¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

terça-feira, janeiro 31, 2012
 
FILÓSOFO? SÓ SE VOCÊ TIVER
A CARTEIRINHA DE FILÓSOFO



Está tramitando na Câmara um Projeto de Lei do deputado Giovani Cherini (PDT-RS), que regulamenta o exercício da profissão de filósofo em todo o País. A idéia não é nova. Como toda péssima idéia, circula com velocidade de moeda ruim.

Em 2008, comentei um projeto que regulamentava a profissão de astrólogo. Já havia sido aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado e aguardava votação no plenário. De autoria do senador Artur da Távola, a proposta definia quem poderia exercer a astrologia e as atribuições dos profissionais, entre elas, o "cálculo e elaboração de cartas astrológicas de pessoas, entidades jurídicas e nações utilizando tabelas e gráficos do movimento dos astros para satisfazer às indagações do público". Já na época, o velho bolchevique anunciava que pretendia apresentar projeto regulamentando a profissão de filósofo. Filósofo não seria mais quem filosofa, mas quem tem carteirinha de filósofo.

Artur da Távola morreu naquele mesmo ano e não tenho idéia do que foi feito de seu projeto. Mas suponho que astrólogo algum lamentou sua morte. Astrólogos são franco-atiradores. Você está desempregado e não tem habilitação para ofício algum? É só sair a fazer mapa astral para ingênuos. Os ingênuos são legião. Se você tiver boa lábia, pode até fazer uma grana razoável.

Antes do projeto de regulamentação da profissão de filósofo, dois outros tramitavam no Congresso pretendendo regulamentar a de teólogo. Teólogo não seria mais quem cria teologia, mas quem tem carteirinha de teólogo. Pelo jeito, a profissão está se revelando lucrativa, pois os projetos pretendem restringir o livre exercício da parlapatagem. O projeto de lei 114/05, obra do bestunto do senador e bispo evangélico Marcelo Crivella, cria o Conselho Nacional de Teólogos, que seria a representação única dos teólogos do Brasil. Ou você pertence ao Conselho ou não teologiza mais. Ou se teologiza, está exercendo irregularmente a profissão. Este projeto inclusive recebeu parecer favorável do senador Magno Malta, pastor da Igreja Batista. Enviado para a Comissão de Assuntos Sociais do Senado, estava pronto há uns quatro ou cinco anos para entrar na pauta de votação.

O segundo projeto, o 2.407/07, do ex-deputado Victorio Galli, pastor da Assembléia de Deus, é mais bizarro. Diz que “teólogo é o profissional que realiza liturgias, celebrações, cultos e ritos; dirige e administra comunidades; forma pessoas segundo preceitos religiosos das diferentes tradições; orienta pessoas; realiza ação social na comunidade; pesquisa a doutrina religiosa; transmite ensinamentos religiosos, pratica vida contemplativa e meditativa e preserva a tradição”. O projeto soa a samba do crioulo doido: mescla a função de sacerdotes com as de administradores de comunidades e psicanalistas. Só não prevê que o teólogo faça teologia. Nele vê-se mais uma vez o dedo dos pastores evangélicos, que querem promover a teólogos seus camelôs televisivos.

Segundo a notícia, esse perfil abrangeria todos os padres, pastores, ministros, obreiros e sacerdotes de todas as religiões. O número passaria de um milhão, pela estimativa do Conselho Federal de Teólogos (CFT), com base em dados do IBGE. Hoje teólogos devem ser formados em cursos de graduação. Ou seja, no que depender da aprovação do projeto, tanto Paulo, como Anselmo, Orígenes, Tomás de Aquino ou Agostinho, estariam hoje exercendo ilicitamente a profissão.

A profissão parece ser promissora. Tão promissora quanto a destes outros vigaristas, os psicanalistas. Que pelo menos estão de acordo que é melhor não regulamentar a profissão, tantas são as escolas da psicanálise. É claro que a proposta dos pastores vai dar em nada.

Voltemos ao projeto do pedetista Giovani Cherini, que retoma os propósitos do senador bolchevique. Está tramitando em regime conclusivo e tem boas chances de ser aprovado pelas comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público, e de Constituição e Justiça. Se aprovado, vai imediatamente ao Senado – sem que o plenário se manifeste. Se passar, tanto Platão como Aristóteles, Kant como Descartes, não poderiam reivindicar a condição de filósofo neste país incrível. Filósofo, só com diploma de filósofo.

Mas o melhor vem agora. Lê-se no projeto: “De acordo com a proposta, órgãos públicos da administração direta e indireta ou entidades privadas, quando encarregados de projetos socioeconômicos em nível global, regional ou setorial, deverão manter filósofos legalmente habilitados em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços”.

O texto estabelece que só poderão exercer a profissão os bacharéis em Filosofia. Ou seja, se um Estado quer construir uma ponte, um aeroporto, uma ferrovia, uma estrada, que empregue antes de mais nada um filósofo legalmente habilitado para dar palpites sobre a obra.

Sempre entendi como filósofo o homem que desenvolve um sistema filosófico. Que traz alguma resposta às questões que as épocas impõem. Se não trouxer resposta alguma, é mero solipsista. Filósofos, para mim, são Platão, Aristóteles, Hume, Bergson, Descartes, Kant, Hegel. (Nietzsche, eu o situo mais como poeta. Marx nunca foi filósofo, como pretendem os marxistas. Era jornalista e economista). Hoje, filósofo é qualquer professorzinho de filosofia.

A filosofia estilhaçou-se em mil pedaços e hoje duvido que alguém saiba definir, com precisão, em que consiste a filosofia. Pelo que vejo, filósofo é qualquer acadêmico que fala de maneira obscura sobre o homem e o mundo. O Brasil está cheio deles, todo santo dia surge nos jornais alguém se intitulando filósofo.

Em meus dias de Florianópolis, li uma ementa do curso de Filosofia da UFSC: História da Filosofia Catarinense. Sou um desinformado. Em nem sabia que existiam filósofos em Santa Catarina, quando na verdade já existia, pujante e fecunda, uma história da filosofia catarinense. A UFSC, se alguém não a conhece, é aquela universidade que conferiu um título de Dr. Honoris Causa a Fidel Ruz Castro. Dr. Fidel, portanto.

É possível que a moda tenha surgido na França. Em meus dias de Paris, meus professores, ao examinar meu currículo, exclamavam: “Ah, vous êtes philosophe”. Nada disso, professor, apenas estudei filosofia.

Estudei História da Filosofia por quatro anos. Nestes estudos, considerei que filosofia é isto: alguém diz que o homem e o universo são assim e vão para lá. Surge outro e diz que o homem e o universo são assado e vêm para cá. A filosofia busca abstrações. Quer definir o que seja o Homem, assim com H maiúsculo. Ora, esse homem não existe. É como buscar o terno ideal que sirva a todos os homens e acaba por não servir a nenhum. O que existe é este homenzinho de todos os dias – com h minúsculo mesmo – que vamos encontrar... na literatura.

O saber racional acaba por negar-se a si mesmo. As filosofias se chocam e se destroem umas às outras. Os filósofos acabam se dando cotoveladas nas enciclopédias, em busca de espaço. Só a literatura permanece. Platão, por fascinante que seja, envelheceu. Já a Ars Amatoria, de Ovídio, permanece eternamente jovem. A vida é mais simples do que imaginam os filósofos. O homem nasce e morre e neste interlúdio esperneia. Fim de papo. A filosofia até pode ter pretendido ensinar o homem a viver. Mas a história está repleta de homens que bem conduziram suas vidas, sem nada entender de filosofia.

O filósofo, no fundo, é um palpiteiro. Os senhores deputados estão prestes a regulamentar a profissão de palpiteiro. O projeto do deputado, antes de ser absurdo, é obsceno. Visa empregar essa massa imensa de desempregados gerados pelas faculdades de Filosofia.

 
MENSAGEM DE NOVA YORK


Sobre comentário recente que fiz sobre a cultura americana, recebo de Levi Marcos Pereira, de Nova York:

Caro Janer,

Muito bom ter acesso aos teus posts num sábado modorrento.

Também lamentei pela professora e pelos demais que perderam a vida naquele trágico acidente, claro. Meu nó na garganta se deu uns anos após eu ter me livrado da crença idiota na pregação idem da esquerdalha. Custou-me a me dar conta de que eu não era socialista, mas imbecil, no dizer do Humphrey Bogart. Pensava que odiava os Estados Unidos e que, por isso mesmo, eu era diferenciado positivamente em relação àqueles que eu xingava de “capitalistas”. Confesso, já fui idiota, ops!, socialista. Vá lá, imbecil mesmo. Muito bom poder viver o suficiente para se dar conta das próprias idiotices e delas se livrar. Ainda purgo um pouco da culpa por ter crido nesse credo cretino.

Nova Iorque é feia, posto que vertical, mas há lá prédios bonitos sim, escondidos no meio da selva dos arranha-céus, é verdade, mas bonitos sim. Dois exemplos somente, as catedrais de St. Patrick e St. John the divine (sem comparação com a de Toledo!). Já tive oportunidade de dizer em mensagem anterior e repito agora: Adoro ópera (cantei em coral por muitos anos e eduquei meu ouvido, além de ter obtido bolsa para a graduação por causa disso mesmo), especialmente no Metropolitan Opera House, onde já tive a oportunidade de me deliciar com a Tosca. Estou a caminho novamente na próxima semana e já comprei meu ingresso para a Aída. Acústica perfeita, montagem idem e elevado grau de profissionalismo, verificável até mesmo na compra dos ingressos, conforme você disse no post. Gosto de Nova Iorque, embora prefira Florença, Siena, Toledo e, especialmente, Madri.

Quanto a restaurantes em NY, gosto muito dos italianos, especialmente um chamado “Violino”, na Columbus Av. Boa comida, bom vinho, atendimento ótimo e preços civilizados.

Quanto ao racismo dos negros, confirmo o que você disse, mas abstenho-me de entrar em detalhes. Por outro lado, fui muito bem tratado por brancos americanos nos lugares em que estive (Charlotte, na Carolina do Norte, Minneapolis, Dallas e em três ou quatro cidades da Virginia, todas feias, obedecendo a um padrão de um down town vertical, distante das áreas residenciais). Em todas elas, exige-se a posse de um carro para se locomover, regra não muito aplicável em Nova Iorque, onde se pode prescindir dessa maldição chamada carro.

Abraços.

segunda-feira, janeiro 30, 2012
 
MEU PRIMEIRO MILHÃO


Pois... acabo de ultrapassar a marca de um milhão de acessos. O que já é algo para um blog independente, não escorado em nenhum grande portal. Bem entendido, não significa um milhão de leitores. Tivesse eu um milhão de leitores, me perguntaria o que andei escrevendo de errado. Escrevo para quem pensa e duvido que neste Brasil haja um milhão de seres pensantes. Daí minha restrição aos best-sellers. Quando um livro vende um milhão de exemplares, é óbvio que não pode prestar.

Para minha surpresa, descobri leitores no mundo todo, desde Europa, Estados Unidos e Canadá até Sumatra e Jakarta. É a brasileirada dispersa pelo mundo, mais esparramados que filhotes de perdiz. Meu limite é a língua. Mas não muito. Certa vez, ao discutir o filme Lepota Poroka, de Živko Nikolić, recebi cartas em inglês de duas montenegrinas, e duvido que lessem português.

Comecei este blog timidamente, há oito anos. Blog, em suas origens, era recurso de adolescentes para manifestar suas dores-de-cotovelo. Logo os jornalistas descobriram seu potencial e hoje não há grande jornal que não tenha sua equipe de blogueiros. De início, não escrevia diariamente. Aos poucos, fui percebendo que o número de leitores só aumentava. Propaganda certamente boca a boca, ou melhor, tecla a tecla. Passei a levar a coisa a sério.

Fiz muitos amigos neste blogar. Na Europa e no Brasil. Encontrei amigas e amigos na Suécia, Finlândia, Alemanha e França. Conversei com muitos deles em minhas viagens. No Brasil, foram centenas. Devo ter brindado com algumas dezenas. É um novo tipo de amizade, que chamarei de internética. Sem nos encontrarmos, nos estimamos, trocamos idéias, informações e abraços.

Melhor mesmo foram os reencontros. Reencontrei namoradas de há trinta e quarenta anos. Reencontrei um poeta canarino de Puerto de las Nieves, Gran Canaria, e uma adorável sabra, que conheci em minhas travessias pelo Atlântico. Como também reencontrei amigos de Dom Pedrito e Santa Maria, que há décadas não via. Verdade que ainda falta encontrar uma bugra muito querida de meus dias de adolescente e uma gauchinha que um dia reencontrei, transida de frio, no Kungsträdgården, num pleno inverno de Estocolmo. Enquanto há vida, há esperança.

