¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
domingo, janeiro 31, 2010
TITÃ É HOSTIL Leio na edição de hoje do Libé sobre graves preocupações dos cientistas britânicos a respeito das tentativas dos terráqueos de comunicar-se com os extra-terrestres. Em 2008, a Nasa enviou ao espaço a canção dos Beatles «Across the Universe», dirigida aos eventuais ETs. Os experts estão se inquientando com a profusão de mensagens enviadas ao cosmos. Seria inteligente assinalar nossas presenças a eventuais vizinhos hostis? Com que direito certas pessoas podem pretender representar nosso mundo face à galáxia? Segundo Albert Harrison, professor de psicologia social na Universidade da Califórnia, muitas mensagens são «responsáveis, mas me interrogo sobre outras coisas que são transmitidas». Ele enumera fotos de celebridades, de dois candidatos políticos – um identificado como bom, outro como mau – publicidade de alimentos, cartas de amor de rock stars. «Quando começamos a chamar a atenção sobre nós, é preciso cuidar da imaginação que transmitimos. Podemos aparecer como uma ameaça para eles». Também acho. Quando, em um planeta que produziu Platão, Alexandre, Cervantes, Newton, Galileu, Schliemann, Champollion, Magalhães, Colombo, Harvey, Napoleão, Nietzsche, se envia ao espaço uma canção de medíocres roqueiros ingleses, corremos o risco de ofender a inteligência extraterrestre. Não tenho dúvidas de que, em algum local do universo, alguma vida inteligente há de existir. Por que existiria só na Terra? O que sabemos é que, aqui na vizinhança da galáxia, vida não é possível. O planeta teria de ter uma distância conveniente de seu sol, uma determinada inclinação de seu eixo em relação à estrela em torno da qual orbita, um certo volume cuja gravidade não achatasse seus habitantes, condições que, nestes arrabaldes da Via Láctea, só a Terra parece ter. Digamos que, a algumas centenas de anos-luz de nosso planetinha, exista vida inteligente. De que adianta? Quem consegue viajar por centenas de anos-luz ? Quer dizer, tanto faz como tanto fez. De qualquer forma, a canção dos Beatles só chegará em 2439 a eventuais destinatários próximos da estrela polar, no caso a Polaris, da constelação da Ursa Menor. Quer dizer, temos ainda quase meio milênio antes que os – como direi? – polarianos, se sintam ofendidos em sua inteligência. Daí a esboçarem uma reação, mesmo que já tenham alcançado a velocidade da luz, precisariam de 380 anos para chegar até nós e revidar à ofensa a seus intelectos. Perigo algum para as gerações presentes. Os terráqueos têm enviado mensagens sérias e filosóficas, como uma Pedra de Rosetta interestelar. Mas há mensagens mais curiosas. Nos anos 80, por exemplo, registros de contrações vaginais das bailarinas do Boston Ballet foram enviados rumo à Epsilon Eridani e Tau Ceti, para dar uma idéia da forma que a humanidade concebe sua descendência. Sem falar que não é só contraindo vaginas que as mulheres concebem, o gesto bem que pode ser interpretado de muitas maneiras. Quem sabe como uma boca faminta pedindo comida, talvez aplausos, quem sabe um abraço afetuoso ou mesmo um gesto de impaciência. Sabe-se lá como os extras interpretariam vaginas que acenam. No livro As Sereias de Titã, Kurt Vonnegut aventa uma hipótese de vida nesta lua de Saturno. São formas estelares, sem movimento algum, que vivem grudadas às paredes de cavernas. Têm uma – e única – forma de comunicação entre elas. Uma diz: “estou aqui, estou aqui, estou aqui”. A outra responde: “Que bom para você, que bom para você, que bom para você”. Cá entre nós, me parece ser a forma de comunicação ideal. Claro que nesta lua não haveria lugar para Zildas Arns, Pastorais da Criança, Madres Teresas, Mandelas, Dalais Lamas, Ratzingers, Lulas, bolsas-família. Titã é hostil e inabitável para terráqueos. sábado, janeiro 30, 2010
PORQUE OS HOMENS PAGAM (III)* Um homem puro, em busca de habilidade profissional 28 anos, ótima aparência, portando um tipo físico atraente a qualquer mulher, delegado de polícia: - Antes da mulher paga, buscamos a mulher livre e emancipada, com quem possamos nos relacionar sexual e afetivamente. Se recorremos ao amor pago, é por falta de oportunidade de encontrarmos essa mulher. Por outro lado, queremos evitar compromissos: pagamos e estamos livres de problemas. - Sempre julgamos que a prostituta vai oferecer um ato com mais requinte e habilidade, pois afinal de contas é uma profissional. - Nós, solteiros, somos no fundo românticos, não somos tão devassos como a época moderna insinua. Estamos sempre em busca da mulher para a qual reservamos aquela castidade que não é maculada por nossas contínuas relações. Acho que, sob o aspecto espiritual, nós que copulamos diariamente, praticamos um ato de rotina, meramente glandular. Mas, no fundo, somos castos. - Também admito que uma mulher possa continuar pura, após muitas relações. Isso geralmente não é admitido devido a nossa formação machista, da qual advém o culto ao hímen, a himenolatria, que atualmente está sendo derrubado. A mulher, que até hoje vinha sendo usada, está evoluindo, se descoisificando. Mais vale um gosto do que um vintém Elinor é universitário, 27 anos, quintanista de Direito: - O preço que se paga a uma mulher é o mesmo preço do esforço para conquistá-la. Sendo o homem por natureza hedonista, procura sempre o caminho mais fácil, mais imediato, o da profissional. - Mais vale um gosto do que um vintém. Quando um homem deseja uma mulher, ele faz qualquer coisa para possuí-la e, se for o caso, paga. Mesmo tendo plena consciência de que uma mulher conquistada por amor lhe dê maior satisfação, tanto sexual como espiritual, no momento em que se depara com uma prostituta, o homem sente-se excitado, com os instintos despertos, e não mede meios para satisfazê-los. O dinheiro é um obstáculo facilmente superável. - Muitas vezes nos relacionamos com nossas colegas de faculdade, mas estas são mais difíceis, por uma série de fatores, e um deles é a grande concorrência. Nos servimos mais das prostitutas, nos lapsos que decorrem entre uma e outra colega. A penicilina e a pílula Ferreira é farmacêutico, casado, 35 anos, tem dois filhos adolescentes, um rapaz e uma moça: - Normalmente, só vou a inferninhos para levar amigos que chegam do interior. Mas penso que posso dar algumas opiniões interessantes a respeito do problema, principalmente em virtude de minha profissão. - Evidentemente, hoje existe muito mais facilidade de um relacionamento pré-matrimonial sadio. Em minha época, existiam dois fantasmas, hoje conjurados pela ciência: as doenças venéreas e a gravidez. A descoberta da penicilina ocorreu em minha juventude. A partir daí houve um grande incremento nas relações fora do matrimônio. Um outro fator positivo foi a descoberta da pílula, que está originando a transformação que estamos assistindo. - Porém os benefícios desta revolução ética só serão usufruídos por meus filhos, que convivem com as pessoas responsáveis por esta reviravolta, os jovens da década passada. Com meus 35 anos e esta barriga estou mais ou menos impossibilitado de juntar meus esforços a esta luta. Frustações e inibições Um outro delegado de polícia assim opina: - O ato sexual com a prostituta é descomprometido, atende o egoísmo de quem a compra. A contraprestação é uma simples remuneração financeira. O casamento, a mancebia, a amante paralela ao casamento, exigem mais responsabilidades e determinam complicações a mais. Acresce ainda que, para muitas pessoas, o ato sexual não é mais do que uma necessidade fisiológica, sendo prescindido o fator de comunicação entre os seres que seria parte integrante de um colóquio carnal em termos ideais. - Sem dúvida, de outro lado não podemos esquecer as frustrações e inibições sexuais determinadas por motivos vários, que desencorajam aquele homem que recorre a uma profissional para uma tentativa sadia de conquista ou aproximação sexual. - Pode-se dizer também que certas pessoas vêem na esposa uma amante com cunho excessivamente espiritual, procurando então a satisfação completa no amor mercernário. À guisa de conclusão Estas declarações situam, de modo genérico, as principais razões pelas quais um homem prefere pagar uma mulher a conquistar uma amante. Delas deduzimos ser falso e ingênuo afirmar que a causa fundamental da prostituição é a necessidade econômica da mulher que vende seu corpo. Antes disto, existe a necessidade masculina de carne paga. Conjugadas estas duas motivações, a prostituição surge como uma instituição – aqui e agora – tão importante quanto a família. Diante de fatos, não cabem deplorações. * Porto Alegre, Diário de Notícias, 26.09.71 PORQUE OS HOMENS PAGAM (II)* Chamam-se assim, minha muito querida, essas vítimas públicas do deboche dos homens, sempre prontos a entregar-se ao seu temperamento ou ao seu interesse; felizes e respeitáveis criaturas que a opinião pública infama e a volúpia coroa, e que muito mais necessárias à sociedade do que as recatadas, têm a coragem de sacrificar, para servi-la, a consideração que essa sociedade ousa negar-lhes injustamente. (Marquês de Sade). Eliminai as mulheres públicas do seio da sociedade e a devassidão a perturbará com desordens de toda a espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que a cloaca num palácio; suprimi a cloaca e o palácio tornar-se-á um lugar sujo e infecto. (São Tomás de Aquino). Em muitas casas de Porto Alegre, vamos encontrar em cada fim de semana, 40, 50 automóveis. Cada visitante que não se satisfaça com uma rápida olhada, gastará um mínimo de Cr$ 100,00. Para uma farra memorável, como diria o Divino Marquês, seriam necessários uns Cr$ 500,00. Ora, quem se permite tais gastos, bem pode sustentar uma família e diversas filiais. Ademais, estamos vivendo um momento histórico no qual, mesmo na província, as relações sexuais pré-matrimoniais são relativamente comuns e inclusive já aceitas sem restrições por setores mais esclarecidos da população, em especial pela juventude universitária de ambos os sexos. A seleção sexual não ocorre apenas sob o signo da aptidão física. “A vitória não depende do vigor sexual, mas dos implementos”, dizia Darwin. Um touro, por exemplo, sendo o sexualmente mais apto, poderá perder sua fêmea para outro sexualmente menos apto, mas que possua aspas mais afiadas. E quais são os implementos do homem moderno que compensam sua carência de atributos eróticos? O carro, as vestes, o apartamento, a carteira recheada. Em outras palavras, aptidão econômica, fator que influirá decisivamente nas relações inter-sexos. Se o “pão”, além de pedestre, estiver com os bolsos vazios, estará em grande desvantagem em relação a qualquer raquítico que esteja motorizado, ou com superávit na carteira. É claro que estes fatores não significam necessariamente uma estrondosa vitória, mas roubam de nosso “pão” 95% de suas possibilidades. Considerando-se então que os grandes problemas sexuais de um indivíduo, em nossa sociedade, são antes de tudo problemas econômicos, não há, aparentemente, razões para que um homem, com sólida situação econômica, prefira, a relações espontâneas – e muitas vezes complementadas afetivamente – relações mercenárias, mecânicas e frias. No entanto, a prostituição não existe apenas devido à necessidade econômica das que a praticam, mas também devido às necessidades eróticas dos que as pagam. Inexplicavelmente, este aspecto é sempre omitido em qualquer abordagem do problema. As razões serão múltiplas. Há os que se entediam com “o respeito às etapas do orgulho feminino”, de que falava Stendhal, como condição da cantada. Outros, ao pagamento em prestações, preferem-no à vista. Outros ainda, sentem-se já muito idosos para usufruir os benefícios da revolução sexual que começa a implantar-se. Um homem distraído Ribeiro tem 49 anos, é solteiro, funcionário público e recentemente bacharelou-se em Direito. Envergando sempre uma simpatia a toda prova, é uma daquelas raras pessoas que pode orgulhar-se de não ter desafetos. Seu segredo: - Por pior que uma pessoa, sempre existe nela algo de bom. É valorizando sempre esse algo bom, que me aproximo de todos. Interrogado com mais especifidade, Ribeiro responde: - Não me lembrei de casar. Então me socorro dessas mulheres. Para Ribeiro, um dos motivos que leva um homem (de recursos módicos, esclarece) a pagar, seria a falta de apartamento para um encontro amoroso. Nem todas as mulheres se