¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
quinta-feira, outubro 31, 2013
ENTRE CEBETE E SÓCRATES * A geração anterior à minha está partindo. Há pouco se foram Jockymann e Scliar. Millôr está pela bola sete. Soube que está há cinco anos em cadeira de rodas, condição que não estimula viver. A próxima rodada será a nossa, a dos que hoje estamos nos 60. Há uma fase em nossas vidas em que lemos as participações de nascimento para saber de nossos contemporâneos. Mais adiante surge a outra, em que lemos os necrológios para saber das novas. Os de minha geração estão chegando lá. Nos últimos quatro ou cinco anos, mais da metade de uma mesa de meu boteco partiu. Cirrose, câncer, coração. Há poucos meses, um de meus companheiros de bar me noticiou, assustado, a última partida. - Estou ficando sozinho. Jesus está chamando. São os sinais. Como dizia um dos profetas de A Vida de Brian, ao anunciar o apocalipse: “E chegarão os dias em que os homens não mais saberão onde puseram os pequenos objetos”. Este me parece ser o prelúdio do fim. Ainda não cheguei lá, mas estou atento aos sinais. Já me preocupei muito com a morte em meus dias de adolescente. Como esta senhora podia visitar-me amanhã, procurei viver intensamente cada dia. Não foi má idéia. Como a fulana não chegava, dela acabei me esquecendo. Mas sempre chega o dia em que dela voltamos a lembrar. Manifestei esta inquietação a uma amiga de minha idade Sua resposta: - Como acredito em vida posterior a morte, isto não me preocupa. O que me preocupa é o sofrimento. Pode ser. Quem pratica a filosofia corretamente aprende a morrer e não teme a morte – diz Sócrates em Fédon. Eram dias em que filosofar era raciocinar com clareza para se chegar a alguma conclusão. Nada a ver com estes nossos dias, em que filosofar se resume a discutir qual será o objeto da filosofia. “Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? – pergunta-se o ateniense -. Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa?” Ao que objeta Cebete, um de seus interlocutores: - Sócrates, dificilmente os homens poderão acreditar que a alma, uma vez separada do corpo, venha a subsistir em alguma parte, por destruir-se e desaparecer no mesmo dia em que o homem fenece. No próprio instante em que ele sai do corpo e dele sai, dispersa-se como sopro ou fumaça, evola-se, deixando, em conseqüência, de existir em qualquer parte. Porque, se ela se recolhesse algures a si mesma, livre dos males que há pouco enumeraste, haveria grande e doce esperança de ser verdade, Sócrates, tudo o que disseste. Mas o fato é que se faz mister de não pequeno poder de persuasão e de muitos argumentos para demonstrar que a alma subsista depois. A preocupação é antiga. Quatrocentos anos depois, Paulo irá jactar-se: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”. O fanático judeu sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé”. Para quem não acredita em ressurreição, toda fé é vã. Mas vida posterior à morte tem seus problemas. De minha parte, me recuso à serenidade de Sócrates e fico com as dúvidas de Cebete. Penso que outra vida não tem graça alguma. É de supor-se que iríamos sem o corpo pra lá, não? Afinal, apodreceu por aqui. Bom, e daí? Seríamos uma consciência pura vagando pelo espaço, uma espécie de fumacinha – como aventa Cebete – zanzando em meio ao nada, conversando com outras fumacinhas? Reencontraria eu lá os bares que tanto amei? Na hipótese de ir para o paraíso – porque também existe a outra hipótese – estariam lá me esperando o Le Procope, la Petite Périgourdine, o Rélais de l’Ódeon, Aux Charpentier, Bofinger, Tire-Bouchon? El Oriente, Gijón, o Sobrino de Botín, El Espejo, o Venencia, a Cerveceria Alemana? O Sept Portes, Los Caracoles, Mi Burrito y Yo, o Salamanca? A Tasca do Chico, o Berlenga, o Tavares, o João-do-Grão? El Greco ou Florian? Lá tem Leffe, Grimbergen, Guinness, Delirium Tremens? Kirschwasser, akvavit, metaxas, calvados, orujo, queimada? Terá Riojas, Neros d’Avola, Cahors, Malbecs ou Carménères? Camembert, bouillabaisse, foie gras, boudin, andouilletes? Cochinillos, corderos lechales y pata negra? Nunca ouvi falar de restaurantes, cervejarias ou vinícolas lá no Além. Então não quero. Hemingway dizia que os americanos bons, quando morrem, vão para Paris. Muito melhor. Outra pergunta: reencontrarei meus amigos e minhas amadas nas paragens do Além? Seria muito bom. Mas também os chatos que procuro evitar na vida terrena? Pois é de supor-se que chatos também tenham direito à vida eterna. Só o que faltava tropeçar nalguma esquina do Além com alguma das figurinhas que não suporto nem ver nos botecos da Paulicéia. Por outro lado, sem corpo não há prazeres. Não há sexo, não há palato, não há música nem odores. Falar nisso, teria eu óperas ou música erudita? Ou o paraíso já estaria globalizado, contaminado pelo rock? A lembrança de um filme de 1966, Modesty Blaise, me aterroriza. Nele, Dirk Bogarde sofre uma tortura atroz. É amarrado entre estacas no deserto. Com um radinho de pilhas no ouvido, tocando música dos Beatles. Você imaginou isto para toda a eternidade? Prefiro as chamas do inferno, o choro e ranger de dentes. Passo. Eternidade é um risco. Isso sem falar que deve ser um saco. Outra hipótese é a espírita. A gente reencarna aqui no planetinha mesmo. Mas... se eu reencarno com tudo, mas sem a memória da vida passada, de que adianta? É como se tivesse morrido. Pior ainda: e se eu reencarnasse como antropólogo, sociólogo, petista ou psicanalista? Seria uma nova vida, só que de vergonha e opróbrio. Há uma terceira hipótese, a budista. Libertar-se do eu. Mas essa é inviável. Eu sou eu e nada mais, ora bolas! O que dá dramaticidade à vida é sua brevidade. Se temos a perspectiva de menos de século, temos de agir rápido. Imagine se alguém vivesse, não digo pela vida eterna, mas por mil anos? Vestibular? Vou deixar lá pros 200 anos. Profissão? Quem sabe aos 500. A História sofreria um retardo irremediável. Volto a Sócrates: quem pratica a filosofia corretamente aprende a morrer e não teme a morte. Não sei ainda se aprendi a morrer. Veremos isto mais adiante. Mas desde há muito aceito tranqüilamente a idéia de morte. Sei que vou ficar triste por abandonar a festa. Certamente vou chorar. Como um dia chorei, ao partir de Madri. Ou, conforme as circunstâncias – nunca se sabe! – ficarei talvez alegre por abandonar o sofrimento. Mas da vida eterna, declino prazerosamente. * 16/03/2011 quarta-feira, outubro 30, 2013
VOTAR EM NEGRO SERÁ OBRIGATÓRIO Depois das cotas para universitários, é óbvio que viriam as cotas para mestrado e doutorado. Que acontece se os novos mestres e doutores não conseguem entrar no mercado de trabalho? A resposta é óbvia: cria-se cotas no serviço público. Em concurso, negro vale por dois. Não interessa mais se você tem competência para um determinado cargo. O que importa é a cor da pele. Se você é negro – ou mesmo sendo branco declara-se negro – sua capacitação para o trabalho é o que menos importa. Há mais de década venho afirmando que o sistema de cotas é uma armadilha. Antes das cotas, eu não teria restrição alguma em consultar um médico negro. Depois das cotas, não quero nem ver médicos negros perto de mim. Sei que entraram, de modo geral, pela porta dos fundos da universidade. E se entraram pela porta dos fundos, não será na porta da frente que serão barrados. Cá entre nós, penso que devia constar de todos os diplomas, daqui pela frente, se o diplomado entrou pelo sistema de cotas ou se disputou lealmente sua vaga na universidade. No diploma dos negros que entraram na universidade por este sistema, que conste em letras garrafais: ADMITIDO NA UNIVERSIDADE PELO SISTEMA DE COTAS Afinal, se cotas é privilégio do qual nenhum beneficiado deve envergonhar-se, não deve ser infamante registrá-las no diploma. Ao rasgar descaradamente a Constituição, no dia 26 de abril do ano passado – revogando o art 5º da Constituição Federal, segundo o qual todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza – a suprema corte judiciária do país oficializou, por unanimidade, o racismo no país. E abriu as cancelas para todos os desmandos. Agora, coube ao Legislativo dar um passo adiante na instalação de um sistema racista no país. Hoje pela manhã, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou parecer referente à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que reserva vagas a parlamentares de origem negra. De acordo com a proposta do deputado petista Luiz Alberto (BA), a cota valerá para a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmara Legislativa do Distrito Federal por cinco legislaturas a partir da promulgação da emenda, prorrogáveis por até mais cinco legislaturas. A proposta ainda passará por uma Comissão Especial antes de ir à votação em dois turnos no plenário da Casa. É óbvio que será aprovada. E se você acha que afinal pode votar em branco e os negros que se lixem, está redondamente enganado. O texto da PEC 116, de 2011, determina que o eleitor destine, além do voto às demais vagas, um voto específico para o preenchimento da cota. Quer dizer, queira ou não queira, você é obrigado a votar em negro. Em branco, é facultativo. Em negro, será obrigatório. Ainda há pouco tempo, se não me falha a memória, isto se chamava voto a cabresto e era considerado muito feio em política. Agora, virou lei. Pior ainda: o critério para a candidatura é o da autodeclaração. Será negro quem se disser negro ou pardo. Os escassos 6% de negros do Brasil pegam carona nos 40% de mulatos e extinguem a mestiçagem. A população negra, que além de ser inflada pela inclusão dos mulatos e pelas cotas universitárias, vai aumentar ainda mais. Seremos o país de maior contingente negro no mundo... no papel. O projeto é tímido. Precisamos de cotas para deputados índios, homossexuais e transexuais. Além de seu voto, você terá de destinar um voto específico para bugres e o resto da bicharada. terça-feira, outubro 29, 2013
Souvenirs de Paris: MES FORTS BRAS Jamais pretendi defender tese de doutorado, aliás sequer sabia em que consistia este gênero literário em geral masturbatório com pretensões de ciência exata. No fundo, queria viajar, conhecer outras gentes. Os suecos têm um nome para isto: resfeber, febre de viagens. Contraí o vírus em Estocolmo. Consta que a doença não tem cura. Tinha quatro anos para redigir trezentas ou quatrocentas páginas, o que não exige nenhum esforço maior de um jornalista treinado na crônica diária. O mesmo vale para um professor de Letras que, teoricamente, deveria saber escrever. Em um curso de metodologia, tive como professor um certo M. Decaudin, cujo nome me causava calafrios: temia, em um ato falho, tratá-lo por M. Decadent. O ato, aliás, não mais seria falho, já havia passado a habitar meu consciente. Em suas aulas, enfrentei meu primeiro inimigo teórico, o tal de método. M. Decadent (pardon!) exigia de mim um método, instrumento do qual jamais ouvira falar. Fui consultar um professor gaúcho, Dionísio Toledo. Professor na Sorbonne, conheceria suas manhas. Toledo me recebeu amistosamente e me sugeriu diversas linhas de análise. Eu poderia usar um enfoque psicanalítico, a partir de Lacan ou Kristeva, se não me engano, ou quem sabe analisar os autores sociologicamente, a partir das obras de Goldman e sei lá mais quem, ou então, se não quisesse pensar muito, adotar um método estruturalista. Era uma noite de inverno, Paris estava coberta de neve. Caminhei vários quarteirões sem encontrar uma lata de lixo onde jogar a bibliografia que, por uma questão de cortesia, anotei em alguns papéis. Ça va, jeune-homme de la pampa? A voz rouca o fez voltar 15 anos atrás. Jeune-homme de la pampa? Não acreditava no que ouvia. Só podia ser ela, Martine et sa belle poitrine. E só podia ser com ele. Fora ali mesmo, na terrasse do Select, que se haviam despedido, após acompanhar o enterro de Sartre. Ela, a militante do PC, dera estilo a seus ensaios e alegria a seus dias de Paris. Fora sua professora de francês na Sorbonne, depois chez elle, e depois... seu dicionário de travesseiro, a salvação de sua tese. Não foi fácil