Sei que, se por um lado fascino leitores, por outro lado eu os irrito. Fascino os livre-pensadores, que não têm filosofia alguma a defender. Fascino os que pensam com a própria cabeça. Irrito os crentes, sejam cristãos, católicos, marxistas ou muçulmanos. A estes, adoro irritar. Seguidamente, recebo insultos que soam como música a meus ouvidos. Insulto é o argumento de quem não tem mais argumentos. Se um fanático soubesse o prazer que sinto quando ele me insulta, certamente não me insultaria.

Há quem me julgue ateu militante. Ateu, sim. Militante, não. Jamais conclamei alguém a largar sua fé e ser ateu. Que as pessoas creiam em seus deuses e seus santos, e boa sorte a todos. Jamais discuti a existência ou inexistência de deus. É perder tempo. Mas discuto, isto sim, a Biblía, e seguidamente a releio. Eu a vejo como obra literária e quando comento os feitos de Jeová é como se estivesse falando das aventuras do Quixote. Deus para mim é um personagem literário, criado por sacerdotes de gênio. É o mais conhecido personagem literário do mundo todo, a tal ponto que não há mendigo analfabeto que não o cite.

Irritei tanto marxistas e petistas, como católicos e judeus. Mais ainda: ateu, consegui irritar os ateus. Andam por aí uns menininhos ambiciosos, reunidos em associações de ateus, que alegam estar sendo discriminados para passar bem. Não duvido que um dia reivindiquem cotas na universidade, os coitadinhos. Pois bem, um dia denunciei esta farsa e os ateus caíram em cima deste ateu que vos escreve. Que falta de esprit de corps, gente!

Irrito também no bom sentido. Ainda há pouco, me escrevia um leitor que eu o tinha enraivecido. Sentia raiva por não ter escrito crônica que escrevi sobre a televisão nacional.

Há quem me julgue polêmico ou que escreva com a intenção de polemizar. Não é bem isso. É que, não tendo aderido a nenhuma filosofia ou ideologia, acabo tendo atritos com quem se apega a filosofias ou ideologias. Polêmico é todo escritor que não adere a nenhum sistema de pensamento.

Escrevo para pessoas cultas e tenho leitores atentos. Escrevendo todos os dias, mais dia menos dia incorro em lapsos. Nunca falta o leitor prestimoso que me advirta sobre uma palavra inadequada ou a falta de uma crase. Certo dia, transferi a Amazônia para a Europa. Numa crônica sobre Mangalia, na Romênia, grafei Rio Negro em vez de Mar Negro. Suponho que todos os demais leitores leram Mar Negro, pois ninguém reclamou. Exceto um, mais atento que os demais. Que teve a gentileza de apontar meu lapso. A estes leitores, que me corrigem quando incorro em erro, sou muito agradecido.

Mas tenho também leitores incultos. São os que mais me xingam. Me agrada que me leiam. É uma chance de escapar à insciência. Há ainda aquele leitor que me odeia mas não deixa de me curtir. É a “hora de ódio” orwelliana. Suspeito que estes sejam meus leitores mais fiéis. Eu os adoro.

E há os leitores que ajudam a enriquecer este blog. Com seus depoimentos, me falam de livros que não li, de notícias que me escaparam, de viagens que não fiz.

Há muito tempo desisti de escrever ficções. E há mais de vinte anos não leio ficções. Romances são contos de fada de quem não tem imaginação, como dizia Pessoa. Bem entendido, ainda releio as grandes ficções que um dia me fascinaram. Escrevendo crônicas, me sinto como peixe n’água. É gênero que pratico desde os 22 anos. Na crônica se pode fazer tanto história e ficção como poesia e filosofia.

Comecei cronicando em 1969, no extinto Diário de Notícias, de Porto Alegre. Continuei com coluna diária na Folha da Manhã, onde escrevi inicialmente de Porto Alegre e depois de Paris. Nas crônicas parisienses, deixava meu endereço ao pé da coluna e cheguei a receber 20 ou mais cartas por dia. Fiz bons amigos naqueles anos às margens do Sena, relações que perduram até hoje. Era na época das cartas. Entre uma carta e a resposta, havia uma espera de pelo menos duas semanas.

Os tempos mudaram. Se antes eu chegava apenas até onde os jornais chegavam, hoje chego em qualquer cidade do planetinha. Se antes uma comunicação exigia duas semanas, hoje recebo respostas às vezes em cinco minutos. Em 24 horas tenho dezenas de respostas. Isto o livro não rende. Nem mesmo o livro eletrônico.

Abaixo, transcrevo texto antigo, onde explico meu método de trabalho. Aos leitores que me proporcionaram meu primeiro milhão, sejam afetos ou desafetos, meu mais forte abraço.

 
ASSIM SE PERDEM AS PERDIZES *


Um leitor pergunta porque gosto de escrever sobre mim mesmo. Não é verdade. Prefiro escrever sobre uma escrivaninha, que é bem mais cômodo. Pergunta-me também como desenvolvo esta crônica.

Honestamente, não sei. Me dou por feliz, quando, ao sentar na mesa, já tenho o tema escolhido. Isto é, metade da crônica está feita. Uma vez sentado, não tenho idéia muito precisa do ponto de chegada. Muitas vezes penso ir a Paris e acabo chegando a Ponche Verde. Às vezes me preocupa uma reflexão sobre a História e acabo entrando num bar. E ao sair do bar o rumo é sempre incerto, como o é o desfecho da crônica. Como a desenvolvo?

Prefiro falar de perdizes.

O leitor já ouviu falar de mundéus? Se não nasceu no campo, mais precisamente na Campanha, certamente desconhece o que seja mundéu. É uma armadilha para perdizes. Sobre uma trilha de ovelhas faz-se uma pequena muralha de pedras, esterco, mio-mio ou chirca, de um palmo de altura e uns dois braços de homem de comprimento. Nas pontas da cerca, dois braços laterais saem um para cada lado, formando assim uma espécie de T, cortado por cima e por baixo. No centro do mundéu, por onde passa a trilha, há uma porteirinha.

Da porteira pende uma trança de rabo de cavalo, trançada de três ou torcida, mas sempre em forma de forca. A torcida é melhor, se fecha mais fácil. O mesmo não diria a perdiz, mas quem ocupa este espaço é o cronista e não ela. Só posso falar de meus pontos de vista.

Primeiro é necessário levantar a perdiz. A melhor hora é o nascer do sol, quando seus raios tornam brilhantes as babas-de-boi que se estendem de cardo a cardo. Não pode ser dia de vento. Nesses dias, a perdiz se amoita no primeiro alho-bravo que encontra e não quer saber de passeios, já se levanta voando. Outra hora boa é depois de um temporal, quando um cheiro de terra se ergue da terra e fica para sempre nas narinas de quem na infância com esse cheiro se embriagou. Outro cheiro que também marca para sempre é o cheiro de sanga ao entardecer. Mas falava de perdizes.

Para levantar a perdiz, basta passear pelo campo, de preferência a pé, assobiando em seu ritmo assustadiço. Ela ouve. Se está aninhada, levanta. Espicha o pescoço e responde. Está perdida.

Cabe agora ao caçador mangueá-la para o mundéu, o que exige grande conhecimento da psicologia das perdizes. As perdizes são desconfiadas por natureza. Para ganhar-lhes a confiança, o assobiador tem de ser melífluo, insinuante. Quando a perdiz assobia, o assobiador cala. Quando ela cala, eu respondo. Se ela está à direita do mundéu, vou caminhando de longe, para a esquerda. Como quem não quer nada, sempre assobiando, como se o mundéu nem existisse.

Um bom expediente é dar as costas para a perdiz, de mãos no bolso. A perdiz vê o assobiador de costas para ela e fica até despeitada. Ele não quer nada comigo, me deu as costas, pensa a perdiz. São ingênuas, as perdizes.

Se ela vai para a esquerda, sigo assobiando pela direita. A perdiz se desespera. Ele nem me quer. Eu assobio para um lado, ele assobia para o outro. E aí se perde a perdiz, pois o assobiador a ama e o amor é guerra. A perdiz entra na trilha. Logo adiante, está o mundéu. E a trança. Torcida.

Uma vez na trilha, mais amorosamente assobia o assobiador. Com tanto amor que a perdiz chega a assustar-se. Assobia agora nervosa, qual virgem se abrindo ao amado. Mulheres e perdizes em muito se parecem.

Entrou nos braços do mundéu. Só há uma saída, a trança, branca e redonda. Próximo à forca, o assobiador sempre deixa alguns grãos de trigo ou milho, tanto que ama a perdiz. Gorda é a laçada da trança. Magro é o pescoço da perdiz.

O assobiador abre os braços e grita, a perdiz voa e se enforca. Salvo engano, escrevi uma crônica. Ou algo parecido.


* Porto Alegre, Folha da Manhã, 24 junho 1976

domingo, janeiro 29, 2012
 
A INOCENTE AFRICANINHA E
O MALVADO BRANCO EUROPEU



Comentei, há dois dias, a fábrica de racismo inaugurada pelas esquerdas, onde o coitado do africano ou imigrante é sempre vítima e o branco europeu é sempre vilão. De Paulo Augustus, recebo:

- Janer, a propósito dessas notícias sem apuração, em que a primeira versão do crime, mesmo falsa, soa como um prato cheio para alguns ditos progressistas, lembro-me de um caso curioso ocorrido em Brasília há uns dois ou três anos.

Uma criança indígena que fora se tratar na capital foi encontrada morta na Casa do Índio no Distrito Federal. Nos dias seguintes a manchete repercutiu. No Correio Braziliense, jornalistas, articulistas e gente da Funai falou sobre o assunto. Mais um crime de ódio contra a população indígena. Foi lembrado o famoso caso do índio Galdino, queimado vivo em 1997, enquanto dormia numa parada de ônibus, por um bando de filhinhos de papai arruaceiros. Quanto a este último crime, queimar vivo qualquer pessoa é caso para punição perpétua dada a tamanha covardia e crueldade de quem o faz. No entanto, o crime não foi tratado como o assassinato de um ser humano (os garotos pensaram se tratar de um mendigo), mas sim do assassinato de um índio por homens brancos.

Quanto à criança morta na Casa do Índio, depois de uma semana de investigações, a polícia concluiu que quem matou a criança, empalada, foi a própria tia dela. Não lembro ao certo se foi por um caso de ciúme (parece que era uma tribo onde se praticava a poligamia), ou porque a criança já estava dando muito "trabalho" para a família. Você sabe, para índio, criança doente não presta. Pois bem, assim que a Polícia chegou à conclusão, calaram-se todos aqueles que espernearam e acusaram mais um crime de ódio perpetrado pelo homem branco da cidade. Pelo que me lembro, essa tia nem a julgamento foi. Retornou à sua aldeia e não se falou mais da história.


Bom, isso me lembra um caso semelhante ocorrido em São Paulo. Segundo os jornais, um skinhead andava pichando muros na cidade, com slogans contra nordestinos. Quando o prenderam, foi identificado como nordestino. Sumiu dos jornais. Não se falou mais no assunto. Mas Paulo me envia uma pérola, da jornalista Ruth de Aquino, da revista Época, sobre a affaire DSK. Vamos ao texto, datado de 20/05/2011.

Ela jamais sonhou com a fama. No espaço de uma vida, não se tornaria uma celebridade nem em seu bairro, o Bronx – quanto mais no mundo. Africana, muçulmana, mãe de uma adolescente, a camareira de 32 anos que limpava as suítes do Sofitel em Nova York já achava seu green card um privilégio. Pelas fotos divulgadas na internet, não é especialmente bonita. Mas, para brancos poderosos e prepotentes, reúne qualidades de sedução particulares: é jeitosa, negra e faxineira. Nunca denunciaria um ataque sexual. Conhece seu lugar.

Nafissatou Diallo é o nome da camareira que derrubou o francês Dominique Strauss-Kahn, ex-diretor-gerente do FMI e pré-candidato socialista à Presidência na França. Algemado e com a cara de tédio típica dos parisienses, DSK deixou pelos fundos o palco das finanças e da política. Ele se diz inocente. Mas, pelo encontro casual com Nafissatou em sua suíte de US$ 3 mil, encara agora sete acusações, de crimes sexuais a cárcere privado. Seria a camareira uma arma secreta de Sarkozy, o futuro papai do bebê de Carla, para tirar do páreo um adversário perigoso?

O FMI nomeará um novo diretor, quem sabe uma diretora, se quiser evitar mulherengos. Os socialistas franceses estão escandalizados, mas na direção oposta. Criticam o abuso da polícia americana contra DSK, presumidamente culpado com base na palavra de uma empregada.

Eles são brancos e não se entendem. Existe um oceano, físico e cultural, entre os Estados Unidos e a França. A mídia francesa é leniente com os desvios na vida particular de seus políticos. Se DSK fosse denunciado por uma camareira em Paris, em nenhuma hipótese seria detido antes de ser julgado, por presunção de inocência. Nos EUA, há a presunção inicial de que a vítima fala a verdade.