submeteriam ao vexame de entrar em um hotel, de assistir até mesmo a troca de lençóis recentemente usados. Com a profissional não existe este problema. Ela está ali para isso. - Depois, por uma questão de comodismo, muitos homens não querem, ou não podem, perder tempo com a conquista, na criação de condições que levariam uma mulher a dormir com ele por amor. - Em minha época, tudo era diferente. Existiam certos critérios na escolha de uma mulher. Ou se procurava uma simplesmente para uma noite, ou buscava-se para casar. As uniões extra matrimoniais eram então pouco convenientes: traziam todas as desvantagens do matrimônio, sem nenhuma de suas vantagens. - Também existia o problema do ônus pago: advinda a gravidez, éramos nós que tínhamos de optar entre criar um filho ou abortá-lo. Com a prostituta, não nos cabe essa responsabilidade, ela sabe o que fazer. Opina um crítico literário Jaime, professor de filosofia e crítico literário, assim equaciona o problema: - Os homens pagam porque sentem necessidade de valorizar as relações de intimidade. Se o sexo fosse gratuito, não teria valor. Pelo outro lado, o dinheiro é um meio concreto de conquistar com mais facilidade uma mulher, reduzindo-a à condição de objeto e instrumento de prazer. Metódico e exigente Araújo tem 34 anos, é jornalista, seu físico não é exatamente o que chamaríamos de apolíneo. Tem grandes chances com as mulheres, jogando-as fora na maioria das vezes. Seus hábitos são mais ou menos fixos: faz uma visita mensal à Mônica**, casa que freqüenta desde a juventude. - Se não se dorme com a mulher que se quer, tanto faz que a que conseguimos seja paga ou não. É muito mais vantajoso pagar do que representar a comédia da conquista. Se essa comédia, em outros tempos, era para mim uma aventura, hoje, em minha idade, entendia-me. Não sou mais capaz disso. Às vezes me relaciono com colegas de trabalho, amigas comuns, mas dá muito trabalho, exige no mínimo uns vinte dias de assédio. Araújo concluí: - Durmo na cama de todas as mulheres que posso, mas não admito que qualquer uma durma na minha. A prostituta é a única mulher que jamais nos fará mal. Todos se queixam das mulheres. Mas jamais de uma prostituta. (Continua). * Porto Alegre, Diário de Notícias, 25.09.71 ** Antigo bordel de Porto Alegre, famoso por seu quarto de espelhos sexta-feira, janeiro 29, 2010
PORQUE OS HOMENS PAGAM (I) Semana passada, The Guardian andou publicando uma pesquisa sobre os motivos que levam os homens a pagar por sexo. O levantamento internacional focou nas respostas dadas pelos entrevistados britânicos aos pesquisadores. Doze homens foram entrevistados para a reportagem. Um deles contou sobre sua experiência de crueldade e negligência durante a infância e conectou isso com sua inabilidade de ficar íntimo de qualquer pessoa, especialmente mulheres. Alex admitiu que sexo com prostitutas o faz se sentir "vazio", mas não tem idéia de como poderia fazer para conhecer mulheres da maneira tradicional. – Minha prostituta ideal é aquela que não age como uma – disse o entrevistado. – Precisa fingir que é minha namorada ou um encontro casual, não uma forma de ganhar a vida ou algo mecânico. Para uma terceira pessoa deve parecer que estamos apaixonados. Outro entrevistado, Darren, era jovem e atraente. Perguntado sobre se ele achava que as garotas de programa com as quais transou haviam curtido o sexo, ele respondeu: – Não quero que elas sintam nenhum prazer. Estou pagando para ter sexo e é o dever dela dar prazer a mim. Se ela curtisse, inclusive, eu me sentiria traído. Um outro entrevistado, quando questionado sobre se a prostituição um dia terminaria, respondeu com uma grande gargalhada: "Matem todas as garotas de programa" para que isso aconteça. Segundo o Guardian, uma das descobertas da pesquisa é intrigante: alguns entrevistados mencionaram homens que "precisariam" estuprar alguém se não pudessem pagar por sexo. Um deles disse o seguinte: – Quando você acha que estupraria alguém, você pode compensar e ir numa prostituta. Um homem que precisa de sexo tão desesperadamente poderia sim estuprar alguém. Quase a metade dos entrevistados que pagaram por sexo no Reino Unido disseram que sua primeira experiência com prostitutas ocorreu quando tinham menos de 21 anos. – Meu pai levou a mim e meu irmão mais velho – disse David, um dos homens participantes do projeto. – Meu pai pagou por tudo. Talvez ele quisesse apenas ter certeza de que meu irmão e eu não éramos gays. Acho que ele nunca contou isso para minha mãe. Bob, outro homem entrevistado, compartilha sua teoria: – Homens que pagam por sexo porque dá a sensação de que podem ter o que quiserem e quem quiserem na hora que desejarem. Muitos homens vão a prostitutas porque aí podem fazer coisas que mulheres reais não topariam. Ainda que alguns homens tenham dito que as mulheres também curtiram o sexo, muitos outros admitiram que a garota de programa deveria estar se sentido "enjoada", "miserável", "suja" ou ainda "assustada". Segundo o jornal, sempre há uma deficiência qualquer de caráter em quem busca as profissionais. Um teve experiências cruéis durante a infância, outro precisa que a mulher finja, outro não admite que a mulher goze, outro estupraria se não tivesse sexo pago. A intenção da reportagem parece ser definir como doente todo homem que paga profissionais. Ora, conheço muita gente saudável que usufruiu dos prazeres do sexo pago. Entre eles, este que vos escreve. Usufruiu, disse. Falo no passado, porque hoje a prostituição se taylorizou. Aqueles cabarés onde a gente precisava namorar um pouco antes de escolher a moça não mais existem. Hoje é vapt-vupt. Se antes as profissionais mediam seu tempo em horas, hoje este tempo é medido em minutos. Os anúncios de jornais são um salto no escuro, você não sabe o que terá pela frente. Como disse um dia Paulo Francis, o que está matando a prostituição é o amadorismo. Fiz boas amigas neste mundinho e nossas relações foram muito ternas. Meus melhores dias foram os de UFSC, em Florianópolis. Eu saía tenso das reuniões de departamento, verdadeiros aquelarres onde bruxas hediondas insistiam em amarrotar egos alheios, e ia relaxar numa sauna no centro da cidade. Havia algumas meninas que preparavam vestibular no bordel e eu lhes dava aulas de português, história, literatura. De modo geral, eu não esquentava banco no bar. Ia direto para a cozinha, conversar com minhas discípulas. Que me conste, era o único cliente com direito a freqüentar a cozinha. Ganhei naqueles dias um título que me honra mais que o de Dr. Era chamado de Professor Paixão. Muitas vezes as fiz chorar. Sem querer. É que às vezes levava flores às minhas diletas. E não há prostituta que não se sinta comovida quando recebe flores. Ela se sente gente, se sente respeitada. Não se sente apenas um pedaço de carne, mas espírito. Quando as via na Felipe Schmidt, naquelas circunstâncias em que os clientes mudam de calçada para não vê-las, eu as abraçava e convidava para um café no Senadinho. Disse-me um dia minha mulher: feliz da prostituta que te tem como cliente. Minha educação, de certa forma, ocorreu em bordéis. Já contei. Nos dias de Dom Pedrito, eu participava de um pequeno grupo de cinco ou seis adolescentes. Tínhamos desejo de conhecimento, líamos muito, desde Platão a Cervantes, passando por Descartes e Montaigne, Tomás e Agostinho. Nossos pais não gostavam de tanta leitura e menos ainda dos debates subseqüentes. Tínhamos de procurar alguma ágora para nossas tertúlias. Como os escassos bares fechavam cedo e os invernos lá da fronteira são vergastados pelo minuano, nosso último recurso eram os bordéis, onde discutíamos desde a enteléquia aristotélica até a constitucionalidade ou não da reforma agrária. Com o tempo, vendo que daqueles bolsos saía tudo menos grana, as profissionais decidiram pôr uma atalaia para vigiar nossa chegada. Mal nos aproximávamos, fechavam a casa: "Lá vêm os filósofos, a noite está perdida". Enfim, sempre tive alguma proximidade com esse universo. Uma de minhas primeiras reportagens, em 1969, para o Diário de Notícias, de Porto Alegre, se intitulava “Porque os homens pagam”. Antecipei o Guardian em 40 anos. Eu vivia entre amigos que não dispensavam as moças. Entrevistei-os, queria saber porque pagavam. Minha reportagem foi censurada. Na época, pasme o leitor, os jornais não admitiam a existência de prostitutas no Brasil. Só consegui publicá-la dois anos mais tarde, quando assinava coluna no jornal. Transcrevo-a amanhã. Vejo que permanece atual. quinta-feira, janeiro 28, 2010
UNIVERSIDADE, A MELHOR CORRUPÇÃO O juiz Ivorí Luis da Silva Scheffer, da 2ª Vara Federal Criminal de Florianópolis, decidiu que descumprir condição de bolsa do CNPq não é crime. E determinou o arquivamento de investigação contra ex-bolsista do CNPq, que não cumpriu o compromisso de retornar ao Brasil e empregar o curso de doutorado concluído no exterior. Segundo o magistrado, que acolheu o parecer do Ministério Público Federal (MPF), a conduta não pode ser considerada crime de estelionato, mas somente inadimplência contratual. Traduzamos do juridiquês ao português. O juiz está dizendo que dilapidar dinheiro público em proveito próprio não é crime. É uma tese. Todos os professores inadimplentes da UFSC – e são legião – vão adorar. Há uns bons trinta anos, denunciei esta corrupção nos jornais de Santa Catarina. Houve rebuliço na Reitoria, na maçonaria, no PT, a denúncia foi à Receita Federal, à Polícia Federal, ao Ministério Público... e deu em nada. A mais confortável corrupção hoje – costumo afirmar – é a corrupção universitária. Muito mais ampla e mais permanente que a corrupção no Congresso. Os coitadinhos dos deputados e senadores são denunciados por levar mulheres, amantes e prostitutas para uma ou duas semaninhas no Exterior. Bolsista do CNPq ou Capes fica quatro ou cinco anos nas mais prestigiosas capitais do Ocidente. Se voltar de mãos vazias, tudo bem. Se você tem vocação para a corrupção, deixe de lado a política. Os jornalistas caem em cima. Universidade é muito melhor. Jornalista algum denuncia a universidade. Para o MPF, o ex-bolsista deve apenas “restituir os valores recebidos ante o descumprimento do compromisso assumido, na medida em que não há na conduta noticiada a configuração de ardil ou meio fraudulento para iludir ou manter em erro a vítima na obtenção de vantagem”. O juiz entendeu que o estelionato se configura, entre outros requisitos, quando a vantagem é obtida por meio que induza ou mantenha a vítima em erro, o que não foi o caso. Quem é mesmo a vítima? Suponho que o Erário. Isto é, nós, contribuintes. Se de alguma forma pagamos para que alguém faça pesquisas no Exterior, é claro que não estamos pagando para que faça turismo. O ex-bolsista deve restituir os valores recebidos? Não é assim evidente. Já manifestei meu ceticismo aos bons propósitos do CNPq. Se um bolsista, tendo concluído seu doutorado, recebe boa oferta de trabalho no Exterior, qual instância, humana ou divina, o obrigará a ressarcir a União? Terá seus bens executados no Exterior? Será pedida sua extradição? Qualquer destes procedimentos custará bem mais caro que o valor da bolsa. Já comentei o caso do advogado Cláudio Rollemberg, de quem estão sendo cobrados R$ 608 mil (em valores corrigidos). O advogado foi para a França em 1991 fazer um mestrado em Direito Internacional. Até hoje, 19 anos após a obtenção da bolsa, ainda não conseguiu elaborar um ensaiozinho de 400 ou 500 páginas. Mas não pretende devolver um centavo à União. Só entregará sua tese quando conseguir elaborá-la e estamos conversados. Devo, reconheço, mas não pago. Sua atitude é a mesma dos deputados e senadores, que declararam não saber que não podiam levar mulher, filhos, sogras e amantes para Paris e Miami. Diz que quando assinou o contrato não foi avisado de que poderia ser obrigado a devolver os valores caso não cumprisse as obrigações. "Todo mundo entendia que era gratuito, que era uma questão ideológica". Escrevi também sobre a pesquisadora Ana Maria dos Santos Carmo, obrigada a devolver R$ 489 mil ao CNPq, por descumprir um compromisso firmado com a instituição. Nada menos que US$ 223 mil, ao câmbio de hoje. A estudante não retornou ao Brasil após concluir seus estudos de pós-doutorado nos Estados Unidos, em química de solos, custeados pelo conselho. Carmo alega a falta de emprego em sua área de trabalho. Até se dispõe a pagar