explicar-lhe que não era exatamente brasileiro, mas gaúcho. Falou da pampa, de seus habitantes e hábitos peculiares, cevou-lhe um chimarrão. Profilática, ela insistia em uma cuia e bomba individuais. Só aceitou chupar na mesma bomba ao saber que aquela era a bebida predileta de Che Guevara e assim devia ser tomada, coletivamente. Lembrou de um dito gaúcho: mulher que toma mate em muitas bombas, nunca mais se acostuma com uma só. Mas aquelas tardes esdrúxulas de chimarrão e camembert estavam mortas e bem mortas, como morto estava o jovem cheio de ilusões que um dia chegara a Paris para conquistar o mundo. Morta estava sua tese, seu entusiasmo pela literatura, suas esperanças no magistério. Visitava agora Paris como quem faz turismo pelo próprio passado e uma voz rouca ressuscitava dias que julgava também mortos. Abraçou-a com efusão. Sentaram-se na terrasse, como se tivessem se despedido em Montparnasse na noite anterior. Como dizíamos ontem... Ambos com alguns quilos a mais, sua barba já poivre-et-sel, alguns fios brancos invadindo a crina loura da ex-professora. Ele, que abominava o stalinismo de Sartre, fora cair nos braços da militante. Quem te viu, quem te vê. Desejo não tinha ideologia. Resumiram, em traços rápidos, os quinze anos passados. Ele migrara de cidade, profissão e mulher. Brasil era eterno devir. França, águas paradas. Ela mudara apenas de endereço. Passado volta? Tinha medo de um fiasco. Evocou seus seios, seus pelos, que um dia vira emergir do Mediterrâneo, gotejantes, numa praia em Cannes. Ela despediu-se com um olhar quente, passou-lhe o endereço. Esperava-o no sábado pela manhã. J ai besoin de tes forts bras. Dormiu o sono dos anjos. Passado voltava, sim senhor! Pragmática, a francesinha. Queria-o em plena forma, de manhã cedo. Braços fortes? Pois não teme quem te adora a própria morte. O hino pátrio adquiria novo sentido às margens do Sena. Na sexta, moderou no vinho. Sentia-se um Jacques Brel revisitando uma antiga paixão. Ela ainda vira força em seus braços? Gentil Martine. Já se via auscultando sua generosa poitrine! Chegou atrasado, os homens da transportadora já esperavam na porta do prédio. Operário francês, tu sais, reclamava Martine, eles não movem um dedo numa mudança, a gente tem de carregar tudo. Um fio de pentelho puxa mais que vinte juntas de boi, tinha de convir. O Muro havia caído, a URSS se esfacelado e lá estava ele, carregando das profundezas de uma cave os arquivos da célula do PC de Montparnasse. Dependesse a marcha da História dos seios de Martine, nem tudo estava perdido. segunda-feira, outubro 28, 2013
FALTOU OXITOCINA AOS MENSALEIROS Por que você gasta? Por que compra coisas, úteis ou inúteis? Por que você gasta o que não tem? Estas perguntas, de respostas mais ou menos óbvias, são agora objeto de uma ciência, a neuroeconomia. Você gasta porque pode gastar, ora bolas. Ou porque se pendura no crédito, o que também significa poder gastar. Se gasta o que não tem, é por ser um irresponsável, com forte vocação para caloteiro. Se compra coisas úteis, é porque delas precisa. Se compra as inúteis, é porque deixou-se levar pela lábia dos publicitários. Ocorre que, enunciando assim de maneira simples as respostas a perguntas simples, você não vai muito longe. Melhor dar uma aura científica ao banal. Nada melhor que uma teoria complexa, o que pode lhe dar renome e, conseqüentemente, dividendos. Leio na Zero Hora reportagem sobre Paul Zak, o cientista – ou sei lá como defini-lo – que vê o impacto dos hormônios na tomada de decisões econômicas. Você não é mais livre quando decide se compra isto ou aquilo. Muito menos escravo do consumismo, disto você está absolvido. A culpa é da perversa oxitocina. Diz Paul Zak: “Os seres humanos são criaturas emocionais e isso afeta a nossa tomada de decisão e a dos mercados. Também somos criaturas biológicas, temos necessidades e desejos que são movidos por fisiologia. O que minha pesquisa tem mostrado é que pequenas mudanças na química do cérebro podem ter profundos efeitos comportamentais. Se vamos colaborar com os outros ou tentar tomar o dinheiro deles, se escolhemos investimentos seguros ou de risco, e se agiremos de forma ética ou se nos comportaremos como psicopatas”. Ou seja, ninguém mais é ladrão, nem fere a lei e muito menos a ética. O repórter pergunta: — Alguma decisão pode ser totalmente racional? Zak é taxativo: — Não. Nem uma sequer. O cérebro é um órgão integrado e apesar de conseguirmos contar para os outros e para nós mesmos as razões de uma determinada escolha, ambas — emoção e cognição — afetam as decisões. Ao longo de 10 anos de pesquisa, os resultados mostraram que a maioria das decisões tem um componente emocional. Cientistas buscam todos os dias causas genéticas para comportamentos e opções de cada indivíduo. Já se buscou o gene do alcoolismo. Não me consta que tenha sido encontrado. Se o fosse, seria muito oportuno. Qualquer pinguço poderia justificar-se cientificamente: "Que posso fazer? É genético. Garçom, dose dupla, por favor". Nada mais confortável que atribuir a uma predestinação biológica o que depende de uma decisão. Buscou-se depois um gene bem mais conveniente, o do homossexualismo. Mas os engenheiros genéticos parecem ser avessos a leituras históricas. No Ocidente, o homossexualismo era um comportamento normal e até mesmo desejável, antes que o cristianismo contaminasse a cultura helênica com a camisa-de-força de seu conceito de amor, como algo único e direcionado ao sexo oposto. Aliás, este poderoso mito literário ocidental, o amor, nasce na Grécia, com os poemas de Safo de Lesbos, e é antes de tudo homossexual. Em todo caso, uma causa biológica para esta opção facilitaria a vida de muitos efebos sem maior cultura histórica. “É genético, querido”. O que está sendo cada vez mais insólito de admitir é que alguém é homossexual porque decidiu ser homossexual, porque gosta de relacionar-se com o mesmo sexo, em suma, porque é livre de decidir com quem quer se relacionar. Buscou-se também o gene da inteligência. Epa! Terreno minado. Imagine se este gene fosse politicamente incorreto, com preferência por certas raças. Encontrá-lo seria um desastre. Deixa pra lá, melhor não insistir nesta pesquisa. De acordo com Zak – em reportagem da Veja do ano passado - é a oxitocina quem nos diz em quem confiar e quando ficar desconfiado, quando gastar e quando poupar. "O nível de confiança dentro de uma sociedade determina se essa sociedade prospera ou se mantém na miséria", escreve. Para o neuroeconomista, são as sociedades nas quais os indivíduos conseguem reforçar contratos, confiar no profissionalismo alheio e acreditar que o outro não vai roubá-lo que têm mais potencial para o desenvolvimento econômico. E a oxitocina está diretamente envolvida nessa confiança mútua. Quer dizer, tanto o desenvolvimento econômico das nações como a confiança em contratos depende não de trabalho ou honestidade, mas de um reles hormônio. - Com medições dos níveis de oxitocina no sangue, conseguimos prever se o sentimento de empatia, que nos conecta a outras pessoas, e nos faz ajudá-las, vai se manifestar num indivíduo em relação àqueles que estão à sua volta. É a empatia que nos faz morais. Temos agora uma molécula que determina a moral de cada um. Não por acaso, Zak é autor de um livro intitulado A Molécula da Moralidade. De onde concluímos não ser por desonestidade que os mensaleiros cometeram seus “feitos”, como diz Dona Dilma. Deve ter sido carência de oxitocina. Nada que alguns comprimidos não resolvam. Os coitados estão prestes a serem encarcerados em função de um código penal medieval, quando bem poderiam ser recuperados com um tratamento intensivo de oxitocina, propiciado por estes novos cientistas, os neuroeconomistas. domingo, outubro 27, 2013
DEMÉTRIO MAGNOLI E MINO CARTA, O MESMO COMBATE Demétrio Magnoli, normalmente autor de artigos lúcidos e independentes, revelou-se um desastre em sua estréia como colunista da Folha de São Paulo. Há uma boa década venho falando naquilo que os franceses chamam de glissement idéologique. O conceito de esquerda sempre muda, à medida em que se corrompe. A direita é o repositório de todos os males do mundo, inclusive os das esquerdas. Pois quando as esquerdas cometem crimes – ou “erros”, como preferem seus líderes – é que não eram de esquerda, mas de direita. Ainda há pouco voltei ao tema e é bom que volte mais vezes, pois cá nestas terras pátrias ainda não se tem noção clara desta safadeza das esquerdas. Convivendo há mais tempo e mais de perto com os comunistas, os franceses logo perceberam o truque. Magnoli, em seu artigo, caiu no lugar comum. Para o cronista, os petistas financiaram com dinheiro público a bolha Eike Batista. Na fogueira do Império X, queimam-se US$ 5,2 bilhões do povo brasileiro. "O BNDES para os altos empresários; o mercado para os demais": eis o estandarte do capitalismo de Estado lulopetista. “Anteontem, Lula elogiou o "planejamento de longo prazo" de Geisel; ontem, sentou-se no helicóptero de Eike para articular um expediente de salvamento do megaempresário de estimação. O lobista do capital espectral é "de direita"; eu, não. “Eles são fetichistas: adoram estatais de energia e telecomunicações, chaves mágicas do castelo das altas finanças. Mas não contemplam a hipótese de criar empresas públicas destinadas a prestar serviços essenciais à população. “Eles são corporativistas. No governo, modernizaram a CLT varguista, um híbrido do salazarismo com o fascismo italiano, para integrar as centrais sindicais ao aparato do sindicalismo estatal. Eles são restauracionistas. Na década do lulismo, inflaram com seu sopro os cadáveres políticos de Sarney, Calheiros, Collor e Maluf, oferecendo-lhes uma segunda vida. O PT converteu-se no esteio de um sistema político hostil ao interesse público: a concha que protege uma elite patrimonialista. "De direita"? Isso são eles. “Eles são racialistas; a esquerda é universalista. O chão histórico do pensamento de esquerda está forrado pelo princípio da igualdade perante a lei, a fonte filosófica das lutas populares que universalizaram os direitos políticos e sociais no Ocidente. Na contramão dessa herança, o lulopetismo replicou no Brasil as políticas de preferências raciais introduzidas nos EUA pelo governo Nixon. Inscrevendo a raça na lei, eles desenham, todos os anos, nas inscrições para o Enem, uma fronteira racial que atravessa as classes de aula das escolas públicas. Esses plagiários são o túmulo da esquerda. "Esquerda"? O lulopetismo calunia a esquerda democrática enquanto celebra a ditadura cubana. Fidel Castro colou a Ordem José Martí no peito de Leonid Brejnev, Nicolau Ceausescu, Robert Mugabe e Erich Honecker, entre outros tiranos nefastos. Da esquerda, eles conservam apenas uma renitente nostalgia do stalinismo”. Que quer dizer o cronista? Que o PT, ao financiar com dinheiro público a corrupção, ao adorar estatais, ao integrar as centrais sindicais ao aparato do sindicalismo estatal, ao serem racialistas e conservadores, não é mais de esquerda. O PT calunia a “esquerda democrática”. petistas são "o túmulo da esquerda". Em verdade, em nada difere de Mino Carta, este impoluto porta-voz oficioso do PT, que em um vídeo antigo, de 2008, revelava notável espírito de síntese. Ser de esquerda, para Mino, é defender a liberdade e igualdade. Mas se o regime vira ditadura, mesmo tendo partido das melhores intenções, o regime é de extrema-direita. Ou seja, o PT não é mais esquerda. A esquerda permaneceu, límpida e ética, naquele topos uranos das idéias lindas e inefáveis, sempre a salvo da ferrugem corruptora do tempo e dos partidos. Magnoli, evidentemente, deve ter tido um passado de militante nas esquerdas. Quando se descuida, ergue seu bracinho de Dr. Strangelove, sem que possa controlá-lo. Se alguém não lembra, no filme Dr. Strangelove–, de Stanley Kubrick – o personagem homônimo era um cientista alemão paraplégico refugiado nos Estados Unidos. De tempos em tempos, seu braço esquerdo se erguia na saudação ao Führer, sem que pudesse controlá-lo. O velho Marx não dá mais para salvar. Suas palavras estão impressas em papel. Quanto a esquerdas, é uma idéia abstrata, que pode ser entendida ao gosto de cada um. Desmoralizadas historicamente, seus militantes agora alegam que o que a esquerda real fez não é coisa que a esquerda ideal faça. Só faltou Magnoli dizer que Lênin, Stalin, Mao, Pol Pot e Castro são de direita. sábado, outubro 26, 2013