Me interesso mais pela camareira do que por DSK. Vi muitos se perguntando: será que o ex-diretor do FMI, conhecido pela habilidade em negociações, seria tão idiota e tresloucado a ponto de atacar a moça ao sair nu do banheiro? Mas começam a emergir casos semelhantes de mulheres menos corajosas que a africana. A loura jornalista francesa Tristane Banon, afilhada da segunda mulher de DSK, tinha 22 anos em 2002 quando diz ter sido atacada por ele: “Parecia um chimpanzé no cio”. Kristin Davis, ex-cafetina americana, afirmou que uma prostituta brasileira a aconselhou a não mandar mais mulheres para ele: “É bruto”.

Africana e muçulmana, a mulher que derrubou Strauss-Kahn desafiou as regras dos poderosos

Nafissatou não sabia que aquele senhor de cabelos brancos era DSK. Está com medo, escondida, sob a proteção da polícia de Nova York. Queria ficar anônima, mas seu nome e fotos se espalharam. É filha de um comerciante da etnia peule – 40% da população da Guiné, na África Ocidental. Emigrou com o marido para os EUA em 1998. Separada, vive sozinha com a filha de 15 anos num conjunto popular no Bronx. Há três anos trabalha no Sofitel da Times Square. Tem fama de trabalhadora e séria. Uma prima, Mamadou Diallo, afirmou: “Ela é uma boa muçulmana. Realmente bonita, como várias mulheres peules, mas não aceitamos esse tipo de comportamento em nossa cultura. Strauss-Kahn atacou a pessoa errada”.


Vai daí que logo descobriu-se que Nafitassou era uma piranha em busca de dinheiro fácil. DSK, cuja eleição para a presidência da França eram favas mais ou menos contadas, perdeu sua reputação, seu emprego no FMI e a presidência da República. Foi inocentado, mas virou carta fora do baralho. A indignação dos jornais contra o suposto crime de DSK não se voltou contra o real crime de Nafitassou. Revelada sua falsa acusação, a imprensa mergulhou em um silêncio obsequioso.

Mais tarde, Ruth de Aquino tentou redimir-se. Caluniou em página inteira e se retratou... em uma linha.

Em tempo - Paulo Augustus corrige sua informação sobre o caso de Brasília. Não se tratava de uma criança, mas de uma adolescente de 16 anos. Dá no mesmo. Aqui, a notícia:
http://www.panoramabrasil.com.br/adolescente-india-foi-morta-pela-proria-tia,-diz-funasa-id5900.html#.TyW6dd82lws.email


sábado, janeiro 28, 2012
 
IN MEMORIAM CHRISTA


Não consigo gostar dos Estados Unidos. Nos anos 90 fui até lá, só para comprovar o que já sentia, sem mesmo conhecer o país. A bem da verdade, só estive em Nova York. Depois rumei ao Canadá. Não me senti bem no Canadá anglófono. Mas bastou chegar a Quebec e já me senti em casa.

Não gosto de cidades verticais, embora viva numa delas. Prefiro aquela geografia baixa das cidades européias. Não achata tanto o ser humano.Gosto da boa restauração e neste sentido Nova York, por melhores restaurantes que tenha, fica muito aquém de Paris ou Madri. Considero hábito de bárbaros beber no bico da garrafa ou em copos de plástico. Em Nova York, eu marcava no mapa os cafés onde podia tomar uma cerveja em copo decente. E precisava bater perna por bom tempo para encontrá-los. Para comer, elegi franceses e italianos. Era uma boa possibilidade de comer bem.

De algo gostei na cidade, suas óperas. Pode-se comprar bilhetes na hora e não é preciso ir emperiquitado. Na Europa, ópera é uma ocasião de sacudir a naftalina dos smookings. Em Nova York, você pode ir de jeans e tênis e não se sentirá deslocado.

Não gosto do modus vivendi americano, essa divisão das pessoas em winners e losers. Da mania do carro. Há cidades em que é impossível viver sem carro. Como em Brasília. Gosto das cidades amigáveis aos pedestres e ciclistas. Abomino também o racismo do negro americano. Certa vez, precisei de informações na Pen Station. Num extenso corredor de guichês, só havia negros. De minha parte, tudo bem. Da parte deles, parece que não. Uma negra, notando minhas dificuldades com o inglês, falava rápido e com rispidez e não me deu colher de chá. Não entendi nada.

Dia seguinte, quando partiria, voltei aos guichês para tentar informar-me de novo. Havia um único branco entre a negrada. Fui ao guichê do branco. Fui atendido com cordialidade. Que os negros americanos tenham suas diferenças com os brancos americanos, entendo. Mas eu não sou americano, ora bolas!

Não gosto dos Estados Unidos, dizia. Mas nem por isso deixo de respeitar a sociedade que construíram. Não pertenço a essa raça que xinga os Estados Unidos através de mensagens transmitidas por Macs e PCs, utilizando o Windows ou o Mac Os. As esquerdas odeiam o capitalismo ianque, mas não dispensam os serviços de Bill Gates ou Steve Jobs. Hoje, nem o mais empedernido comunista dispensa a tecnologia do Império.

Sem nutrir simpatia pelo país, vibro quando uma shuttle decola ou aterrissa em Cabo Canaveral. É a aventura humana rumo ao espaço. Ou melhor, aos arrabaldes do planetinha, mas sempre é uma aventura. Confesso que não lembro de ter assistido aos primeiros passos de Neil Armstrong na lua. Não me interessou. A chegada na lua nós a vimos muitas vezes antes daquele 20 de julho de 1969, nos filmes de ficção científica. O feito de Armstrong tinha um ar de déjà-vu.

Tenho um amigo que considera a chegada na lua a prova mais cabal da barbárie americana. Armstrong não chorou. E só um bárbaro seria capaz de não chorar ao chegar na lua. Assino embaixo. Fernão de Magalhães, marinheiro rude, não conseguiu conter as lágrimas quando sentiu que havia descoberto a passagem para o Pacífico.

Era Salamanca e era janeiro. Mais precisamente, 28 de janeiro de 1986. Isto é, há exatos 26 anos. Para mim, uma data que não consigo esquecer. Pela manhã, fui tomar café em um bar próximo ao hotel. Olhei o jornal e vi, na primeira página, aquela estranha rosácea em pleno espaço.

A Challenger explodira acima do Oceano Atlântico, após 73 segundos de vôo, ceifando a vida de sete tripulantes, entre eles Christa McAuliffe, uma professora de New Hampshire de 37 anos. Confesso que senti um nó na garganta. Cá entre nós, bem mais que um nó.

Christa era a primeira civil a participar de uma missão espacial. Professora especializada em História Americana e Estudos Sociais, foi a escolhida entre 11.000 professores que responderam ao chamado da Nasa em 1984, que pretendia levar um educador ao espaço para que de lá ele desse aulas às crianças americanas, através do programa chamado Um Professor no Espaço.

Christa não teve chances de ministrar suas aulas.

sexta-feira, janeiro 27, 2012
 
FÁBRICA DE RACISMO


Um artigo de Rosa Montero, colunista de El País, publicado em maio de 2005, sabe-se lá por que internéticas razões, ressuscitou com força na Web. Terça-feira passada constava em primeiro lugar na lista “Lo más visto” em elpais.com

Vamos ao caso, conforme relata a colunista. Pelo que me lembre, a imprensa brasileira não o comentou. Em um comedor universitário na Alemanha, uma estudante pega uma bandeja de comida do selfservice e senta-se em uma mesa. Nota que esqueceu os talheres e vai buscá-los. Ao voltar, vê com surpresa que um jovem negro está comendo em sua bandeja. Duvida um momento, mas por fim, condescendente, senta-se para dividir sua comida com o intruso, que se mostra amigável e sorridente. Quando terminam de comer, o rapaz vai embora e, ao levantar-se, ela se dá conta de que sua bandeja está intacta, junto a seu abrigo, na mesa ao lado.

Comovente, não? A alemã racista acha que o negro apoderou-se de sua bandeja. Em um laivo de condescendência, consente em reparti-la com o negro. O bom negrinho nada objeta, apesar de a bandeja ser sua. A arrogância e o racismo europeus confrontam-se com a humildade e a generosidade africanas. Dá vontade de chorar.

Ao final do artigo, Rosa Montero alertava: “Dedico esta historia deliciosa, que además es auténtica...”. Deliciosa, pode ser. Mas não era autêntica. Mais ainda, era plágio de ficções. Constava do livro Galletitas, de Jorge Bucay. Outros situam sua origem em uma narrativa do escritor britânico Douglas Adams, publicado no final dos 70. Ou ainda a um conto juvenil da escritora Federica de Cesco – adorável suissesse que tive a honra de conhecer em meus dias de Estocolmo – intitulado Spaghetti für zwei.

“A lenda teve muitos avatares” – diz Rosa Montero, que agora reconhece seu equívoco -. “É um desses relatos fascinantes que, por alguma misteriosa razão que tem a ver com o inconsciente coletivo, tem uma grande capacidade de sobreviver”.

Essas histórias edificantes, por demais óbvias, jamais me convenceram. Como em toda história edificante, sempre há um detalhe que não bate. É de supor-se que ambos os protagonistas não tivessem as mesmas preferências alimentares. Será que a alemã não notou que a comida que dividia com o africano não era a mesma que havia escolhido?

Por que fascinante? Porque acusa a Alemanha de racismo? Qual misteriosa razão? Não há razão misteriosa alguma. É apenas o desejo das esquerdas que detestam a Europa de acusar o branco europeu de racismo.

Em meu ensaio Como ler jornais (2006), relatei vários desses casos. Como sempre é bom refrescar a memória das gentes, vou retomar alguns. Apenas alguns.

Um dos casos mais perturbadores de manipulação dos fatos ocorreu no verão europeu de 93, na Holanda. A reunião de pauta da Folha de S. Paulo foi excitada naquele dia. Uma menina marroquina, Naima Quaghmiri, nove anos, morrera ao cair em um lago em Roterdã. Duzentas pessoas teriam assistido seu afogamento, sem prestar-lhe socorro. O pauteiro brandia o telex com fúria. A idéia era produzir uma manchete como

RACISTAS HOLANDESES DEIXAM MORRER FILHA DE IMIGRANTES

A notícia era absurda. Duas centenas de pessoas não observam, passivamente, uma criança se afogando. O lago, uma espécie de açude, como mostrava a foto, era raso. No meio dele, havia um bombeiro com água pela cintura. Dois dias depois, novo despacho retificava o anterior. Não havia uma menina se afogando e duzentos holandeses assistindo. Naima se afogara horas antes. Policiais e bombeiros haviam pedido aos veranistas que formassem um semicírculo, de mãos dadas, e percorressem o lago em busca do cadáver. Os veranistas se recusaram.

Perguntei ao editor se a reportagem seria retificada. "Não precisa" — disse — “Amanhã ninguém mais lembra disso”. Mas jornalismo é o registro da história, é nos arquivos do passado que os pesquisadores do alegado amanhã buscam dados para seus ensaios, aleguei. "O que de fato acontece" — disse o editor — "só vamos saber meses depois. Jornalismo é assim mesmo".

Se não há agressão alguma, cria-se pelo menos atos criminosos por omissão. Foi o que aconteceu em Sebnitz, na Alemanha, em dezembro de 2000. O Estadão titulou com gosto:

MORTE DE CRIANÇA POR NEONAZISTAS ENVERGONHA ALEMANHA

Vamos à notícia:

Berlim — No dia seguinte à revelação do assassinato do garoto Joseph, de seis anos, do qual um grupo neonazista é o principal suspeito, surgiram vozes em toda a Alemanha pedindo justiça. Enquanto isso, no local do crime, o povoado de Sebnitz, na Saxônia, vivem-se momentos de vergonha após a cumplicidade silenciosa de seus habitantes. O jornal Bild denunciou a história de Joseph, filho de pai iraquiano e mãe alemã, que, perante a indiferença de 300 banhistas, foi espancado, torturado e afogado por um grupo de neonazistas em uma piscina pública. Na época, o caso foi encerrado como um acidente normal e, graças apenas à tenacidade da mãe da criança, a promotoria reabriu agora o caso. A história da morte do menino ocupou a capa de todos os principais jornais do país e o Bild reproduziu, também na primeira página, uma fotografia do garoto morto, junto com a mãe.

Esta é a notícia. Mesmo fractal do episódio em Roterdã: filho de imigrante se afogando, uma multidão de banhistas assistindo. Se a notícia sai no ano 2000, é bom lembrar que o fato teria ocorrido em 1997. Detalhes novos: criança espancada, torturada e assassinada. Os banhistas, desta vez são trezentos. Este tipo de notícia tende a aumentar nos próximos anos. É fácil acusar uma multidão. Como ninguém é acusado individualmente, ninguém reclama. Mais difícil é acusar uma ou duas pessoas. Pode dar processo.

