¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, junho 30, 2014
 
AOS NOVOS INQUISIDORES *


Cristo decide voltar à terra, mostrar-se a seu povo sofredor e miserável e para isso escolhe Sevilha, em pleno século XVI, quando mais intensamente crepitavam as fogueiras acendidas ad majorem Dei gloriam. No dia anterior, o cardeal Grande Inquisidor havia feito queimar uma centena de hereges. Cristo surge discretamente, sem se fazer notar, mas todos o reconhecem. Ressuscita uma menina e o cardeal manda prendê-lo nos porões do Santo Ofício. À noite, vai visitá-lo.

— És Tu? Tu?

Face ao silêncio do Cristo, ajunta:

— Não diz nada, cala a boca. Por que vieste nos atrapalhar?

Assim vê Dostoievski o Cristo. No livro V de Os Irmãos Karamazov, o genial e histérico místico russo, católico ortodoxo e sempre hostil à igreja de Roma, desenvolve o eterno paradoxo do cristianismo, a oposição entre um Cristo humilde e pobre e uma igreja rica e arrogante. O Grande Inquisidor, considerando os homens excessivamente débeis e mesquinhos para viver segundo os mandamentos de Jesus, decidira corrigir sua obra: a fé na liberdade e no amor é substituída pelo poder, pelo milagre e pela autoridade.

— Não há nada mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio — acusa o cardeal — mas também nada mais doloroso. Tu ampliaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e assim impuseste para sempre ao ser moral os tormentos desta liberdade.

O inquisidor vai longe em seus considerandos e Dostoievski é à prova de síntese. Transcrevo apenas as palavras finais do cardeal:

— Amanhã, a um sinal meu, tu verás essa tropa dócil trazer carvões ardentes para a fogueira onde subirás, por ter vindo atrapalhar nossa obra. Pois se alguém mereceu mais que todos a fogueira, foste tu. Amanhã, eu te queimarei. Dixi.

Voltarei em breve, diz Cristo ao final do Apocalipse. Se ainda não voltou, totalitário e triunfante como o quer João, tem seguidamente reaparecido nas artes e particularmente na literatura, sempre provocando em crentes e sacerdotes a mesma inquietação manifestada pelo Inquisidor: por que vieste nos atrapalhar?

E sempre que volta, atrapalha. Perturba até mesmo a vida dos que mais o veneram. Nietzsche, por exemplo, não saiu ileso de seu corpo-a-corpo com ele: em seus dias de insânia, assinava-se “O Anticristo”. Ernest Renan, outra das maiores sensibilidades do mesmo século de Nietzsche, tampouco escapou a seu charme.

Vida de Jesus, qualificado como um dos grandes acontecimentos do século passado, é um poema em torno ao Cristo, travestido em ensaio histórico. Para escrevê-lo, Renan preparou-se estudando línguas semíticas e refazendo o percurso do biografado na Galiléia e Palestina. Em 1862, ao assumir uma cátedra no Collège de France, teve de interromper seu curso por ordem do governo: em sua primeira aula, ousara falar de Jesus como “um homem incomparável”.

Giovanni Papini, outro apaixonado pelo nazareno, escreveu uma História de Cristo e nem por isso escapou ao Index Prohibitorum. E hoje em dia, tanto Dostoievski como Nietzsche, tanto Renan como Papini, são anatematizados pelos inquisidores, grandes ou pequenos, de qualquer igreja. Qualquer dia destes, até Hegel cai em desgraça, pois na juventude escreveu — o que muito marxista ignora — uma Vida de Jesus, onde o sentido espiritual da revelação cristã e mesmo o drama da vida, morte e ressurreição do cristo estão explicados através da doutrina ético-religiosa de Kant.

Martin Scorsese, cineasta americano, está sendo vítima de insultos e interdições no mundo todo, por ter levado às telas o romance A Tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis. Curiosamente, o livro foi recentemente traduzido ao brasileiro, está em todas as livrarias e, pelo que me consta, os novos inquisidores, cientes de que seus seguidores são mais ou menos analfabetos, pouco estão ligando para a difusão literária da obra. Cinema já é mais perigoso, pode gerar idéias no mais inculto dos espectadores. Perigoso a tal ponto que um distribuidor catarinense, em crise de atroz provincianismo, proibiu o filme em suas salas. Freira de dia, puta à noite, tudo bem, tais obras-primas parecem não ofender credo algum. Já uma madura reflexão, oriunda sensibilidade de um criador fascinado pelo Cristo, esta merece a fogueira.

