou de crônica que escrevi sobre a teoria da relatividade. Que se vai fazer? Conto outra hora.

* 21/05/2012

segunda-feira, julho 22, 2013
 
VICE-DEUS BAJULA JOVENS


Comentando os livros que passam, falei há pouco do polonês que se radicou em Buenos Aires após a Segunda Guerra, Witold Gombrowicz, e de seu livro Pornografia. Onde faz a apologia da imaturidade: "O homem está suspenso entre Deus e a juventude. Isso quer dizer que o homem tem dois ideais, a divindade e a juventude. Ele quer ser perfeito, imortal, onipotente. Ele quer ser Deus. E ele quer estar em plena florescência, fresco e róseo, para sempre instalado na fase ascendente da vida - ele quer ser jovem."

O que não quer dizer que faça a apologia do jovem. No prefácio desta novela, afirma: “Quando o velho é que forma moço, tudo vai muito bem do ponto de vista social e cultural. Mas se o velho está submetido ao moço, que trevas! Quanto de perversidade e de vergonha! Quantas armadilhas! E, no entanto a juventude, biologicamente superior, fisicamente mais bela, não tem problemas em seduzir e conquistar o adulto, já envenenado pela morte”.

Para Gombrowicz, a fórmula “o homem quer ser Deus” exprime muito bem as nostalgias do existencialismo, “enquanto que oponho a essa uma outra, ferozmente incomensurável: “o homem quer ser jovem”.

O polaco considerava que as convulsões idealistas da juventude resultam da impotência de viver, da tristeza do artifício, da melancolia do aborrecimento. Em maio de 68 vivia na França e não deu importância alguma à “revolução" dos jovens:

"Do ponto de vista político e ideológico, o movimento da juventude não me interessa em absoluto. As suas novas ideologias foram previamente moldadas por pessoas mais velhas e são de má qualidade; são aparências, palavras vazias. Vejo na crise da juventude uma crise dos adultos. Frente à juventude, os adultos são covardes, servis, sem energia, e as suas idéias não têm peso. Os intelectuais neste movimento são ridículos, e o Sartre é igual ao resto... em cima de bidões e cercado de microfones. Pediu-me conselhos, como se eu fosse um segundo Marcuse. A minha resposta foi: ‘Não perco tempo com idiotices!' Atualmente, este conflito é uma espécie de revolução artificial."

Nestes dias de Brasil, em que a visita papal sucede a gloriosa revolução de Junho de 2013 – como propôs a Veja – tanto em um como em outro evento o grande herói é este solene bobalhão, o jovem. A deduzir-se dos jornais, a Igreja já não se interessa mais pelos adultos ou pelos velhos. Sua Santidade ignorou-os solenemente. Segundo a Veja, o papa espera que suas atitudes e palavras motivem os jovens do mundo a agir como verdadeiros cristãos. A edição on line mancheteia:

PAPA DISCURSA NO RIO: ‘CRISTO BOTA FÉ NOS JOVENS’

Neste desejo de bajular a juventude, os Evangelhos viraram casa-da-mãe-Joana. Cada um colhe neles o que bem entende e nem mesmo está lá. De onde o argentino tirou que o judeu aquele bota fé nos jovens? Nos Evangelhos, há um único contato do Cristo com um jovem, e o desfecho não é nada animador. Lemos em Mateus:

E eis que se aproximou dele um jovem, e lhe disse: Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna? Respondeu-lhe ele: Por que me perguntas sobre o que é bom? Um só é bom; mas se é que queres entrar na vida, guarda os mandamentos.
Perguntou-lhe ele: Quais? Respondeu Jesus: não matarás; não adulterarás; não furtarás; não dirás falso testemunho; honra a teu pai e a tua mãe; e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado; que me falta ainda?
Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, segue- me. Mas o jovem, ouvindo essa palavra, retirou-se triste; porque possuía muitos bens.


Tudo, menos vender o que tem e dar aos pobres. Ao jovem que foi consultar o Cristo, o tesouro no céu pouco interessa. O que importa são seus bens terrenos. De onde então tira o Chico que Cristo bota fé nos jovens? Claro que jornalista algum irá checar os Evangelhos para ver se o papa disse ou não disse bobagem.

A Folha de São Paulo é mais dramática:

JOVENS NÃO TÊM MEDO DE ARRISCAR A ÚNICA VIDA QUE POSSUEM, DIZ PAPA EM 1º DISCURSO

No texto: “Também os jovens 'botam fé' em Cristo. Eles não têm medo de arriscar a única vida que possuem porque sabem que não serão desiludidos", declarou o pontífice.

Quem disse que não têm medo? Mais ainda, desde quando jovem está arriscando a vida por botar fé no Cristo? Lá no mundo islâmico, sem dúvida alguma. Mas não vivemos em teocracias muçulmanas. Ninguém é ameaçado ou arrisca a vida entre nós por entrar em uma igreja ou praticar o cristianismo.