EM BADERNEIRO NÃO SE BATE NEM COM FLOR Vamos voltar no tempo. Não muito longe. Só cinco meses atrás. Voltemos às festas juninas, digo, à gloriosa Revolução de Junho de 2013. Quando dona Dilma dizia que depredar ônibus, carros e bancos eram manifestações pacíficas próprias da democracia. “O Brasil hoje acordou mais forte. A grandeza das manifestações de ontem comprovam (o plural é dela) a energia da nossa democracia, a força da voz das ruas e o civismo da nossa população. É bom ver tantos jovens e adultos, o neto, o pais, o avô juntos com a bandeira do Brasil cantando o hino nacional, dizendo com orgulho ‘eu sou brasileiro’ e defendendo um país melhor. O Brasil tem orgulho deles”, disse então a presidente. Temos então que o Brasil se orgulha de seus baderneiros. Fernando Henrique Cardoso, que de seu glorioso climatério assistia de camarote os distúrbios de rua, perdeu uma ocasião única de ficar calado. Desqualificar os protestos dos jovens em São Paulo e outras capitais "como se fossem ação de baderneiros" constitui, na avaliação do ex-presidente, "um grave erro". Para ele, "dizer que essas manifestações são violentas é parcial e não resolve. É melhor entendê-las, perceber que essas manifestações decorrem da carestia, da má qualidade dos serviços públicos, das injustiças, da corrupção". Enquanto dizia isso, os “jovens” arrombavam os portões do palácio Bandeirantes, onde governa seu companheiro de partido, Geraldo Alckmin. Se estava faltando o governador vir a público para dizer que o arrombamento da porta do palácio Bandeirantes era uma manifestação legítima e própria da democracia – pensei com meus botões. Não faltou. Alckmin, que uma semana antes classificara os manifestantes como "vândalos" e "baderneiros", logo acudiu com panos quentes: "Queria fazer um elogio às lideranças do movimento e também à segurança pública e à Polícia Militar”. Para o governador, a primeira reunião com os utópicos desvairados do Movimento Passe Livre (MPL) foi positiva. "Foi uma reunião muito madura, muito proveitosa." Assustados com as manifestações nas ruas, os políticos, sempre à procura do que rende mais votos, apressaram-se a tomar a defesa dos baderneiros. Fernando Haddad, incontinenti, congelou o preço das passagens. A conta da Revolução de Junho já chegou: metade dos contribuintes paulistanos terá de pagar aumento consecutivo do IPTU até 2018. Haddad fixou tetos de aumento de 20% para imóveis residenciais e de 35% para os comerciais em 2014, e de 10% e 15%, respectivamente, a partir de 2015. Com isso, 1,5 milhão de contribuintes, ou 49,7% dos 3,1 milhões, pagará resíduos do reajuste por mais de quatro anos. De algum lugar precisa sair o subsídio às reivindicações dos “jovens”. Estourou no bolso da classe média. Apenas seis meses depois de declarar que “a grandeza das manifestações comprovam (o plural é dela) a energia da nossa democracia, a força da voz das ruas e o civismo da nossa população”, vários meses depois das contínuas depredações de imóveis, que custaram mais de seis milhões de reais aos cofres públicos, dona Dilma tem outra concepção dos “jovens e adultos”. Neste sábado, a presidente classificou como "barbárie" os atos de vandalismo ocorridos na noite de ontem em São Paulo e cobrou punição dos responsáveis pelo quebra-quebra realizado por mascarados na região central da cidade, aliás os mesmos que depredavam em junho passado. "São barbáries antidemocráticas. A violência cassa o direito de quem quer se manifestar livremente. Violência deve ser coibida", disse a presidente por meio do Twitter. "As forças de segurança têm a obrigação de assegurar que as manifestações ocorram de forma livre e pacifica", acrescentou. Em junho passado, a barbárie era das forças de segurança. Hoje, mudou o sinal. Em vez de louvar a “grandeza das manifestações” de “jovens e adultos”, ela cobrou que a Justiça puna os abusos, nos termos da lei. Os atos de vandalismo que geraram destruição no centro da cidade teve início durante o Ato do Movimento Passe Livre (MPL) – o mesmo movimento que gerou os vandalismos de junho – em defesa do transporte gratuito. "Agredir e depredar não fazem parte da liberdade de manifestação. Pelo contrário", acrescentou a presidente. Em junho, agredir e depredar comprovavam “a energia da nossa democracia, a força da voz das ruas e o civismo da nossa população”. A manifestação de ontem, segundo o Estadão, terminou com 78 pessoas detidas. Claro que não ficarão nem duas ou três horas em cana. As cenas de destruição se concentraram no Terminal Parque Dom Pedro II quando manifestantes quebraram dez ônibus e a bilheteria. Na ação também foram depredados 17 caixas eletrônicos e orelhões. No meio do quebra-quebra, o coronel da PM Reynaldo Rossi foi agredido com uma placa de ferro e após ser espancado por alguns mascarados deu entrada no Hospital das Clinicas com fratura na escápula e suspeita de traumatismo craniano. Espanta ver que a força pública foi impotente para impedir a quebra de ônibus, bancos, caixas eletrônicos e orelhões. Não conseguiu sequer impedir o espancamento de um de seus comandantes. Os policiais, pelo visto, têm agido como agem ante os usuários do crack: apenas assistem o crime sendo praticado sob seus olhos. As declarações irresponsáveis de Dilma, Fernando Henrique e Alckmin constituíram poderoso combustível para a fogueira. Um dogma não pode ser quebrado: em baderneiros não se bate nem com flor. Quanto a policiais, podem ser espancados à vontade. sexta-feira, outubro 25, 2013
A HISTÓRIA DO GRANDE RACIONAMENTO DE PALAVRAS Conto de Tage Danielsson Tradução do sueco de Janer Cristaldo Um dia disse Nosso Senhor à sua mulher: - Ouve, Elvira, é algo absolutamente incrível o que os homens falam e falam sem parar. Acho que a situação piorou nos últimos tempos com tagarelices cada vez mais sem sentido. Para alguém como eu que tudo vê e tudo ouve, devo confessar que isso se torna um pouco irritante. - Não seja idiota, Karl-Ragnar - disse a mulher de Nosso Senhor -. Uma conversinha de quando em quando, podes muito bem permitir aos pobres coitados. - Besteiras aqui, besteiras lá, besteiras por todo lado - disse Nosso Senhor - mas agora vou terminar com este eterno blá-blá-bá. Acho que vou racionar um pouco as palavras. - Então faz o favor de te limitar aos teus homens - atalhou a mulher de Nosso Senhor -. Não te mete com minhas colegas, lembra-te bem disto. - Não vamos brigar por uma coisinha destas - disse Nosso Senhor, conciliante -. Se todos os homens se tornam um pouco mais silenciosos, a coisa já melhora. Nosso Senhor sentou-se e pensou: "Não será agora que vou ser parcimonioso, mas, pelo contrário, fartamente generoso. Vou dar-lhes dez mil palavras por dia, isto certamente lhes será suficiente. Vejamos... isto dá três milhões e seiscentas e cinqüenta mil palavras ao ano... acho que posso deixar de lado um acréscimo extra para os anos bissextos, este dia eles podem muito bem calar a boca em nome da paz... e assim em 78 anos teremos... bem, se ofereço a cada um cem milhões de palavras, contadas desde o nascimento, eles têm em todo caso uma boa margem para conversa fiada". Nosso Senhor expediu uma circular com este conteúdo a todos os seres humanos do sexo masculino. Comunicava ainda que cada ocasião que alguém ultrapassasse a cifra exata de um milhão de palavras, soaria uma pequena campainha no ouvido do próprio. E quando a provisão de palavras estivesse quase esgotada e restassem apenas dez palavras, a campainha emitiria sinais curtos durante um minuto. Nosso Senhor calculara certo, como sempre. A consciência de que a provisão de palavras era racionada fez com que muitos dos mais loquazes senhores na terra se pusessem a pensar um pouco mais cada vez que soava a campainha. Talvez eu tenha falado demais, pensavam. Talvez eu deva pensar um pouco mais e falar um pouco menos. E assim pensavam um pouco antes de continuar a falar. Para suas alegrias, observaram que suas conversas dali por diante se tornaram mais coerentes e interessantes de serem ouvidas, e tiveram grande sucesso na vida graças à sábia decisão de Nosso Senhor. Até aqui, apenas três pessoas deram cabo de suas cem milhões de palavras. O primeiro foi um sacerdote que durante muitos anos de serviço desfiava as escrituras em tão longas prédicas que a campainha lhe tilintava freqüentemente no ouvido. Ele no entanto não se preocupava muito com aqueles avisos da campainha, pois achava que na condição de servidor de Nosso Senhor, certamente teria direito a uma reserva extra de palavras caso sua quota chegasse ao fim. Um dia, justo quando havia começado sua prédica dominical, ouviu os curtos e insistentes sinais que significavam que agora ele tinha apenas dez palavras. Mas nem ligou para isso. "O chefe certamente me fornecerá um acréscimo extra, bom como ele é", pensou despreocupadamente. Encontrava-se em meio a um raciocínio que começara com a caminhada de Jesus sobre as águas e continuava com uma comparação entre o passeio divino e o comportamento ímpio que dão prova muitos escravos do pecado em nossos tempos dissolutos ao banharem-se embriagados e nus, à noite, nos chafarizes em frente a nossos museus e instituições de cultura. E continuou como se nada tivesse acontecido em seus ouvidos: - Objetará então o pecador: não é pecado gozar a vida. Um silêncio divino inundou a igreja. Os paroquianos despertaram surpresos de suas semi-sonolências. Terminaria a prédica com estas palavras? Sim, pelo jeito, pois o pastor mantinha o rosto entre as mãos e nada mais dizia. Após alguns instantes, um órgão perplexo começou a soar. Naquele dia todos chegaram alegres da missa em bom tempo para escutar programas da velha guarda, fortalecidos na alma pelas palavras finais do pastor que diziam não ser pecado gozar a vida. - Foi uma prédica extraordinariamente linda - diziam os paroquianos um para o outro, e ninguém entendeu porque depois daquele domingo o pastor foi conduzido para um silencioso serviço na secretaria da paróquia. O segundo pela ordem a ser atingido pelo racionamento de palavras foi um relações-públicas do ramo de detergentes. Sua profissão consistia em ser excepcionalmente gentil, da manhã à noite, e em especial durante o almoço e a janta, com todas as pessoas que sua firma entrava em contato. Então vocês podem imaginar que o relações-públicas conhecia todas as histórias engraçadas sobre detergentes que existiam e mais algumas ainda, e além disso dominava a arte de sorrir todo o tempo com seus dentes alvíssimos enquanto falava, de forma que as pessoas ficavam loucas por ele e por seus detergentes. - Cada vez que eu abro a boca, um par de meias é jogado em nosso detergente em alguma parte do mundo - costumava dizer com seu sorriso irresistível e, como isto havia sido calculado pelo departamento de estatística de sua firma, era indubitavelmente verdade. Para um tal relações-públicas, a campainha evidentemente soava com freqüência. Após cada sinal ele ficava algo pensativo e naquele dia não tomava nenhum Dry Martini, pois Dry Martini lhe soltava de tal modo a língua que lindas palavras e lindos slogans lhe fluíam da boca sorridente como um lindo rio onde as associações de donas-de-casa e revendedores se afogavam prazerosamente. Quando soaram os últimos e repetidos sinais curtos em seus ouvidos ele estava almoçando, por custa de sua firma, com uma delegação do Instituto de Pesquisas Domésticas. Já havia tomado seu Dry Martini aquele dia, e antes de perceber exatamente que soara o último sinal, deixou escapar: - Apanhem o detergente que quiserem e comparem-no ao nosso. Então controlou-se. Por Deus, a campainha das dez palavras. E nove já haviam sido ditas! Uma única palavra, pensou ele, uma única! Enfiou a mão no elegante bolso de seu casaco e apanhou um pacotinho