Vamos aos fatos, em tudo semelhantes ao episódio de Roterdã. No dia 13 de junho de 1997, uma criança de 6 anos, Joseph Abdulla, morrera afogada numa piscina pública cheia de gente. Quando bombeiros e médicos chegaram, era tarde demais: o corpo boiava há dez minutos sem vida. A polícia fez um inquérito e concluiu que tudo foi um lamentável acidente. O caso foi arquivado e esquecido. Ocorre que a mãe, a farmacêutica Renate Kantelberg-Abdulla, se convenceu de que Joseph fora morto por neonazis por ser filho de um iraquiano. Os assassinos tê-lo-iam previamente drogado e depois lançado à água.

Para comprovar esta tese, foi contratado um dos advogados mais conhecido da Alemanha, Rolf Bossi. Renate conseguiu também o testemunho de 23 pessoas, adultos e crianças, cujas versões levavam a pensar que poderia não se ter tratado de um acidente. O Bild do dia 23 de novembro recoseu a matéria com o título Neonazis afogam criança. Sebnitz passou para a primeira página da imprensa internacional e foi invadida pela televisão. Kurt Biedenkopf, o ministro presidente da Saxônia, foi a Sebnitz participar numa cerimônia religiosa em memória da «vítima». Edmund Stoiber, ministro presidente da Baviera, se disse horrorizado. «Não apetece viver num país onde uma criança de seis anos é assassinada por criminosos, por causa de motivos políticos, e onde ninguém mexe um dedo para impedir o crime», escreveu o jornal Tagesspiegel, de Berlim.

Soube-se depois que Renate dera dinheiro às 23 testemunhas para influenciar a sua versão. Uma das crianças interrogadas confessou ter dito “aquilo que a senhora queria ouvir, para ela me deixar voltar para casa». Tampouco foram confirmadas as ligações com grupos neonazis. O próprio Bossi, advogado de Renate, escrevera uma carta à sua cliente, duvidando da tese de uma conspiração racista e dizendo-lhe que ela «insistia em travar uma luta contra o resto do mundo».

E muitos outros casos compilei. Como a luta de classes está fora de moda, o racismo tornou-se o novo motor da história. Multidões serão novamente denunciadas por crimes que não foram cometidos nem podem ser provados. Mesmo desmentidos, comunidades e países inteiros herdarão a pecha de racistas. O alvo é a Europa. Como o fantasma do comunismo não conseguiu dobrá-la, como previa Marx já no Manifesto, suas viúvas brandem um outro, o da luta racial.

É a fábrica de racismo funcionando a todo vapor.

quinta-feira, janeiro 26, 2012
 
PROTETORES DE PATRIMÔNIO
OU RELES EXTORSIONISTAS?



O flanelinha é mais uma dessas coisas que, como a jabuticaba, só dá no Brasil. Viajei por praticamente todos os países da Europa e não vi em nenhum deles tais extorsionistas. Há algum tempo, um leitor advertiu-me que já existiam em Lisboa. De fato, existiam. Eram brasileiros que lá quiseram instituir a prática. Foram prontamente expulsos das ruas pela polícia.

Flanelinha é algo que me irrita profundamente. E isso que não tenho carro. Entre outros, este é um dos motivos pelos quais não tenho carro. Se tivesse e um desses vagabundos viesse me oferecer seus serviços – isto é, viesse extorquir-me dinheiro – minha vontade seria dar-lhe um tiro na testa. E isso que não uso armas.

Não é preciso que me assaltem para que eu me irrite. Irrita-me ver outras pessoas sendo assaltadas. Pior ainda, com a conivência das autoridades. Raramente a polícia de algum Estado tomou providências contra este assalto evidente. Lembro que, há muitos anos, um coronel da polícia carioca andou prendendo os tais de flanelinhas. Por extorsão. Logo chegou a turma do deixa-disso e a decisão do coronel durou o que duram as rosas.

Hoje, se você quer ir ao cinema, além do preço abusivo das entradas – mais caras que em Nova York – você terá de marchar com mais 15 ou 20 reais para o extorsionista. O mesmo diga-se de teatro, bares, futebol. Quanto maior o evento, mais alto o preço. O pagamento ao flanelinha virou imposto compulsório. Se você não paga, tem o carro riscado. E se pagar e mesmo assim tiver o carro riscado ou roubado, fica por isso mesmo. O flanelinha é que não vai ressarci-lo.

As ruas, que por definição são vias públicas, estão se tornando propriedades privadas de pequenas máfias. Pequenas mas poderosas. Além dos flanelinhas, a elas se atribuem direitos os camelôs, fanáticos religiosos e os ditos moradores de rua, como se rua fosse lugar de morar. Padres, igrejeiros e assistentes sociais chegaram a cunhar uma expressão, morador de rua, que foi alegremente assumida pela imprensa. Se morador de rua existe, é porque rua é lugar de morar. Um padreco comunista aqui de São Paulo, que há pouco deu de presente um carro de luxo a um marginal, para livrar-se de uma extorsão sexual, foi mais longe. Criou os “povos de rua”. Mais um pouco e inventam uma outra, as nações de rua. Com direito a assento na ONU.

Toda vez que alguma autoridade tenta limpar as ruas desse lixo humano e devolvê-las a quem trabalha honestamente e paga IPTU, não falta quem empunhe o mais novo palavrão ideológico, higienização. Ao tentar uma solução para a cracolândia, o governo paulista foi incontinenti chamado de higienista. Há uma intenção deliberada, de parte dos defensores dos ditos direitos humanos, de manter a cidade suja e infecta.

Em Porto Alegre, a partir do 1º de julho do ano passado, a extorsão foi oficializada em toda a cidade. Um termo de compromisso assinado entre a prefeitura, o Ministério do Trabalho e a Brigada Militar reconheceu como legal a atuação dos flanelinhas – doravante denominados "protetores de patrimônio" - e dos lavadores de automóveis do município. No mesmo dia, um grupo de 72 “profissionais” começou a trabalhar no estádio Beira-Rio, onde acontecia a final da Copa do Brasil. São dúcteis, as palavras. Basta uma manobra semântica para transformar vagabundo em profissional respeitável.

Os novos “profissionais” têm carteirinha e uniforme - azul e amarelo, camisa branca e gravata preta - para se diferenciar dos guardadores ilegais. O motorista paga ao guardador somente se quiser. Se antes extorquiam sem carteirinha nem uniforme, agora sentem-se com autoridade para extorquir. Quanto ao motorista pagar se quiser, estamos no reino da utopia. Qual motorista quer pagar? Nenhum. Mas sabe que se não pagar terá seu carro danificado pelos “protetores de patrimônio”. As autoridades gaúchas deram foros de legalidade à bandidagem.

Leitor me envia um artigo da revista Consultor Jurídico. Está tramitando na Câmara Federal o Projeto de Lei 2.701/2011, do deputado Fabio Trad (PMDB-MS), com a proposta de criminalização dos flanelinhas. O projeto acrescenta ao Código Penal a infração que prevê pena de 1 a 4 anos de detenção para quem constranger ou solicitar dinheiro a pretexto de guardar ou vigiar o veículo. O dispositivo, além de agravar a pena quando o condutor constatar dano ao veículo, torna típica qualquer vantagem exigida pelo flanelinha.

Para o deputado, o projeto se justifica pela insegurança que os flanelinhas têm causado aos cidadãos que precisam utilizar as vias públicas. “As ruas passaram a ser ocupadas por indivíduos denominados flanelinhas ou guardadores de carros que se autoproclamam proprietários de determinada área, passando a ditar regras e normas de conduta às pessoas.” Trad destaca que a ausência do poder público em inibir inclusive as disputas entre eles “pelo domínio dos locais de grande fluxo de veículos nas zonas centrais ou nas proximidades de eventos culturais, esportivos e sociais das cidades brasileiras” aumenta violência e gera insegurança.

Enfim, um projeto sensato em meio ao besteirol que os deputados discutem em Brasília. Como é um projeto sensato, obviamente não vai passar. Por outro lado, será interessante ver como fica a extorsão sendo criminalizada no plano federal e legalizada em Porto Alegre.

Quem viver, verá.

quarta-feira, janeiro 25, 2012
 
GOVERNO GAÚCHO RECEBE
TERRORISTA ITALIANO
COM TAPETE VERMELHO



Por esta Cesare Battisti certamente não esperava. Condenado à prisão perpétua na Itália, foi ontem recebido quase com honras de chefe de Estado no Palácio Piratini, em Porto Alegre. Desfilou ainda pela imprensa gaúcha e pelo centro da cidade com uma aura e sorrisos de celebridade.

Em março de 2007, o terrorista foi preso quando passeava tranqüilamente no calçadão de Copacabana. Ligado às Brigadas Vermelhas, que durante dez anos sabotaram fábricas, assaltaram bancos e realizaram atentados contra juízes, jornalistas, policiais e empresários, culminando com o seqüestro e assassinato do ex-premiê Aldo Moro, em 1978, Battisti foi condenado à prisão perpétua - à revelia - por quatro homicídios nos anos 70.

Battisti se diz inocente. Mas não ousou comparecer aos tribunais para defender-se quando estava sendo julgado. Estava gozando de um exílio idílico na França, graças a uma lei de Mitterrand que negava extradição a terroristas italianos.

Em 2004, com a cassação do asilo, fugiu para o Brasil, para não ser reenviado à Itália. Sua escolha foi sensata. O Brasil está se tornando um resort de luxo para terroristas aposentados. É o único lugar do mundo em que guerrilheiros presos e condenados por ações terroristas estão hoje confortavelmente sentados nos altos escalões do poder. Battisti deve ter intuído que encontraria nas praias cariocas o meio-ambiente ideal para gozar ses vieux jours. Antonio Negri, outro terrorista italiano, ligado às Brigadas Vermelhas e responsável por inúmeros crimes, ganhou coluna na Folha de São Paulo. Por seus feitos, certamente.

Com a ameaça de extradição de Battisti para Itália, Fernando Gabeira imediatamente saiu em socorro do companheiro de terror e liderou um movimento, junto ao governo e parlamentares, para evitar que Battisti tivesse de cumprir a pena a que foi condenado na Itália: prisão perpétua.

Gabeira certamente terá êxito – escrevi na época. O Supremo Tribunal Federal já havia negado extradição a três outros terroristas italianos: Achille Lolo, acusado de matar duas crianças em incêndio e hoje assessor oficioso do PSOL; Luciano Pessina, membro das Brigadas Vermelhas e Pietro Mancini, participante da organização Autonomia Operária.

Gabeira teve êxito. Em 2009, quando ministro da Justiça, o stalinista Tarso Genro concedeu asilo político ao assassino. "A sua potencial impossibilidade de ampla defesa face à radicalização da situação política na Itália, no mínimo, geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao devido processo legal", dizia o texto assinado por Tarso ao justificar a concessão do refúgio. Como se a Itália contemporânea fosse uma ditadura onde um réu não tem direito à defesa. Battisti foi condenado à revelia porque estava refugiado na França, sob as asas protetoras do colaborador nazista François Mitterrand.

O Brasil já teve fama internacional por ser um país generoso com assaltantes internacionais e mafiosos. Você já deve ter visto não poucos filmes em que um vigarista bem sucedido, já nas cenas finais, após livrar-se da polícia, prepara as malas com uma bela cúmplice e escolhe seu rumo com um sorriso beatífico: Brasil. Os tempos mudaram. Atualmente estamos recebendo de braços abertos uma nova safra de delinqüentes, os terroristas.

Em Porto Alegre, Battisti foi recebido com abraços no palácio do governo por Tarso Genro, que acaba de voltar das Disneylândia das esquerdas tecendo loas à ditadura cubana. Tudo muito coerente. O capitão-de-mato que devolveu ao gulag tropical dois dissidentes que buscavam refúgio no Brasil, recebe agora os agradecimentos do terrorista ao qual ofereceu refúgio.

Diz Battisti em entrevista à Zero Hora:

- Tarso como homem, ministro e hoje governador é uma pessoa que mostrou ter um valor muito alto de ética e de coragem política. Quando ele teve de se expressar e decidir sobre o meu caso, mostrou tudo isso. Eu tinha muita vontade de conhecê-lo pessoalmente e de apertar a mão dele, como hoje aconteceu.

Tarso desejou que Battisti fizesse bom proveito da liberdade. Que aproveitasse a generosidade do povo brasileiro. O criminoso quer agora encontrar-se com Lula, que foi o responsável, em última instância, por seu asilo. Lula, que já abraçou Kadafi e o saudou como “amigo e irmão”, certamente não verá nisto nenhum inconveniente.

A Zero Hora, gentilmente, define o terrorista como ativista. A Folha de São Paulo também é gentil. Fala em ex-terrorista. Ora, se Battisti é inocente dos assassinatos pelos quais é acusado – como pretende – nunca foi terrorista nem pode ser ex-terrorista. Se é culpado, como foi julgado, é terrorista e terrorista continua sendo, pois em momento algum renegou seu passado.