Pois uma grande injustiça está sendo cometida em relação à Kazantzakis e sua obra. Para começar, duvido que a literatura deste século tenha produzido autor tão febrilmente religioso como este cretense, que já conhecíamos através de Zorba, o Grego. Ou será ateu e herege quem escreveu “Três espécies de alma, três preces”?

a Eu sou um arco em tuas mãos, Senhor; tende-me, senão apodreço.

b Não me tende muito, Senhor; eu quebrarei.

c Tende-me quanto quiseres, Senhor, e tanto pior se eu quebrar.


Poeta, tradutor, místico e viajante, Kazantzakis percorreu o mundo em busca de fé e encontrou nessas andanças quatro degraus decisivos para sua ascensão: Cristo, Buda, Lênin e Ulisses. Como funcionário do Ministério de Assuntos Sociais de seu país, salvou da fome, na Rússia, 150 mil gregos expulsos da Ásia Menor, no final da II Guerra. Os cardeais e inquisidores menores que têm condenado o filme de Scorsese certamente não ignoram tais fatos e, caso os ignorem, deveriam procurar conhecê-los antes de abrir a boca para dizer bobagens.

Mas o fascínio de Kazantzakis pelo Cristo não se esgota em A Última Tentação. Em Cristo de Novo Crucificado, um dos momentos culminantes da novelística contemporânea — também já traduzido e disponível em qualquer livraria — o cretense volta à carga e desta vez com artilharia de grosso calibre. A ação se desenrola em Licovrisi, aldeia grega encravada em território turco. Seus habitantes seguem a religião grega ortodoxa e têm por hábito, a cada sete anos, representar o drama da paixão. Os atores são escolhidos e cabe a um pastor de olhos azuis e barba curta e loura, Manolios, representar o Cristo. A partir da escolha, os atores devem imbuir-se de seus papéis, procurando identificar-se, na vida cotidiana, com os personagens interpretados.

É quando acontece o imprevisível: um grupo de gregos, perseguidos pelos turcos, pede abrigo em Licovrisi. Os aldeões, liderados pelo pope Grigoris, o organizador da Paixão, recusam-se a recebê-los. O final, este sim, é previsível. Manolios e seus companheiros, os que deviam representar os apóstolos, imbuídos do espírito evangélico, advogam pelos gregos. A paixão se consuma, só que desta vez não é teatro. Manolios é assassinado na igreja, por instigação do pope, pelo aldeão que fazia o papel de Judas.

Estamos em pleno Dostoievski, novamente. Os que se dizem seguidores do Cristo não hesitam em crucificá-lo quando volta. Não terá sido por acaso que, ao perguntar a um sacerdote grego o que pensava de seu conterrâneo de Creta, obtive resposta curta e grossa: “louco, doido varrido”.

Quanto a mim, se por um lado abomino a santa ira dos moralistas de cueca que hostilizam o filme de Scorsese, por outro não partilho do enamoramento de Renan ou Kazantzakis. Vejo o Cristo como um iluminado, como tantos outros que brotavam às margens do Jordão como cogumelos após a chuva. Sua doutrina, é verdade, rejeita o ódio imanente ao Antigo Testamento, mas pouco ou nada tem de original. Para o leitor atento, os evangelhos já estão todos embutidos nos textos judaicos. E como homem — já que só assim posso vê-lo — Cristo desaparece se comparado, por exemplo, a um Sócrates, Platão, Aristóteles ou Alexandre.

Há um certo zelotismo, diga-se de passagem, na impermeabilidade de Cristo à cultura grega e em seu recurso exclusivo à cultura judia. Paulo, que desde menino falava grego, a língua comum de Tarso, é quem efetivamente inventa o cristianismo a partir de fontes helênicas, mesclando conceitos do gnosticismo e das religiões de mistério, particularmente do culto de Átis.