Por que diz então o papa tamanha bobagem? A meu ver, falta de assunto, carência de discurso, vazio de conteúdo. Parlapatagens do argentino, que sabe muito bem que nestes dias ninguém se preocupa com o sentido das palavras quando elas são proferidas por um ícone qualquer da mídia.

O que espanta é ver jornais dando garrafais a palavras que nada querem dizer. A imprensa parece ter ficado obnubilada com a chegada do Paco. E passa a procurar pêlo em ovo.

No fundo, esse desejo incontido de louvar os “jovens”, essa massa informe que não sabe o que quer, a não ser consumir. Imagine o leitor o Cristo conclamando estes jovens ao reino dos Céus: “Larga teu iPad, larga teu carro, larga teu pai e tua mãe e me segue”.

Passaria por louco varrido. “O cara endoidou” – seria o mínimo que ouviria. Enquanto isso, a imprensa finge que o Papa está dizendo alguma coisa com algum sentido.

domingo, julho 21, 2013
 
PAPA LOUVA ASSASSINO


Nestes dias em que a Veja parece ter virado porta-voz do Vaticano, saudando com entusiasmo a visita de um padre argentino que vem ao Brasil fazer proselitismo, ao custo em 350 milhões de dólares – dos quais 118 milhões sairão do bolso do contribuinte – comprei a primeira biografia do papa Paco, de autoria de Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti, intitulada O papa Francisco – Conversas com Jorge Bergoglio. O livro tem 176 páginas.

Ora, em 176 páginas, não há papa que não profira bobagens, apostei com meus botões. Ganhei a aposta e nem precisei ler o livro todo. Me ative às páginas finais, onde os autores reproduzem uma mensagem papal, dirigida por Bergoglio às comunidades educacionais de Buenos Aires, na páscoa de 2002, “Uma reflexão baseada em Martín Fierro”. Ora, que tem a ver um gaúcho desertor, haragano, assassino e peleador, com a doutrina de um judeu monoteísta crucificado por romanos há vinte séculos. Bergoglio, malandramente, foi demagogo ao invocar o poema tão cultuado pelos argentinos. Mas misturou azeite e água.

Costumo afirmar que Martín Fierro é um poema profundamente cristão, no sentido em que invoca uma difusa simbologia do cristianismo, até hoje presente no inconsciente coletivo gaúcho. É aquela crença de que algum deus criou aquele universo todo, e que esse deus seria justo e poderoso. Daí a qualquer alusão a um Cristo que oferece uma face quando a outra é batida, vai uma longa distância. O poema, um canto à liberdade e ao indivíduo, nada tem a ver com uma Igreja que ignora o que seja liberdade e não suporta a idéia de indivíduo.

Hernández começa seu poema invocando Deus e os santos do céu. Mas é uma invocação retórica, que pouco ou nada tem a ver com fé.

Pido a los santos del cielo
que ayuden mi pensamiento:
les pido en este momento
que voy a cantar mi historia
me refresquen la memoria
y aclaren mi entendimiento.

Vengan santos milagrosos,
vengan todos en mi ayuda,
que la lengua se me añuda
y se me turba la vista;
pido a mi Dios que me asista
en una ocasión tan ruda.

Deus é citado cá e lá no poema, quase como exclamação, sem nenhum compromisso com qualquer doutrina. Em determinado momento, a obra divina até que cai mal nos dias que correm.

A los blancos hizo Dios,
a los mulatos San Pedro,
a los negros hizo el diablo
para tizón del infierno.

Em sua alocução, Bergoglio cita sextilhas esparsas, nas quais Hernández defende o direito do gaúcho a ter “casa, escuela, Iglesia y derechos” e seus conselhos, que constituíriam um “compêndio de ética cívica”.

Ni el miedo ni la codicia
es bueno que a uno lo asalten.
Ansi no se sobresalten
por los bienes que perezcan
Al rico nunca le ofrezcan
Y al pobre jamás le falten.

Este é um dos conselhos de Fierro a seus filhos, na segunda parte do poema. Bergoglio esqueceu os conselhos do Viejo Viscacha:

Hacete amigo del Juez
- No le dés de qué quejarse; -
Y cuando quiera enojarse
Vos te debés encojer,
Pues siempre es güeno tener
Palenque ande ir a rascarse.

A naides tengas envidia,
Es muy triste el envidiar,
Cuando veas a otro ganar
A estorbarlo no te metas -
Cada lechón en su teta
Es el modo de mamar.

Y gangoso por la tranca
Me solía decir,: Potrillo,
Recién te apunta el colmillo,
Mas te lo dice un toruno,
No dejés que hombre ninguno
Te gane el lao del cuchillo.

Las armas son necesarias
Pero naides sabe cuándo;
Ansina si andás pasiando,
Y de noche, sobre todo,
Debés llevarlo de modo
Que al salir, salga cortando.