O ativista Bin Laden teve uma idéia infeliz ao refugiar-se no Paquistão. Viesse para o Brasil não precisaria esconder-se e estaria sendo caitituado pela imprensa e recebido por governadores.

terça-feira, janeiro 24, 2012
 
SÓ MUDA A MOSCA


Em meus dias de Folha de São Paulo, tive uma colega judia que morava em meu bairro. Era judia, mas de ortodoxa nada tinha. Seu hobby predileto era espalhar o terrorismo entre rabinos. Mal via um na calçada, dava um jeito de esbarrar nele e desculpava:

- Mil perdões, estou nervosa. Estou menstruadíssima...

O bom rabino entrava em pânico e punha-se a estapear as vestes como se tivesse sido atacado por um enxame de abelhas.

Tenho escrito seguidamente sobre o que chamo de ginecofobia, fenômeno alimentado particularmente pelos muçulmanos. Pois só um profundo medo do sexo oposto pode explicar a condição inferior à qual a mulher é renegada no mundo islâmico. Mas, pelo jeito, seus primos judeus competem firme nesta maratona de obscurantismo.

Causou pasmo no Ocidente, e mesmo em Israel, a recente agressão a Naama Margolese, uma menina de oito anos, por ortodoxos nuredim, quando ela se dirigia à escola, na cidade de Beit Shemesh, próxima a Jerusalém. Os judeus, considerando que Naama estava inconvenientemente vestida, a xingaram de prostituta, cuspiram em seu rosto e a empurraram. A mãe de Naama diz que o trauma causado foi tão profundo que a garota treme quando tem de ir para a escola.

Quando árabes ou iranianos cospem no rosto de uma mulher sem véu, imediatamente os colocamos na condição de bárbaros. Onde colocar estes brutos ocidentais que se pretendem civilizados? A resposta é só uma: no mesmo saco.

Em junho do ano passado, o obscurantismo dos ortodoxos já havia escandalizado a imprensa. Segundo o site Ynet, um Tribunal Rabínico de Jerusalém condenou à morte por apedrejamento um cachorro vira-lata acusado de ser a reencarnação de um advogado já falecido amaldiçoado por insultar juízes religiosos há 20 anos.

Segundo o site, o advogado foi condenado pelo mesmo tribunal a reencarnar como cachorro e teria retornado ao local (já como cão) para se vingar. A execução da sentença foi delegada a um grupo de crianças, mas o cachorro conseguiu dar no pé. Em uma sociedade onde um tribunal rabínico se reúne para condenar um animal ao apedrejamento, nada de espantar que cuspam na cara de uma menina por julgá-la inconvenientemente vestida.

Se bem que, para povo que cultivou um dia o hábito de lapidar mulheres, apedrejar cães é café pequeno. Está no Deuteronômio, que prega a lapidação da mulher quando nela o marido não achava virgindade.

“Porém, se isto for verdade que se não achou na moça virgindade, então levarão à porta da casa do seu pai e os homens de sua cidade a apedrejarão até que morra, pois fez loucura em Israel, prostituindo-se na casa de seu pai: assim eliminarás o mal diante de ti”.

Segundo noticiário da BBC, tanto em Beit Shemesh, como em Jerusalém, Bnei Brak, Tzfat e Elad, há calçadas separadas para mulheres, linhas de ônibus nas quais as mulheres devem sentar-se atrás dos homens e filas separadas em bancos e clinicas médicas.

A segregação é praticada há anos e conta com a aquiescência do governo. O Ministério dos Transportes permite a existência das linhas de ônibus nas quais é praticada a segregação e as prefeituras, subordinadas ao Ministério do Interior, autorizam placas nas ruas que guiam as mulheres para uma calçada e os homens para outra.

Quem diria? No rico e aguerrido Israel, armado com bombas nucleares e uma força aérea letal, onde toda mulher é soldado e luta ombro a ombro com os israelenses, as mulheres são segregadas em bancos, clínicas médicas, ônibus e ruas. Se isto é o que transpira na imprensa, imagine o leitor o que ocorre entre quatro paredes.

Cruzo com estes senhores na rua todos os dias. Boa parte das mulheres casadas de meu bairro cobrem os cabelos com uma peruca, que só pode ser retirada na intimidade, diante do marido. Os ortodoxos jamais dão a mão a mulheres que não as suas. E, pelo que vejo na rua, não dão a mão nem à própria mulher.

Ela pode estar impura. Isto é, menstruada. Há alguns anos, Marta Suplicy dirigiu-se de mão estendida, como todo político, a um grupo de rabinos. Exceto um, todos lhe negaram a mão. O único a estender-se a sua foi aquele rabino ladrão de gravatas, de hábitos pouco ortodoxos.

Em 2006, mantive polêmica com o rabinato de meu bairro em função de artigo no qual, além de outras bizarrices, eu comentava este curioso comportamento. Respondeu-me um representante da comunidade judaica:

- Um homem, mesmo tendo 100% de certeza de que uma mulher não está menstruada - escrevem meus contestadores - e ainda que seja sua esposa; mesmo assim, pelas leis mais estritas judaicas, não pode cumprimentá-la em público. E por quê? Por questão de recato. Para preservar carinhos e troca de afagos para os momentos íntimos e particulares com a sua amada.

Ora, não vejo nenhuma falta ao recato em dar a mão a uma mulher. Assim fosse, todos os cristãos deste país seriam despudorados irremediáveis. Meus interlocutores pareciam não ter lido a Torá. Lá está, em Levítico 15:19-24:

"E mulher, quando tiver fluxo, e o fluxo da sua carne for de cor sangüínea, sete dias ficará separada na sua impureza; e todo aquele que tocar nela será impuro até a tarde. E tudo sobre o que se deitar na sua impureza será impuro, e tudo sobre o que ela se sentar será impuro. E todo que tocar no seu leito, lavará suas vestes, se banhará em água e será impuro até a tarde. E quem tocar sobre o leito ou sobre o objeto em que ela está sentada, tocando neles, será impuro até a tarde. E se um homem deitar com ela, a sua impureza passará sobre ele, e ficará impuro sete dias; e toda cama em que ele se deitar, se fará impura".

Ora, para mim, cidadão ocidental e vivendo neste século, soa muito estranho considerar impura uma mulher em seus dias de menstruação. Uma das traduções da Bíblia, a de João Ferreira de Almeida, vai mais longe: tacha as mulheres como imundas.

“Fala aos filhos de Israel, dizendo: Se uma mulher conceber e tiver um menino, será imunda sete dias; assim como nos dias da impureza da sua enfermidade, será imunda. (...) Mas, se tiver uma menina, então será imunda duas semanas, como na sua impureza”.

O rabino Meir Matzliah Melamed, que comenta minha Torá, especifica com rabínicas minúcias as substâncias tóxicas que portam estes seres imundos:

“Os cientistas maravilham-se diante do fato de que os antigos hebreus praticavam o mais alto padrão de higiene sexual reconhecido nos tempos atuais. Tem sido demonstrada também a existência de uma substância tóxica no sangue, na salivas, na transpiração, na urina e em todas as outras exudações da mulher durante o período da menstruação”.

Que nojo! Que estas imundas sejam confinadas na traseira dos ônibus e enviadas para o outro da calçada por onde passam os virtuosos e higiênicos nuredim. Árabes e judeus vivem em guerra constante. No fundo, participam do mesmo obscurantismo.

Só muda a mosca.

segunda-feira, janeiro 23, 2012
 
A LEI QUE VÁ PRA
PUTA QUE A PARIU



Leio no Estadão que trinta pessoas foram presas no domingo e também na madrugada de hoje, durante operação para reintegração de posse do acampamento Pinheirinho, na zona sul de São José dos Campos, no interior de São Paulo. Segundo a Polícia Militar, nove veículos foram incendiados.

No Facebook, essa nova e confortável tribuna revolucionária, onde militantes da utopia acham que podem salvar o mundo teclando, houve quem falasse em massacre. E houve quem se perguntasse por que a polícia não invadia a casa do bispo Edir Macedo. Longe de mim defender vigaristas, mas o bispo não invadiu o espaço em que habita. Edir Macedo há muito devia estar na cadeia, mas por outras razões. Por fraude, exploração da fé pública, extorsão de crentes, evasão de divisas, coisas do gênero. Mas se formos por esse lado, nem os padres da Igreja Católica estariam soltos. Religião sempre foi enganação.

Não houve massacre. Houve apenas o cumprimento de uma ordem judicial. O PT bem que gostaria de um banho de sangue em ano eleitoral. Um dos advogados dos invasores já falava em um novo Carajás. O líder dos invasores não mora lá, tem carro e casa própria e recebe um gordo salário de um sindicato, no qual não cumpre expediente. A prefeitura de São José dos Campos está nas mãos do PSDB. O governo federal, em manifesto desrespeito a uma ordem judicial, saiu em defesa dos invasores. O PT quer a prefeitura nas próximas eleições. Para decepção dos petistas, não houve nenhum cadáver na reintegração de posse em Pinheirinho.

Em fevereiro de 2010, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) - principal entidade de classe da toga, com 14 mil juízes filiados - criticou duramente a proposta do governo que previa a realização de audiências públicas prévias como pré-requisito para a concessão de liminares em caso de reintegração de posse de terra, prevista no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. Em nota pública, a AMB alertava que, se a proposta fosse aprovada, iria "afrontar as prerrogativas do Poder Judiciário e, conseqüentemente, a dos cidadãos".

Ora, a reintegração de posse, como se processa hoje, já é um desvio de uma prerrogativa policial. Há alguns anos, ouvi de um empresário estrangeiro, que desistira de investir no Brasil: “Que país é esse em que preciso recorrer ao Judiciário para recuperar minhas propriedades que foram invadidas por bandoleiros? E a polícia, para que serve?”

Ao assumir a reintegração de posse, o Judiciário caiu na armadilha da guerrilha católico-comunista do MST. Isso sem falar que hoje, em certos Estados, documento de reintegração de posse e papel higiênico têm a mesma utilidade. O pior de tudo é que há juízes que vêm na lei apenas esta função.

“Não é aceitável que o juiz, após formar seu livre convencimento para conceder uma medida liminar, observando o devido processo legal, tenha condicionada sua decisão, muitas vezes necessária e urgente, à realização de uma audiência pública com viés não raras vezes político, postergando ainda mais a prestação jurisdicional pretendida", destacava a nota da AMB.

O dia 17 de outubro de 2001 foi um marco histórico nesta escalada das esquerdas. Pela primeira vez na história do país, um juiz revogou o direito de propriedade. Luís Christiano Enger Aires, da 1ª Vara Cível de Passo Fundo, contaminado pelos ares da época, negou a reintegração de posse de uma fazenda invadida pelo MST, sob a alegação de que não havia provas da função social do imóvel.

Temos agora um juiz em Passo Fundo que, de uma penada, decidiu abolir a propriedade privada. De Passo Fundo para o mundo. Só faltou o Lênin dos pampas pendurar em postes os kulaks gaúchos, como escarmento. Como dizia uma escritora carioca, em uma das Jornadas Literárias lá realizadas: "pena que Platão não conheceu Passo Fundo".

De uma penada, foram revogadas também a Constituição e o Código civil nacionais. Juízes se arvoram em legisladores e prolatam sentenças ao arrepio da lei. Como disse um destes senhores, o juiz Márcio de Oliveira Puggina, em 1990, ao justificar uma sentença: "A lei era claramente institucional. Eu a mandei à puta que a pariu e autorizei o município a pagar."

Quando em um Estado um magistrado assim se refere à lei e permanece magistrado, está criado o clima para ministros contestarem uma decisão judicial. Os velhos comunossauros que hoje ocupam o palácio do Planalto tiveram uma recaída e parecem ainda alimentar o sonho comunista de acabar com a propriedade privada.

domingo, janeiro 22, 2012
 
A TELEVISÃO NACIONAL
E A HUMANA ESTUPIDEZ



Não. Não vou discutir a ridícula história do suposto estupro ocorrido durante o tal de Big Brother Brasil. Primeiro, porque não assisto à televisão nacional. Segundo, porque jamais assistiria ao BBB. Certa vez, para saber do que se tratava, tentei ver o programa. Não consegui agüentar cinco minutos. E o BBB, pelo que me consta, tem milhões de espectadores. Haja pobreza mental neste país.

Vou discutir, isto sim, as ridículas reações da imprensa ao ridículo programa. A última Veja, por exemplo, deu capa e nada menos que oito páginas a um episódio que não merecia sequer oito linhas. Pelos jornais, fico sabendo que, às seis da manhã de domingo passado, numa emissão pay-per-view da Globo, um dos palhaços do reality show teria estuprado, sob um edredom, uma outra idiota que dormia.

Duas considerações, para começar. Primeiro, tanto estuprador como vítima negam o estupro. Que o estuprador negue, entende-se. Mas se a vítima nega, então não há estupro algum. E portanto razão nenhuma para esse alarido da imprensa. Em segundo lugar, é preciso ser muito estúpido para pagar para ver um programa estúpido como aquele, às seis horas da madrugada. Eu não o assistiria nem que me pagassem.