Sócrates, por exemplo. Guerreiro e pensador, ousou contestar os deuses de Atenas e, uma vez condenado à morte, acusado de introduzir novas divindades e corromper a juventude, não pediu a seus juizes clemência, como era praxe pedir. Nem quis fugir, como poderias ter feito. No momento de contrapor à pena imposta pelos juizes a pena que julgava merecer, Sócrates ri dos que o condenam ao declarar que merecia não uma punição, mas um prêmio, por seus serviços prestados à Atenas. Morreu por não querer humilhar-se e bebeu serenamente a cicuta, rodeado de amigos e discípulos. Quando vemos um Cristo lamuriento, balbuciando Eli, Eli, lama sabachtani?, aceitando sem revolta alguma a crucificação, salta-nos aos olhos a superior fibra moral do ateniense.

Ou um Alexandre, que desbravou a pata de cavalo e a ponta de espada a Ásia Menor, fundando cidades por onde passava e criando a primeira universidade da História, a Biblioteca de Alexandria, isso três séculos antes de Cristo. Rei, ao entrar em combate ia sempre à frente de seus comandados. Quase perdeu a vida quando, impaciente ante o vagar com que seus homens tomavam uma fortaleza, apanhou uma escada e nela penetrou sozinho, para perplexidade dos inimigos, que não sabiam se enfrentavam um louco ou um deus. Quando os sacerdotes do Sinédrio perguntam a Cristo se é lícito ou não pagar tributos a César, Cristo tenta fugir: “Daí, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Mas tarde piou.

Decididamente, se busco homens a cultuar, antes e depois de Cristo, a história nos oferece centenas de nomes ornados pela decisão, coragem e feitos e não pela indefinição, covardia e palavras dúbias. As visões de Dostoievski, Renan ou Kazantzakis, ainda que respeitáveis, a meu ver são românticas. Apenas acho que os novos inquisidores, que se presumem defensores da civilização cristã, deveriam examinar carinhosamente — e não condenar sem ler — as obras destes escritores fascinados pelo Cristo.

* Joinville, A Notícia, 18.12.88

sábado, junho 28, 2014
 
ABACAXIS GOELA ABAIXO


Continua o avanço no bolso do contribuinte para financiar a subcultura nacional. Alguém ainda lembra do cine Belas Artes, fechado há três anos por falta de público que sustentasse o aluguel da sala?

Na época (2011), comentou Joel Pinheiro da Fonseca:

“O Cine Belas-Artes, um velho cinema de São Paulo, está para fechar. É sempre uma tristeza quando algo com o qual estamos habituados e temos laços sentimentais vai embora. Por isso um grupo de amigos do velho cinema já clama pelo seu tombamento, o que eternizaria o estabelecimento falido. Uma passeata foi organizada; cem pessoas compareceram. Adesão menor que muita gincana de colégio. Mas essas cem (mais milhares cujo amor pela causa só não é menor do que o esforço de assinar petições online) fazem tanto barulho que se cogita seriamente ceder à pressão dos manifestantes.

“O caso todo é involuntariamente humorístico. Até o diretor do Departamento do Patrimônio Histórico reconhece: "O caso não é nada simples porque envolve um patrimônio cultural, mas também um prédio que, em termos arquitetônicos, não tem especial valor". Em outras palavras, o caso é simples: um cinema velho e que dá prejuízo vai fechar, mas alguns gatos pingados querem proibir o inevitável por decreto.

“No fundo o que está em jogo no "debate" sobre o tombamento do Cine Belas-Artes é isso: tem gente (pouca gente) que quer mantê-lo funcionando sem querer arcar com os custos. Então fazem barulho até convencer os políticos a meter o dedo, isto é, forçar os outros a pagar. O sociólogo Carlos Alberto Dória é explícito: "Por que os governos não se propuseram a ajudar no pagamento de um aluguel mais alto?". Pedir que o governo pague um aluguel mais alto significa pedir que toda a população pague para manter um cinema ao qual poucos querem ir”.