Além de esquecer estes conselhos matreiros do Viejo Vizcacha, lá pelas tantas Bergoglio justapõe um trecho do Evangelho de Lucas:

Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: E quem é o meu próximo? Jesus, prosseguindo, disse: Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de salteadores, os quais o despojaram e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. Casualmente, descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e vendo-o, passou de largo. De igual modo também um levita chegou àquele lugar, viu-o, e passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou perto dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão; e aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho; e pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que gastares a mais, eu to pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três te parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu o doutor da lei: Aquele que usou de misericórdia para com ele. Disse-lhe, pois, Jesus: Vai, e faze tu o mesmo.

Ora, que tem isto a ver com o gaúcho que mata um negro em um baile por uma bravata boba?:

Me hirvió la sangre en las venas
Y me le afirmé al moreno,
Dándole de punta y hacha
Pa dejar un diablo menos.

Por fin en una topada
En el cuchillo lo alcé
Y como un saco de güesos
Contra un cerco lo largué.
Tiró unas cuantas patadas
Y ya cantó pa el carnero.
Nunca me puedo olvidar
De la agonía de aquel negro.

Não bastasse matar o negro por uma fanfarronada, matou outro gaúcho em uma pulpería:

Se tiró al suelo; al dentrar
Le dió un empellón a un vasco
Y me alargó un medio frasco
Diciendo "Beba, cuñao".
"Por su hermana" contesté,
"Que por la mía no hay cuidao".

"¡Ah, gaucho!", me respondió,
"¿De qué pago será criollo?
Lo andará buscando el hoyo,
Deberá tener güen cuero;
Pero ande bala este toro
No bala ningún ternero.

Y ya salimos trensaos,
Porque el hombre no era lerdo;
Mas como el tino no pierdo
Y soy medio lijerón,
Lo dejé mostrando el sebo
De un revés con el facón.

Y como con la justicia
No andaba bien por allí,
Cuanto pataliar lo vi,
Y el pulpero pegó el grito,
Ya pa el palenque salí
Como haciéndome el chiquito.

Ou Bergoglio não leu bem os Evangelhos, ou de Fierro conhece apenas algumas sextilhas. Na verdade, o futuro papa quis ser popular recitando um poema popular e querido pelos argentinos. Mas esqueceu que Fierro, por popular que seja, era um desertor e assassino, o que decididamente nada tem a ver com os Evangelhos.

sábado, julho 20, 2013
 
NUDEZ E DIGNIDADE


Falava ontem da nudez, e particularmente de grandes vigaristas que se pretendem artistas e usam a nudez alheia como recurso para conquistar mídia. O pior é que a mídia os incensa. Desde quando um amontoado de pessoas nuas constitui obra de arte? Enfim, desde o século passado vem se chamando arte qualquer besteira cujo autor chame de arte, desde que a imprensa a sacramente como tal. Como imprensa de país pequeno não faz verão, tais vigarices surgem geralmente em países ricos e de prestígio. E só depois viram moda na periferia.

A nudez teve vários significados na história, desde atributo de marginais a método de castigo. Nas sociedades vestidas, nudez é degradação e marca um degrau inferior na escala social. Daí a expressão comum a muitos idiomas, para designar quem nada possui: com uma mão na frente e outra atrás.

Por outro lado, desde os antigos romanos, muitos castigos incluíam a nudez forçada. Os condenados à crucificação eram despidos antes de levados à cruz. Cristo foi executado peladão, a tanguinha que o reveste nos crucifixos é pudor da Santa Madre. Na França do Antigo Regime, o esquartejamento e a morte na roda eram suplícios para os quais o condenado ia nu.

Mais contemporanemente, inícios do século XX, surgiu na Alemanha o movimento do naturismo, o culto da nudez junto à natureza. Da Alemanha, a prática difundiu-se pela Europa e demais continentes. Após a Segunda Guerra, o nudismo foi introduzido nos Estados Unidos. Atualmente, o movimento tem sua maior expansão na França, onde existiriam 10 milhões de naturistas.

Até aí, nada demais. Neste nosso mundo há lugar para pelados e vestidos. O conflito surge quando os pelados querem ocupar o espaço dos vestidos. Cientes de que a nudez fere muita gente, a prática virou provocação política.

Sem ser adepto do esporte, já o pratiquei, às vezes até mesmo sem querer. Na Suécia, já corri nu pelos bosques de Estocolmo atrás de suecas nuas. Não que fosse hábito. Era apenas decorrência de circunstâncias anteriores. O clima era estival, havia muita festa e muito álcool, as saunas eram mistas e o bosque estava ali ao lado. Sem falar nas noites que não eram noites. A corrida de faunos atrás das sílfides era algo quase compulsório.

Por outro lado, ver suecas nuas tomando sol nos parques de Estocolmo faz parte da vida da cidade no verão. Ninguém se molesta com isto. Claro que, se alguém desfilar nu pela Kungsgatan, será interpelado pela polícia. Está fora de lugar.

Na antiga Iugoslávia e nas ilhas gregas, fui a praias de nudismo por vontade própria. Ou nem tanto. Na Croácia, estive em Mljet, a convite de uma brava peoniana. Na pequena ilha havia um lago interior, no qual havia outra ilhota, na qual havia um convento, transformado em colônia de nudismo “pour notre Tito”, como dizia minha anfitriã. Confesso que achei curioso ver famílias inteiras – vovô, vovó, pais, filhos, netos e netas - nadando nus em formação pelas águas do Adriático.