Tenho lido reclamações, tanto nos jornais como na Internet, contra a televisão, contra a rede Globo, contra o BBB. Não as entendo. O controle remoto tem dois botõezinhos, on e off. Basta clicar no segundo e o telespectador está protegido de qualquer infâmia. Leio na reportagem da Veja que a repercussão do programa no Twitter atingiu a marca de 116 mil tuiteiros. Ou seja, havia pelo menos 116 mil idiotas preocupados com o BBB.

Desde há muito, há uma grita geral contra o baixo nível da televisão nacional. Grita besta. Se você acha que a televisão tem baixo nível, não a ligue. Ninguém é obrigado a assistir a programas idiotas. Assiste porque quer. No fundo, parece existir a noção de um certo direito a assistir TV, e neste certo direito vem embutida a noção de assistir a bons programas. Ora, televisão precisa de público. Necessitando de público, explora os baixos instintos deste público. Quem faz a televisão não são seus programadores, mas essa gentinha que paga para ver idiotas se esfregando sob lençóis às seis da madrugada.

A televisão criou um dos personagens mais repelentes desta nossa era midiática, a tal de celebridade. Uma analfabeta qualquer, desde que tenha algumas curvas, vira celebridade da noite para o dia, porque a televisão quer. E por que a televisão quer? Porque sabe que se dirige a um público de analfabetos, à gente que não lê, e que pede heróis do mesmo nível de analfabetismo. Que ninguém se queixe. A televisão que existe no Brasil é a televisão que os brasileiros querem. Diga-se o mesmo do governo. Que ninguém pretenda programas inteligentes em um país que elege - e reelege - um analfabeto para a Presidência da República.

Nunca tive boas relações com a televisão. Até os trinta, o aparelhinho não existia em minha casa. Certa vez, quando vivia em Porto Alegre, recebi a visita de moça muito linda, mas carente de cérebro. Espantou-se com a nudez de meu apartamento. Não tens televisão? Não, não tinha. Rádio? Muito menos. E carro? Também não. Então deves ser louco. Talvez fosse, mas vivia muito em paz comigo mesmo, sem rádio, televisão ou carro. Tinha, isto sim, livros. Mas isto pouco interessava à moça.

Só fui conhecer televisão em Paris, em 77. Era correspondente de um jornal gaúcho. Embora falasse razoavelmente o francês, precisava de mais intimidade com a língua e com a política nacional. A televisão então me pareceu ser útil. Mais ainda, tinha alguns programas interessantes, como o de Bernard Pivot, que entrevistou em seu ofício mais de oito mil escritores. Ano passado, fiz um despilfarro: comprei uma televisão de 56 polegadas. Eu a uso para ver filmes ou documentários. Mesmo na televisão a cabo, não vislumbro muita vida inteligente.

Tenho um vício, é verdade, que já confessei. É assistir aos pastores televisivos na madrugada. Mas é vício que me informa sobre a incultura das gentes. Vivo em uma pequena bolha de amigos cultos e, para conhecer a idiotice ambiente, nada melhor que vê-la concentrada em templos no conforto de meu sofá. Dá muito trabalho sair de casa para ter uma idéia da ignorância que me cerca.

Eu a contemplo então, perplexo, na telinha. Milhares de pessoas, na madrugada, gastando tempo de descanso, para ouvirem, extasiadas, vigaristas de baixo nível. Meus prediletos são Edir Macedo, R.R. Soares, o apóstolo Valdemiro e a bispa Sonia Hernández. Aquela que um dia disse: “gente, Deus é uma coisa quentinha”. Saiu de seis meses de prisão nos Estados Unidos, por evasão de divisas, e retornou, olímpica, a seu programa. Quatro ou cinco mil panacas a veneram cada noite em seu templo.

Penso que, neste sentido, a televisão até que educa. É uma forma de tomarmos contato com a humana estupidez sem sair de casa.

sábado, janeiro 21, 2012
 
Entrevista antiga:
FORA DA LEITURA
NÃO HÁ SALVAÇÃO



É chegada a hora de publicarmos a entrevista tão esperada com o polêmico Janer Cristaldo, ateu convicto e, mais importante, lettré. Só espero que com isso se reafirme o caráter do pluralismo de fato a que este periódico visa. Porém, dessa vez, não faço longo intróito, ainda que repita o adágio: pelas palavras conhecereis o homem. Boa leitura.

Martin - Você deixou o teísmo muito cedo. Poderia nos contar como foi essa experiência? Como você vê o papado de Joseph Ratzinger e o seu conservadorismo? É salutar como apregoam os defensores do catolicismo lato senso ou na verdade é uma coisa sinistra em pleno século XXI?

JC - Em minha adolescência, eu vivia torturado pela idéia de pecado, principalmente no que se referia a sexo. Tampouco conseguia entender os dogmas que me haviam sido enfiados na cabeça, durante a catequese. Aí, lá pelos 15 anos, decidi ler a Bíblia com espírito crítico. Em primeiro lugar, nela não vi praticamente nada das besteiras que os padres pregavam no catecismo. Ou seja, Bíblia é uma coisa. Igreja é outra. Em segundo lugar, concluí que aquele deus cruel, genocida e vingativo não podia existir. Joguei minhas crenças fora e me senti extraordinariamente livre. Viver minha sexualidade sem nenhum sentimento de culpa foi algo muito bom. Jogar ao lixo dogmas estúpidos também. Depois daquela leitura, renasci como ateu. Eu não me tornei ateu lendo obras que defendem o ateísmo. Tornei-me ateu lendo a Bíblia.

O papado de Ratzinger ainda não pode ser julgado, mal começou. Mas começou mal. Essa recente viagem à Turquia foi um desastre. Foi como se a cristandade se entregasse de mãos atadas ao Islã. Bento XVI propôs um diálogo com o Islã. Ora, nenhum diálogo é possível enquanto os muçulmanos não aceitarem alguns pressupostos dos quais o Ocidente não pode abrir mão: democracia, livre manifestação do pensamento, separação entre Estado e Igreja, eleições e direito a voto, imprensa livre, igualdade de direitos entre homem e mulher. Impossível dialogar com brutos.

Martin - Como se deu sua formação intelectual? Como foram os anos na França e como você encara Maio de 68: ilusão ou revolução?

JC - Eu me formei em Filosofia e Direito. Mas antes mesmo de entrar na universidade já lia muito sobre Filosofia. Li muita literatura também. A França, a bem da verdade, não contribuiu muito para minha formação. Eu já estava formado. Pedi uma bolsa para estudar literatura apenas porque queria viver em Paris, nada mais do que isso. Como a condição para viver lá era cumprir um projeto de doutorado, acabei me doutorando em Letras. Mas o que eu queria mesmo era curtir mulheres, vinhos e queijos. Foi o que fiz. Claro que Paris, com sua imprensa, suas bibliotecas, os livros a que tive acesso, tudo isto serviu para aprimorar minha visão de mundo. Mas Paris não modificou esta visão de mundo, apenas a consolidou. Antes de Paris, eu havia vivido um ano na Suécia. O fato de ter conhecido uma sociedade tecnologicamente mais avançada antes de chegar a Paris foi importante, eu não chegava à França com a visão de um latino deslumbrado. Depois da Suécia, a França me pareceu uma sociedade muito desorganizada. Os ônibus, por exemplo, não tinham um horário exato para chegar a seus pontos. Em Estocolmo, eu podia acertar o relógio pela chegada do ônibus.

Os anos de França foram ótimos. Tomei Paris como base e comecei a viajar pelo resto da Europa. Conheci ilhas gregas e Canárias, países socialistas e africanos, conheci o Egito e o Saara, fiz várias viagens a Berlim, cobri festivais de cinema em Berlim, Cannes e Cartago, na Tunísia. Viver em Paris sempre é bom.

Eu não estava lá em 68. Conheci Paris em 71 e vivi lá entre 77 e 81. Mas entendo maio de 68 mais como um fenômeno midiático que como revolução. Trop de sperme, pas de sang, como se dizia na época. A única mudança visível foi, a meu ver, a destruição da Sorbonne como universidade e a criação da Université de Vincennes, a mal afamada Paris 8. Tão mal afamada que quem nela se formava escondia seu título.

Martin - Os clássicos devem necessariamente ser lidos? Em sua visão pessoal, é passo necessário para a formação do educando que ele os leia? O que os clássicos podem trazer de bom para a vida de alguém e como se dá a sua relação com eles?

JC - Depende do que se entende por clássico. Há muita obra tida como clássica que me parece não fazer falta a ninguém. Machado de Assis, por exemplo. Ou Joyce. E mesmo Proust. Sei que estou sendo herético, mas não vejo muito o que se ganha lendo tais autores. Mas se entendes por clássicos a Bíblia, Platão, Swift, Dostoievski, Cervantes, Voltaire, José Hernández, Nietzsche, Pessoa, Orwell, considero-os leitura imprescindível. Há outros clássicos que não considero necessários, mas é sempre interessante ler para rir um pouco. Tomás de Aquino, por exemplo. Não que eu negue o valor do Aquinata. Ele era um grande trabalhador intelectual, tanto que era chamado de Boi Mudo. Sua virtude maior foi compilar definitivamente todo o besteirol do cristianismo. Neste sentido, é divertido ler a Suma Teológica.

Chamamos clássicos os autores cujas obras atravessaram os séculos e merecem até hoje uma reflexão. São tentativas de entender o mundo e nos servem como faróis, como indicativos de rumos. Seria muito difícil — e inútil, irracional — para o homem contemporâneo começar de zero.

Martin - Como você iniciou sua vida de tradutor? Borges dizia que é um mito bobo a idéia de que um livro é intraduzível, no sentido de que ele só deveria ser lido no original. É preciso ler no original?

JC - Ao voltar da Suécia, trouxe um livro belíssimo, um romance de antecipação, Kalocain, de Karin Boye. Traduzi-o um pouco pelo prazer de fazer uma leitura em profundidade, outro tanto para não perder meu sueco. O livro foi aceito por uma editora do Rio, a Cia. Editora Americana. Depois disso, um editora paulista, a Alfa-Ômega, convidou-me para traduzir Crônicas de Bustos Domecq, de Borges e Bioy Casares. Mais tarde, Ernesto Sábato me escolheu como tradutor de suas obras. Traduzi cerca de vinte títulos e cansei. O pagamento é vil. Em verdade, rende algumas viagens, mas isso não é generosidade da editora. A gente tem de se virar. Em virtude de minhas traduções do sueco, ganhei uma viagem à Suécia. Ganhei também uma bolsa na Espanha, que atribuo às minhas traduções do prêmio Nobel espanhol Camilo José Cela. Bem entendido, eu o traduzi antes de ser Nobel.

As traduções são impossíveis, mas necessárias. Claro que é melhor ler uma obra no original. Procuro não ler obras traduzidas de línguas às quais tenho acesso. E acho que um homem medianamente culto, em nossos dias, tem de conhecer necessariamente o inglês, o francês e o espanhol. Ou não vai entender o mundo. As línguas são janelas abertas para outras culturas, e quanto mais janelas abertas tivermos para o exterior, melhor.

Martin - O que você pensa da atual situação cultural brasileira? Há produção de qualidade? Onde isso poderia ser apontado?

JC - Não há grande coisa a salientar. O Brasil tem ficcionistas demais. Escrever ficção é só sentar e dar livre curso à imaginação. Pesquisar, que é bom, é mais trabalhoso. Nossos pesquisadores se limitam a temas nacionais. Não temos um grande historiador, um grande estudioso de religiões, um grande estudioso da Bíblia. Se quisermos entender história universal, passada ou contemporânea, temos de recorrer a bibliografias estrangeiras. Surgiram recentemente nas livrarias biografias excelentes de Mao, Stalin, Lênin. Isto não é tarefa para um brasileirinho. É como se a universidade e a cultura nacionais se debruçassem sobre o próprio umbigo, sem se importar com o que acontece no planetinha.

Não temos filósofos. No Brasil, está na moda chamar de filósofo qualquer professorzinho de filosofia. Ora, professores de filosofia não são filósofos. Filósofo é quem cria uma doutrina original. Desconheço algum pensador brasileiro que tenha criado uma doutrina original. São todos repetidores da história da filosofia. Quase todos os escritores do século passado foram influenciados pelo marxismo. Isto foi fatal para a literatura brasileira.

Martin - Há muitas pessoas apontando uma crise. Mas o homem sempre parece estar numa situação de crise, meio apocalíptica, como se o fim estivesse próximo. Os valores, culturalmente falando, foram rebaixados em nosso tempo?