o montante, desde que parcelados em US$ 100 mensais. Em apenas 2.230 meses, a dívida estaria quitada. Ou seja, em pouco mais de 185 anos, os cofres públicos seriam ressarcidos. Proposta generosa, não chega sequer a dois séculos. O CNPq não gostou e sugeriu à moça outro parcelamento, de US$ 860,36 mensais. Não vai levar. Nesses termos, a pesquisadora prefere não pagar. E daí? Irá o CNPq entrar com um processo de cobrança internacional? Vai constituir advogado nalgum Estado americano para executar a devedora? Pedirá aos Estados Unidos a extradição da universitária inadimplente? Leio nos jornais que 300 professores receberam bolsas do CNPq e da Capes para cursar doutorado no exterior e calotearam o governo. Cada um deles custou US$ 200 mil e viajou com o compromisso de retornar ao Brasil. Não voltaram nem devolveram o dinheiro. Um golpe de US$ 60 milhões. Bolsistas inadimplentes estão ocupando altos cargos no MEC. O secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (MEC), Ricardo Henriques, é um dos 659 ex-bolsistas que estão inadimplentes com a União. A dívida se deve ao custeio de curso de pós-graduação strictu sensu (mestrado ou doutorado) pela Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes). Henriques deixou de ser bolsista da Capes em 1998. Ele ficou na França, por quatro anos, fazendo doutorado de economia na Universidade de Paris, às custas do financiamento do governo. Apesar de ter concluído todas as disciplinas, não chegou a defender a tese, requisito obrigatório exigido pela instituição a todos que recebem a bolsa. De acordo com o MEC, o secretário fez um pedido de prorrogação e deveria apresentar o trabalho final até 2008. Dez anos para fazer uma tesinha. Mesmo assim, até abril do ano passado, o nome do secretário ainda constava no Cadastro Informativo dos Créditos não Quitados de Órgãos e Entidades Federais (Cadin) devido a essa pendência. Segundo a assessoria de comunicação da Capes, o processo de prorrogação é legal e está em andamento. Assim que eles receberem a última documentação, irão providenciar a regularização de Henriques junto ao Cadin. Gozou da boa culinária francesa, dos demais lazeres que Paris oferece. Voltou de mãos abandonando e tudo bem. Você quer corromper-se? Desista da política. Rende pouco e é alvo dileto dos jornalistas. Opte pela academia, onde você pode corromper-se à vontade, sem nenhum temor a nenhuma denúncia e sem qualquer sanção. quarta-feira, janeiro 27, 2010
NEGRO NÃO PODE. LOIRO DE OLHOS AZUIS PODE! Desde há muito venho denunciando – e suspeito que sou o único a denunciar – a mania politicamente correta de boa parte da imprensa européia de omitir nome, origem e etnia de criminosos quando estes são árabes ou negros. Na França, por exemplo, para identificar os árabes e negros que queimam milhares de carros nos réveillons, os jornais usam um eufemismo divino, les jeunes. Os jovens. Se for cidadão nacional, de longa estirpe e boa cepa, o nome vai para a primeira página dos jornais. Imigrante, jamais. Leio usualmente jornais da Suécia, França, Espanha e Itália. Nunca li alguma determinação escrita sobre este silêncio. A censura é tácita, sem diploma legal algum que a determine. Está no bestunto dos jornalistas. Leitor da França me envia hoje notícia do Le Point que desvela as raízes da interdição. A UMP (Union pour un Mouvement Populaire) – partido de centro-direita que tem maioria na Assembléia Nacional francesa e elegeu Nicolas Sarkozy – publicou em seu site uma foto com jovens negros, como ilustração sobre a delinqüência dos “jovens”. Escândalo no Cran (Conseil représentatif des associations noires). Seu presidente, Patrick Lozes, anunciou ontem ter pedido audiência com Xavier Bertrand, Ministro do Trabalho, das Relações Sociais, da Família e da Solidariedade, para protestar contra a publicação. "Como pode um grande partido reciclar em seu site oficial estereótipos desta natureza – indigna-se o fundador do Cran –. Não é digno do primeiro partido da França. Urge que a UMP e seu secretário geral dissipem este mal-entendido". O Partido Socialista, por sua vez, embarcou em cheio no politicamente correto. O eurodeputado Harlem Désir, membro da direção do PS, denunciou uma "muito grave falta moral. Esta enésima derrapagem, no site do partido majoritário,é odiosa e ilustra mais uma vez os perigos da disputa entre a UMP e o Front National (partido de Le Pen) às vésperas das eleições nacionais". Os verdes embarcaram no mesmo discurso. Ontem ainda, Djamila Sonzogni, porta-voz nacional do Partido Verde, denunciou em um comunicado a "escalada racista" da UMP. "Já é tempo de o partido presidencial cessar de tomar os imigrantes e seus descendentes como reféns. É preciso ser loiro de olhos azuis para que a UMP não faça pesar sobre todos as piores suspeitas?" Ordem dada, ordem cumprida. A UMP retirou imediatamente de seu site as fotos da afrodescendentada. Djamila Sonzogni disse-o bem. Claro está que se ilustrar a delinqüência com loiros de olhos azuis, nada obsta. Pode publicar fotos à vontade. terça-feira, janeiro 26, 2010
REUNIRAM-SE ENTÃO AS ÁGUAS EM CONGRESSO... Comentei outro dia reportagem de Veja, intitulada “Furadas” que podem estragar suas férias. Isadora Pamplona, a redatora, não desrecomendava país algum, mas advertia para épocas ou circunstâncias que é melhor evitar. Por exemplo, ir a Machu Picchu entre dezembro e março, temporada de chuvas. Ir a Veneza durante o carnaval. Ou ir ao Vaticano numa quarta-feira, quando milhares de pessoas se amontoam para ver o papa. Ou ir atrás da Mona Lisa, no Louvre. Etc. (Confira em http://tinyurl.com/y9zh423). Choveram mensagens à revista. Até hoje, mais de cem. Alguns leitores concordavam com as advertências, mas a maioria dos mails era de protesto, inclusive com ataques pessoais à redatora. Entende-se. Quem entrou em furada não gosta de admitir a mancada. Pagou caro para fazer besteira e precisa valorizar seu investimento. Sobre Machu Picchu, escreveu um certo Willow: Acabei de voltar de Machu Picchu. Quem escreveu essa reportagem não tem noção do que está falando. Choveu um pouco sim, mas consegui ótimos descontos por causa da baixa temporada e a chuva faz parte da brincadeira, oras. Se não curte turismo ecológico, ou tem pouco espírito aventureiro, melhor ficar em casa. Machu Picchu não é pra maricas. O meu conselho é, viaje e não se preocupe tanto com essas besteiras. Planejamento é bom, só não escute conselhos de caras que nunca estiveram lá. Reuniram-se então as águas em congresso, em manifesto apoio à redatora. Leio hoje no Estadão: LIMA - Subiu para cinco o número de mortos pela chuva na região andina de Cuzco, no Peru. Entre os mortos está uma turista argentina de 20 anos chamada Lucila Ramballo e um guia peruano, além de um morador da região, uma mulher e um bebê. Um helicóptero conseguiu resgatar 60 dos 2 mil turistas que estão isolados no povoado de Águas Calientes, onde ficam os visitantes das ruínas incas de Machu Picchu. Os turistas foram levados para Ollantaytambo e de lá serão levados para Cuzco, a 570 quilômetros a sudoeste de Lima. Ao menos 200 brasileiros estão entre os turistas ilhados. Com as chuvas, o rio Urubamba transbordou e alagou a linha ferroviária que liga Cuzco a Machu Picchu. O serviço foi interrompido no domingo. O trem é o único meio de transporte na região, que é a mais visitada do Peru. Os turistas passaram a noite dormindo em tendas da Defesa Civil Peruana. O chefe de Gabinete do presidente Alan Garcia, Javier Velásquez, prometeu disponibilizar cinco helicópteros para resgatá-los. O governo declarou estado de emergência na região por 60 dias. A chuva afetou ao menos 3.440 pessoas da região, segundo a Defesa Civil. No portal UOL, leio depoimentos de outros turistas brasileiros ilhados: "Por enquanto a situação não é desesperadora, mas é bastante crítica. Tudo o que eu quero é voltar com minha família para o Brasil". Com essa frase o contador catarinense Mauro Antônio Fornazari, ilhado na região de Machu Picchu há três dias em decorrência das fortes chuvas, começou a conversa com o UOL Notícias pelo telefone. Ele, a mulher e os dois filhos foram passar as férias no Peru e estão presos na cidade de Aguas Calientes, cidade que dá acesso a Machu Picchu, a espera do resgate que será enviado pelo governo peruano. Mauro, a família e mais cinco pessoas estão dormindo em uma casa de dois pavimentos, na cidade. "Nós (nove pessoas) dormimos em dois colchões. Estamos sem banho e, por enquanto, não há falta de alimento". No entanto, o catarinense disse que a cidade começa a dar sinais de que pode faltar comida. "Nós tínhamos esperança que os helicópteros viessem nos resgatar ainda hoje [terça, 26], mas a chuva não para", disse o contador. "A ferrovia está bloqueada, mas talvez nós tentaremos ir a pé. A caminhada é de oito a 10 horas até Cusco", completou. Segundo a empresa PeruRail, alguns turistas decidiram deixar Machu Picchu a pé. "Ao transitar pela via colocam em risco sua segurança. Por isso pedimos calma e que permaneçam em Machu Picchu até que as condições de evacuação sejam adequadas", diz a empresa. Tania Demeulemeester, mãe de Julien Marcel - um dos alunos da UFRGS - disse que o último contato foi na noite de segunda-feira (25). "Ele disse que as filas nos telefones públicos estão imensas e que os caixas eletrônicos não têm mais dinheiro para sacar", contou. Segundo Tânia, o maior medo dos estudantes é a possibilidade da falta de comida. De fato. Entre dezembro e março, Machu Picchu não é para maricas. É viagem para machos, que adoram entrar em uma fria. A redatora de Veja é realmente uma besta, ao recomendar não viajar a Machu Picchu em época de chuvas. REVISÕES RADICAIS Sérgio da Costa Franco * Na história brasileira não houve precedente de revisões radicais, que transformassem vencidos em vencedores e que lhes permitissem rendosas indenizações por atos e fatos de lutas civis ocorridas dezenas de anos antes. Após a proclamação da República, gerada por um golpe militar, não se tem notícia de monarquistas que se considerassem injustiçados e pretendessem ressarcimento por violências dos governantes republicanos. O próprio Pedro II recusou a verba que lhe quis destinar o marechal Deodoro. Nem as famílias dos fuzilados de Anhatomirim, em Florianópolis, ou da Serra da Graciosa, no Paraná, ou dos degolados do Boi Preto, jamais buscaram nada do Tesouro público, a título de reparação. Todos se consideraram protagonistas de um evento histórico de momento conturbado, em que as responsabilidades civis se diluíam com a mesma incerteza das calamidades da natureza e da força maior. Depois de 1930 e da anistia votada pela Constituinte de 1933/34, encerrou-se o assunto e ninguém falou em indenização por injustiças sofridas durante o processo insurrecional ou no ciclo dos levantes tenentistas que o precederam. Até porque o presidente Vargas instituiu a prescrição quinquenal de todos os créditos junto à Fazenda Pública. Protegeu, assim, o erário contra assaltos extemporâneos de sedizentes vítimas de agravos e injustiças. Cremos que existia outrora a consciência de que as atividades políticas envolviam riscos previsíveis, mormente quando insurrecionais, e prescindiam de vantagens econômicas. O patriotismo parecia incompatível com posturas mercenárias. Assim não entendeu, entretanto, a esquerda revolucionária que o golpe militar de 1964 derrotou. E as reabilitações, reparações e ressarcimentos atingiram níveis jamais imaginados. Um cadete expulso da Escola Militar em 1935 por envolvimento na intentona comunista, terminou aposentado com proventos de coronel, 60 anos depois da punição e de uma tranquila e vitoriosa atividade como civil. As indenizações calculadas pelo vitimismo excederam tudo quanto se poderia imaginar como saque ao Fisco. Todavia, o assalto não foi suficiente para saciar o apetite das esquerdas rebeldes. Pretende-se agora reprisar o processo dos conflitos que sucederam ao golpe de 1964, ressuscitando os temas da Guerra Fria, com intuito evidente de glorificar Marighelas, Lamarcas e seus desastrados seguidores. Apesar da coragem e da audácia que ninguém lhes nega, os esquerdistas revolucionários do período da ditadura militar jamais contaram com apoio popular e inegavelmente retardaram o processo de restauração do Estado de direito. A retomada democrática na verdade se iniciou em 1974, quando se viu no MDB um instrumento eficaz para o restabelecimento da vida republicana, ao impor severas derrotas eleitorais ao oficialismo. Os guerrilheiros de Caparaó, de Iguape ou do Araguaia, bem como os sequestradores e assaltantes das áreas urbanas, não ajudaram em nada a democratização. Agora, decênios depois, querem que se escreva uma nova história, na qual pretendem aparecer como vítimas inermes da truculência ditatorial. Sem deixarem de morder, é claro, o dinheiro dos contribuintes... * Historiador e jornalista gaúcho NADA DE NOVO AO SUL DO EQUADOR De Edmonton, Canadá, Daniel Garros me corrige: Essa de cruzeiros religiosos é velha, aqui na Norte América já existem há muitos anos. Existem ministros evangélicos que os organizam, grupos de músicos, igrejas, etc... Assim que náo tinhas a informação correta. A idéia não é tupiniquim, é mais uma cópia do país do tio Sam. Grato, Daniel. Desconhecia. Nada de espantar. Cá no Brasil, nada se cria. Tudo se copia. segunda-feira, janeiro 25, 2010