A sala era subsidiada pelo HSBC e perdeu o patrocínio. No que eu já via algo que cheirava mal. Não vejo porque um cinema, atividade comercial, deva ser financiado por um banco. Mesmo que exiba filmes de arte. Na época, o proprietário do cinema negociou com um grupo de restaurantes para obter receita e manter as atividades. "A idéia seria o cliente acrescentar um valor na conta, que iria para um fundo de ajuda ao espaço", dizia André Sturm, sócio da sala. A iniciativa partiu de 14 restaurantes, entre outros, Le Casserole, Arabia e Ici Bistrô.

O que me pareceu um desaforo. Não assisto cinema nacional há mais de trinta anos. Uma de minhas razões – não a mais importante – é que o cinema nacional é financiado pelo contribuinte. Ora, se já paguei pela produção, não me disponho a pagar para assisti-la. Só se vierem me buscar em casa de limusine e mesmo assim não sei se iria. Não bastasse o contribuinte pagar a produção de um filme, tem agora de pagar sua exibição. A idéia me pareceu revoltante e me prometi deixar de freqüentar restaurante que me cobrasse tal esmola. Pelo jeito, o projeto não foi adiante.

Não é que um cinema de arte esteja morrendo. Os cinemas de rua estão morrendo no Brasil todo. Em meus dias de adolescência, minha cidadezinha tinha três cinemas. Hoje não tem nenhum. Santa Maria, quando vivi por lá, tinha quatro ou cinco cinemas. Apesar de ser uma cidade universitária com 250 mil habitantes, chegou a não ter nenhum. Hoje tem três, de shopping. Porto Alegre, nos anos 60, tinha mais de sessenta cinemas. Hoje tem treze, a maioria em shoppings. Acontece que cinemas de shopping não exibem filme que preste. Só blockbusters ao gosto dos freqüentadores de shoppings.

Hoje existem as telas de 40 ou mais polegadas. Numa cidade como São Paulo, é desconfortável ir ao cinema. Se você vai de carro, terá de enfrentar o trânsito e marchar com estacionamento ou flanelinhas. Sem falar no risco de ser assaltado, se sair tarde do cinema. Metrô? Há um próximo ao Belas Artes. Mas e na outra ponta? Melhor ir na locadora e apanhar um DVD. É a organização das cidades que está matando as salas de exibição. Nem salas de filmes pornô resistem. A maioria delas virou templo evangélico. Onde antes se cultuava Onan, hoje se adora Jeová. O dinheiro que financiava o pecado, hoje engorda as burras dos pastores.

Pois o Belas Artes deve ser reinaugurado no início do mês que entra. Previsto inicialmente para o final de maio, a reabertura do espaço, rebatizado de Cine Caixa Belas Artes por conta do patrocínio da Caixa Econômica Federal, foi prejudicada por problemas na parte elétrica e no ar-condicionado.

Por artes mágicas, a fachada do cinema foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). O sr. Sturm, que sem dúvida alguma tem bom tráfego entre as instituições que gostam de meter a mão em seu bolso, operou o milagre. Um cinema falido renasce das cinzas, patrocinado pelo meu, pelo seu, pelo nosso dinheirinho.

Não bastassse isso, para patrocinar o falido cinema nacional, foi publicada no Diário Oficial da União a lei que obriga escolas de todo o Brasil a exibir todo mês, pelo menos duas horas de filmes com produção nacional. Modifica a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir os filmes como componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica das escolas. Não bastasse o Estado empurrar goela abaixo dos alunos a medíocre literatura nacional, produzida pelos amigos do Rei, os estudantes terão agora de engolir os abacaxis nacionais. É curioso observar que os tais de jovens, tão ágeis em sair depredando prédios, carros e bens públicos por passe livre nos transportes, engolem sem tugir nem mugir esta imposição estatal.

A Lei 9.394, que estabelece as diretrizes e bases da educação do País, já prevê, entre outros pontos que a música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular. Também tem o mesmo enfoque o ensino da arte, especialmente nas expressões regionais. A lei ainda estabelece como obrigatório, o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

História da Grécia e Roma, onde temos nossas raízes cutlturais, nem pensar. Muito menos da Europa, que formata nossa cultura. Obrigatório é o estudo de culturas que pouco ou nada nos trouxeram em termos civilizatórios. Mais um pouco, e o Estado estará dando subsídios para que o cidadão salve o moribundo cinema tupiniquim, que não tem condições de competir em mercado livre.