JC - O homem sempre viveu em crise. Houve uma crise na emersão do cristianismo, houve crise na queda do império romano, Galileu sozinho provocou uma crise na visão cristão de mundo, a última crise que vivemos foi a derrocada do comunismo. Nossa situação é apocalíptica? Só para profetas do apocalipse. Esta profissão é das mais fáceis. Apostar no pior é meia aposta ganha. Por outro lado, para estes profetas, o pior é sempre mais adiante. Enquanto o pior não chega, a profecia se mantém à espera. A humanidade sempre viveu como se o fim estivesse próximo. Há dois mil anos, esta sensação era mais aguda que hoje. Naqueles dias, o apocalipse estava marcado para amanhã. Se os valores foram rebaixados? Difícil responder. Cada época tem seus valores. Morrem uns, nascem outros. A imprensa cria valores, mitos. Cabe ao homem independente fugir a esses valores midiáticos. Não é difícil. Bastar pensar um pouco.

Martin - Quais são os seus autores e livros preferidos e por quê?

JC - Tenho uma biblioteca que terá uns cinco mil exemplares. Nem tudo é trigo nela, há muito joio. Para entender o mundo precisamos ler também muita porcaria. É o que chamo de leitura contra: nos obrigamos a ler certos livros que sabemos serem idiotas. Mas temos de lê-los, para entender o nível de idiotia da humanidade. Assim, boa parte de minha biblioteca tem livros de religião e livros sobre o comunismo. Temos de estudar o inimigo se quisermos combatê-lo.

Sempre que me perguntam por autores preferidos, costumo citar alguns, mais ou menos aleatoriamente. Cá estão. Todo homem necessita de alguma poesia. Há dois poetas que me satisfazem plenamente, posso viver minha toda nutrido por eles: José Hernández e Fernando Pessoa. Hernández escreveu o poema maior da América Latina, Martín Fierro. É poema que leio e releio e não canso de reler. Poucas pessoas o conhecem no Brasil. Pessoa, sabemos quem é.

Entre meus livros de cabeceira, tenho a História das Origens do Cristianismo, de Ernest Renan (sete volumes). Através destes volumes, tenho uma boa idéia das crenças que embasam o Ocidente. Outro de cabeceira é A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, me dá uma boa idéia dos fundamentos da cidade contemporânea. Ainda nesta linha, gosto de ler A Cidade na História, de Lewis Munford. Gosto de cidades e gosto de entendê-las. Fui um leitor apaixonado de Nietzsche e até hoje gosto de reler Ecce Homo, o último livro que publicou antes de enlouquecer. Este livro resume o homem todo. A propósito de loucos, gostei também de ler Escuta, Zé Ninguém, do Wilhelm Reich.

Sou fascinado pelas Viagens de Gulliver, a meu ver o livro mais importante do século XVIII. Atualíssimo. Já fui processado por cita-lo. E considero 1984, do Orwell, a obra mais emblemática do século XX. Desmonta toda a semântica do comunismo. Não posso deixar de lado o Quixote, que traduz todo um país que adoro, a Espanha. Além disso, é uma viagem no tempo, me transporta a uma Espanha de 400 anos atrás.

Gostei muito de ler Giovanni Papini, um grande escritor italiano do qual hoje ninguém lembra. Adoro os livros de crônicas do Pitigrilli. Gostei de Dostoievski, embora hoje não tenha muita paciência para relê-lo. Atualmente, acabo de ler, e com muito prazer, as biografias de Stalin, de Simon Sebag Montefiore, e de Mao, de Jung Chang. Ainda recentemente, li — e com muito vagar para melhor degustá-lo — Histoire de l'athéisme, do historiador francês Georges Minois. É o que o título diz, uma história do ateísmo, dos gregos para cá. Se as histórias das religiões são muitas, as do ateísmo são raras. Fascinante.

Li também há pouco uma discussão sobre a gênese da Europa, do medievalista Jacques le Goff, L'Europe est-elle née au Moyen-Âge? O ensaio discute não só o surgimento da Europa como seu próprio conceito. Muito oportuno nestes dias em que a Comunidade Européia inchou para 25 países. Da última viagem a Roma, trouxe Medioevo sul naso. Occhiali, bottoni, e altri invenzione medievali, de Chiara Frugoni. Costumamos ver a Idade Média como um período de trevas, mas houve também muita criatividade naqueles dias. A autora se detém sobre a revolução do vidro, essa revolução silenciosa e sem sangue que iluminou as residências e nos aproximou tanto do infinitamente pequeno, como do infinitamente grande. Que permite aos míopes ler, o que muitas esquecemos. Sem esse achado que hoje nos é tão banal, não teríamos, por exemplo, aquelas magníficas fotos dos anéis de Saturno que surgiram recentemente na imprensa. E por aí vai.

Mas algo aconteceu comigo nos últimos anos. Já deve fazer uns bons vinte anos que não leio ficções. Mundos inventados já não me interessam muito. Claro, fico com esses clássicos, tipo Cervantes, Swift, Orwell, que interpretaram com muita competência as sociedades de suas épocas. Mas os ficcionistas contemporâneos não me apetecem. Não conseguiram sequer prever a queda do Muro de Berlim. Tenho preferido ensaios, nos últimos anos.

Martin - Harold Bloom escreveu um livro chamado Como e por que ler?. Remeto-lhe a questão do título.

JC - Fora da leitura não há salvação.

Protosophos, 20 dezembro 2006

sexta-feira, janeiro 20, 2012
 
VERISSIMO SE ALEGRA COM
NAUFRÁGIO DO CONCORDIA



Os marxistas, tanto os antigos como os atuais, sempre nutriram um secreto ódio pela Europa. O velho continente era uma resposta bem-sucedida às veleidades dos comunistas. Era e é. A União Soviética afundou e a Europa continua navegando firme pelos mares da História. Não foi por acaso que Marx e Engels escreveram na introdução do Manifesto: um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo. Rondava. Hoje o comunismo voltou à sua condição de fantasma.

Fala-se hoje em crise. Como eu escrevia há pouco, bem-vinda seja entre nós a crise européia. Entusiasmado com a notícia de que o Brasil desponta como a sexta economia do mundo, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, andou dizendo mês passado que o país poderá demorar de dez a vinte anos para fazer com que o cidadão brasileiro tenha um padrão de vida semelhante ao europeu. Sem nada entender de economia, diria que isto é possível. Basta que a Europa continue empobrecendo nos próximos dez ou vinte anos. Aí o Brasil empata.

Para bom comunista, até o naufrágio do Costa Concordia é motivo de alegria. Escreve Luís Fernando Verissimo:

“Disseram do naufrágio do Titanic em 1912 que ele simbolizou o fim tardio do século 19, com sua fé na tecnologia e no domínio do homem sobre a natureza. Se aquele magnífico navio adernado na costa da Itália simboliza alguma coisa é o fim de outra ilusão que ninguém esperava fosse acabar: a união européia, o euro forte e os anos de euforia com o dinheiro farto. E ninguém viu as pedras”.

Há um discreto regozijo nestas palavras. Haja wishful thinking para imaginar que o acidente nas costas da Itália pode simbolizar o fim da união européia, do euro forte e dos anos de dinheiro farto. Houve acontecimento muito mais emblemático nos estertores do século passado, e não vi Verissimo algum com ele regozijar-se. Falo da queda do Muro, o segundo acontecimento mais significativo dos últimos cem anos. Naquele 09 de novembro de 1989, afundava uma tirania de sete décadas. A partir daquele dia, o colapso do comunismo era favas contadas. Quanto à Europa, por mais navios que adernem, ainda gozará de boa saúde por mais algumas décadas.

O que mais ameaça a Europa não é um acidente provocado pela irresponsabilidade de um comandante, mas fenômeno bem mais vasto e duradouro, a invasão muçulmana. As esquerdas, que odeiam a Europa, jamais denunciarão esta invasão. Pelo contrário, a apóiam. Se o comunismo não conseguiu destruir ou subjugar a cultura européia, esta tarefa é confiada aos imigrantes árabes e africanos.

Eu estava em Roma no dia 1º de janeiro de 2002, quando foi lançado o euro. Havia uma euforia generalizada no país e milhares de italianos fizeram fila diante das casas de câmbio, abertas até a meia-noite do 31, para pegar as primeiras cédulas. Os italianos não deploraram a morte da vecchia lireta, nem os espanhóis o passamento da peseta. Nem mesmo os gregos, que abandonavam uma moeda antiga de mais de dois mil anos, derramaram lágrimas pela dracma.

Na Finlândia, único país nórdico a aderir à nova moeda, os finlandeses fizeram fila junto aos bancos, naquele réveillon, sob 15 graus abaixo de zero, para trocar seus markkaa por euro. Na Alemanha, onde a transição foi imediata, sem prazo para circulação simultânea da moeda antiga e da nova, os ex-alemães orientais tiveram uma experiência de Terceiro Mundo. Em 91, haviam trocado o deutschmarx pelo deutschmark e, dez anos depois, trocavam este pelo euro.

Os escudos portugueses foram repousar junto aos ceitis, as pesetas junto aos maravedis, sem que ninguém lamentasse esta passagem para o passado. Na Via della Conciliazione, que dá acesso ao Vaticano, naquele 1º de janeiro já se viam sinais dos novos tempos. Quanto vale um anjo em euro? — perguntava-se uma vendedora de quinquilharias sagradas, puxando do bolso seu euroconvertitore.

A vida se tornou mais fácil no continente. Antes, a cada fronteira, você tinha de trocar dinheiro e fazer novos cálculos para determinar o preço dos serviços e mercadorias. As operações bancárias e o comércio se tornaram mais ágeis e instalou-se o que se convencionou chamar de euroforia. Isso apenas uma década após uma outra boa notícia, o desmoronamento do comunismo e o esfacelamento da União Soviética.

Maus dias para as esquerdas, que agora se assanham ante a crise européia e a perspectiva do fim do euro. O fato é que a Europa se expandiu demais, pulando de 12 para 27 países-membros e assumindo economias fracas. Até pode ser que alguns países saíam da eurozona. Mas o euro, para decepção das viúvas do Kremlin, continuará sendo a moeda predominante na maioria dos países da União Européia.

Verissimo prefere ver o símbolo da decadência da Europa no naufrágio de um transatlântico de luxo, um dos ícones do capitalismo, que deixou uma dúzia de cadáveres. Claro que jamais veria o símbolo da decadência do socialismo na explosão de Chernobyl, em 1986, que até 2005 havia deixado 56 mortes – 47 trabalhadores acidentados e nove crianças com câncer da tireóide – mais uma perspectiva de cerca de 4000 cadáveres futuros, com doenças relacionadas com o acidente. Tampouco viu símbolo algum de desastre na explosão do Kursk, que deixou 118 marinheiros sob as águas do mar de Barents.

Como também não vê o símbolo da decadência da África nas precárias pateras lotadas de miseráveis que enfrentam a morte e mesmo morrem, em busca de comida e trabalho no velho continente.

quinta-feira, janeiro 19, 2012
 
BAVIERA ENXUGA GELO


Não passa ano sem que alguma autoridade ou governo ressuscite Hitler. Desta vez, foi o governo da Baviera, que quer impedir a publicação de Mein Kampf, alegando ter os direitos sobre a obra (exceto nos Estados Unidos e no Reino Unido) do ditador. É o que leio nos jornais.

A editora britânica Albertas deve começar a vender, no fim do mês e em bancas de jornal da Alemanha, três edições de 16 páginas cada uma com excertos do livro de Hitler acompanhados de comentários críticos. A publicação terá uma tiragem de 100 mil exemplares e será encartada na revista Zeitungszeugen, da mesma editora, que traz capas de jornais nazistas que circularam entre 1920 e 1930 - também com uma análise.

Aqui no Brasil, toda a vez que algum editor pensa em publicar Mein Kampf, há toda uma grita generalizada entre judeus. Ora, proibir a publicação deste livro é de certa forma proibir o estudo do nazismo. Como entender o anti-semitismo sem ler Hitler? Quanto a incitações ao genocídio, o livrinho de Hitler é café pequeno diante da Bíblia. Se Hitler quer exterminar os judeus, os judeus, a mando de Jeová, exterminaram todos os povos que habitavam a Terra Prometida. Isto é, o Lebensraum judaico, se me é permissível a ironia.

Na Torá, encontramos incitações ao genocídio a toda hora. Javé ordena Israel a matar os amorreus, heteus, ferezeus, cananeus, heveus, jebuseus, mais tribos do que massacrou Maomé. O bom deus dos judeus e cristãos manda massacrar, arrasar, degolar, destruir cidades, matar tudo que respire. Quanto a ódio aos judeus, só o santo homem Moisés mandou degolar três mil judeus. No Novo Testamento, no Apocalipse, o Cordeiro volta para exterminar o que sobrou da humanidade.

Outro livrinho que também deveria ser proibido, se é que se pode proibir algum livro por incitação ao genocídio, é o Alcorão. Maomé que também ordenou grandes degolas, deve ter-se inspirado na Bíblia. “Matai os idólatras”, diz a surata 9:5. “Matai-os onde quer que os encontreis e expulsai-os de onde vos expulsaram, porque a perseguição é mais grave do que o homicídio. Não os combatais nas cercanias da Mesquita Sagrada, a menos que vos ataquem. Mas, se ali vos combaterem, matai-os. Tal será o castigo dos incrédulos”, diz outra surata, a 2:191. Há ainda um hadith que proclama: “Fazei guerra, com sangue e extermínio, a todos que não crêem em Alá. Quando encontrardes com os infiéis, matai-os”.