A praia era um cinturão de pedra vulcânica, porosa e pontiguada, que envolvia toda a ilha. Quando se achava o espaço para sentar um traseiro, aquilo era a praia. Nu, não me senti muito confortável. Como tampouco na hora das refeições. Sentar nu junto a uma mesa de repasto é coisa à qual ainda não me habituei. Na foto, o antigo convento de Mljet. A fímbria branca de pedras pontudas, que se vê cercando a terra, é o que os croatas chamam de praia.

Na Grécia, fui a duas praias, mais por curiosidade que por outra coisa. As praias eram em Mykonos, paraíso dos – como direi, em linguagem contemporânea? – neobichas. Ou homoafetivos, como pretendem os togados do STF. Mais apolos que afrodites. Fora isso, contemplei muita nudez em Cannes, durante os festivais de cinema.

Nudez pública não me atrai, não me assusta nem me desagrada. Que estejam a gosto. Uma nudez que me irrita é a comercial. Para vender parafusos, os marqueteiros usam uma mulher nua. Ora, exige-se muita deficiência mental para comprar um produto a partir da imagem de uma mulher nua. Lógicos são os portugueses. Consta que, numa publicidade de venda de carros, foram utilizados cavalos entrando no mar. No dia seguinte, aumentou visivelmente a venda... de cavalos. Nada mais lógico.

Intuindo que nudez pode ser agressão – por associar-se sempre a sexo – ativistas dos diversos ismos que grassam em nossa era contrabandearam o nu para o mundo dos vestidos. Onde, via de regra, nudez constitui contravenção penal. É uma forma leve de contestar o status quo. Leve e ridícula. Sabemos contra o que protestavam os revolucionários de 1776, 1789, 1917. Difícil é adivinhar contra o que protestam os pelados de 2013 na Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

Não vejo nada de obsceno na manifestação dos filhinhos de papai. É coisa de moleques que ainda não tiveram de batalhar pela vida e, sem coragem de mostrar o rosto, mostram os traseiros. Obscena é a invasão da Câmara, a aceitação do fato pelos vereadores, a leniência de uma juíza.

A nonchalance com que foi tratada a invasão mostra que as autoridades gaúchas perderam qualquer noção da própria dignidade.

sexta-feira, julho 19, 2013
 
NUS E COVARDES


Neste nosso mundinho das celebridades instantâneas, o tal de sucesso bafeja até mesmo que não tem talento. Ou melhor, bafeja geralmente quem não tem talento algum, mas encontra uma fórmula idiota de bancar o original. Um destes, por exemplo, é o tal de Christo, “artista” búlgaro nacionalizado norte-americano, conhecido por empacotar monumentos, paisagens e ilhas inteiras. Claro que é preciso ter o respaldo de uma grande nação onde qualquer maluquice é vendida como arte para fazer sucesso, sem falar que empacotar monumentos custa caro. Na Bulgária, Christo seria apenas mais um louco folclórico.

Entre os feitos do “artista”, estão o empacotamento do Reichstag de Berlim, do Pont Neuf em Paris, de sete milhas do rio Arkansas, nos Estados Unidos e do Valley Courtain, uma imensa cobertura de lona laranja instalada entre duas montanhas no Colorado. Monumentos e paisagens soberbas foram de repente roubados ao olhar das pessoas pela ambição midiática de um vivaldino, que sabe que para todo vigarista nunca falta uma multidão de otários. O que espanta é ver governos apoiando e mesmo financiando tais explosões de egos.

Isto de chamar de arte o que o autor quer que se chame de arte começou há exatamente um século, quando Marcel Duchamp apresentou a um público embasbacado sua obra, uma roda de bicicleta. De lá para cá, entramos no reino do vale-tudo.

Outro “artista” que investiu na tal de arte ambiental, foi o fotógrafo Spencer Tunick, especializado em clicar multidões nuas. Norte-americano, é claro, que tais maluquices não prosperam em países pobres.

Tunick conseguiu reunir panacas no mundo todo para compor sua “obra”. Conseguiu até mesmo celebrar o “Dia dos Mortos”, no México, com 153 pessoas nuas, de véu branco, numa manhã de nevoeiro e chuva. Em Portugal, fotografou 400 pessoas em Santa Maria da Feira. Em Berlim, reuniu 1700 corpos despidos, em pleno inverno. Começou a fotografar grupos de pessoas nuas em 1994, criando o que chamou de uma "arquitectura de carne", onde corpos e paisagem se misturam. Ele acredita que “indivíduos em massa, sem roupa, se transformam numa nova forma”. E toneladas de carne humana, no mundo todo, se dispuseram a posar para a lente do fotógrafo.

Preso várias vezes por sua “arte” em Nova York, Tunick refugiou-se na Europa, onde conseguiu enganar com mais aisance. Deste “exílio”, resultou o livro European Installations, com imagens criadas nos países europeus. "Queria que esse livro fosse o meu melhor trabalho. Então escolhi os 13 anos que trabalhei na Europa, porque escolhi começar o livro por apenas uma região".