com o deteergente de sua firma, que sempre carregava consigo. Despejou uma dose mortal do detergente em sua taça de vinho, ergueu com seu sorriso alvíssimo a taça ante os encantados delegados do Instituto de Pesquisas Domésticas e disse: - Delicioso. Bebeu e caiu, elegantemente morto. Pois um relações-públicas não pode viver sem a possibilidade de dizer sem cessar coisas lindas. Naturalmente agora vocês se perguntam quem foi o terceiro homem a dar cabo de suas cem milhões de palavras. Pois bem, vou dizer-lhes, foi um político. Ele desenrolava textos e conversava fiado e lançava acusações e sofismava e esbravejava tanto que antes mesmo de ter chegado aos cinqüenta a campainha já havia soado em seus ouvidos noventa e nove vezes. E agora se aproximavam as eleições e nosso político sentou-se em uma mesa em companhia de seus adversários e de um apresentador, para um debate na TV. O político do qual falo olhava fixamente para a câmara e disse no seu minuciosamente ocupado espaço onze mil quinhentas e sessenta e três palavras, entre as quais podemos escolher, ao azar: segurança, todos, aposentadoria, vocês mentem, padrão de vida, conspiração, eleitores querem saber, aposentadoria, besteiras, 1956, orçamento, homens do povo, grupos de baixo salário, confiança e aposentadoria. Ao chegar ao apelo final soaram os pequenos sinais curtos nos ouvidos daquele político. Ficou tão estupefato que disse espontaneamente a todo mundo: - Já disse tantas bobagens que agora eu calo a boca. Graças a este apelo final aquele político foi escolhido para ministro e governou por muitos anos. Como não podia mais dedicar-se a cacetear os eleitores com conversa fiada, dispunha então do dia inteiro para pensar um pouco e executar uma série de medidas, de modo que se tornou um dos melhores ministro de Estado que este país teve, como consta nos Anais do Partido. E se não estivesse morto, estaria governando ainda. Enquanto vocês lêem isto, Nosso Senhor fez um levantamento para sua mulher do resultado de seu grande racionamento de palavras. Podes notar que tudo ficou significativamente mais silencioso agora, Elvira - disse ele -. Seria agora o caso de pensarmos em estender as determinações de racionamento inclusive ao campo das mulheres, não achas? Hás de convir, tu que falas a todo instante de emancipação e dessa papagaiada toda. (Lá no fundo, Nosso Senhor pensou que seria melhor se inclusive sua mulher fosse submetida ao racionamento, mas evidentemente nem tocou no assunto). - Emancipação aqui, emancipação acolá - disse a mulher de Nosso Senhor -. Mas um racionamento desses para mulheres tu só vais estabelecer em cima de meu cadáver, Karl-Ragnar. E o fato é que a mulher de Nosso Senhor nunca morre. Esta é a sorte de vocês, adoráveis tagarelas. quinta-feira, outubro 24, 2013
ACONTECEU EM TÚNIS * Túnis, anos 70. Eu fazia a cobertura do festival de cinema de Cartago. Entre um filme e outro, jantei com um carioca, funcionário da Embrafilme, e uma cineasta portuguesa. O carioca estava preocupado apenas em passar bem. A lusa tinha preocupações outras. Queria achar uma praia, em pleno país árabe, onde pudesse tomar sol de marianinhas ao léu. Traduzindo: fazer topless. Ao final da janta, pedimos um café turco. O carioca, por brincadeira, resolveu ler a borra do café da lusa. A rapariga emborcou sua xícara e nosso vidente improvisado começou a interpretar os desenhos da borra. Foi avançando, sem mais compromissos, aquelas previsões óbvias: você tem um belo futuro pela frente, perspectivas de novas viagens, doenças em família. Em suma, tudo aquilo que qualquer pessoa minimamente bem situada terá, queira ou não queira. Até aí, brincávamos. O garçom nos observava e não resistiu: “Monsieur lê borra de café?”. O carioca assumiu: “leio”. O garçom pediu então que lesse seu futuro. Tudo bem, respondeu o súbito vidente, mas você terá de tomar um café turco. E o garçom, que confessou detestar café turco, esvaziou uma xícara e a emborcou. O carioca assumiu ares de guru e começou a leitura. Começou pelo óbvio, aquelas coisas rotineiras que a qualquer um de nós acontecem. Lá pelas tantas, anunciou: você tem um encontro muito importante à sua frente. O garçom puxava pela memória, não encontrava encontro algum. Nesta altura, o proprietário do restaurante já entrara na roda e interveio: “tem sim , claro que tem, você tem aquele audiência com o ministros dos Cereais, sobre sua padaria”. O guru carioca tripudiou: “a borra não mente. Olhe o ministro firme, nos olhos, quando encontrá-lo”. E continuou: você tem alguém com graves problemas de saúde na família. O garçom puxou pela memória, não encontrava ninguém doente em suas cercanias. Monsieur desculpasse, mas não havia ninguém com problemas de saúde. Nosso vidente continuou sua farsa e antes que terminasse, o patron entrou de novo na conversa: tem alguém doente sim, seu irmão não funciona bem da cabeça. O leitor de borras do fundo de xícaras exultou: “claro, está tudo aqui na borra”. E recomendou a terapia: quatro vezes por mês, atar o irmão num poste e dar um banho de sal grosso. Passaram-se as décadas e até ainda hoje imagino aquele pobre diabo sendo atado a um poste todas as semanas, sem saber porquê e submetido a uma ablução salgada. Tudo por uma piada de mesa de bar, elaborada por ocidentais desocupados. Neste mar de crédulos em que navegamos, clientela é o que não falta para aderir ao primeiro vigarista que se arvore em leitor do futuro ou apóstolo de uma nova crença. Você faz uma piada e arrisca criar um rebanho de seguidores. Nunca foi tão fácil criar uma religião. Sem ir mais longe, temos aí o bispo Edir Macedo, um dos mais recentes aliados do impoluto Partido dos Trabalhadores. Começou sua cruzada em 1977, empunhando sua versão particular da Bíblia. Nem transcorreram três décadas e tem milhões de fiéis no planetinha e templos de Paris a Nova York. O cristianismo precisou de quatro séculos para impor-se a um continente. Em trinta anos, o bispo Macedo já se espalhou por três. Comentei a regulamentação da profissão de astrólogo na semana passada. Recebi não poucos e-mails indignados com minha descrença em relação à influência dos astros e aos bons ofícios de seus intérpretes. Se descrer de Deus já não causa espécie neste século XXI, descrer da astrologia parece constituir heresia. Recebi protestos de pessoas que se dizem historiadores e astrólogos, cientistas políticos e astrólogos. Numa época em que jornais supostamente sérios mantém colunas diárias do ancestral engodo, não é de espantar-se que astrologia comece a assumir um status acadêmico. Me apraz auscultar, nos bares que freqüento, a diversidade humana. O que tenho visto ultimamente é de assustar. Que me encontre com crentes deste ou daquele deus, gente que crê nos deuses astronautas ou na neurolingüística, na psicanálise ou em feng shui, isto faz parte da vida de bar. Para minha perplexidade, tenho encontrado ultimamente pessoas que acreditam no que vêem na televisão. Não falo de noticiários, onde alguma dose de realidade sempre há. Mas de documentários, onde o cineasta, para melhor explicar uma teoria, produz imagens de fantasmas, corpos se incendiando, copos se movendo numa mesa. Pois não é que há centenas, senão milhares, de espectadores, que acreditam na existência real da imagem produzida? Há pouco, um destes interlocutores me jurava de mãos juntas que a combustão espontânea era algo real. Ele havia visto uma mulher entrando em combustão na TV. E mais: vira na TV a cabo. Descobri então que a TV a cabo, talvez por seu sotaque estrangeiro, goza de mais credibilidade que a TV aberta. São pessoas incultas, dirá o leitor. Pode ser. Mas a universidade, onde por definição está a elite pensante das nações, durante décadas acreditou em Freud e Marx. Marxismo e freudismo, no Ocidente, só enganam pessoas cultas. As elites, para serem enganadas, exigem uma cobertura sofisticada para o embuste, uma espécie de chantili científico para o bolo. Para os pobres de espírito, serve deus mesmo. Ou astros. Ou borra de café. Assim, quando vejo ilustres doutores empunhando a Bíblia, Marx ou Freud, sempre me ocorre a imagem do simplório garçom de Túnis. Em sua credulidade, era um legítimo representante desta incrível raça, a humana, sempre disposta a crer no que não entende. * 13/7/2002 quarta-feira, outubro 23, 2013
PERU NO STUART Meus dias de Curitiba foram um tanto vazios. A cidade é rica, mas culturalmente pobre. A imprensa consegue ser pior que a de Florianópolis ou Porto Alegre, o que já é um feito notável. Tive no entanto grandes momentos no Stuart, junto à praça General Osório, o boteco mais antigo da cidade, que elegi para minhas leituras e charlas. Singelo, sem maiores luxos, oferece um cardápio pouco recomendável a moças: carne de onça e bagos de touro. Me ocorre uma tarde memorável. Todos os dias, o bar faz uma ou mais rifas, com 12 ou 15 números, seja de um peru ou de um coelho. Quem cantava a rifa era um garçom jovem, de voz metálica. Nossa mesa jamais havia sido premiada. Até o dia em que tomamos uma decisão radical: compramos todos os números. Não havia chance de erro: o prêmio só podia ser nosso. O garçom, sem mais cerimônias, nos trouxe o peru. Nada disso, meu caro. Queremos o ritual. Sorteio, anúncio público do número vencedor e entrega do prêmio ao felizardo. E assim foi feito. Não tinha graça alguma receber o peru sem o teatrinho. Se alguém acha que vou falar do leilão do pré-sal, vou falar mesmo. O teatro foi feito. Onde se viu leilão com um só concorrente? Leilão, dizem os dicionários, é uma venda pública de objetos, sob o pregão de um leiloeiro, em que os arremata quem oferece maior lance. As esquerdas chiaram, até mesmo contra dona Dilma: “Trabalhadores da Petrobras exigem a suspensão do leilão do campo petrolífero de Libra, o maior já descoberto no Brasil. A Presidente Dilma, que considerava a entrega do petróleo às multinacionais um crime, agora mobiliza o Exército para garantir o leilão”. Manifestantes ocuparam por oito horas a sede do Ministério de Minas e Energia, em Brasília. Os grevistas também fizeram bloqueios em rodovias, como a que dá acesso à Refinaria Duque de Caxias do Rio de Janeiro. “A decisão de leiloar o campo de Libra significa uma reviravolta em relação ao que a presidente Dilma Rousseff dizia durante a campanha eleitoral, quando atacava as privatizações de Fernando Henrique Cardoso e acusava o seu adversário José Serra de querer entregar o petróleo brasileiro às multinacionais. Para a atual presidente, isso era um crime. Hoje o discurso mudou e Dilma diz que "estes leilões vão injetar bilhões e bilhões na economia, gerando centenas de milhares de empregos". Esperava-se 40 interessados. Com muita sorte, houve um mísero consórcio, no qual a Petrobrás teve de marchar com 41% de produção. Não houve maior lance. O lance foi um só, como em nosso peru no Stuart. Na verdade, o pomposo leilão tratou-se de uma banal operação de compra e venda. As esquerdas, já há bastante tempo sem bandeiras, tomaram novo alento nas vésperas da entrega do patrimônio nacional aos pérfidos estrangeiros. Ali estava uma das boas, a defesa do petróleo ante a sanha do capitalismo internacional. Nas ditas redes de relacionamento, ressurgiu das cinzas um Tio Sam aquilino e obsoleto, estilo anos 70, pronto a pôr as garras em nosso ouro negro. As dissidências infantis do PT denunciaram a privatização do “é nosso”. Nem Tio Sam, hoje mais preocupado em extrair óleo do xisto, se interessou, nem o campo de Libra foi privatizado. Permaneceu sob controle do Estado. Que fazer quando um wishfull thinking não se realiza? A atitude mais sensata é admitir que incorremos em erro. Mas fanáticos se definem por não serem sensatos. Melhor negar a evidência. A algaravia de privatização e entrega de nossos bens ao capital alienígena continuou firme nas redes. Até hoje você encontra quem jure de pés fatos, contra os fatos teimosos, que petróleo nacional foi privatizado. Frustração total. Nem a sanha das multinacionais pôs a mão em nossos tesouros, nem o Grande Satã demonstrou interesse em nossas jazidas. Imagine o leitor se os EUA concorressem e uma empresa americana levasse Libra. Seria um tônico extraordinário por mais de década para as desmoralizadas esquerdas tupiniquins. A bicicleta precisa continuar andando. Se não, a causa cai. terça-feira, outubro 22, 2013