Isso sem falar na abundante bibliografia que ainda existe no mundo todo, incensando assassinos em massa como Stalin e Mao e assassinos menores como Fidel ou Che Guevara. Durante boas décadas do século passado, Stalin e Mao – que mataram milhões que nenhum Hitler sonhou matar – foram celebrados como condutores da humanidade. Guevara virou santo, a ponto de ser cultuado, na Bolívia, como San Ernesto de la Higuera. A louvação do Che quase virou gênero literário. Houve época em que as livrarias mantinham estantes exclusivas para a bibliografia em torno ao celerado.

Jamais me ocorreria pedir a proibição desses livros que transformam assassinos em santos, aliás tenho alguns deles em minha biblioteca. Entre estes, O Mundo da Paz, de Jorge Amado, abominável hagiolatria a Stalin e Envers Hodja. Ou ainda O Cavaleiro da Esperança, do mesmo Amado, babosa louvação de outro assassino, Luís Carlos Prestes. Estes livros, por estúpidos que sejam, são úteis para entendermos o mundo que nos cerca.

Quanto ao Mein Kampf, eu o tenho no computador. Não consegui lê-lo integralmente. Muito mal escrito. Proibi-lo é como enxugar gelo. Há diversas edições eletrônicas e gratuitas na Internet, inclusive em português.

quarta-feira, janeiro 18, 2012
 
PARA CRENTES, MEIAS E ORAÇÃO.
PARA O JOELHO DO APÓSTOLO,
A MELHOR MEDICINA DE PONTA



Se há algo que me irrita profundamente, é ver padres, pastores, freiras ou piedosas senhoras tentando levar consolo a pacientes de doenças graves. Uma pessoa doente normalmente está fragilizada e obviamente quer a companhia dos seus, e não a de estranhos. Quando minha mulher padecia no hospital, tive de correr do quarto essas almas generosas que sempre são signos de mau agouro. São abutres que só aparecem quando a hora da morte se aproxima. Se você está em um leito de hospital e um padre aparece, comece a preocupar-se. Ele sentiu o cheiro da morte.

Assim, é com satisfação que leio notícia sobre a resolução do Hospital Regional do Agreste (HRA), em Caruaru, Pernambuco, de proibir a partir desse mês que religiosos realizem pregações ou orações em grupo nas enfermarias e corredores da unidade. Se um padre já é um pé no saco, imagine uma chusma deles rezando nas enfermarias. Essa gentalha, com a arrogância de suas fés, não respeitam nem mesmo pessoas que estão morrendo. A impressão que me passam é que pretendem salvar alminhas renitentes em seus momentos finais, para aumentar seus créditos junto ao Altíssimo.

Aconteceu com minha mulher. Quando adoeceu, círculos de oração foram organizados no país todo. Deus a curará – diziam. “Estamos gastando nossos créditos junto ao Poderoso” – disse-me um casal católico. Ninguém mencionava o tratamento sofisticado, caro e doloroso, ao qual ela estava sendo submetida. Quando morreu, mudou o papo. A medicina falhou. Deus tinha outros planos para ela. Mas agora ela finalmente está sendo feliz.

Se agora estava sendo finalmente feliz, por que rezavam para que permanecesse nesta vida em que era infeliz? Enfim, pelo menos não rezaram no quarto do hospital. No velório, puseram seu sofrido corpo logo abaixo de um imenso Cristo crucificado e peladão. Tirem esse lixo daí – ordenei. Tiraram. Só o que faltava emprestar o cadáver da Baixinha para fazer propaganda do judeu aquele.

Se o paciente se cura, curou-se devido à intervenção divina, ao poder das orações. Se morre, foi falha da medicina. Segundo a direção do hospital de Caruaru, referência no atendimento no agreste de Pernambuco, a determinação atende às reclamações de pacientes e visitantes, que estariam incomodados com as constantes pregações feitas em voz alta durante as visitas nas enfermarias.

Em nota pública, disse o diretor do HRA, José Bezerra: “Sabemos que existem pacientes que necessitam de um apoio, de uma palavra de conforto, e encontram tudo isso na religião. No entanto, nem todos os religiosos que fazem as visitas têm essa intenção. Muitos, além de visitar o seu paciente, acabam chamando atenção dos outros - muitas vezes a contragosto, porque não são da mesma religião, para que escutem o que eles têm a dizer”.

Padres ou pastores deveriam ser proibidos de entrar em hospitais. Que façam seu proselitismo em seus templos. E assim mesmo, estão abusando da paciência dos cidadãos. No início deste janeiro, a inauguração de um templo da Igreja Mundial do Poder de Deus, em Guarulhos, do apóstolo Valdemiro Santiago, causou um congestionamento na Via Dutra de mais de 20 quilômetros. Mais de 450 mil pessoas acorreram ao local. Passageiros que tinha vôo marcado no aeroporto de Cumbica não conseguiram chegar a tempo e perderam a viagem. Quem vai indenizar estes passageiros? Se bem conheço os bois com que lavro, ninguém. Pior que tudo é a gritaria desses vigaristas. Ai de quem morar perto de um desses templos. Pelo jeito, os evangélicos acham que o demônio é surdo. Só pode ser expulso dos endemoniados aos berros.

A propósito, nos programas televisivos da Igreja Mundial do Poder de Deus, os milagres saltam como pipocas numa panela. Aids, reumatismo, câncer, cegueira, lumbago são curados na hora com o toque divino do apóstolo. Sua igreja lançou “as poderosas meias consagradas abençoadas pelo Apóstolo Valdemiro Santiago”. Embora a Bíblia não faça reverência alguma a meias usadas por Josué ou Moisés, o santo apóstolo utiliza a passagem bíblica de Josué 1:3 para fazer a propaganda em vídeo das ditas: “Todo lugar que pisar a planta do vosso pé, vo-lo dei, como eu disse a Moisés”. Para receber as meias abençoadas, os fiéis têm que ofertar uma quantia de R$ 153,00 reais para a Igreja Mundial.

Mas o melhor vem agora. Em novembro passado, o apóstolo milagreiro se submeteu a uma cirurgia no Hospital Albert Einstein em São Paulo para resolver um problema no joelho. Para os crentes, meias consagradas e orações.

Para o joelho do apóstolo, a melhor medicina de São Paulo.

terça-feira, janeiro 17, 2012
 
STALINISTA NÃO TEM CURA


Leitor acha que exagerei ao escrever que Luciana Genro justifica cem milhões de cadáveres. Ora, é o que diz a moça quando escreve em seu blog, ao voltar de seu turismo privilegiado em Cuba: “finalizo reiterando as minhas convicções socialistas, reivindicando a revolução russa, chinesa, cubana”. Cem milhões de mortos é o saldo aproximado das vítimas do comunismo no século passado, assim distribuídas, conforme Le Livre Noir du Communisme (Stéphane Courtois et allia):

URSS — 20 milhões de mortos; China — 65 milhões; Vietnã — 1 milhão; Coréia do Norte — 2 milhões; Cambodja — 2 milhões; Europa do Leste — 1 milhão; América Latina — 150 mil; África — 1,7 milhão, Afeganistão — 1,5 milhão; movimento comunista internacional e PCs fora do poder — uma dezena de milhar de mortos.

Atenção: não estamos falando de soldados mortos em guerra. Mas de civis assassinados pelos regimes comunistas. Vamos a mais alguns feitos do comunismo, relacionados no livro supra:

- fuzilamento de dezenas de milhares de reféns ou de pessoas aprisionadas sem julgamento e massacre de centenas de milhares de operários e camponeses rebelados entre 1918 e 1922;
- epidemia de fome de 1922, provocando a morte de cinco milhões de pessoas;
- extermínio e deportação dos cossacos do Don em 1920;
- assassinato de dezenas de milhares de pessoas nos campos de concentração entre 1918 e 1930;
- extermínio de aproximadamente 690 mil pessoas por ocasião da Grande Purga de 1937-1938;
- deportação de dois milhões de kulaks em 1930-1932;
- destruição pela fome provocada e não socorrida de seis milhões de ucranianos em 1932-1933;
- deportação de centenas de milhares de poloneses, ucranianos, bálticos, moldavos e bessárabes em 1939-1941, e depois em 1944-1945;
- deportação de alemães do Volga em 1941;
- deportação e abandono os tártaros da Criméia em 1944;
- deportação e abandono dos chechenos em 1944;
- deportação e abandono dos inguches em 1944;
- deportação e liquidação das populações urbanas do Camboja entre 1975 e 1978;
- lenta destruição dos tibetanos pelos chineses após 1950.

Estou cansado dessa gente que pretende ter as mãos limpas de sangue, mas endossa serenamente a morte de milhões. Tudo em nome da Idéia, como se dizia no auge do comunismo. Não se admite que, em pleno século XXI, Luciana Genro não esteja a par destas informações. Mesmo assim, admite, com a tranqüilidade dos justos, o massacre desta humanidade toda. Albert Camus não o admitia, e por isto foi considerado, em sua época, mais ou menos como um leproso. Disse Sartre, visando Camus: “tout anticomuniste est un chien”. Todo anticomunista é um cão. Sartre não tinha as mãos sujas de sangue, mas sempre apoiou os tiranos que assassinavam em massa. Tenho de voltar à minha tese, Mensageiros das Fúrias, defendida em 1981, na Université de la Sorbonne Nouvelle:

Em 1946, Camus publica em Combat uma série de artigos, sob o título genérico de "Ni victimes ni bourreaux", reflexões que antecipam O Homem Revoltado. Se o século XVII foi o século das matemáticas, argumenta Camus, se o XVIII foi o século das ciências físicas, se o XIX foi o da biologia, o homem contemporâneo vive o século do medo.

"Dir-me-ão que isto não é uma ciência. Mas, primeiramente, a ciência aí está para qualquer coisa, pois seus últimos progressos teóricos a levaram a negar-se a si mesma, dado que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de destruição. Além disso, se o medo em si mesmo não pode ser considerado como uma ciência, não resta dúvida alguma que seja uma técnica".

O que choca Camus é o fato de que homens que viram "mentir, aviltar, matar, deportar, torturar" se façam de surdos cada vez que se tenta dissuadir os homens que mentiam, aviltavam, matavam, deportavam e torturavam, pois estes lutavam em nome de uma abstração. O diálogo entre os homens morreu. "Um homem que não se pode persuadir é um homem que faz medo".

Camus não aceita os constrangimentos de sua época, ou ao menos os constrangimentos de certas correntes intelectuais: não se pode falar do expurgo de artistas na Rússia porque isto favoreceria a "reação". Impossível condenar o apoio dos anglo-saxões a Franco, porque isto seria favorecer o comunismo. Homens concretos, em carne e osso, são massacrados, triturados em nome de solenes ideais. Este massacre não deve ser denunciado, para não impedir a marcha da Idéia. "Vivemos no mundo da abstração, no mundo dos escritórios e das máquinas, das idéias absolutas e do messianismo sem nuanças".

Para escapar a este terror, Camus propõe uma pausa para reflexão, sem esquecer que o terror não é propício à reflexão. Chama os homens sem partido, ou mesmo os homens de partido e que nele se sentem mal, todos aqueles que duvidam da realização do socialismo na Rússia e do liberalismo na América, chama mesmo aqueles que têm crenças mas que se recusam a impô-las pelo assassinato, individual ou coletivo. Revolta-se contra a justificação do assassinato em nome de abstrações, por mais atraentes que sejam. E lança a seus contemporâneos duas questões fundamentais:

"Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer ser assassinado ou violentado? Sim ou não, direta ou indiretamente, você quer assassinar ou violentar? Todos aqueles que responderem negativamente a estas duas questões estão automaticamente embarcados em uma série de conseqüências que devem modificar sua maneira de expor o problema".

O que ele pede é um mundo, não onde não se assassine –"não somos loucos a tal ponto!"- mas onde ao menos o assassinato não seja legitimado. Choca-se com o fato de que todos aqueles que lutam por ideais históricos são homens cheios de boa vontade e que o resultado de sua ação seja o assassinato, a deportação e a guerra. A recusa de legitimar o assassinato deve conduzir-nos a uma reconsideração da noção de utopia.

"A utopia é o que está em contradição com a realidade. Deste ponto de vista, seria totalmente utópico querer que ninguém mate ninguém. É a utopia absoluta. Mas é uma utopia de grau bem mais viável pedir que o assassinato não mais seja legitimado".

Mais de meio século depois desta denúncia, duas décadas após a queda do Muro e do desmoronamento da União Soviética, assestando sua poltrona no sentido da História - como diria Camus - Luciana Genro legitima assassinatos.

Espanta ver que tal cúmplice de massacres tenha um dia sido eleita deputada.