Aliás, digo bobagens. O subsídio já existe. É o Vale-Cultura, que beneficia 42 milhões de trabalhadores brasileiros. O cartão magnético pré-pago, válido em todo território nacional, no valor de R$50,00 mensais, vai possibilitar maior acesso do publico ao teatro, cinema, museus, espetáculos, shows, circo ou mesmo na compra de CDs, DVDs, livros, revistas e jornais.

Muito em breve, com o avanço tecnológico, o cinema não mais existirá, pelo menos como o conhecemos até agora, com os filmes exibidos em salas públicas. Exceto neste país incrível, que insiste em preservar o que já obsolesceu, em nome da tal de cultura nacional. Teremos talvez o Vale Cinema Nosso.

quinta-feira, junho 26, 2014
 
FSP TORNA-SE CÚMPLICE
DE INVASORES DE PRÉDIOS



Leio nos jornais que a Educafro, ONG que combate o racismo, está protestando contra a ausência de negros nos estádios da Copa do Mundo --que a entidade chama de "apartheid padrão Fifa". "Estamos estarrecidos", diz o frei David Santos, presidente da organização. "Nós somos 50,7% do povo brasileiro, mas quantos negros há nas arenas?"

Frei David parece não ter entendido a sociedade em que vive. Parece – ou finge – ignorar que, para assistir aos jogos é preciso pagar. E os ingressos não estão exatamente ao alcance de todos. Ou estará pretendendo o frei que sejam reservadas cotas à afrodescentada? Não só negros, mas milhares, senão milhões de brancos, estão privados dos jogos por uma razão simples: comer tem prioridade sobre a Copa. Claro que ninguém vai reclamar da ausência destes milhões. São brancos. Que se lixem.

Querendo bancar o magnânimo, ano passado Jérôme Valcke, secretário-geral da federação, afirmou que na Copa "brancos, negros, povos indígenas e imigrantes" teriam "as mesmas oportunidades para poder desfrutar do evento".

Oportunidades, claro que têm. O que falta é grana. A Fifa reafirma que seu "objetivo não é beneficiar apenas um grupo em detrimento de outros", mas favorecer a presença de todos. "A maior parte da compra de ingressos ocorreu por meio de sorteios, proporcionando chances iguais e justas para todos os torcedores brasileiros e estrangeiros. A Fifa criou condições para que os interessados de todas as classes sociais possam assistir aos jogos", afirma.

Os sorteios da compra de ingresso, sem dúvida alguma, proporcionam chances iguais e justas para... os que podem comprar. As queixas do frei me lembram as dúvidas de um solipsista – digo, psolista – nas redes sociais, que se perguntava se um pobre terá direito de jantar no Fasano ou no D.O.M. Direito, obviamente tem. Mas ninguém janta apenas empunhando direitos. É preciso puxar cheque ou cartão de crédito do bolso. É o mesmo direito que todos têm a freqüentar um boteco vagabundo. Mas não sem pagar.

São os eternos utopistas que aspiram a um país da Cocanha ao alcance de todos. Basta deitar sob uma árvore e os frutos caem na boca de cada um. Essas utopias dominaram o século passado. Saldo do sonho: cem milhões de mortos, miséria, fome, canibalismo. Do século só se salvou o capitalismo, que não tem livro nem teorias. Há fome nos regimes capitalistas? Claro que sim. A Cocanha só existe no bestunto de alguns desvairados. As utopias do século passado afundaram e as que ainda sobrevivem – apenas duas – vivem na miséria, escassez e mesmo falta de alimentos.

A mesma utopia está sendo brandida pelos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que estão invadindo prédios em bairros nobres da cidade, exigindo o direito de morar junto aos ricos sem pagar um vintém. Uma pessoa leva uma vida para juntar um patrimônio e conseguir viver bem. Estes senhores acham ser possível pular da miséria para o luxo sem trabalho algum.

O líder do movimento, Guilherme Boulos, que de sem-teto nada tem, é um aventureiro oriundo da Fefelech - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – que se diz professor de psicanálise. Tem cacife. Infringe tranquilamente as leis e foi recebido pelo prefeito e pelo governador de São Paulo, como também por Dona Dilma.