UMA LEI ROUANET PARA OS CAVALOS Há mais de ano, comentei mais um desses modismos que os gigolôs das angústias humanas lançam mão para enganar incautos e ganhar dinheiro, a equoterapia. Descobri então que fiz terapia desde criança e não sabia. Nasci quase em lombo de cavalo, desde pequeno os encilhei e montei. Isso quando não montava em pêlo e sem freio, prática que me fascinava. A gente vai dando tapas no pescoço do cavalo para orientá-lo e puxa as crinas para freá-lo. Claro que isso não se faz com cavalo caborteiro. Após a cavalgada, largávamos o animal no campo. Vai ver que é por isso que sou hoje um ser mentalmente tão saudável. Claro que há quem me tome por insano e julgue que necessito urgentemente de terapia. Que se vai fazer? Impossível agradar a todo mundo. Nunca imaginei que andar a cavalo constituísse terapia. Para mim, era meio de transporte, trabalho e lazer. Transporte para ir à escola ou visitar meus tios, trabalho na hora de ligar com o gado, lazer quando simplesmente saía a cavalgar ou caçar. É óbvio que uma criança urbana se sentirá muito bem, longe da cidade, montando um cavalo. Daí a ser terapia, me parece embuste dos psis. A menos que se considere que fazer algo agradável é sempre terapêutico. Para os equoterapeutas, andar a cavalo melhora até o desempenho na escola. Mais um pouco e os novos terapeutas ainda descobrem que nadar, andar de bicicleta ou praticar qualquer esporte prazeroso estimula uma criança a aprender. Equoterapia está na moda. Para quem pode pagar, é claro. Há anos venho denunciando estas vigarices, que só servem para enganar a classe média urbana. Digo classe média urbana, pois jamais enganarão um camponês, cujo filho precisa de um cavalo para ir à escola. Cavalo, no caso, não é luxo, mas meio de transporte. Há horas venho denunciando estes gigolôs das angústias humanas, que transformam em doença circunstâncias banais da existência, para delas tirarem seus rendimentos. Já há terapias para o luto, esse fato banal desde milênios na vida do ser humano, e que desde os primórdios de sua existência não precisou terapia. Também há terapia para quem muda de cidade, como se mudar de cidade – ou de país – não fosse um ato corriqueiro para milhões de pessoas. No que depender dos psis, cada cidadão deve andar com um psicólogo a tiracolo. Até mesmo a medicina séria parece ter caído no engodo. Os médicos que tratam meus tumores, seguido me perguntam se não tenho apoio psicológico. Até mesmo minha faxineira – que eu julgava imune a essas armadilhas para gente culta – já me fez a pergunta. Ora, que vai me dizer um destes senhores sobre minhas doenças? Se alguém pode me dizer algo, este alguém é o médico. Do jeito em que vão as coisas, todo doente precisará de um psicólogo ou psicanalista junto a seu médico. O que nos leva a um mistério. Como faziam os homens d’antanho - daqueles tempos em que a psicologia não se instalara ainda como ciência – para resolver esses tremendos dramas humanos, como a morte de um próximo, uma mudança de cidade, o rendimento escolar ou as crises afetivas? Mistério, profundo mistério. Mudando os queijos de bolso: desde que comecei a assinar colunas – e já lá vão quarenta anos – tenho denunciado essa farsa lucrativa que grassa no Rio Grande do Sul, o cetegismo. Em nome da preservação das tradições – tradições que não passam de ficção – espertalhões da capital têm ganho dinheiro e poder, explorando um orgulho sem base alguma. Cultivam as danças gaúchas, danças que nunca existiram, mas foram criadas por um publicitário, o Barbosa Lessa, e copiadas de danças lusas e espanholas. Cultivam um herói que nunca foi herói, mas sim um pobre diabo extraviado no campo. E tecem loas ao cavalo que, se um dia foi instrumento de trabalho do gaúcho, hoje é luxo de citadinos exibido em desfiles carnavalescos, as tais de cavalgadas. Cavalgadas rumo a quê, com que propósitos? Cavalgadas rumo ao nada, com o propósito de cultuar o que não foi. Cavalgadas existiram para conduzir gado, para viajar, para ir a festas, ao bolicho. O gaúcho nunca cavalgou para exibir pilchas. Que, a propósito, custam os olhos da cara. É preciso ter muita plata, hoje, para vestir-se como os cetegistas acham que o gaúcho se vestia. Em meio a isso, leio que uma nova vigarice está sendo montada, para usar o cavalo não para cavalgar, mas para meter a mão no bolso do contribuinte. Está pronto para ser votado na assembléia legislativa do Rio Grande do Sul o projeto que torna a cavalgada patrimônio cultural do Estado. Ora, se locomoção é patrimônio cultural, alpargatas mereciam um monumento. Diz o Projeto 312/2012, que tenta regulamentar a relação do gaúcho com o cavalo, assim como já foi ridiculamente regulamentada a indumentária do gaúcho. O assalto ao contribuinte, que parece ser algo hoje tão natural que nem precisa ser escondido, já está no primeiro parágrafo do projeto: — Pela proposta, eventos equestres passam a ser práticas desportivas e culturais, podendo captar recursos públicos para suas realizações. Temos agora uma lei Rouanet para cavalos. Os bravos cetegistas querem subsídios para suas fanfarronadas. E obrigam as prefeituras a limpar o lixo gerado pelos animais: “ Exige que prefeituras organizem o trânsito e garantam a limpeza das vias imediatamente após a passagem dos animais”. E ainda gera uns empreguinhos colaterais: “ Impede também que eventos com mais de cem cavalos ou percurso superior a 40 quilômetros sejam realizados sem a presença de um veterinário”. Velha tradição da Revolução Farroupilha, cujos combatentes sempre se precaviam de levar um veterinário em seus combates. Pouca vergonha. O contribuinte está tão amortecido que já nem protesta quando vigaristas querem transformar em texto legal o assalto a seus bolsos. Sem dúvida a lei vai passar, afinal orgulho sempre rende votos. segunda-feira, outubro 21, 2013
AS TRÊS VIAS DE ACESSO * Após ler minha crônica sobre os cavacos do ofício do jornalismo, uma amiga me pergunta porque não estou lecionando numa universidade. Coincidentemente, a resposta está no artigo de Cláudio de Moura Castro, na Veja da semana passada: “Na UFRJ, um aluno brilhante de física foi mandado para o MIT antes de completar sua graduação. Lá chegando, foi guindado diretamente ao doutorado. Com seu reluzente Ph.D., ele voltou ao Brasil. Mas sua candidatura a professor foi recusada pela UFRJ, pois ele não tinha diploma de graduação. Luiz Laboriou foi um eminente botânico brasileiro, com Ph.D. pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Mas não pôde ensinar na USP, pois não tinha graduação”. Estas peripécias, eu as conheço de perto. Começo pelo início. Nunca me ocorreu lecionar na universidade. Eu voltara da Suécia, cronicava em Porto Alegre e fui tomado pela resfeber, doença nórdica que contraí na Escandinávia. Traduzindo: febre de viagens. Li nos jornais que estavam abertas inscrições para bolsas na França e me ocorreu passar alguns anos em Paris. A condição era desenvolver uma tese? Tudo bem. Paris vale bem uma tese. Tese em que área? Busquei algo que me agradasse. Na época, me fascinava a literatura de Ernesto Sábato. Vamos então a Paris estudar Sábato. Mas eu não tinha o curso de Letras. O cônsul francês, ao me encontrar na rua, perguntou-me se eu não podia postular algo em outra área. Em Direito havia mais oferta de bolsas. Poder, podia. Eu cursara Direito. Mas do Direito só queria distância. Mantive minha postulação em Letras. Para minha surpresa, recebi a bolsa. A França me aceitava, em função de meu currículo, para um mestrado em Letras, curso que eu jamais havia feito. Nenhuma universidade brasileira teria essa abertura. Aliás, os componentes brasileiros da comissão franco-brasileira que examinava as candidaturas, tentaram barrar a minha. Fui salvo pelos franceses. Fui, vi e fiz. Em função de meu currículo, aceito para mestrado, fui guindado diretamente ao doutorado. Tive o mesmo reconhecimento que o aluno do MIT. Acabei defendendo tese em Letras Francesas e Comparadas. Menção: Très bien. Não me movera nenhuma pretensão acadêmica, apenas o desejo de curtir Paris, suas ruelas, vinhos, queijos e mulheres. A tese não passou de diletantismo. De Paris, eu escrevia diariamente uma crônica para a Folha da Manhã, de Porto Alegre. Salário mais bolsa me propiciaram belos dias na França. Foi quando minha empresa faliu. Conversando com colegas, fiquei sabendo que um doutorado servia para lecionar. Voltei e enviei meu currículo para três universidades. Sei lá que loucura me havia acometido na época: um dos currículos enviei para o curso de Letras da Universidade de Brasília. Fui a Brasília acompanhar meu currículo. Procurei o chefe do Departamento de Letras. Ele me cobriu de elogios, o que só ativou meu sistema de alarme. Que minha tese era brilhante, que meu currículo era excelente, que era um jovem doutor com um futuro pela frente. Etc. Mas... eu tinha apenas os cursos de Direito e Filosofia, não tinha o de Letras. Me sugeria enviar meu currículo ao Departamento de Filosofia, já que a tese tinha alguns componentes filosóficos. Ingênuo, fui até o Departamento de Filosofia. O coordenador me recebeu muito bem, analisou minha tese, cobriu-a de elogios. Mas... eu não tinha o Doutorado em Filosofia. Apenas o curso. Considerando o grande número de artigos publicados em jornal, sugeria que eu fosse ao Departamento de Comunicações. Besta atroz, fui até lá. O coordenador considerou que meu currículo como jornalista era excelente. Mas... eu não tinha o Curso de Jornalismo. Na Universidade Federal de Santa Catarina abriu um concurso para professor de Francês. Já que eu era Doutor em Letras Francesas, me pareceu que a ocasião era aquela. Duas vagas, dois candidatos. Fui solenemente reprovado. Uma das alegações foi que eu falava francês como um parisiense, e a universidade não precisava disso. A outra, e decisiva, era a de que eu tinha doutorado em Letras Francesas, mas não tinha curso de Letras. Já estava desistindo de procurar emprego na área, quando fui convidado para lecionar Literatura Brasileira, na mesma UFSC que me recusara como professor de francês. Convidado como professor visitante, o que dispensa concurso. Mas o contrato é por prazo determinado, dois anos. O curso precisava de doutores para orientar teses e eu estava ali por perto, doutor fresquinho, recém-titulado e livre de laços com outra universidade. Fui contratado. Acabei lecionando quatro anos, na graduação e pós-graduação. Findo meu contrato, foi aberto um concurso para professor de Literatura Brasileira. Me inscrevi imediatamente. Uma vaga, um candidato. Me pareceram favas contadas. Ledo engano. Eu não tinha o curso de Letras. Fui de novo solenemente reprovado. Não tinha graduação em Letras. Na mesma época, abriu um concurso na mesma universidade para professor de espanhol. Ora, eu já havia traduzido doze obras dos melhores autores da América Latina e Espanha (Borges, Sábato, Bioy Casares, Robert Arlt, José Donoso, Camilo José Cela). Vou tentar, pensei. Tentei. Na banca, não havia um só professor que tivesse doutorado. Pelo que me consta, jamais haviam traduzido nem mesmo bula de remédio. Mais ainda: não tinham uma linha sequer publicada. Novamente reprovado. Minhas traduções poderiam ser brilhantes. Mas eu jamais havia feito um curso de espanhol. Melhor voltar ao jornalismo. Foi o que fiz. Anos mais tarde, já em São Paulo, por duas vezes fui convidado para participar de uma banca na Universidade Federal de São Carlos, pelo professor Deonísio da Silva, então chefe de Departamento do Curso de Letras. Uma das bancas era para escolher uma professora de Literatura Espanhola, outra uma professora de Literatura Brasileira. Deonísio sugeriu-me participar, como candidato, de um futuro concurso. Impossível, eu não tinha o curso de Letras. Quanto a julgar a candidatura de um professor de Letras, isto me era plenamente permissível. Por estas