MANGAL PANDEY, VEGANS E DVDS Ano passado, vi um filme dos mais interessantes na madrugada, The Rising: Ballad of Mangal Pandey, 2005, direção do indiano Ketan Mehta. Que me conste, o filme não passou no Brasil. Deixando de lado alguns momentos bollywoodescos, de danças que funcionam como coral grego narrando a história, o filme merece ser visto. Estamos na Índia, meados do século XIX, quando o país ainda vive na condição de colônia britânica, submetido à poderosa Cia. Britânica das Índias Orientais. Mangal Pandey é um cipaio, soldado a serviço do Reino Unido, como também um grande contingente de indianos. Torna-se amigo de um oficial britânico, William Gordon. Esta amizade vai ser abalada com a chegada de um novo rifle, cujos cartuchos eram envoltos em uma cápsula de gordura que tinha de ser arrancada com os dentes. E aí reside o problema. Os cartuchos eram besuntados em banha de porco ou vaca. Isto mexia com duas amplas camadas do país, os muçulmanos e os hinduístas. Para os primeiros, o porco é um animal imundo. Sua carne não é halal, isto é, não é permitida a um muçulmano. Por outro lado, para os hinduístas, a vaca é animal sagrado. Por razões inversas, não pode ser comida. Há um outro conflito de culturas que ocupa um plano menor no filme, as satis, as viúvas que são queimadas vivas após a morte do marido. William Gordon tropeça com uma procissão que leva uma sati rumo à fogueira. Sua sensibilidade de ocidental não admite tal sacrifício e o oficial a resgata da morte pelo fogo. Mexeu com outro tabu. Sua residência será cercada e atacada pelos indianos que exigem que a viúva seja queimada. Esta tradição só foi proibida recentemente, em 1987, com a cremação de Roop Kanvar, no Rajastão. Foi proibida legalmente, o que não quer dizer que tenha sido extinta. Mas volto aos cartuchos. Inicialmente, os oficiais ingleses juram que não são besuntados com gordura animal. Mangal não se importa então de mordê-los. Advertido por um amigo, acaba visitando a fábrica onde, de fato, os cartuchos eram envoltos numa cápsula de gordura suína e bovina. Tarde demais. Tornou-se um pária, um intocável, aqueles indianos que não pertencem a casta alguma, aos quais até mesmo os jesuítas serviam pão em uma longa pá, para manter distância em relação aos impuros. Mangal lidera então uma rebelião contra o exército britânico. Ele e os seus recusam-se a morder o cartucho, mesmo sob a ameaça de canhões. A rebelião, mais conhecida como a Revolta dos Cipaios, prende fogo no país durante dois anos e custará alguns milhares de mortos a indianos e ingleses. Mangal acaba sendo enforcado e assim torna-se um dos precursores da independência da Índia, quase um século mais tarde, em 1947. Com tabu não se mexe. Apesar daquelas danças bollywoodescas, completamente fora do contexto de um drama – que não deixam de ter certa beleza, confesso – recomendo o filme vivamente. Mas não era do filme que pretendia falar. E sim de outros fanáticos, os vegans. Leio na Folha de São Paulo reportagem sobre esta seita de ultravegetarianos que eliminaram as carnes de sua dieta, em nome do respeito à vida dos animais. Até aí, uma opção de vida. Opção nada inteligente a meu ver, afinal sem a carne dos animais o ser humano não teria chegado até aqui. E tampouco irá muito longe, se depender de vegetais. Vá lá! Há malucos para tudo neste mundo. Os vegans não consomem mel porque seria desrespeitar a abelha. "Ela fabrica o mel para ela. Os produtos não são feitos com mel tirado da natureza, há exploração das abelhas, elas ficam presas em caixas para produzir mais", diz a dentista Rosana Tsibana, 45, que se considera "quase vegana". Quer dizer, ainda não chegou lá. Mas já eliminou matéria-prima animal de roupas e calçados. Só não abandonou o queijo, por falta de opções na hora de comer na rua. Nos estertores do século XIX, Marx cunhou a expressão “exploração do homem pelo homem”. Audace, toujours de l’audace. Os vegans deram um passo à frente. Temos agora a exploração da abelha pelo homem. Que muçulmanos ou hinduístas se recusem aos prazeres da carne, até que se entende. Prisioneiros de religiões primitivas, delas ainda não se libertaram. Mais difícil é entender um ocidental cultuando estas bobagens. Mangal Pandey ressurgiu entre nós, em pleno século XXI: alguns adeptos mais radicais deixam até de ir ao cinema, sob o argumento de que filmes contêm uma substância gelatinosa que é retirada do boi. "Só vejo filmes que não exploram os animais e só freqüento cinemas que passam DVD, não películas", diz o professor de educação física Charles de Freitas Lima, 36, vegano há oito anos. O que me lembra um restaurante que conheci em Madri, o Comidas Naturales. Nele tudo era natural: o boi, o cordeiro, o porco. Nada era artificial. Ora, o DVD foi criado em 1996. A seita dos vegans - palavra que deriva de vegetarianos - foi criada em 1944, na Inglaterra. Fosse vegano desde o berço, o professor só conheceria cinema aos 23. Só que resta uma perguntinha: será que os fabricantes de DVDs não consomem carne bovina? Nem os produtores, diretores e atores dos filmes? Seria prudente pesquisar. E só ver filmes em cuja produção não haja sequer sombra de consumo de carne animal. Que mais não seja, alface também não é um ser vivo? domingo, janeiro 24, 2010
CRISTO INVADE CRUZEIROS Final do ano passado, falando da vulgarização das viagens marítimas, comentei o 1º Cruzeiro Católico - Navegando com Nossa Senhora, no qual por até R$ 2.404, peregrinos embarcarão, em fevereiro próximo, para uma viagem de quatro dias no navio Grand Celebration, com capacidade para 1.800 pessoas e 600 tripulantes. Você não embarca em um barco. Embarca em um templo. Claro que logo adiante teremos o 1º Cruzeiro Evangélico, quem sabe o 1º Cruzeiro Neopentescostal. Navegando em nome do Senhor! Cala-te boca! Antes que este cruzeiro de carolas partisse, um outro já está de volta. Sexta-feira passada, o Vision of the Seas, da Royal Caribbean, atracou em Santos, com um grupo de fiéis organizado pela Renovação Carismática Católica, com direito a padres cantores, cantores religiosos, pregadores DJ's do grupo Electro Cristo e até um profeta moderno, o tal de Ironi Spuldaro. Passageiros desavisados que embarcaram nesta fria, até hoje se arrancam os cabelos. Diz um publicitário na Folha de São Paulo de hoje: “A gente embarcou no dia 18 no Vision of the Seas, achando que ia se divertir pra caramba. Mas foi o cruzeiro mais chato da minha vida". Mulheres de biquíni na piscina, bebida rolando solta, jogatina liberada no cassino equipado com mesas de carteado, roletas e caça-níqueis. Tudo isso tendo como cenário as praias de Búzios e Ilhabela. Diz uma empresária: “Quando compramos o pacote, ninguém nos avisou que embarcaríamos no mesmo navio de um tal de cruzeiro católico. Achamos que fosse um cruzeiro normal. Segundo um funcionário público, que também tomou a canoa furada, “ficou estranho demais. Logo que subimos a bordo, estava um calor incrível e resolvemos tomar um banho de piscina. Não deu. Vieram nos avisar que, bem ali, no deck da piscina, seria realizada a primeira missa do cruzeiro. Não nos sentíamos à vontade para ficar em trajes de banho enquanto se falava do corpo e do sangue de Cristo”. Surprise, leitor! Você pensa ter embarcado em um navio e descobre, já no meio do mar e sem chance de voltar, que embarcou num templo. 850 religiosos pagaram um mínimo de R$ 1.564,00 per capita para fazer a "viagem superior" a bordo do cruzeiro católico. "Jesus na piscina? Eu sou católica, mas acho que igreja é igreja e navio de lazer é navio de lazer – disse outra empresária –. Misturar as duas coisas é complicado. Eles olhavam feio se a gente estava de biquíni, se estava tomando bebida alcoólica, se falava alto, se jogava, se ria. O cassino ficou vazio. Nem o truco foi perdoado. Parecia que a gente estava invadindo a praia deles". O Vision tem capacidade para 2.435 passageiros. Ou seja, um terço deles, em nome de suas superstições, se julga no direito de censurar como você veste, o que você bebe, como você fala, se gosta de jogar ou de rir. Segundo a Royal Caribbean, não se tratava de um cruzeiro temático, logo não justificaria um eventual aviso sobre a presença de católicos a bordo. "De fato, existia um grupo numeroso de católicos a bordo, mas foi um grupo como tantos outros que já viajam conosco. Para esse grupo, como é de praxe em virtude da quantidade de pessoas, foram feitas algumas programações especiais, as quais foram realizadas em salas separadas ou até mesmo nos locais públicos do navio, desde que não prejudicassem o andamento normal do cruzeiro". Leitor me envia notícias de um cruzeiro gospel, realização da Record Trips by CVC, fundada em parceria com a agência de viagens Record Trips e a operadora CVC. Trata-se do CVC Imperatriz. O evento tem duração de três dias (de 17 a 20 de março) e contará com a participação de grandes cantores da música gospel: Regis Danese, Soraya Moraes, Mara Maravilha, Robinson Monteiro, Jamily e o tenor Marcio José. Jamais ouvi falar destes senhores e senhoras. Mas, pelo jeito, há quem os curta. Desde que me conheço por gente, leio os jornais todos os dias e confesso jamais ter ouvido falar de cruzeiros religiosos que não em nossas costas. Depois que a CVC monopolizou os cruzeiros e impôs sua sigla aos transatlânticos, embarcar em um deles se tornou um risco. Os templos, não satisfeitos com invadir os continentes, estão tomando conta dos mares. Quando você toma um navio, você está tentando se evadir das coisas da cidade. De repente, sem que você esperasse, um monte de padres e outro monte de malucos tomam conta da piscina. Coisas nossas. Como a jabuticaba, que só dá no Brasil. E se só dá no Brasil, boa coisa não há de ser. A CVC, desde há muito, virou sinônimo de viagens para panacas. sábado, janeiro 23, 2010