Tunick enganou até no Brasil, no que vai não vai nenhum mérito, já que no Brasil enganar não exige esforço algum, que o digam tanto papas como roqueiros. O brasileiro é crédulo por natureza e se lhe afirmarem que um monte de merda é arte, ele entra na fila e paga caro para ver o monte.

A “obra” de Tunick foi montada em São Paulo – no que também não vai mérito algum, já que São Paulo é infensa a vigarices, haja vista o número de religiões que a cidade gera – há onze anos. Em 2011, 1500 basbaques se prestaram voluntariamente para posar no Ibirapuera para o fotógrafo ianque, com o aplauso unânime de uma imprensa provinciano, sempre propensa a aceitar qualquer vigarice com grife estrangeira.

"Descobri que no Brasil as mulheres não são abertas em relação ao próprio corpo", disse Tunick. "Por causa dos homens, elas ficavam assustadas com a ideia de ficarem nuas", completou. O fotógrafo afirmou ainda que ficou surpreso pelo fato de as mulheres terem que pedir autorização aos maridos para participar das fotos, e que muitos não deixaram.

O sonho de Tunick, na época, era reunir chineses pelados na Grande Muralha. Esperamos que no Império do Meio ainda reste algum pingo de bom senso.

A nova moda foi parar no cinema, no filme Perfume: A História de um Assassino (2006), a partir da ficção original do escritor alemão Patrick Süskind, publicado em 1985. Jean-Baptiste Grenouille, o personagem, é dotado de um olfato apuradíssimo. Acaba perseguindo mulheres em Paris, atraído pelos odores exalados por elas, em época em que a profissão de perfumista começa a deslanchar.

Para obter a quinta essência do odores femininos, Grenouille mata mulheres e delas tenta extrair o perfume. O filme termina com a tentativa de execução do assassino na praça central de Grasse, cidade por excelência dos perfumes na Côte d’Azur. Na hora da execução, Grenouille tira do bolso um lenço impregnado com uma de suas criações, cujo perfume inebria a praça e põe até mesmo de joelhos o pai de uma de suas vítimas, responsável por sua condução ao patíbulo. A praça toda se despe. A multidão se entrega alegremente a uma partouse coletiva, da qual acorda atordoada e desnuda, sem saber bem o que havia acontecido.

De lá para cá, a “arte” de Tunick vulgarizou-se e tivemos iniciativas menores, como ciclistas pedalando nus pelas capitais européias, as tetas-de-fora do Femen e as tais de Vadias, outro movimento oriundo da Grande Pátria, The Bitches. Com direito a manifesto:

Cadelas têm de aprender a aceitar a si mesmas como Cadelas e dar a suas irmãs o suporte que elas precisam para ser Cadelas criativas. Cadelas devem aprender a ser orgulhosas de sua força e orgulhosas de si mesmas. Elas devem mudar-se do isolamento que tem sido sua proteção e ajudar suas irmãs mais jovens a evitar seus perigos. Elas devem reconhecer que mulheres são frequentemente menos tolerantes com outras mulheres do que são os homens porque elas têm sido ensinadas a ver todas as mulheres como suas inimigas. E Cadelas devem formar-se juntas em um movimento para lidar com seus problemas de uma maneira política. Elas devem se organizar por sua própria libertação como todas as mulheres devem se organizar pelas delas. Nós devemos ser fortes, nós devemos ser militantes, nós devemos ser perigosas. Nós devemos reconhecer que Cadela é Linda e que nós não temos nada a perder. Absolutamente nada.

Este excerto é do manifesto de Jo Freeman, editora da “Voz do Movimento de Libertação das Mulheres”, que pode ter sido o primeiro periódico da libertação nacional das mulheres. De lá para cá, as cadelas invadiram as cidades e os jornais, expondo suas tetas em público, em nome da libertação feminina.

Neste país que adora importar tudo de pior que o Primeiro Mundo excreta, desde rock a religião, não é de espantar que filhinhos de papai em Porto Alegre tenham organizado um showzinho particular na invasão da Câmara de Vereadores em Porto Alegre.

Nada tenho, em princípio, contra a nudez. Mas tudo tem lugar. Nos anos 70, quando fazia a cobertura do Festival de Cannes, observei algo que de inicio me deixou perplexo. Na praia, separada da cidade pela avenida Croisette, dezenas de vedetinhas expunham suas vergonhas ao sol do Mediterrâneo... e às lentes dos paparazzis. Mas para entrar em um bar, do outro lado da avenida, era preciso vestir-se. Na época, não entendi muito bem. Na praia, nudez total. A vinte metros da praia, a nudez era proibida.

Hoje entendo. Isto é o que chamamos civilização. Há espaço para quem gosta de estar nu e espaço para quem prefere ficar vestido. Este limiar vem sendo ignorado pelos ativistas contemporâneos, que querem impor sua nudez urbi et orbi. Mas pelo menos têm a coragem de mostrar o rosto.