Atualmente, está sitiando, com outros sedizentes sem-teto, a sede da Câmara Municipal de São Paulo, em uma tentativa de dobrar os vereadores na definição do Plano Diretor, projeto que determina as diretrizes urbanísticas da cidade nos próximos 16 anos. Sem teto mas com smartphones. Ontem os manifestantes – como agora são chamados os delinqüentes que sitiam o Legislativo - tiveram acesso a duas senhas para uso do Wi-Fi, segundo informações do Estadão.

O elevado número de pessoas navegando na rede através do Wi-Fi da Câmara Municipal prejudicou o trabalho dos funcionários e dos jornalistas que acompanhavam as sessões do plenário. A dificuldade aumentou quando parte do sinal foi perdido durante a tarde.

A atitude é de chantagem. Boulos, filho de papai rico, mais do que ninguém, sabe ser impossível pobres viverem em zonas nobres, mesmo que tenham teto. Se ganharem teto, não terão como suportar o custo de vida do bairro. Ou seja, acabarão vendendo o que lhes foi dado com dinheiro público.

Escreve hoje na Folha de São Paulo o sem-teto-mas-com-smartphone:

“Muitos não conseguem mais morar onde sempre moraram. São expulsos por essa lógica para regiões mais distantes e periféricas. E isso implica uma piora geral nas condições de vida: mais tempo no transporte para ir e voltar do trabalho, serviços públicos ainda piores e menor infraestrutura urbana”.

Ora, é a dinâmica do capitalismo, regime onde há de tudo mas tudo tem seu preço. O mesmo aconteceu em Lisboa. Com a restauração de bairros antigos, como Alfama e Mouraria, a cidade ficou mais limpa e mais linda, mas muitos dos moradores tiveram de mudar-se. Quem morava nas imediações do Parque das Nações, onde se realizou a Expo 98, a última exposição mundial do século XX, teve de mudar-se para mais longe ainda.

Com o aumento do preço do metro quadrado e dos aluguéis, os “trabalhadores” querem aproximar-se ainda mais dos bairros caros. Trabalhadores que trabalham em quê? Ninguém sabe. Segundo os jornais, Boulos é professor de psicanálise. Mas jornal nenhum informa onde trabalha. Falta também saber quem financia a massa de sem-teto-mas-com-smart que ele lidera.

A Folha de São Paulo, em gesto de cumplicidade explícita com a invasão de prédios, acaba de contratar Boulos como colunista. A delinquência tem agora um porta-voz bem situado junto à grande imprensa.

quarta-feira, junho 25, 2014
 
A ILUMINAÇÃO ATRAVÉS
DE VÔMITOS E DIARRÉIA



Discutíamos sobre as passeatas pela liberação da maconha. Que para mim não passam de mania ridícula de bancar a defesa do que não precisa ser defendido, já que a canabis há muito está liberada. Desde 2006, os usuários seriam punidos com advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade (de 5 a 10 meses) ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Mas isso é o que menos se vê. O que se vê são fumódromos nas universidades, sob o olhar complacente dos reitores, e a droga sendo vendida até em botecos e padarias, pelo menos nas periferias.

Há quem ache que, liberada de vez a droga, seria liberado também o tráfico, o que contribuiria para a regulamentação do comércio da mesma. O que é uma solene bobagem, pois o tráfico há muito também é livre. Segundo a última legislação, quem produz ou comercializa drogas, é punido com 5 a 15 anos de reclusão e pagamento de multa de 500 a 1.500 reais. O que não passa de ficção. Pois o consumo continua correndo solto, isto é, o tráfico está distribuindo a mercadoria sem problema algum.

De vez em quando a polícia prende um grande traficante para mostrar serviço. Escreve-me o Raphael Piaia: “Dos cerca de 715 mil presos do país, aproximadamente 200 mil o foram por crimes relacionados ao tráfico de drogas, isto é, crimes que foram gerados única e exclusivamente por uma política burra para se lidar com entorpecentes”.