SOBRE LEITURAS E BIBLIOTECAS Quarta-feira passada, citei texto sobre leitura, do pensador alemão Adolf Schiklgruber: “A arte da leitura como da instrução consiste nisto: conservar o essencial, esquecer o dispensável. Sob o nome de leitura, concebo coisa muito diferente do que pensa a grande maioria dos chamados intelectuais”. Um leitor me envia um excerto de Schopenhauer: “Uma biblioteca pode ser muito grande, mas desordenada não é tão útil quanto uma pequena e bem organizada. Do mesmo modo, um homem pode possuir uma grande quantidade de conhecimento, mas se não o tiver trabalhado em sua mente por si, tem muito menos valor que uma quantidade muito menor que foi cuidadosamente considerada. Pois é somente quando um homem analisa aquilo que sabe em todos os aspectos, comparando uma verdade com outra, que se dá conta por completo de seu próprio conhecimento e adquire seu poder. Um homem só pode ponderar a respeito daquilo que sabe – portanto, deveria aprender algo; todavia, um homem só sabe aquilo sobre o que ponderou. “Ler e aprender são coisas que qualquer indivíduo pode fazer por seu próprio livre-arbítrio – mas pensar não. O pensar deve ser incitado como o fogo pelo vento; deve ser sustentado por algum interesse no assunto em questão. Esse interesse pode ser puramente objetivo ou meramente subjetivo. O último existe em questões que nos dizem respeito pessoalmente. O interesse objetivo encontra-se somente nas cabeças que pensam por natureza, para as quais pensar é tão natural quanto respirar – mas são muito raras; por isso há tão pouco dele na maioria dos homens do conhecimento”. Eu que o diga. Conheço leitores compulsivos, que certamente lêem bem mais do que eu. Neles, a leitura é vício. Mas não distinguem Dostoievski de Paulo Coelho. Discorrem com a mesma naturalidade sobre Crime e Castigo e a novela das oito. O que lhes interessa é o enredo. O pensamento que percorre um livro nada lhes diz. Se Raskolnikoff matou uma velhota, isto se compara ao fato de algum personagem ter traído a mulher nalgum episódio dos dramalhões da Globo. Ler, em si, de pouco vale. Entender é que são elas. Schopenhauer fala da organização de uma biblioteca. É algo vital. Procurar um livro em uma biblioteca grande e desorganizada é tarefa vã. Como toda pessoa que lê, tive critérios próprios para organizar a minha. Meus critérios dependem muito de geografia e ideologia. Por um lado, dividi nas estantes os livros de sul a norte. Autores do norte em cima, os do sul mais embaixo. Uma estante começa na Suécia e, descendo, termina na Itália. Outro critério, ideologia e religião. Tento dividir, em meio à geografia, comunistas e cristãos. Tenho minha biblioteca comunista em algumas estantes e a cristã em outras. Não que seja comunista nem cristão. É que preciso conhecer o inimigo. O setor que mais cresce é o de livros sobre cristianismo. As estantes estão repletas e já não consigo enfiar nelas os novos livros que adquiro. O comunismo não conseguiu sobreviver a um século. O cristianismo é milenar. Exige mais estudo. Obscurantismo que morre jovem é uma coisa. Obscurantismo que atravessa os séculos é mais perigoso. Depois, vem o problema das editoras que publicam livros fora do tamanho convencional. Não encaixam nas prateleiras normais. Então, outra estante para livros grandes. Sem falar nos setores para livros idiotas. Nos dias em que lecionei literatura brasileira, tive de ler muita literatura inútil. Hoje, longe da universidade, aqueles livros ocupam espaço precioso em minha biblioteca. Penso às vezes em doá-los. Mas... doar livro ruim é sacanagem. Aquele lixo todo – exceções à parte - continua ocupando espaços que me faltam e não consigo livrar-me deles. Que mais não seja, ler mediocridades também é educativo. Sem falar dos livros que não se encaixam em critério algum. Ok! Abri uma prateleira onde estão os inclassificáveis. Outro de meus critérios, a altura. Livro é como funcionário público. Quanto mais alto, menos faz falta. No topo de minha biblioteca, estão Marx, Lênin, Trotski, Sartre, Brecht, Neruda, Jorge Amado, Erico Verissimo et caterva. Leituras que fiz quando jovem e hoje não me interessam. Uma bibliotecária jamais entenderia meus critérios. Nem eu os dela. Ordem alfabética é estúpida. Que tem a ver Amado com Aristóteles? Coelho com Cervantes? Sarney com Swift? Verissimo com Voltaire? Morto o construtor da biblioteca, ela perde seu sentido. As viúvas de escritores que o digam. Mal morre o parceiro, elas tratam de transformá-las em algo útil, o vil metal. Nada contra. Biblioteca só serve a quem a criou. É necessidade espiritual de um homem que tenta entender o mundo. Nada a ver, bem entendido, com a biblioteca de bibliófilos. Estes são pessoas não lêem – nem teriam como – o acervo todo que compilam. A meu ver, algum parentesco devem ter com aquele leitor compulsivo, que põe no mesmo nível Dostoievski e Paulo Coelho. Problema grave em uma biblioteca são as faxineiras. Se você se descuida, elas juntam os dez volumes das Memórias do Casanova com os onze da Suma Teológica, afinal têm o mesmo formato. Até aí, fácil de consertar. O drama é quando elas vêem um livro jogado numa escrivaninha e o colocam em qualquer estante. Se sua biblioteca é grande, esse livro fica perdido para sempre. Biblioteca é coisa de uma vida. Conheço a biografia de cada um de meus livros, sei onde os comprei e quando, lembro das dificuldades que tive para encontrá-los. Sei que um dia ela será desmontada. Paciência, nada é eterno nesta vida. O que para mim tem sentido, para outros não terá nenhum. Só para concluir: o Adolf Schiklgruber, que citei em artigo anterior sobre leitura, ficou mais conhecido na história como Adolf Hitler. O texto está em Minha Luta. sexta-feira, janeiro 22, 2010
DEUS POUPA CRUZ MAS MATA SANTA Escreve-me Jorge A. Neto: O cordão carola de puxa-sacos do Tucano-Vaticanista se deleita com uma imagem de Cristo preservada em meio aos escombros do que um dia foi uma cidade. Escombros os quais, aposto o pouco que tenho nisso, incluem algumas milhares de estatuetas iguais sinistradas. Será que alguém fez uma contagem? Inebriados pela visão psicotrópica do Cristo preservado, o carolo-cordão sofre de amnésia seletiva e se esquece da Santa Arns, cuja cabeça não foi clemenciada do peso de uma laje de concreto no mesmo evento, ou ainda da Catedral principal da cidade que não teve a mesma sorte do santinho da foto e caiu na cabeça do vigário. E dos milhares de católicos sumariamente eliminados pelo furor tectônico, que parece ser um elemento natural que ainda não está muito sob controle dos desígnios de Javé. Hora de atualizar o software divino. Uma coisa pelo menos tenho que concordar com os evangélicos malucos: estas imagens tem poder imbecilizante. Cadê aquele pastor que chutava santas na TV? Aquele cara era OK. Abraços, o blog está muito bom. A imprensa aproveitou o terremoto para criar uma santa. O recórter tucanopapista hidrófobo da Veja usa o desastre para xingar os colegas da ideologia que professou em sua juventude: “Um grande crucifixo foi o que restou na igreja Sacré Coeur de Tugeau, em Porto Príncipe, destruída pelo terremoto do dia 12 no Haiti. No local, estava, entre outros, a médica e militante católica Zilda Arns, que morreu. Mantenham a peça longe do Programa Nacional de Direitos Humanos, de Lula, Dilma Rousseff e Paulo Vannuchi. Resistiu ao terremoto, mas pode não resistir à estupidez”. Cristão novo é assim mesmo. Tem de se fustigar com correntes para mostrar que negou o passado. À estupidez, não resiste o argumento do recórter hidrófobo tucanopapista. Dá a entender que Jeová salvou o símbolo do Filho, aquele instrumento de tortura que os católicos, em uma demonstração de mau gosto exemplar, brandem em nome de sua fé. Matou, no entanto, a devota que o cultuava. O recórter é aquele tipo de gente que agradece ao bom Deus quando se salva em uma queda de avião. Ok! Mas que tinha o bom Deus contra os demais? Quanto ao pastor que chutou a santa, pelo que lembro, foi mandado para o degredo na África. Se já voltou, não sei. O chute escandalizou os católicos. Logo os católicos que, no início de sua trajetória, chutaram as imagens dos deuses pagãos. Em Lectures on the History of the Ancient Church, o historiador da Igreja Russa V. V. Bolotov menciona escritos de Libanio, sofista e professor de retórica no século IV, dirigidos ao imperador Teodósio I queixando-se dos ataques dos monges fanáticos contra os templos pagãos, destruindo monumentos antiqüíssimos e obras de arte muito valiosas, como a estátua que Fídias fez para representar Asclépios, o deus da medicina, “uma obra feita com tanto trabalho e com tanto talento e que foi destruída” na cidade de Beros. Comentando Bolotov, escreve a historiadora Ana Martos: “Foi igualmente destruído o santuário de Eleusis, após celebrar durante onze séculos os mistérios mais populares do Mediterrâneo. Segundo Santo Agostinho, foi destruído por Alarico com ajuda de uma daquelas turbas de monges que, da mesma forma, derrubaram o famoso Serapeum de Alexandria, uma maravilha da arte helenística que pereceu em 391 após o edito de Teodosio que significou o fim do paganismo. O mesmo ocorreu com os santuários de Mitra, em alguns dos quais, segundo conta Gibbon, se encontram esqueletos acorrentados”. Ordens do chefe, que se vai fazer? Em Levítico 26:29, Jeová proclama alto e bom som: “Destruirei os vossos altos lugares, derrubarei as vossas imagens do sol, e lançarei os vossos cadáveres sobre os destroços dos vossos ídolos; e a minha alma vos abominará. Reduzirei as vossas cidades a deserto, e assolarei os vossos santuários, e não cheirarei o vosso cheiro suave. Assolarei a terra, e sobre ela pasmarão os vossos inimigos que nela habitam. Espalhar-vos-ei por entre as nações e, desembainhando a espada, vos perseguirei; a vossa terra será assolada, e as vossas cidades se tornarão em deserto. Ezequiel (6:4) retoma o propósito divino: “E serão assolados os vossos altares, e quebrados os vossos altares de incenso; e arrojarei os vossos mortos diante dos vossos ídolos. E porei os cadáveres dos filhos de Israel diante dos seus ídolos, e espalharei os vossos ossos em redor dos vossos altares. (...) Em todos os vossos lugares habitáveis as cidades serão destruídas, e os altos assolados; para que os vossos altares sejam destruídos e assolados, e os vossos ídolos se quebrem e sejam destruídos, e os altares de incenso sejam cortados, e desfeitas as vossas obras”. O pastor da Universal até que foi tímido, se comparado ao Senhor. Apenas chutou uma santinha de pau oco. quinta-feira, janeiro 21, 2010
FASANO E O FILODÓRIMA Os garçons são os homens de minha vida, costumo afirmar. É profissão extremamente delicada. Muitas vezes o cliente é grosseiro e o garçom, por ofício, tem de ser gentil. Muitas vezes sua mulher está morrendo de câncer num hospital e ele tem de portar um eterno sorriso ao atender o cliente. Tenho profundo respeito pelos garçons. São os profissionais mais presentes em meu dia-a-dia e mantenho com todos uma relação muito boa. Antes de ir adiante, um episódio significativo. Tive amiga que se queixava da grosseria dos garçons em Madri. Que ela levantou o braço e recebeu uma carraspana de volta. Nos es así que se llama un camarero. Ora, em primeiro lugar esta é a fórmula universal de chamar a atenção de um garçom. Em segundo, vivi lá durante um ano e nunca vi isso. (Há quem fale da grosseria dos garçons em Paris. Ora, vivi lá quatro anos, volto lá quase todos os anos, e jamais vi garçom mal-educado em Paris). O que acontece, na Espanha, é que o garçom não vem mostrando os dentes quando o aborda. Ele o trata de igual para igual. Diferentemente do Brasil, onde o garçom tenta agradá-lo. Desafiei a moça. Vamos a Madri. Vais ter de me mostrar onde estão os garçons grosseiros. Fomos. Não encontrei nenhum. Lá pelas tantas, ela inventa de chamar um garçom. Levantou o braço e estalou os dedos. Então entendi. Não há garçom que suporte um estalar de dedos. Dedos, a gente estala pra cachorro. Volto ao Brasil. Gorjeta é coisa antiga. Em grego, é filodórima. Algo como o presente, a oferta do amigo. Vem de filodoria, generosidade. Assim, quando sou bem atendido, retribuo a pessoa que bem me atende com um gesto generoso. E retribuímos com prazer. Mas se você pensa que sua filodoria vai para o garçom, em muito se engana. Ano passado, só no Estado de São Paulo, eram sete mil as ações de garçons contra estabelecimentos que não repassam o valor aos funcionários. No Rio de Janeiro, de cada 10 reclamações que chegam ao sindicato da classe, oito são sobre o repasse das gorjetas. Em junho do ano passado, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal (CCJ) aprovou projeto de lei que regulamenta a cobrança pelos bares e restaurantes, além do repasse da gorjeta aos garçons em todo o País. O documento ainda deve passar pelo Senado. A nova lei estabelece que a gorjeta seja incorporada ao salário do profissional, com pagamento de encargos sociais, permitindo que o trabalhador tenha acesso a crédito e outros benefícios. Um dos maiores opositores à nova lei é o grupo Fasano, que acabou se rendendo ao assinar acordo com o sindicato dos garçons de São Paulo, para repassar integralmente a taxa de serviço para os funcionários. Mas... 35% desse valor são descontados para encargos trabalhistas. Assim, se você dá um filodórima de 20 reais a seu amigo, ele só vê a cor de 13. Vamos ao que interessa. Há algumas semanas, falei de uma entrevista com Rogério Fasano, aquele senhor que cobra 27 reais por um pãozinho com manteiga, o mesmo preço que pago em Paris ou Madri por uma refeição com entrada, prato principal e sobremesa e, com sorte, um demi pichet de vin. Leio hoje na coluna de Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo: O grupo Fasano, como grande parte dos restaurantes, acumula processos de ex-empregados que reclamam não só de direitos trabalhistas sobre a taxa de serviço como do desconto de itens perdidos, como copos quebrados e talheres desaparecidos. Ora, na entrevista na Veja, Fasano dizia algo um pouco diferente: - Isso é uma coisa que eu gostaria de esclarecer, porque ninguém no Brasil sabe o que é couvert. A palavra francesa vem do italiano coperto, que quer dizer, literalmente, "cobertura". É aquilo que o restaurante cobra para garantir a reposição do que ele considera importante oferecer ao cliente. No meu caso, o copo de cristal Riedel que custa 30 dólares e que cedo ou tarde vai se quebrar, a porcelana importada, a toalha de linho egípcio etc. Ou seja, Rogério Fasano está cobrando duas vezes o copo quebrado. Cobra do garçom e cobra do cliente. É muita mesquinharia para quem se pretende um dos grandes restauradores de São Paulo. quarta-feira, janeiro 20, 2010