e por outras – e as outras são também importantes, mas agora não interessam – não estou lecionando. Diz a lenda que na universidade da Basiléia havia um dístico no pórtico, indicando as três vias de acesso à universidade: per bucam, per anum, per vaginam. Lenda ou não, o dístico é emblemático. A universidade brasileira, particularmente, é visceralmente endogâmica. Professores se acasalam com professoras e geram professorinhos e para estes sempre se encontra um jeito de integrá-los a universidade. A maior parte dos concursos são farsas com cartas marcadas. Pelo menos na área humanística. As exceções ocorrem na área tecnológica, onde muitas vezes a guilda não tem um membro com capacitação mínima para proteger. Contou-me uma professora da Universidade de Brasília: “eu tive muita sorte, os dez pontos da prova oral coincidiam com os dez capítulos de minha tese”. O marido dela era um dos componentes da banca. A ingênua atroz – ou talvez cínica – falava de coincidência. Na universidade brasileira, nem um Cervantes seria aceito como professor de Letras, afinal só teria em seu currículo o ofício de soldado e coletor de impostos. Um Platão seria barrado no magistério de Filosofia e um Albert Camus jamais teria acesso a um curso de Jornalismo. No fundo, a universidade ainda vive no tempo das guildas medievais, que cercavam as profissões como quem cerca um couto de caça privado. Na Espanha e na França, desde há muito se discute publicamente a endogamia universitária. Aqui, nem um pio sobre o assunto. E ainda há quem se queixe quando os melhores cérebros nacionais buscam reconhecimento no Exterior. * – Me escreve Jorge Brum: Prezado Janer, após ler o seu artigo "a mais confortável entre as corrupções", teria a acrescentar mais uma prática usual dentro das universidades públicas, só passa no concurso quem eles querem por lá dentro, na verdade o concurso é pró-forma, se não for a pessoa que eles querem por no "departamento", darão um jeito de tirar alguns "pontos" no currículo, só passa no concurso o professor que tiver a "mesma linha de pensamento" do "chefe" do departamento. Também tem as bancas de doutorado, onde os professores avaliadores da banca são amigos (as) do candidato (a) ao título de doutor, um verdadeiro chá das cinco entre comadres!! As teses são as mais estapafúrdias teorizando literalmente sobre a rebimboca da parafuseta. Tem alunos que fazem a faculdade, e em seguida já fazem mestrado e doutorado e prestam o "concurso" e se tornam professores. E a experiência profissional? Não precisa, basta ser amigo das pessoas certas, para estar confortavelmente em um emprego público, com aposentadoria integral vitalícia... experiência profissional? É para os trouxas que ralam na iniciativa privada. Meu caro Brum: conheço de perto o problema. Segue artigo que publiquei há sete anos, em junho de 2006. domingo, outubro 20, 2013
SÃO PAULO CHAMA Ainda há pouco, um leitor queria saber por que não fiquei vivendo na Europa. Expus minhas razões. Um outro leitor quer saber porque escolhi para viver a caótica São Paulo. Pela mesma razão que traz tanta gente aqui: trabalho. Em Porto Alegre, a empresa em que trabalhava, a Caldas Júnior, fora à falência enquanto eu estudava e cronicava de Paris. Fui trabalhar na universidade, em Florianópolis. Ejetado após quatro anos de magistério – e felizmente ejetado, pois a ilha é um breve contra a cultura – fui para Curitiba. Nada encontrando em Curitiba, fiz concurso para redator de Internacional na Folha de São Paulo. Trabalhei depois no Estadão e acabei voltando à Folha. De capital em capital fui subindo, sempre rumo ao trabalho, sempre rumo ao norte. E cá estou, 23 anos depois. São Paulo chama. Cá está o maior número de empregos do país, os melhores salários. É a cidade que tem o maior número de editoras, de livrarias e de salas de cinema. A redação de qualquer jornal é uma mostragem do país todo. Se você mora em bairro bom e não longe do trabalho, a cidade pode ser aprazível. Com a Veja desta semana, veio junto um suplemento com os melhores – e apenas os melhores – bares e restaurantes da cidade. São cerca de 400 páginas. De tédio não se morre. Minha primeira imagem à Paulicéia foi em 61, quando eu vinha para um congresso estudantil em Campinas. Eu passava de ônibus pela marginal do Tietê. Não adiantava fechar a janela, o mau cheiro atravessava o vidro. Olhei para o rio. Dois atletas faziam regata tranqüilamente em meio às águas podres. Pensei com meus botões: esta gente se acostuma a tudo, até mesmo ao fedor de um rio poluído. Jamais me acostumarei a isto. Jamais viverei em São Paulo. Santa ingenuidade, que relego ao rol de bobagens que um jovem costuma dizer. O Brasil não tem respeito algum por suas águas. Enquanto na Europa os rios são componentes do lazer urbano, para nós constituem depósitos de lixo. Em Paris, o Sena faz a alegria da cidade. Em Londres, este papel é desempenhado pelo Tamisa. Já foram rios poluídos, mas tanto britânicos como franceses tiveram o bom senso de recuperá-los. Em 2000, passei um sábado delicioso às margens do Limmat, em Zurique. O bar se chamava Panta Rei, o que me evocou Heráclito. Me lembrei muito de São Paulo naquele sábado. O rio, que atravessava a cidade, era cristalino, podia-se ver uma moedinha jogada em seu leito. Lá pelas tantas, alguém desceu a rampa e passou uma boa hora nadando. Nadar em um rio que atravessa o centro de uma cidade, para mim, egresso de Porto Alegre e São Paulo, pareceu-me utopia. Não era. Estou aqui há mais de duas décadas. Daqui não sairei nem de pés juntos, já determinei que meus restos serão cremados no cemitério da Vila Alpina. É a cidade onde vivi mais tempo em minha vida. Abstraí o Tietê. Só o vejo quando vou ou volto de viagem. Durante muitos anos, assim assinei minha coluna: Janer é jornalista e sofre São Paulo. Foi quando um leitor chamou-me a atenção. “Escuta, pelo que conheço de teu perfil, São Paulo é a cidade que melhor se adapta a ti no Brasil”. O leitor tinha razão. Eliminei o bordão de minhas colunas. É que eu via São Paulo como um todo. Em sua totalidade, a cidade é monstruosa, um emaranhado de favelas e bairros pobres, com algumas ilhas viáveis. Tomei então uma decisão intelectual: eu não vivo em São Paulo. Eu vivo em Higienópolis. Aí minha vida se tornou mais amena. O bairro não é nenhum Saint-Germain-de-Prés, mais on peut survivre, como me dizia um amigo francês. Meus dias, eu os vivo nesta pequena geografia, muito menor que a geografia de Dom Pedrito. Não gosto de cidades verticais. Mas, enfim, tudo bem. É aqui onde está a maior parte de meus amigos e isto vale muito. Quando sinto necessidade de cafés mais sofisticados, comida diferente, outras arquiteturas, tiro o pó do passaporte e parto. O espaço que utilizo nesta megalópole é bastante curto, não passa de uns seis quilômetros. É a distância que me separa de Vila Madalena, onde às vezes vou almoçar. No meio do caminho estão Pinheiros e Jardins, que também visito, impelido pelo desejo de bons vinhos e boa comida. Acho que só uma vez em meus dias de Paulicéia fui mais longe. Foi quando fui ao Itaim Bibi em busca de um smörgåsbord em um restaurante escandinavo. Fora isto, nada mais conheço de São Paulo. Conheço melhor Paris e Madri, onde vivi muito menos tempo. Há outros bairros interessantes. Mas ficam muito longe de meu chão. Se é para ir longe, prefiro começar por Cumbica. São Paulo tem suas vantagens. A melhor delas: estando aqui, você não precisa fazer escala para ir a Paris. Como disse alguém, fica pertinho do Brasil, não é preciso visto de entrada e todo mundo fala português. Voltando às regatas: hoje ainda, às vezes se vê paulistanos remando em meio ao pútrido. Eu, como não remo, não tenho maiores dificuldades em assumir a cidade. sábado, outubro 19, 2013
A MAIS CONFORTÁVEL ENTRE AS CORRUPÇÕES Você já ouviu falar em corrupção universitária, estas duas palavras juntas? Se ouviu, provavelmente é porque leu este blog. Ponha as duas palavras entre aspas no Google. Verá que inexistem na grande imprensa. A mais confortável corrupção hoje – costumo afirmar – é a corrupção universitária. Muito mais ampla e mais permanente que a corrupção no Congresso. Os coitadinhos dos deputados e senadores são denunciados por levar mulheres, amantes e prostitutas para uma ou duas semaninhas no Exterior. Bolsista do CNPq ou Capes fica quatro ou cinco anos nas mais prestigiosas capitais do Ocidente. Se voltar de mãos vazias, tudo bem. Se você tem vocação para a corrupção, deixe de lado a política. Os jornalistas caem em cima. Universidade é muito melhor. Jornalista algum denuncia a universidade. Ainda há pouco eu falava do artigo publicado na Science Magazine, no qual o americano John Bohannon mostra o que aconteceu quando ele enviou para 304 revistas científicas um artigo sem pé nem cabeça: 157 delas aceitaram. O trabalho de Bohannon, assinado por um fictício autor de nome estapafúrdio - Ocorrafoo Cobange -, versava sobre uma molécula que, extraída de um líquen (simbiose de alga e um fungo como o cogumelo), teria o superpoder de combater o câncer. Não bastasse o autor ser inexistente, sua universidade também está para ser encontrada no mundo real: o Wassee Institute of Medicine, sediado em Asmara, é produto da imaginação de Bohannon. - De um início modesto e idealista uma década atrás, revistas científicas de acesso aberto se expandiram a uma indústria global, movida por taxas para publicação em vez de inscrições tradicionais - afirma Bohannon. Escreve um amigo universitário: “É isto aí mesmo. Boa parte dos periódicos internacionais, em especial a Elsevier cobram e CARO para ter um artigo publicado. Cito dois periódicos: Computers & Education e Computers in Human Behavior. Em ambas, o custo é de US$ 1.800. Já avisei para meus alunos economizarem pois quando tivermos o valor, vamos submeter para lá. Detalhe: A primeira tem uma característica interessante: os artigos aceitos tem revisões bibliográficas bastante extensas e amplas, só que na hora de o cidadão mostrar o que fez, as vezes é um estudo maravilhoso sobre a importância do uso do PowerPoint em sala de aula”. No fundo, é a universidade que impele professores sem produção científica objetiva a publicar artigos para aumentar o currículo. A “produção” do professor é medida pelo número de citações nessas revistas. Conversando com acadêmicos, eu falava de um outro truque, artigos assinados por dois ou três professores, o que duplica e mesmo triplica as produções de todos. Santa ingenuidade a minha. Um amigo da UFSC me conta que a pressão por “papers” é cada vez maior e há artigos assinados por onze ou doze “cientistas”. No Estadão de hoje, Fernando Reinach traduz artigo da Nature, no qual são denunciadas outras práticas da universidade brasileira. Reproduzo a tradução: “Com profissionalização da ciência foram criados mecanismos para acompanhar o progresso de cientistas do grupo "ainda não descobri nada". A solução foi a publicação e avaliação de resultados parciais, os trabalhos científicos. Neles os cientistas descrevem os progressos que obtêm ao longo da vida. É uma forma de prestar contas do trabalho em andamento. No século XIX a obra de uma vida consistia em um punhado de livros. Hoje um jovem que ainda não descobriu nada relevante possui em seu currículo dezenas de trabalhos científicos, cada um descrevendo uma micro-descoberta”. Como o estudo maravilhoso sobre a importância do uso do Power Point em sala de aula – acrescentaria eu. “A avaliação é feita de maneira quantitativa, com base no número de citações. Se um trabalho é citado na bibliografia de muitos trabalhos de outros cientistas, ele é considerado bom. Se o trabalho é pouco citado, ele é pior. Com base na quantidade de trabalhos publicados e as citações recebidas, é calculado um índice da qualidade do cientista (você pode verificar o índice dos seus conhecidos no Google Scholar), utilizado para decidir quem merece financiamento, quem deve ser contratado ou promovido. Esse critério numérico provoca distorções como o fracionamento de cada pequena descoberta em um número maior de trabalhos”. “Esse mecanismo