Pode ser. Foram presos. A que anos correspondem estas prisões? Continuam sendo presos? O fato é que se você quiser a erva, é só dar um pulo até a esquina. Isto tanto nas metrópoles como nas cidades interioranas. O consumidor acha o traficante na hora. Só a polícia parece não saber como encontrá-lo. Na Cracolândia, o consumo e o tráfico do crack é feito a céu aberto, com a proteção e estímulo da prefeitura de São Paulo. Ainda este ano, as drogas eram oferecidas na rua em altos brados nas imediações da Augusta. O pregão acabou não com a ação da polícia, mas com uma denúncia do Estadão. Ninguém foi preso.

Ou seja, os passeateiros profissionais fingem ignorar estes dados e continuam em sua luta para ganhar o que ganho já está. Mas não era disto que pretendia falar.

Droga é bom? Claro que é. Aliás, deve ser muito mais que bom, já que quem nela se vicia precisa de muita luta para libertar-se e mesmo assim o mais das vezes não consegue. Até aí, entende-se seu consumo. Mais difícil de entender é o consumo de uma droga que, além de graves danos à saúde, provoca vômitos e diarréia ao ser consumida. Falo da ayahuasca, liberada no Brasil para os rituais religiosos dos malucos do Santo Daime.

Em reportagem para o New York Times, Bob Morris escreve sobre uma reunião para a ingestão do alucinógeno, que seria usado por pessoas que buscam autoconhecimento. Leitura, que é o melhor método para alguém conhecer a si mesmo, nem pensar.

Numa noite recente, no Brooklyn, 12 pessoas na casa dos 20 e 30 anos foram a um espaço comunitário onde um xamã colombiano as esperava. Elas assinaram um termo de responsabilidade e receberam grandes recipientes de plástico para vômito. Em seguida, cada pessoa se levantou para receber uma xícara de líquido espesso e amarronzado, com sabor de ervas.

Era o chá de ayahuasca, infusão alucinógena amazônica que os participantes esperavam que lhes proporcionasse iluminações pessoais, por meio de alucinações óticas e auditivas.Depois de beber o chá, aguardaram no escuro, à luz de uma vela. O xamã tocou instrumentos tradicionais de cordas e sopros e entoou melodias rituais.

Uma participante se acomodou para a "viagem", que duraria a noite inteira e para a qual havia pago US$ 150. Seguindo instruções recebidas por e-mail, ela tinha passado vários dias sem álcool, carne vermelha, alimentos condimentados, queijo forte e televisão. Tinha se abstido de sexo e não estava tomando antidepressivos.


Segundo Rick Doblin, da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos, em Santa Cruz, Califórnia, e doutor em política pública pela Universidade Harvard, "a ayahuasca precisa ser usada com cuidado, mas promove uma boa conexão mente-corpo. Você tem uma sensação de iluminação interior no cérebro."

Riscos: quando é usada com antidepressivos, gera um excesso de serotonina no sistema nervoso central, podendo provocar confusão e tremores. E pode afetar a função cardiovascular de pessoas que já têm problemas cardíacos. Também há riscos de efeitos adversos entre pessoas com problemas psicológicos como bipolaridade ou esquizofrenia.

Mas pode operar milagres. O psiquiatra Eduardo Gastelumendi, de Lima, recorda o que ouviu de um paciente que tinha uma reação problemática e distante com seu pai. Sob o efeito do alucinógeno, o paciente teve uma visão em que o abraçava. Alguns dias depois, ele bateu na porta de seu pai, o abraçou, e eles se reconciliaram, entre lágrimas.

Quer dizer, você toma uma lavagem, tem diarréia e vomita e supera todos os diferendos com o pai. Ora, contem outra.

Dizia que entendo como alguém possa gostar de droga. Mas quando a droga dá prazer, e este é seu atrativo. Quanto a atingir o autoconhecimento através de vômitos e diarréia, isto supera meu entendimento. Com este método os místicos não contavam.

Com o perdão pela má palavra: se comer merda entrar na moda e for recomendada por acadêmicos, no dia seguinte merda será vendida a preço de caviar nos restaurantes. Ou alguém duvida disto?

terça-feira, junho 24, 2014
 
LA MÉTHODE CRISTALDESQUE *


Dia 26 de março de 1981 foi o último dia em que usei gravata em minha vida. Há 27 anos, portanto. Já não a usava há muito, tanto que já nem lembrava como se dá um nó. Usei-a porque iria defender uma tese na Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III) e meu orientador julgou conveniente que eu fosse de gravata. Então tá! Mas o problema não foi a gravata. E sim o tal de método.