SOBRE A LEITURA Escrevi há pouco sobre leitura e memória. Um leitor me envia um interessante texto sobre o assunto, do pensador alemão Adolf Schiklgruber: A arte da leitura como da instrução consiste nisto: conservar o essencial, esquecer o dispensável. Sob o nome de leitura, concebo coisa muito diferente do que pensa a grande maioria dos chamados intelectuais. (...) Conheço indivíduos que lêem muitíssimo, livro por livro letra por letra, e que, no entanto, não podem ser apontados como "lidos". Eles possuem uma multidão de "conhecimentos", mas o seu cérebro não consegue executar uma distribuição e um registro do material adquirido. Falta-lhes a arte de separar, no livro, o que lhes é de valor e o que é inútil, conservar para sempre de memória o que lhes interessa e, se possível, passar por cima, desprezar o que não lhes traz vantagens, em qualquer hipótese não conservar consigo esse peso sem finalidade. A leitura não deve ser vista como finalidade, mas sim como meio para alcançar uma finalidade. Em primeiro lugar, a leitura deve auxiliar a formação do espírito, a despertar as disposições intelectuais e inclinações de cada um. Em seguida, deve fornecer o instrumento, o material de que cada um tem necessidade na sua profissão, tanto para o simples ganha-pão como para a satisfação de mais elevados desígnios. Em segundo lugar, deve proporcionar uma idéia de conjunto do mundo. Em ambos os casos, é porém necessário que o conteúdo de qualquer leitura não seja confiado à guarda da memória na ordem de sucessão dos livros, mas como pequenos mosaicos que, no quadro de conjunto, tomem o seu lugar na posição que lhes é destinada,assim auxiliando a formar este quadro no cérebro do leitor. De outra maneira, resulta um bric-á-brac de matérias aprendidas de cor, inteiramente inúteis, que transformam o seu infeliz possuidor em um presunçoso, seriamente convencido de ser um homem instruído, de entender alguma coisa da vida, de possuir cultura, ao passo que a verdade é que, a cada acréscimo dessa sorte de conhecimentos, mais se afasta do mundo, até que acaba em um sanatório ou, como "político", em um parlamento. Nunca um cérebro assim formado conseguirá, da confusão de sua "ciência", retirar o que é apropriado às exigências de determinado momento, pois seu lastro espiritual está arranjado não na ordem natural da vida mas na ordem de sucessão dos livros, como os leu e pela maneira por que amontoou os assuntos no cérebro. Quando as exigências da vida diária dele reclamam o justo emprego do que outrora aprendeu então precisará mencionar os livros e o número das páginas e, pobre infeliz, nunca encontrará exatamente o que procura. Nas horas críticas, esses "sábios", quando se vêem na dolorosa contingência de pesquisar casos análogos para aplicar às circunstâncias, só descobrem receitas falsas. Não fosse assim e não se poderiam conceber os atos políticos dos nossos sábios heróis do Governo que ocupam as mais elevadas posições, a menos que a gente se decidisse a aceitar as suas soluções não comoconseqüências de disposições intelectuais patológicas, mas como infâmias e trapaçarias. Quem possui, porém, a arte da boa leitura, ao ler qualquer livro, revista ou brochura, dirigirá sua atenção para tudo o que, no seu modo de ver, mereça ser conservado durante muito tempo, quer porque seja útil, quer porque seja de valor para a cultura geral. O que por esse meio se adquire encontra sua racional ligação no quadro sempre existente que a representação desta ou daquela coisa criou, e corrigindo ou reparando, realizará a justeza ou a clareza do mesmo. Se qualquer problema da vida se apresenta para exame ou contestação, a memória, por esta arte de ler, poderá recorrer ao modelo do quadro de percepção já existente, e por ele todas as contribuições coligidas durante dezenas de anos e que dizem respeito a esse problema são submetidas a uma prova racional e ao nosso exame, até que a questão seja esclarecida ou respondida. Só assim a leitura tem sentido e finalidade. Um leitor, por exemplo, que, por esse meio, não fornecer à sua razão os fundamentos necessários, nunca estará na situação de defender os seus pontos de vista ante uma contradita, correspondam os mesmos mil vezes à verdade. Em cada discussão a memória o abandonará desdenhosamente. Ele não encontrará razões nem para o fortalecimento de suas afirmações, nem para a refutação das idéias do adversário. Enquanto isso acarreta, como no caso de um orador o ridículo da própria pessoa, ainda se pode tolerar; de péssimas conseqüências é, porém, que esses indivíduos que "sabem" tudo e não são capazes de coisa alguma, sejam colocados na direção de um Estado. Muito cedo esforcei-me por ler por aquele processo e fui, da maneira mais feliz, auxiliado pela memória e pela razão. AINDA A SANTARRONA DE FORQUILHINHA COM A PALAVRA, O ADVOGADO DO DIABO João Eichbaum (joaoeichbaum.blogspot.com) “Não existe ser humano mais perfeito, mais solidário e sem preconceitos que as crianças”. Essa frase foi atribuída à senhora Zilda Arns Neumann, como sendo um dos pensamentos que expressou em sua última conferência. Quem é que conhece uma criança “solidária”? Qual é a criança que reparte, imediatamente, sem apelo, o seu brinquedo, o seu doce, a sua comida, o colo de sua mãe? A exclusão do outro é uma expressão rudimentar, não elaborada, de preconceito. A criança, enquanto criança, é a manifestação mais explícita de egoísmo que se encontra na raça dos primatas humanos. Por instinto, e não por deliberação consciente, ela quer a mãe e tudo quanto implique noção de propriedade exclusivamente para si. O instinto de sobrevivência é que dita as normas e o comportamento para a criança. E por força desse instinto ela não abre mão de seu “ego”. Enfim, o ser humano, mercê da carga animal de que é composto, nunca foi, nem será perfeito. Conclusão minha: dona Zilda não conhecia crianças. Ou tinha escassos conhecimentos de antropologia, na proporção inversa do tamanho de sua fé, que a mandava acreditar na estória bíblica de Adão e Eva. Dona Zilda, que se havia casado com um marceneiro, teve todo o apoio de seu irmão, o bispo Paulo Evaristo Arns, para se tornar médica. Tornou-se médica e arrumou um emprego público, na Secretaria de Saúde do Estado do Paraná. Não se tem notícia de que ela tenha trabalhado em hospital, consultório, que tenha trabalhado, efetivamente, como pediatra. Até que um dia o secretário executivo da UNICEF, James Grant, bateu às portas do palácio episcopal do arcebispo Paulo Evaristo Arns, convidando–o “para iniciar uma campanha contra a mortalidade infantil”. O americano garantiu ao bispo que “não faltariam recursos”. Como o religioso, segundo diz a notícia “não tinha tempo, nem agenda para a empreitada”, ele trouxe a irmã Zilda, uma médica burocrata que, então, estava “meio encostada” em razão da troca do governo no Paraná. Trata-se de um caso explícito de nepotismo, pois é difícil acreditar que em todo o Estado de São Paulo não houvesse alguém com honestidade e competência suficientes para administrar grandes somas de recursos contra a mortalidade infantil. Não sei se a doutora Zilda era concursada ou não. Não sei em que situação funcional ela assumiu a “Pastoral da Criança”. Uma coisa é certa: não faltavam recursos. Então, a doutora fez o que qualquer pessoa faria: patrocinada pelo prestígio do irmão se entregou a uma tarefa internacional, com recursos garantidos, inclusive do seu amigo e colega Alceni Guerra, também do Paraná, que, na condição de Ministro da Saúde, liberou meio milhão de dólares para dona Zilda administrar. Agora podem me xingar, porque estou instituindo o paradoxo, andando na contramão. Mas, a hipocrisia não me faz bem. Não acho que dona Zilda seja uma heroína, uma santa, ou qualquer coisa do gênero. Se ela administrou bem o dinheiro e o emprego que recebeu, nada mais fez do que cumprir com o dever. Nada de extraordinário há nisso. Mas nenhuma surpresa me causará a abertura de um processo de “beatificação” da ilustre viúva, vítima da fúria da natureza, que não respeita nem as igrejas. terça-feira, janeiro 19, 2010
NA FRANÇA, NÃO SE PODE MAIS CHAMAR MUÇULMANO DE MUÇULMANO Essa agora! Na França não se pode mais chamar muçulmano de muçulmano. Nesta segunda-feira passada, ao referir-se à comemoração de um jogo de futebol pelos argelinos, Jean-Claude Gaudin, o prefeito de Marselha, comentou: - Nós nos alegramos que os muçulmanos estejam felizes com o jogo, salvo que quando eles se reúnem entre 15 mil ou 20 mil na Canebière (rua do centro da cidade), só há a bandeira argelina e não a francesa, isto nos desagrada. É espantoso ver como a imprensa francesa, sempre tão crítica em relação ao políticamente correto, se manifeste corretamente política quando estão em jogo os imigrantes. Gaudin foi imediatamente jogado no rol dos racistas. O pior é que o prefeito assume ter tomado uma atitude racista. Hoje, no Libération, se desculpa: - Usei uma palavra infeliz, cometi um lapso, quando disse muçulmanos, em vez de falar de comunidade muçulmana, de franceses vindos da Argélia ou oriundos da diversidade da diversidade da imigração. Se fui inábil, se cometi um lapso, isto pode acontecer. Normalmente, não acontece. (...) Quanto àqueles que querem me associar ao racismo ou sei lá o quê, não creio que as comunidades em Marselha – e elas são muitas – tenham queixas depois de quinze anos de Gaudin. Ou seja, o prefeito aderiu ligeirinho ao politicamente correto. Se dissesse argelinos, provavelmente também seria reprovado. Ou seja, não há mais muçulmanos na França. E sim “franceses oriundos da diversidade da imigração”. Como se todos os argelinos ou muçulmanos de Marselha tivessem nacionalidade francesa. Na Alemanha, um imigrante turco já chamou um cidadão alemão de “alemão de merda” e, pelo que li, ficou tudo por isso mesmo. Não só o insultou, como também o espancou. Na França, ai de quem chamar muçulmano de muçulmano. Verdade que, entre nós, a moda é bem mais antiga. Negro não é mais negro. É afrodescendente. Há alguns anos, em Brasília, um negro foi para a cadeia porque chamou outro negro... de negro. Em respeito aos novos tempos, até eu já nem chamo um negrão de negrão. Chamo de afrodescendentão. Há alguns anos, ao comentar algo sobre favelas, disse Cristina, minha fiel faxineira: “Professor, não se pode mais dizer favela, agora é comunidade”. E quem disse, Cristina, que não se pode dizer favela? “A professora de meu filho”. O politicamente correto – leia-se stalinismo na linguagem – está invadindo o ensino e a imprensa do mundo todo. Pelo jeito, a palavrinha comunidade está fazendo carreira também na França. Muçulmano já virou palavrão. Claro que um mulá em sua mesquita pode tranqüilamente falar em muçulmanos. Francês é que não pode. Mais um pouco e francês não poderá chamar árabe de árabe. É esperar para ver. segunda-feira, janeiro 18, 2010