No caso de Porto Alegre, houve uma nudez covarde. Os “revolucionários” – como se pretendem os invasores – expuseram o traseiros e cobriram os rostos. Não tiveram sequer 0 mínimo de coragem para mostrar quem são.

Se sonhar é permissível, bem que seria confortador ver no Rio, no Campo da Fé, que vai receber Sua Santidade nos próximos dias, uma confraternização semelhante à da praça de Grasse. Mas é pedir demais aos jovens.

quinta-feira, julho 18, 2013
 
ROWLING CONHECE BEM OS
DESCEREBRADOS QUE A LÊEM



Os leitores de best-sellers são tão medíocres que sequer sabem se gostam ou não do que lêem. É preciso que o livro seja anunciado como o mais vendido, para saberem se gostaram ou não. Nesse sentido, são duplamente esbulhados. O primeiro esbulho é o fato de comprarem obras feitas de encomenda para o mercado. O segundo é que os mais vendidos não são assim tão vendidos.

Em 2006, a diretora editorial Luciana Villas-Boas trazia à tona, em entrevista à Folha de São Paulo, este segredo de polichinelo:

"Quando comecei a trabalhar na Record, em 1995, via que apareciam na imprensa números de venda de nossos livros muito diferentes daqueles que eu conhecia internamente. Fui indagar, e me disseram: 'Você não sabe do fator 2? É usado por toda a indústria editorial'. E isso significava duplicar todos os números para efeito de divulgação".

Ou seja, os paulos coelhos e verissimos da vida certamente vendem muito, mas não tanto quanto dizem. Outros editores entrevistados pelo jornal dizem, pudorosamente, jamais ter ouvido falar - ou apenas ter ouvido falar - da malandragem. Há três meses, comentei esta fórmula de fabricar best-sellers, denunciada em reportagem da Veja. No fim do ano passado, o produtor de Hollywood Bob Rehme, executivo da Paramount, revelou que em 1969 foi encarregado de promover o filme Bravura indômita (True grit), que valeu o Oscar a John Wayne.

Ocorre que a Paramount havia comprado os direitos do livro homônimo, de autoria de Charles, antes mesmo de sua publicação. Apostava num sucesso de vendas, sobre o qual erguera toda a estratégia comercial do filme: “baseado no best-seller” era uma frase fundamental nos cartazes. Mas, embora o livro tivesse colhido boas resenhas, o aguardado sucesso se recusava a vir.

Aproveitando-se do fato significativo de que uma pequena fração da verba promocional do filme à sua disposição era suficiente para comprar milhares de exemplares de qualquer livro do mundo, Bob Rehme mandou fazer exatamente isso. Não sem antes, levantar a relação das livrarias que o New York Times monitorava para apurar sua lista de mais vendidos.

Nunca um lugar no alto do rol de best-sellers foi tão garantido. É o que deve ter acontecido a Cinqüenta tons de cinza e todo lixo que inunda as livrarias, não só do Brasil como também dos demais países. O leitor, como um cordeirinho, cai na armadilha dos números armada por autores e editores.

Não bastasse o leitor de best-sellers precisar de grandes números para saber se gosta ou não gosta do que lê, precisa também saber quem é o autor do texto que lê. Não tem a mínima idéia se lhe agrada ou não o que tem em mãos. Isto vai depender do autor. É o que nos mostra recente episódio ocorrido no Reino Unido.

Leio nos jornais que um romance policial escrito sob pseudônimo por J.K. Rowling alcançou na segunda-feira passada o topo da lista dos livros mais vendidos no país, mas só depois de revelado que ela era a verdadeira autora, o que deixou em situação desconfortável alguns editores que haviam rejeitado a obra.

Para o leitor culto, que vive longe do mundo da baixa literatura, explico quem é Rowling. É aquela moça que se tornou a escritora de maior sucesso comercial na Grã-Bretanha com a série Harry Potter.

O súbito best-seller é The cuckoo's calling (O chamado do cuco). No caso, a autora se apresentou como um policial militar aposentado chamado Robert Galbraith. Desde o lançamento do livro, em abril passado, haviam sido vendidos 1,5 mil exemplares da edição de capa dura. A identidade da autora foi revelada no fim de semana por um jornal dominical britânico. Nesta segunda edição, o livro chegou ao topo da lista dos best-sellers da Amazon britânica e deixou as livrarias e lojas online sem condições de atender à demanda.

"É algo quase inédito um livro que não esteja nem sequer entre os 5 mil mais vendidos passar a número 1 tão rapidamente", declarou o gerente de livros da Amazon.co.uk, Darren Hardy. Segundo o gerente, The cuckoo's calling se classificou como um dos candidatos a se tornar um dos livros mais vendidos do verão britânico.

Ou seja: neste nosso mundinho em que a publicidade rege a vontade dos descerebrados, o produto já não mais importa. O que importa é a grife. O leitor já não é capaz, não digo de saber se tem em mãos boa ou má literatura, já que esta capacidade há muito perdeu. É mais grave: o leitor já não é nem mesmo capaz de dizer se gosta ou não do que lê. Precisa saber antes quem escreveu.