criou um incentivo para os editores tentarem aumentar o fator de impacto de suas revistas. Foi com esse propósito que os editores de quatro revistas científicas médicas brasileiras formaram sua pequena quadrilha. Os editores da Revista da Associação Médica Brasileira, da Clinics, do Jornal Brasileiro de Pneumologia e da Acta Ortopédica Brasileira, todos ligados aos melhores hospitais e universidades brasileiras, tiveram uma ideia. Cada uma das quatro revistas publicaria uma série de artigos nos quais seriam citados um grande número de artigos publicados nas outras três revistas. Os artigos foram encomendados e publicados. “Os editores imaginaram que, com o aumento de citações recebidas pelas revistas, o índice de impacto seria aumentado no sistema de classificação da Thomson Reuters, que apura e publica o índice de impacto de todas as revistas científicas. Ao cruzarem os dados, os computadores da Thomson Reuters descobriram a anomalia e desmascararam a artimanha do grupo. Um dos editores confessou a trapaça”. Isto é ilegal? Não é. Mas é trapaça. É a corrupção perfeitamente legal, área na qual a universidade brasileira excele. Outra é a endogamia universitária. Vá de novo ao Google, ponha entre aspas as duas palavrinhas. Só encontrará a expressão nos jornais da Espanha ou Portugal. No Brasil, só em blogs. No entanto, é a corrupção que mais grassa na universidade nossa. Professores casam com professoras e geram professorinhos. Em uma banca de concurso, um jurado jamais reprovará o filho de um colega. Pois depois vem o rebote. Mais dia menos dia o professor que reprovou quer fazer turismo universitário em Paris ou Londres. E verá o quanto dói uma saudade. Assim, entende-se que tais denúncias só surjam no Exterior. Acadêmico nenhum vai denunciar as falcatruas das quais se beneficia. Não tenha dúvidas: a mais confortável corrupção é a universitária. sexta-feira, outubro 18, 2013
INVASÃO DE PRIVACIDADE? ONDE? Não passa dia sem que alguém se queixe da invasão de privacidade das ditas redes sociais e, particularmente, do Google. Escreve Joe Nocera, no New York Times: “Graças a Edward Snowden, sabemos que a Agência Nacional de Segurança (NSA) tem capacidade para ler nossos e-mails e ouvir nossos telefonemas. Google nos exibe anúncios com base nas palavras que usamos e em nossas contas do Gmail. Na semana passada, o Facebook, que tem, no conceito orwelliano, um diretor executivo de privacidade - eliminou uma ferramenta de confidencialidade para que qualquer usuário da rede social possa buscar qualquer outro usuário. No dia seguinte, Google anunciou um plano que lhe permitirá utilizar palavras e imagens dos usuários em anúncios de produtos que eles apreciam - informações que Google conhece porque, bem, Google sabe tudo”. Tais temores, a meu ver, são preocupações de quem quer posar de defensor da privacidade alheia. Se posto algo numa rede que é pública, é óbvio que quero que isto seja conhecido e divulgado. Por tais razões, posto estas crônicas no Facebook, e me sinto muito contente que elas possam ser acessadas pelo número máximo de pessoas. Se postamos fotos, é pela mesma razão. Claro que não vou postar fotos íntimas, aliás não tenho foto íntima alguma para postar. Jamais fotografei meus momentos de privacidade. Se alguém publica tais fotos nas redes públicas, é claro que deseja expô-las a todo mundo. Nocera denuncia também o uso de imagens dos usuários em anúncios de produtos que eles apreciam. Em maio do ano passado, as ações do Facebook estrearam na Nasdaq, bolsa de valores de empresas de tecnologia em Nova York, operando em alta. Minutos após a abertura dos negócios, os papéis, negociados com o símbolo FB, subiam 12%, a US$ 43 – o valor previsto inicialmente era de US$ 38. Houve um atraso de pouco mais de 30 minutos para o início das vendas dos papéis. Logo após a abertura, a companhia já era avaliada em US$ 117,82 bilhões. Confesso que até hoje não entendi o fato de que o Facebook valha US$ 117,82 bilhões. Como pode valer tudo isso aquela pagininha onde posto estas crônicas e eventualmente converso com amigos? O valor do Facebook – me informam pessoas mais atiladas – está no volume imenso de informações que reúne sobre seus membros. Assim sendo, a publicidade pode ser dirigida a segmentos específicos, que tendem a interessar-se pelos produtos anunciados. Que publicidade? – me pergunto. Nunca vi publicidade no Facebook. Perplexos, meus informantes sugeriram que eu dê uma olhadela na coluna à direita da página. Foi o que fiz. Para minha surpresa, lá estavam os anúncios. Sou totalmente refratário ao mundo da publicidade. Abomino toda e qualquer propaganda. Tenho um olhar seletivo. Um jornal pode anunciar um produto qualquer em página inteira e eu não o enxergo. Aconteceu há alguns anos. Eu lia um jornal em um café e fui abordado por uma marqueteira. Queria saber se eu havia visto algum anúncio das casas Bahia. Respondi que não. Ela pegou o jornal e mostrou-me. Havia seis anúncios das tais de casas, de página inteira e de meia página. Eu não havia visto nenhum. Se disser que jamais comprei algo em função da publicidade, acho que não estou afirmando uma inverdade. Tenho, obviamente, eletrodomésticos em casa. Mas porque necessários. Se alguém me perguntar qual a marca de qualquer apetrecho que tenho na cozinha, vou ter de ir lá e conferir. Ao descobrir – ó milagre! – que havia propaganda no lado direito da página, passei a lê-la, questão de curiosidade. Pelo jeito, o Zuckerberg não reuniu suficientes informações a meu respeito. Nada do que me oferece me interessa. Me sugere viagens. Mas para mim não adianta sugerir viagens, sou eu que decido viajar, como viajar e para onde viajar. Me oferece gadgets eletrônicos. Merci de tout, o que tenho em casa já me basta. Até que ando vagamente tentado por um desses objetos de desejo, os smartphones, mas até agora não consegui descobrir para que me serviriam. Carros? Não me interessam. Nenhum de meus ancestrais teve carro, e não pretendo romper com a tradição. Cursos? Não tenho mais idade para cursos e adoro o autodidatismo. Isso sem falar que estou sempre cursando alguma disciplina, entre minhas quatro paredes. Disfunção erétil? Quando chegar a hora, procuro um médico. Planos de saúde? Se nesta altura da vida não tivesse um, talvez não estivesse escrevendo aqui. Jamais comprei algo em função da publicidade e não seria agora que compraria em função do Facebook. Nos bilhões que vale o Facebook na bolsa não há um centavo sequer de meu bolso. A fortuna de Zuckerberg, a meu ver, depende da humana indigência. Outro dia, até que o Facebook ofereceu algo que poderia interessar-me, o Anti-Celso, de Orígenes. Mas assim também não vale. Eu havia divulgado o livro em meu blog. Nunca falta, em tais denúncias, paralelos ao 1984, de Orwell. Não são pertinentes. Na distopia orwelliana, os cidadãos são controlados para a manutenção do poder de uma casta dirigente. No Facebook, se são utilizados, o intuito é publicitário. Se gosto de um produto e declaro isso publicamente, é porque o recomendo. É o que faço com livros, filmes e óperas que me fascinam. Publicidade é a essência do capitalismo. Ou alguém acha que vivemos em um sistema socialista? Denunciar invasão de privacidade no Google ou Facebook é falta de assunto. Quem vai à chuva é para se molhar. Se você expõe publicamente seus dados, seus amigos, sua vida sexual, não pode queixar-se de que tais dados sejam vistos por qualquer um. Se a NSA, ou qualquer agência de informação, quiser ler meus e-mails ou ouvir meus telefonemas, que estejam a gosto. Desde que não mexam em minhas senhas bancárias, nada tenho a objetar. De minha parte, há muitas relações em minha vida que não torno públicas para não invadir a privacidade de terceiros. Se as exponho, é porque tenho permissão de expô-las. Em vez de temer o Facebook, sou muito grato, pois graças a esta rede reencontrei amigos de minha infância e até parentes extraviados pelo vasto mundo. A denúncia de Nocera é denúncia vazia de um neoludita, que parece não ter entendido o mundo em que vive. Ou que julga que cada cidadão não tem capacidade de defender-se da publicidade. É imenso o número de pessoas que dela não consegue escapar. Mas isto não é culpa das redes sociais. Depende do bestunto de cada um. quinta-feira, outubro 17, 2013
CAI MÁSCARA DOS CAETANOS E CHICOS Alguém ainda lembra dos dias em que comunistas, petistas e artistas bradavam contra a ditadura e pediam liberdade de expressão e pensamento? Eu me lembro, não faz ainda meio século. Boa parte dos defensores da liberdade ainda vive e se faz presente nas discussões do país. Só que o discurso mudou. Agora pedem proibição da livre expressão e do pensamento. Começaram com o jornalismo. Em 69, os militares regulamentaram a profissão de jornalismo, ofício que em país algum do mundo civilizado é regulamentado. As esquerdas, que sempre condenaram os militares, assumiram com entusiasmo o decreto da ditadura. Afinal, serve para controlar a liberdade de expressão e pensamento. Então é salutar, digno e justo. Continuaram tentando censurar a História. Ano passado, foi apresentado no Congresso projeto de lei do senador Paulo Paim pretendendo regulamentar a profissão de historiador. No que dependesse do senador petista, Heródoto não teria escrito suas Histórias. Não tinha diploma. Ernesto Renan teria exercido ilegalmente a profissão, ao escrever os sete volumes de sua colossal história do cristianismo, mais outros tantos da história do judaísmo. No Brasil, um dos mais prolíficos estudiosos de nossa história, cuja obra é fundamental para o entendimento do ciclo de Vargas, era médico por formação. Especialização? Proctologia. Pelo projeto aprovado - escrevi então - proctologistas não devem meter o dedo na História. De certa forma, estão proibidas as biografias – comentei na época. Biografia é história e biógrafos, de modo geral, não têm diploma de história. Aliás, ser biógrafo já é profissão censurada no Brasil, este país incrível onde uma biografia depende da anuência do biografado e de seus descendentes. Recentemente, a biografia de Lampião foi censurada, a pedido de Expedita Ferreira, sua filha. Em novembro de 1911, Aldo Albuquerque, juiz da 7ª Vara Cível de Aracaju, expediu uma liminar suspendendo a publicação do livro Lampião mata sete, no qual o juiz aposentado Pedro de Morais defende a tese de que Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Rei do Cangaço, seria homossexual. A moda surgiu em 1995, com o recolhimento da biografia de Mané Garrincha. A motivação foi ridícula. Segundo Ruy Castro, o autor de Estrela Solitária, o atleta teria um vigor sexual raro e 25 cm de pênis. Segundo reportagem da Istoé, as filhas de Garrincha processaram o autor e a editora Companhia das Letras por danos morais. Venceram em primeira instância, mas viram a decisão ser revertida na segunda instância por um voto recheado de referências ousadas à anatomia de Mané, escrito pelo desembargador carioca João Wehbi Dib. “As asseverações de possuir um órgão sexual de 25 centímetros e de ser uma máquina de fazer sexo, antes de ser ofensivas, são elogiosas, malgrado custa crer que um alcoolista tenha tanta potência sexual. Contudo, tamanho e potência não se confundem. O sonho dos brasileiros é ter os dois”, afirmou, no voto seguido pelos outros dois colegas. Agora, são os bravos artistas que denunciavam a censura pós-64 que hoje advogam a censura dos relatos sobre suas vidas. De lá para cá, foram barrados na justiça uma biografia de Roberto Carlos e o livro lançado por Guilherme de Pádua sobre Daniella Perez. Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano Veloso e presidente do grupo Procure Saber - que reúne ela, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Chico Buarque, Djavan e Erasmo Carlos – estão pedindo nada mais menos que a censura de biografias, caso os biografados não concordem com o que o biógrafo escreveu. A ex alega a defesa do ser humano e do direito à privacidade. - A gente está num conflito de gigantes, estamos num conflito de dois direitos fundamentais, de liberdade de expressão e da privacidade. Mas sobre direito à privacidade ninguém quer falar - disse Paula. - A gente está discutindo o ser humano. Ora, privacidade é algo relativo quando se trata de pessoas públicas. Seria invadir a privacidade de Hitler revelar que ele possuía um só testículo? Ou que Stalin tinha um defeito no braço esquerdo? Enfim, isto é o de menos. Testículo ou braço pouco importam no caso destes senhores. A pergunta é outra: caso um biógrafo atribuísse a estes tiranos as montanhas de cadáveres pelas quais foram responsáveis, teriam eles o direito de proibi-las? A primeira biografia não-autorizada de Stalin só surgiu na França, em 1939, feita por Boris Souvarine. Que aliás era comunista. Stalin, ao que tudo indica, foi o precursor dos caetanos e chicos da vida. Ou, voltando ao debate pátrio: poderiam os descendentes de Emílio Médici – ou de qualquer dos generais-presidentes – proibir uma biografia destes militares, por julgar sua honra ofendida caso trate das torturas sob seus governos? Ou, mais prosaicamente: se alguém quiser escrever uma biografia de Marcola ou Fernandinho Beira-Mar, podem estes senhores proibi-las caso julguem ter tido suas privacidades invadidas com o relato de seus crimes? Nossos artistas – aqueles que eram contra a censura quando eram censurados - se baseiam nos artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro, de 2002. O artigo 20 determina que o uso da imagem de uma pessoa pode ser proibido ou gerar a "indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais". Já o artigo 21, dispõe que "a vida privada da pessoa natural é inviolável". Já a Constituição, em seu artigo 5º, inciso IX, reza: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. O que vale mais, lei maior ou lei menor? A Constituição é de 88. O artigo 20 do Código Civil passou a viger em 2003. Independentemente de legislação, o que os “artistas” querem é proibir a revelação de fatos que lhes sejam desabonatórios. Estes fatos podem ser verdadeiros ou não. Caso verdadeiros, ocultá-los é falsificar a História. Se são falsos, é simples: os prejudicados podem recorrer ao Código Penal, que tipifica os crimes de calúnia ou difamação. A proibição de biografias traz em seu bojo uma ameaça maior, a liberdade de escrever história, alvo do projeto do senador Paim. Se Lula um dia inventar que ter seu nome associado ao mensalão é atingir sua honra, a história presente do Brasil não poderá ser escrita com fidelidade. Qualquer alusão a um personagem público, em um ensaio, passará a depender da anuência do fulano. Ou seja, fazer história, no Brasil, será inviável. Leio nos jornais que Caetano, aproveitando embalo da revolução que não houve, a de 68, andou gravando uma canção: é proibido proibir. Pelo jeito, era. A polêmica tem sua utilidade: caiu a máscara dos defensores incondicionais da liberdade de expressão. quarta-feira, outubro 16, 2013
COINCIDÊNCIAS DEMAIS Via Wikipedia, recebo de um leitor compilação de mitos anteriores ao nascimento de Cristo. Tamuz: Deus da Suméria e Fenícia, morreu com uma chaga no flanco e, três dias depois, levantou-se do túmulo e o deixou vazio com a pedra que o fechava a um lado. Belém era o centro do culto a Tamuz. Hórus - 3000 a.C.: Deus egípcio do Céu, do Sol e da Lua; Nasceu de Isis, de forma milagrosa, sem envolvimento sexual; Seu nascimento é comemorado em 25 de dezembro; Ressuscitou um homem de nome EL-AZAR-US; Um de seus títulos é "Krst" ou "Karast"; Lutou durante 40 dias no deserto contra as tentações de Set (divindade comparada a Satã); Batizado com água por Anup; Representado por uma cruz; A trindade Atom (o pai), Hórus (o filho) e Rá (comparado ao Espírito Santo). Mitra - séc. I a.C.: Originalmente um deus persa, mas foi adotado pelos romanos e convertido em deus Sol; Intermediário entre Ormuzd (Deus-Pai) e o homem; Seu nascimento é comemorado em 25 de dezembro; Nasceu de forma milagrosa, sem envolvimento sexual; Pastores vieram adorá-lo, com presentes como ouro e incenso; Viria livrar o mundo do seu irmão maligno, Ariman; Era considerado um professor e um grande mestre viajante; Era identificado com o leão e o cordeiro; Seu dia sagrado era domingo ("Sunday"), "Dia do Sol", centenas de anos antes de Cristo; Tinha sua festa no período que se tornou mais tarde a Páscoa cristã; Teve doze companheiros ou discípulos; Executava milagres; Foi enterrado em um túmulo e após três dias levantou-se outra vez; Sua ressurreição era comemorada cada ano. Átis (Frígia / Roma) - 1200 a.C.: Nasceu dia 25 de dezembro; Nasceu de uma virgem; Foi crucificado, morreu e foi enterrado; Ressuscitou no terceiro dia. Buda - séc. V a.C.: Sua missão de salvador do mundo foi profetizada quando ele ainda era um bebê; Por volta dos 30 anos inicia sua vida espiritual; Foi impiedosamente tentado pelas forças do mal enquanto jejuava; Caminhou sobre as águas (Anguttara Nikaya 3:60); Ensinava por meio de parábolas, inclusive uma sobre um "filho pródigo"; A partir de um pão alimentou 500 discípulos, e ainda sobrou (Jataka); Transfigurou-se em frente aos discípulos, com luz saindo de seu corpo; Após sua morte, ressuscitou (apenas na tradição chinesa). Baco / Dionísio - séc. II a.C.: Deus greco-romano do vinho; Nascido da virgem Sémele (que foi fecundada por Zeus); Quando criança, quiseram matá-lo; Fez milagres, como a transformação da água em vinho e a multiplicação dos peixes; Após a morte, ressuscitou; Era chamado de "Filho pródigo" de Zeus. Hércules - séc. II a.C.: Nascido da virgem Alcmena, que foi fecundada por Zeus; Seu nascimento é comemorado em 25 de dezembro; Foi impiedosamente tentado pelas forças do mal (Hera, a ciumenta esposa de Zeus); A causadora de sua morte (sua esposa) se arrepende e se mata enforcada. Estão presentes no momento de sua morte sua mãe e seu discípulo mais amado (Hylas); Sua morte é acompanhada por um terremoto e um eclipse do Sol; Após sua morte, ressuscitou, ascendendo aos céus. Krishna - 3228 a.C.: Trata-se de um avatar do Deus Vishnu – um avatar é como se fosse a personificação ou encarnação de um deus; Nasceu no dia 25 de dezembro; Nasceu de uma virgem, Devaki ("Divina"); Uma estrela avisou a sua chegada; É a segunda pessoa da trindade; Foi perseguido por um tirano que requisitou o massacre dos milhares dos infantes; Fez milagres; Em algumas tradições morreu em uma árvore; Após morrer, ressuscitou. Mães virgens demais, ressurreições demais, 25 de dezembro demais. Coincidências demais. terça-feira, outubro 15, 2013
SE ERA MITO, VIROU CARNE No próxima sábado, o teólogo americano Joseph Atwill, especializado na Bíblia, deve apresentar, em um simpósio em Londres chamado Covert Messiah, a teoria de que o Novo Testamento foi um mito criado pelos romanos no século I. No que não vai nada de novo. Na década de 1790, os iluministas franceses Constantin-François Volney e Charles François Dupuis já aventavam a hipótese. Quando falo do Cristo, não tenho a mínima idéia se existiu ou não. A ele me refiro como ao personagem de Cervantes. Sabemos que o Quixote é um ente de imaginação. Nem por isso deixamos de nos referir a seus feitos como se realmente tivesse existido. Com duas diferenças. Primeiro, o Quixote nunca pretendeu ter feito milagres. Segundo, de sua existência não decorre uma ética. Estamos no campo da literatura. Distinto é o caso das religiões, que têm mandamentos coercitivos. O Quixote jamais provocará uma guerra. Cristo já provocou muitas. Há um hiato muito grande, de pelo menos quatro décadas, entre a morte de Cristo – ou suposta morte – e os primeiros relatos de sua vida. Ou suposta vida. Quanto mais leio, mais me convenço que foi criação dos evangelistas. O primeiro evangelho só surge após a segunda destruição do templo de Jerusalém pelo imperador romano Tito. Mais parece uma reação judia ao poder invasor que relato histórico. Sem falar que Cristo mal tem biografia. Nasce e só volta a dar as caras aos doze anos durante a festa do Pessach, quando surpreende os doutores do Templo pela facilidade com que aprendia a doutrina e por suas perguntas intrigantes. Depois temos seu batismo e os quarenta dias no deserto, em tempo incerto e não sabido. Há um longo hiato até seus trinta anos, completamente em branco, como se um homem das dimensões do Cristo, naquela pequena geografia, pudesse ter passado despercebido. Durante andanças para lá e para cá, quando exerceu seu ministério, milagres e parábolas lhe são atribuídos. Ora, milagres não existem e parábolas podem ser atribuídas a qualquer um. Segundo João, decorrem três Pessachs durante seu ministério, isto é, Cristo pregou por pelo menos dois anos e um mês, apesar de algumas interpretações sugerirem um período de apenas um ano. Sua história - a história que o torna célebre - de fato começa quando entrou em Jerusalém, em um domingo, para celebrar a Páscoa Judaica. Na sexta-feira seguinte já estava na cruz. Há depois 40 dias de andanças post-mortem, que só convencem quem crê em andanças após a morte. Sem falar que, tendo morrido um deus, não se entende como os repórteres da época só foram noticiar o fato quarenta anos depois. Durante meus dias de Paris, tirei carbonos das cartas que enviei a amigos e amigas. Hoje, ao relê-las, 30 anos depois, já nem lembro quem eram as pessoas que nelas cito. Imagine então o que sobra na memória de fatos transcorridos quatro décadas atrás, em uma época em que as pessoas tinham vida bem mais curta e o registro escrito da História não era usual. Atwill pretende ter reunido evidências conclusivas de que o Novo Testamento foi escrito por aristocratas romanos e que trata-se de questão de tempo até que sua teoria seja aceita. "Eu apresento meu trabalho com alguma ambivalência, porque não quero atingir diretamente nenhum cristão. Mas isso é importante pra nossa cultura. Cidadãos alertas precisam saber a verdade sobre nosso passado para que possamos entender como e porque governos criam falsas histórias e falsos deuses. Isso é feito, frequentemente, para obter uma ordem social que vai contra os interesses do povo comum". Segundo o teólogo americano, a criação da história de Jesus teria sido uma estratégia política dos romanos para pacificar as investidas violentas dos judeus que viviam na Palestina naquela época. Os romanos esgotaram suas tentativas de conter a rebelião usando armas e teriam criado o mito de um líder judeu pacifista para inspirar o hábito de "dar a outra face" e encorajar os judeus a ceder a Cesar e pagar impostos a Roma. Para Atwill, Cristo seria uma construção - uma colcha de retalhos - feita a partir de outras histórias. "Eu comecei a notar uma sequência de paralelos entre o Novo Testamento e o manuscrito A Guerra Judaica, de Flávio Josefo, e embora estudiosos cristãos tenham reconhecido por séculos que as profecias de Jesus parecem estar cheias das coisas que Josefo escreveu em seu manuscrito, eu enxerguei outras dúzias", disse. Pode ser. Há bastante probabilidades de Atwell ter razão. Isto explica melhor o fenômeno do cristianismo do que as histórias fantasiosas e incongruentes dos Evangelhos. Sabe-se que os supostos autores dos Evangelhos são isso mesmo, supostos autores. Alguém criou os relatos, que foram atribuídos a pessoas importantes da época. Daí a provar que não existiu, me parece que vai uma longa distância. Ao comentar os Evangelhos, escrevo como se Cristo realmente tivesse existido. Parto do que está escrito, sem confiar muito no que os textos afirmam sobre sua existência. Tendo a crer que os verdadeiros autores dos Evangelhos foram exímios ficcionistas. Se existiu, era mais um desses judeus místicos que crêem em um deus que não existe. Atwill não acha que sua descoberta seja o início do fim do cristianismo, mas pode ajudar aqueles que tenham sido oprimidos pela religião de alguma forma. "Até hoje, por exemplo, o cristianismo é usado nos EUA para criar apoio à guerra no Oriente Médio", exemplificou. Seja como for, tenha existido ou não, Cristo existe para milhões de pessoas. Se era mito, o mito virou carne. Então, para efeitos de raciocínio, pode-se partir da suposição de que tenha existido. |
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