DA IMPORTÂNCIA DE ESQUECER “E chegarão os dias em que os homens esquecerão onde colocaram os pequenos objetos” – diz um dos profetas que anunciam o apocalipse, em A Vida de Brian, dos Monthy Pyton. Ou talvez em O Sentido da Vida, já não lembro. É verdade. Mais dia menos dia, chegaremos lá. Chegarão também os dias em que os homens esquecerão os grandes filmes, acrescentaria. Leio no New York Times um artigo de Barbara Strauch que faz pensar: “Como abrir novas conexões em um cérebro de meia-idade”. Escreve a jornalista: "As estantes da minha sala estão repletas de livros. O problema é que, por mais que tenha gostado da leitura, não lembro realmente de ter lido nenhum dos livros. Certamente sei os pontos principais. Mas, depois de sublinhar todas aquelas partes interessantes, não retive nada mais? É enlouquecedor e nada excepcional para um cérebro de meia-idade: não esqueço só livros inteiros, mas filmes que acabei de ver, os cafés da manhã que acabei de tomar, e os nomes, ah, os nomes são terríveis". É o meu caso. Não que eu não lembre de ter lido algum de meus livros. Lembro muito bem e mais ainda. Cada um de meus livros tem sua história e sei muito bem onde os comprei. Lembro também das peripécias para encontrá-los. De modo geral, quando busco um livro, tenho de fazer uma longa peregrinação a antiquários. O problema é lembrar o conteúdo dos livros. Mas não atribuo isto a um problema de idade. Determinados livros nos transmitem uma massa tal de informações que nossa memória não comporta. Não adianta ser jovem. Outro dia, comentei que havia comprado na Espanha um livro que não teria sido traduzido no Brasil, Los Orígenes del Fundamentalismo en el judaísmo, el cristianismo y el Islã, da teóloga britânica Karen Armstrong. Um leitor advertiu-me que o livro fora publicado aqui, em 2001, pela Companhia das Letras. Fui conferir minha biblioteca. Lá estava o livro, devidamente sublinhado e comentado. Sim, lembrava dele. Mas não de seu conteúdo. Pudera! Em uma só página, a autora repassa um tamanho catatau de dados que memória alguma guarda. Imagine então relembrar 500 páginas. O remédio é sublinhar. Por essas razões, não gosto de ler livros emprestados. Livro alheio não dá pra sublinhar. Livro meu, sublinho à vontade. Isto se torna uma espécie de diário, que me relembra as preocupações que tive em minhas diversas idades. Certa vez tentei ler Grandeur et Décadence de Rome, de Guglielmo Ferrero, seis volumes. Desisti. Havia tantas guerras por página, que na página seguinte eu já não lembrava de nenhuma. Verdade que tenho uma memória bastante nítida da História das Origens do Cristianismo, de Ernest Renan, em sete volumes. Mas a narrativa de Renan é linear e tem sabor de romance. Não é o caso da Armstrong ou de Ferrero, que amontoam dezenas de fatos históricos em uma só página. Daí a importância do saber dicionarizado. Você vai ao verbete e lá está o que busca. Não falo exatamente de dicionários de vernáculo. Mas de dicionários de literatura, história, filosofia ou teologia. Continua a jornalista: “Cérebros de meia-idade (que, com o aumento da expectativa de vida, agora vai dos cerca de 40 até quase os 70 anos) também se distraem mais facilmente. Comece a ferver água para o macarrão, vá atender à campainha, e – vupt - a lembrança da água fervente sumiu”. Cá entre nós, isto jamais aconteceu comigo. Pra começar, jamais fervi água para macarrão. “Daí a pergunta: um cérebro velho é capaz de aprender e lembrar o que aprende? Sim. Embora seja tentador focar nos defeitos dos cérebros mais antigos, os cientistas têm olhado cada vez mais fundo na forma como os cérebros envelhecem e confirmam que eles continuam a se desenvolver durante a meia-idade e depois. Muitas opiniões tradicionais, inclusive a de que 40% das células cerebrais são perdidas, foram revertidas. O que está na sua cabeça pode não ter sumido, mas simplesmente se amontoado nas dobras dos seus neurônios”. É possível. De minha parte, a memória do disco rígido continua mais ou menos intacta. Lembro com nitidez de leituras da adolescência e mesmo da infância. O que está me falhando é a memória RAM, isto é, os conhecimentos adquiridos mais recentemente. Tive experiência curiosa em meus dias de Folha de São Paulo e Estadão. Redigia uma série de notícias e, dia seguinte, lia o que havia escrito como se fosse texto que jamais havia lido. Isto é normal em jornalistas. É que ligamos o piloto automático e vamos redigindo. Uma vez desligada a máquina, a memória RAM se evola. “Uma explicação sobre como isso ocorre vem de Deborah Burke, professora de psicologia do Pomona College, da Califórnia, que pesquisou aquele fenômeno em que algo está "na ponta da língua", mas não vem à mente – continua Barbara Strauch –. Ela mostrou que isso aumenta em parte porque as conexões neurológicas, que recebem, processam e transmitem a informação, podem se enfraquecer com a falta de uso ou a idade. Mas ela também descobriu que, se você ouve sons próximos àquilo que tenta lembrar - digamos, alguém fala em caroço ("pit") enquanto você tenta lembrar o nome de Brad Pitt -, de repente a palavra perdida pipoca na mente. A similaridade nos sons pode ativar uma conexão cerebral débil – associação que costuma acontecer automaticamente e passa despercebida”. É meu recurso. Há palavras que, sei lá por quais razões, tenho dificuldade em lembrar. Uma delas é endocrinologista. Cada vez que ia falar desta especialidade, me acometia uma pane mental. Tive de recorrer a caminho mais longo. Associei a palavra à odontologia. Penso em endodontia. De endo em endo, chego a endócrino. Tive um colega de jornalismo, redator impecável, que tinha uma dificuldade tremenda ao flexionar chapéu. Precisava recorrer ao dicionário. Jamais sabia se o plural era chapéus ou chapéis, dúvida bastante encontradiça em vestibulandos. Pelo jeito, alguma sinapse estava desconectada. Sugeri que pensasse em duas abas voltadas para o alto. É o U. Acho que resolvi seu problema. Recursos mnemotécnicos não são novidade. Na Idade Média, para lembrar de um longo discurso, os pregadores situavam cada capítulo no interior de uma catedral. Na nave, o cerne do raciocínio. Nas capelas laterais, as subdivisões do discurso. Para relembrar leituras, só há um recurso: sublinhar, sublinhar e sublinhar. Se lemos um livro de 500 páginas, quantas delas guarda nossa memória? Talvez dez, e olhe lá. Se soubermos em quais obras estão os textos que queremos lembrar, já é lucro. Enquanto não se consegue plugar um chip de 300 ou mais gigabytes a nosso cérebro, melhor andar sempre de caneta em punho quando se lê um livro. Mas memória absoluta é coisa que não desejo a ninguém. O esquecimento faz bem. Há quem diga que um homem enlouqueceria se tivesse uma memória total. É a maldição de Funes, el memorioso, o personagem de Borges. Se lembrássemos de todas as circunstâncias funestas de nossas vidas, nossa existência seria um sofrimento contínuo. Não por acaso, empurramos o pior para o porão do oblívio. Ou seria muito difícil viver. domingo, janeiro 17, 2010
VASTO É O MUNDO E A VIDA É BREVE Em sua secção Blog 10+, a Veja online traz nesta semana reportagem de Isadora Pamplona intitulada “Furadas” que podem estragar suas férias. A redatora não desrecomenda país algum, mas adverte para épocas ou circunstâncias que é melhor evitar. Por exemplo, ir a Machu Picchu entre dezembro e março, temporada de chuvas. Ir a Veneza durante o carnaval. Ou ir ao Vaticano numa quarta-feira, quando milhares de pessoas se amontoam para ver o papa. Ou ir atrás da Mona Lisa, no Louvre. “O quadro é pequeno (77 centímetros por 53 centímetros), o tempo para apreciá-lo é curto e há chances de você só ver cabeças de outros turistas que embarcaram na mesma furada”. Ou passar o réveillon na Times Square. Alerta ainda os pereginos do Taj Mahal para aspectos desagradáveis da Índia que estão por toda a volta do monumento: o rio que cheira mal, o calor insuportável, os mendigos, as hordas de turistas por todos os lados… (Confira em http://tinyurl.com/y9zh423). Até aí, nada demais. O curioso é ler as reações iradas de certos leitores a um texto que apenas pretende facilitar a vida de quem viaja. Escreve um deles: “Uma lista tão pobre e preconceituosa só pode ter saído da imaginação de alguém que nunca pôs os pés fora de mais um apartamento burguês de São Paulo. A reflexão devotada à Índia, em especial, é de uma ignorância fascista exemplar! Parabéns ao ombudsman da Folha de São Paulo pela maneira generosa com que permite à juventude branca, fascista e míope de São Paulo, divulgar seus ensinamentos!” Viagem é como religião. Cada um defende a sua. Em sua indignação, o leitor nem notou que está lendo a Veja e não a Folha. Ao que tudo indica, andou entrando em alguma dessas furadas e sentiu-se ofendido ao ter sua viagem definida como tal. E passa a usar argumentos ad hominem. (No caso, ad feminam). Situa a jornalista como “juventude branca, fascista e míope”, como se ser branca fosse algo tão abominável como ser fascista. Sem conhecê-la, a acusa de morar em um apartamento burguês em São Paulo e de jamais ter posto o pé no mundo. Coincide que conheço a moça de perto. Não mora em nenhum apartamento burguês e seus pés muito já trotearam mundo afora. Gostei da indignação do leitor. Sua mensagem é talvez a mais significativa de todas. O turista brasileiro, que só começou a viajar mesmo há poucas décadas, é patético. Como todo marinheiro de primeira viagem, se encanta com o primeiro porto em que atraca. Mesmo se passou mal, volta dizendo que a viagem foi divina. Afinal, investiu não poucos dólares ou euros em seu passeio e não vai admitir que deu mancada. Brasileiro adora turismo de massa, a mais burra maneira de viajar. Volta se sentindo cosmopolita. Diz-se que as viagens ilustram. Mas há quem dê dez voltas ao mundo e não aprenda nada. Quando o assunto é viagem, não resisto. Vou então enfiar minha esquiva colher neste caldo. Diria que a redatora teve mão por demais leve ao relacionar as furadas. De minha parte, não é que eu não vá ao Taj Mahal. Eu jamais iria – nem jamais irei – à Índia. Miséria, vejo aqui mesmo. Certa vez, em Paris, conversei com Severo Sarduy, escritor cubano que degustava o amargo caviar do exílio às margens do Sena. Mostrou-me uma foto sua, semidespido, banhando-se no Gânges, aquele rio onde flutuam cadáveres de vacas e gentes. Senti uma tal repulsa pelo cubano que cheguei a hesitar em estender-lhe a mão ao me despedir. Um ocidental precisa ter muito lixo na cabeça para mergulhar naquelas águas. À Índia, não vou nem de graça. Mais ainda: não vou nem que me paguem. Se um editor um dia me escalasse para ir à Índia, me demitia incontinenti do jornal. Ao Louvre, já fui. Acho que pelo menos uma vez na vida deve-se passar no Louvre. Mas só uma, não mais. Quanto à Mona, é um mito. Um dos quadros mais sem graça que vi em minha vida. Antes da Gioconda, eu recomendaria a alguém cem, duzentas ou mais pinturas. Hoje, pelo que me contam, o turista dispõe de poucos segundos para contemplá-la. E sai da frente, que atrás vem gente. Museus, hoje, só visito os Museos del Jamón. Não é exatamente o que se entende por museu. São restaurantes na Espanha que têm paredes e teto forrados de presunto. Em novembro passado, em Madri, a Primeira-Namorada quis visitar o Reina Sofia. Ok! Vai lá, te espero no Gijón lendo meus jornais. Mas abri uma exceção para o Thyssen-Bornemisza, que mais não fosse ficava perto do Gijón. Tinha uma certa curiosidade pelo museu. Já na entrada, me senti cansado. 48 salas. Uma imensa sucessão de quadros, dos quais minha memória não guardaria, talvez, nem um. Na 15ª sala, disse pra Primeira: vai em frente, estou lendo meus jornais lá adiante. Os museus se tornaram acervos descomunais que só atraem turistas. Não encontramos parisienses no Louvre. Talvez tenham ido lá, quando estudantes. Em São Petersburgo, pensei duas vezes antes de entrar no Hermitage. Acabei entrando, me pareceu muito esnobismo estar na Rússia e não conhecer o museu. Durante três horas, só consegui ver o setor de esculturas. Quando chegou o momento de ver as pinturas, desisti e fui tomar um trago no charmoso Literaturnaya Café, na Nevsky Prospekt, onde Pushkin fez sua última ceia antes de morrer. Furada, a meu ver, não é ir atrás da Mona Lisa. Furada é visitar museus. Exceto os del Jamón, por supuesto. Viajante inteligente olha os museus por fora e os bares por dentro. Hoje, não é que não vá ao carnaval de Veneza. Jamais voltaria a Veneza. Estive lá duas vezes, nos anos 70, uma vez com a Baixinha e outra com uma árdega peoniana. Naqueles anos, Veneza não era ainda uma 25 de Março. “Há cidades que um dia conhecemos e às quais não devemos voltar – disse-me uma amiga, viajora experiente –. Para não nos decepcionarmos”. Prefiro guardar na memória a imagem daquela Veneza de quatro décadas atrás, onde ouvia o chiado de meus passos – de nossos passos – na noite silente, perambulando perdidos entre os canais. Quanto a réveillons, não me parece que seja roubada ir ao da Times Square. Réveillon é roubada em qualquer lugar do mundo. Como é roubada qualquer data que reúna centenas de milhares de gentes. Isso sem falar na roubada das ceias. Os restaurantes triplicam seus preços e impõem um menu padrão só porque é réveillon. Meus réveillons, sempre os passei isolado do mundo, tomando um vinho com alguma amiga querida. O texto da Veja demonstra sensatez e bom conhecimento de mundo. Verdade que as roubadas podem ser educativas. Para bom aprendiz, mesmo a experiência negativa é pedagógica. O pior país que já visitei foi a Romênia. Mas talvez tenha sido a mais importante de minhas viagens. Estive lá no tempo dos Ceaucescu e vi de perto o que era o comunismo. Ainda bem que não paguei nada, uma amiga levou-me como guia. Uns bons dois terços do planetinha, para mim, estão descartados de qualquer projeto de viagem. A equação é simples. Vasto é o mundo e a vida é breve. E a grana, curta. Então, melhor curtir o melhor e deixar o pior para uma outra vida. Felizmente, não há outra vida. sábado, janeiro 16, 2010