Isto tornou-se comum no mundo da pintura. Quadros pintados por falsários exímios, cuja falsidade só pode ser verificada por peritos, subitamente deixam de ter valor quando a falsificação é descoberta. Enquanto ninguém nota, o quadro vale milhões.

Inversamente, se a contrafação passa despercebida, o quadro continua tendo valor. Quem intuiu isto com propriedade foi Salvador Dali, o genial vigarista catalão. No final da vida, ciente de que sua assinatura valia mais que qualquer quadro, assinou durante dias a fio milhares de telas em branco, a serem pintadas mais tarde por funcionários de seu ateliê. Ninguém pode alegar que são falsos Dalis, afinal levam o jamegão do autor. Com sua molecagem, Dali demoliu a crítica de pintura contemporânea. Os marchands detestam Dali.

Rowling também sabe disto. Com um hábil recurso publicitário, ocultou inicialmente seu nome. Para valorizá-lo. A autora tem perfeita consciência de que seu público é composto por paspalhos, que compram qualquer bobagem que escreva.

quarta-feira, julho 17, 2013
 
DO FUNDO DOS TEMPOS,
EMERGE UMA VOZ DISSONANTE



Falei há pouco de Celso, nobre romano do século II da era cristã, e de seu Discurso Verdadeiro, escrito por volta de 178 d.C., primeiro ataque de vulto ao cristianismo de que temos notícia. O livro perdeu-se no tempo, talvez destruído pelos cristãos. Dele só restou, por ironia, o que foi reproduzido por Orígenes da Alexandria, para contestar o autor, em Contra Celso, escrito em 248. Celso deve ter tocado fundo nos brios da nova seita, para ser contestado, 70 anos depois, em nada menos que oito livros.

Falei também de meu espanto em descobrir que a obra de Orígenes foi publicada no Brasil, em 2004, pela editora Paulus. Pois bem, recebi hoje o livro, uma bela edição em capa dura, 688 páginas. Nestes dias de best-sellers e livros anódinos, nada mais louvável que a iniciativa de uma editora que desenterra, do fundo dos séculos, uma discussão fundamental entre judeus e cristãos, vista pelos olhos de um romano, na época em que a nova seita começava a assumir poder dentro do Estado. Mais louvável ainda se revela esta iniciativa editorial, quando vivemos em uma época onde os livros fundamentais pouco ou nada interessam. Contra Celso não é obra para leitores em busca de evasão, lazer ou auto-ajuda. Interessa apenas àqueles raros leitores que questionam as origens da cultura ocidental.

Reproduzo a súmula dos editores:

No Prefácio, Celso se comove com o fato de os cristãos enfrentarem a morte, por sua fé, com tanta disposição. Ao mesmo tempo, constata a condição ilegal dos cristãos no Império, enquanto constituem uma seita ilícita, não reconhecida. Isso os expõe a serem punidos com a morte e Celso se pergunta se vale a pena este sacrifício, se a religião cristã merece que seus adeptos arrisquem a vida por ela.

Na Primeira Parte, que vai de Celso questiona as origens do cristianismo. Procura levantar o descrédito mostrando sua origem recente e suspeita. O cristianismo é um movimento sectário cuja doutrina, antiquíssima, é comum aos povos e aos sábios. Moisés a deformou em monoteísmo rígido e a impôs a seus pastores rudes. Jesus, tido por Filho de Deus por uma multidão de iletrados e alguns homens da elite, a retomou e a ensinou.

Em seguida, expõe as invectivas de um judeu contra Jesus: o judeu opõe e defende suas idéias messiânicas e critica as pretensões de Jesus. Este não foi o messias, mas um homem miserável, como o mostram suas origens sem nobreza. Os títulos escriturísticos que lhe dão são sem autenticidade. Sua carreira é sem glória. Depois o judeu passa a atacar os judeus-cristãos que apostataram da religião de seus pais para crerem erroneamente em Jesus como o messias e o filho de Deus.

Há, segundo Celso, boas razões para não crer: as profecias que se lhe aplicam convêm melhor a outros; sua conduta não é digna de um Deus; seus milagres semelhantes aos de outros carismáticos; a paixão de Jesus não tem um fim assinalável; a pregação de sua morte é uma invenção de seus discípulos. Assim, segundo Celso, os cristãos são refutados por seus escritos e a pretensão messiânica de Jesus, por sua impotência.

Dizem que, para escrever essa obra, Celso teve que aprender hebraico e recorrer aos textos sagrados do Antigo Testamento. Assim, cita Moisés, Jonas, Ló, Daniel, ou a Sodoma e Gomorra. Demonstra conhecer os costumes e tradições judaicas.

Na Segunda Parte, Celso procura mostrar que o cristianismo é uma religião sem fundamento verdadeiro, uma insurreição judaica frustrada. Quais os elementos que Celso invoca para fundar sua demonstração?