A SANTARRONA DE FORQUILHINHA A pérola das Antilhas – isto é, o Haiti – gaba-se de ter sido o primeiro país latino-americano a declarar-se independente. Unidos sob a liderança de Toussaint L'Ouverture e, mais tarde, do ex-escravo Jean-Jacques Dessalines, negros e mulatos combateram as tropas francesas até a proclamação da independência em 1804. Independência para quê? Hoje, o Haiti é o país mais pobre do continente. Em um ranking de 180 países, seu PIB per capita ocupa o 130º lugar. A Libéria – isto é, a Terra Livre - foi fundada no século XIX por escravos libertos dos Estados Unidos, não tendo conhecido o domínio colonial. O país foi criado pela American Colonization Society, organização criada em 1816 por Robert Finley, cujo objectivo era levar para a África negros livres ou negros que tinham sido libertos da escravidão. Segundo Finley e outros líderes americanos, os negros jamais seriam capazes de se integrar na sociedade do país. A única solução seria reenviá-los para a África, para evitar tanto a criminalidade como o casamento interracial. Em 1821, a American Colonization Society adquiriu uma parcela de terra na África, onde se fixariam os primeiros colonos negros oriundos dos Estados Unidos. Em 1847, a Libéria declarou a sua independência, tornando-se o primeiro país africano a tornar-se independente. Independência para quê? Hoje, a Libéria é ainda mais pobre que o Haiti. No mesmo ranking de 180 países, seu PIB per capita ocupa o 159º lugar. Conclusão? Antes que me chamem de racista, apelo ao testemunho de George Samuel Antoine, cônsul do Haiti no Brasil. Sem saber que estava sendo gravado pela reportagem do SBT Brasil, Samuel Antoine disse: “O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano lá tá fodido". Verdade que logo depois se apressou em dizer que foi mal interpretado. Mas não vejo muito como interpretar mal sua afirmação. Disse, está dito. Como cônsul, deve conhecer bem o país que representa. Em 1957, o médico François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc, foi eleito presidente do Haiti, onde instaurou um governo baseado no terror promovido pelos tontons macoutes, membros de sua guarda pessoal. Em 1964, no melhor estilo de Fidel Castro ou Hugo Chávez, decretou sua presidência vitalícia. Deu ordens para a produção de panfletos, onde, entre outras informações, designava-se deus. Foi quando o Haiti tornou-se a nação mais pobre do continente. Ao morrer, em 1971, foi substituído por seu filho, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que hoje come o amargo caviar do exílio em Paris. Escrevi ontem sobre Zilda Arns, a Teresa de Calcutá tupiniquim, morta no terremoto, e afirmei: “quem conhece o que penso de Agnes Gonxha Bojaxhiu, a santarrona albanesa, sabe que nisto não vai nenhum elogio”. Não faltou leitor que me interpelasse. Que tens contra a madre Teresa? É leitor que não me acompanha. Entre outras proezas, madre Teresa recebeu das mãos de Baby Doc a "Légion d'honneur" haitiana. Isso sem falar nas flores que levava à tumba de um dos mais sanguinários ditadores dos Balcãs, Enver Hoxha, seu conterrâneo. Mas falava da Arns, a novel santa brasileira. Escreveu um de meus interlocutores: “Janer, tua biografia poderia passar sem essa crônica. Misturas alhos com bugalhos e de leva ofendes a Zilda Arns. Essa mulher conseguiu criar, no Brasil, um serviço que reúne 250 mil voluntários e atende dois milhões de pessoas. O fato de ser religiosa apenas mostra a base para seus ideais. Independentemente da tua fobia por papas, bispos ou cardeais, poderias ter passado sem realizar essa agressão gratuita para uma pessoa cujo único crime foi a bondade”. Bondade? Em termos. Por trás da bondade, muitas vezes se esconde a perversidade. Para atender dois milhões de miseráveis é preciso que existam dois milhões de miseráveis. O número deles seria menor se houvesse uma política de redução da natalidade. Isto, como boa católica, Zilda Arns não admitia. Condenava anticoncepcionais e preservativos. The sperm is sacred, como diziam os Monty Python. Esta atitude criminosa da Igreja romana, que só aumenta a miséria no mundo, está dizimando africanos aos magotes, pela AIDS, nos países de predominância católica. A Teresa de Calcutá tupiniquim foi cúmplice desta política assassina. Com sua atitude hipócrita, Zilda Arns criava os miseráveis para depois atendê-los. A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana é uma caftina de miseráveis. Não por acaso, só se expande em países pobres. Sem miséria, não é fácil ser santo. Falta clientela. Este política pode ser vista em São Paulo. Quando alguma autoridade inventa de retirar os mendigos da rua, lá vêm as igrejeiras: "quem tirou daqui nossos mendigos? Queremos nossos mendigos de volta". Não estou usando de retórica. Esta frase eu a li no Ceciliano, boletim da paróquia de Santa Cecília, aqui ao lado de onde moro. Quando foram retirados os mendigos do largo que entorna a Igreja, os padres chiaram: queremos nossos mendigos de volta. Miséria, bem explorada, dá lucro. Com milhares de mendigos na rua, estão garantidos os milhões de dólares que a Miseoror, a Cáritas e outras entidades européias enviam para a Igreja brasileira. Com estes milhões, Arns fornecia aos miseráveis uma sopa feita de arroz, milho, sementes de abóbora e cascas de ovo. Ontem ainda, esta gororoba foi saudada pelo senador Flávio Arns, seu sobrinho, como o grande "legado" deixado pela titia na luta contra a mortalidade infantil. Lula já pede um prêmio Nobel póstumo para a santarrona de Forquilhinha. Obscurantismo, dizem os dicionários, é a atitude, doutrina, política ou religião que se opõe à difusão dos conhecimentos científicos entre as classes populares. O obscurantismo de Zilda Arns não se resume à condenação do controle de natalidade. Ao manifestar-se contra as experiências com células-tronco, a médica sanitarista está negando a ciência e condenando experiências vitais para a humanidade. "Quanto mais próximo se está da ciência, maior o crime de ser cristão", já dizia Nietzsche. Esta senhora, a estrela do terremoto no Haiti, de um obscurantismo que nos remete aos dias em que Galileu foi condenado pela Igreja Católica, está sendo hoje promovida a santa pela imprensa nacional. Last but not least, não tenho fobia nenhuma por papas, bispos ou cardeais. Tenho asco. É diferente. sexta-feira, janeiro 15, 2010
BRANCOS PROVOCAM TERREMOTO NO HAITI "Houve uma coisa que aconteceu no Haiti muito tempo atrás, e as pessoas não querem falar sobre isso" - disse ontem o pastor evangélico Pat Robertson em um programa da Christian Broadcasting Network's (rede de TV comandada por Robertson) -. "Eles estavam sob o domínio francês. Você sabe, Napoleão 3º, ou o que for. Então eles se juntaram e selaram um pacto com o Diabo. Disseram: 'Vamos servi-lo se você nos tornar livres dos franceses’. É uma história verdadeira. Então, o Diabo disse: ok, negócio fechado". Que um pastor evangélico diga isto é inteligível. Em um país religiosamente fanatizado como os Estados Unidos, o diabo ainda tem grande futuro. Mais ainda: tinha Napoleão III como coadjuvante. Que pessoas simples vejam terremotos como castigo divino, também se entende. Verdade que fica um tanto difícil entender como o bom Deus teria levado junto uma de suas mais fiéis servidoras, Zilda Arns, a Teresa de Calcutá tupiniquim, e quem conhece o que penso de Agnes Gonxha Bojaxhiu, a santarrona albanesa, sabe que nisto não vai nenhum elogio. Zilda Arns, hoje santa, pertence à ala mais rançosa da Igreja católica. Apesar de vivermos em país que se pretende laico, lutou toda sua vida contra o aborto e as pesquisas com células-tronco. Sem falar que sua Pastoral da Criança não admite anticoncepcionais nem preservativos. Quanto mais famintos existirem no mundo, mais aplainado fica o caminho até o Nobel da Paz, láurea que tem se caracterizado por prestigiar notórios vigaristas internacionais. Zilda tentou três vezes. Verdade que até hoje os noruegueses foram insensíveis às pretensões da irmã do cardeal fanzoca de Fidel Castro e defensor dos terroristas que um dia tentaram transformar o Brasil em uma grande Cuba. Na Folha de São Paulo, por conta própria, Eliane Cantanhêde já lhe conferiu um prêmio Nobel da Paz póstumo. Que mais não seja, personagem que é louvado por frei Betto e Reinaldo Azevedo, por Lula e Sarney, por Michel Temer e Marina Silva, boa bisca há de ser. Zilda Arns já conta com um milagre em sua vida para futura canonização: reuniu Reinaldo e Frei Betto, Lula e Sarney sob uma mesma bandeira. O recórter hidrófobo tucanopapista finalmente juntou-se aos seus pares. Uma vez Libelu, sempre Libelu. Sua morte deve ter alguma explicação. Vai ver que foi dano colateral, como costumam dizer os militares americanos para justificar seus assassinatos de inocentes. De qualquer forma, causa espécie que, nestes albores do século XXI, alguém pense que terremotos têm causas teológicas e não geológicas. Uma outra teologia que não a católica está minando os espíritos na tentativa de explicar a tragédia. É a teologia dos ecochatos: o responsável pelo terremoto é o ser humano. Mal transcorreram três dias do acidente e já ouvi uma cópia de teorias, todas elas transferindo à ação do homem sobre a natureza a responsabilidade pelo sinistro. Como se placas tectônicas estivessem preocupadas com o que os homenzinhos fazem na superfície do planeta. Decididamente, os apocalípticos da ecologia já ganharam o debate. Trocando os queijos de bolso: mal o termômetro chega a 30º aqui em São Paulo, não falta taxista que branda o efeito estufa. Seria a ação desordenada do ser humano que provoca essas temperaturas. Como se durante séculos 30º graus não fossem normais em São Paulo. Como se as eras de glaciação e aquecimento não tenham se alternado, durante milênios, na trajetória do planetinha, quando o homem ainda nem pisava a Terra. Como se hoje, em plenos dias dos profetas do efeito estufa, a Europa não estivesse soterrada sob um dos mais rigorosos invernos das últimas décadas. Mas fé é fé. Contra a fé, não há argumentos. 30º graus? O culpado é o ser humano. Existe no entanto tese ainda mais insólita que a dos pastores evangélicos americanos ou a dos taxistas paulistanos. Na Folha de São Paulo de ontem, em artigo intitulado "O Haiti já estava de joelhos; agora, está prostrado", Omar Ribeiro Thomaz, antropólogo e professor da Unicamp, culpava pelo terremoto não Deus nem o ser humano. Mas especificamente... o homem branco: “Diante da fúria da natureza não cabe outro sentimento que o de uma frustração que deita raízes numa história profunda e que subitamente pode ganhar cor: o mundo dos brancos nos destruiu; o mundo dos brancos diz que quer fazer alguma coisa, mas o que faz, além de nutrir seus telejornais com fotos miseráveis que só fazem alimentar a satisfação autocentrada dos países ditos ocidentais?” A deduzir-se do artigo do antropólogo, os contingentes brancos que estão chegando ao Haiti para tentar salvar os sobreviventes do desastre, as somas milionárias que o Ocidente está despendendo para reerguer o Haiti, tudo isto não passa de “mauvaise conscience” do homem branco ocidental. Essa agora! Fui responsável pelo terremoto e não sabia. Fomos nós, homens brancos, quem acionamos placas tectônicas subterrâneas para exercer nosso racismo e ódio contra os haitianos. Ainda bem que existem a Folha e a Unicamp para esclarecer-nos sobre nossas ações deletérias contra a saúde do planeta. Desculpem-me os leitores minha mão pesada. Se, em meio a tantos negros, matei alguns branquelas. Danos colaterais. |
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