Para ele, a vinda de Jesus-salvador só serve de pretexto para uma disputa inútil entre judeus e cristãos. Esta luta é reveladora do espírito de revolta, cujo único resultado é seu poder de provocar rupturas com a comunidade de origem, com as antigas tradições, com a vida social e familiar e com a comunidade ideal dos sábios. Questiona o fato básico da encarnação, a descida ao mundo de um Deus ou Filho de Deus. Critica como um absurdo a ideia de que um Deus tenha podido se encarnar.

Para ele, trata-se de operação impossível, cuja imaginação implica em erros no próprio conceito que temos de Deus. Ela pressupõe uma mudança em Deus, o que é inadmissível, o que contraria a sua imutabilidade. Impugna o cristianismo atacando a ideia messiânica dos cristãos e se empenha em desqualificar o cristianismo como religião. Os hebreus se originaram ao se separarem da religião egípcia; os cristãos, por sua vez, ao se separarem dos judeus.

O conceito grego de uma natureza espiritual de Deus, eterna e imutável, não se concilia com a crença cristã da humanização, paixão e morte de Deus. Do mesmo modo, a participação imediata de Deus nos acontecimentos do mundo entra em conflito com a sua bem-aventurança eterna, que descansa sobre si mesma. O conhecimento filosófico da niilidade e mutabilidade de tudo o que é material faz parecer absurda a crença cristã da ressurreição da carne, pois apenas a alma, devido a sua natureza espiritual, pode considerar-se que continue a viver para além da morte do corpo.

A ressurreição nada mais é do que a velha metempsicose. Desse modo, para ele as narrativas do Antigo Testamento são equivalentes às da mitologia grega e implicam ainda em erros sobre a natureza, já que esta não é obra de Deus; implicam em erro sobre o universo, pois este não é criado exclusiva ou preferentemente para o homem mais que para os animais irracionais.

Nem os cristãos são algo extraordinário, já que vêm do judaísmo do qual apostataram, e sua situação é ainda pior que a dos judeus: sua angelologia é mais desconcertante e seu sectarismo aumentado. O credo dos cristãos não tem nada de original. Não é outra coisa que uma hábil mistura de elementos estoicos, eleatas, judaicos, persas e egípcios. Demonstra conhecer os evangelhos, e não somente aqueles que serão estabelecidos no século IV por são Jerônimo como “canônicos”, “oficiais” na Vulgata, mas também os evangelhos apócrifos que deviam circular livremente na época de Celso e que a censura expurgou ao longo do século IV. É possível, inclusive, deduzir-se que o esforço de “fixar” os textos “oficiais” da Igreja tenha surgido como método para anular os ataques pagãos e reações como as de Celso.

Na Terceira Parte, Celso combate as idéias particulares do cristianismo. Confronta as doutrinas tradicionais com as dos judeus e cristãos, para mostrar a inferioridade destas sob todos os aspectos, na medida em que se afastam das doutrinas tradicionais. Por isso, o cristianismo professa uma doutrina sem valor. Estigmatiza como sectarismo e intolerância a recusa cristã de altares e imagens, do culto dos demônios e do imperador, provas de um comportamento político irresponsável, inconseqüente e perigoso que enfraquece a autoridade e a força do Estado, expondo-o aos bárbaros iníquos e selvagens.

Passa em revista os livros sagrados dos cristãos, ataca a cosmogonia da “criação dos seis dias”, qualificando-a de infantil. Ataca as profecias, argumentando que elas destroem a liberdade. Ataca a possibilidade de um Deus antropomorfo, assim como o inviável da ressurreição dos corpos. Isto nos dá ideia de que o cristianismo do século II devia estar numa linha “muito dura” e que logo se abrandou um tanto ao assimilar parte do platonismo com o que era atacado, deixando-se impulsionar pela simbiose universal.

A Quarta Parte é uma defesa radical da religião e do Estado Romano pagão tal como se encontrava no século II, ressaltando que a seita dos cristãos é um iminente perigo social e político. A razão é que os cristãos se negam a prestar o serviço militar. Para o bem da pátria, todo cidadão deve assumir cargos na função pública e muitos cristãos se negam a fazê-lo. Os cidadãos não podem deixar de render o devido culto ao Imperador, como fazem os cristãos. Os cidadãos não devem negar-se a participar nos sacrifícios e nos banquetes sagrados, e os cristãos se negam.

Um cidadão deve tomar a toga viril quando chega a idade para isso, e os cristãos rompem com essa tradição do passado. Celso vê nos cristãos um perigo social e uma subversão política, e conclui: “Que a terra seja expurgada dessa canalha”. As perseguições devem muito, seguramente, a essa obra de Celso. Portanto, resta a cada um o dever de sustentar o imperador e tomar parte no governo, se for necessário, como nos serviços comuns da vida.

Na Conclusão, Celso indica como é preciso viver: exorta os cristãos a deixar de lado o universalismo, a combater pelo imperador, a participar no governo da pátria para defender as leis e a religião.

Para quem gosta de antigas querelas, boa leitura!