Não usei teoria alguma para fundamentar minha tese. Apenas raciocinei, livre pensei, como quiserem. Um de meus inquisidores era Madame Brahimi, especialista em literatura do Maghreb. O que ela estava fazendo lá, não sei. A tese era sobre as literaturas Ernesto Sábato e Albert Camus e alguém entendeu que Camus, por ser argeliano, era um autor magrebino. Ora, pode ser que Camus tenha nascido em Mondovi, na Argélia. Mas sua literatura nada tem a ver com a Argélia. É, antes de tudo, um escritor francês.

Falava do método. Lá pelas tantas, Me. Brahimi encrencou: “Je n’ai jamais vu ça! Oú est la méthode?” (Jamais vi algo assim. Onde está o método?) E quando um burocrata francês diz “je n’ai jamais vu ça!”, saia da frente. Ele está querendo dizer que a coisa vista não existe.

- Ma méthode c’est la cristaldesque! – respondi, arriscando jogar fora, com aquela resposta, quatro anos de pesquisa. Meu método é o cristaldesco. Não vim aqui para analisar a obra de dois autores pedindo emprestado o cérebro de um terceiro. Estou usando o meu mesmo. Milagrosamente, minha tese passou. Acho que um pouco devido à platéia. Havia entre cinqüenta e sessenta meninas na salle Bourjac, na velha Sorbonne, e um só rapaz. Seria uma ofensa a tão seleto público reprovar-me. Minha Baixinha, que viera do Brasil para assistir a defesa, estava perplexa. Nossa! Como conseguiste isto? Sei lá! Conversei, namorei, amei. Consegui.

Desconheço algo mais precário, no mundo acadêmico, que o tal de método. Método significa o seguinte: você usa o pensamento de um teórico qualquer, de preferência alemão ou francês – paraguaio ou boliviano não vale, é claro! – para embasar suas reflexões. Ou seja: você não pode pensar. Quem pensa é o teórico. Que isso tenha importância na área científica, entendo. Só não sei quem importou o tal de método para a área das ditas ciências humanas. Método é um freio ao livre pensar. Você quer um galão que o habilite ao ensino universitário? Então renuncie a seu próprio pensamento e pense como nós, da Academia, pensamos. Você não está aqui para ser original. Pense como pensamos todos.

Escreveu Lígia Chiappini Moraes Leite – por sinal minha conterrânea e hoje professora na Freie Universität de Berlim – em A Invasão da Catedral: “É por isso que os seminários da pós-graduação continuam a ser, na sua maior parte, aulas ou conferências dadas pelo professor ou por um aluno, e as teses, exercícios escolares sem grandes audácias, onde a invenção é mal vista e a submissão aos métodos do orientador, predominante. O que interessa não é entrar na aventura da pesquisa, mas seguir a trilha bem comportada e segura que levará aos títulos”.

Conversando com a Lígia, disse-me ela um dia: “Não existe legislação alguma que obrigue um doutorando a utilizar teorias em sua pesquisa”. Ora, numa instituição esclerosada como a universidade, isto soa como heresia. Na Idade Média, seria fogueira na hora.

No entanto, algo parece estar mudando nos dias que correm. Leio no Estadão de hoje:

Universidades aceitam dissertações e teses fora do formato convencional

Desafiando a tradição de formatos e metodologias quase sagradas e abençoadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), universidades brasileiras têm aceitado dissertações de mestrado e teses de doutorado na forma de romances, ensaios autobiográficos, roteiros e textos experimentais que resvalam na ficção e na criação literária. A repercussão aparece em extremos: há os entusiastas da flexibilização e os que defendem como imprescindível a manutenção dos moldes acadêmicos tradicionais.

Bom... nem tanto ao mar nem tanto à terra. Um romance pode exigir muita pesquisa. Como jurado de uma banca, eu não teria problema algum de consciência a conferir grau de doutor a Dostoievski, caso me apresentasse como tese Os Irmãos Karamazov. Ou a Swift, se me propusesse As Viagens de Gulliver. Ou a Orwell, se brandisse 1984. Daí a aceitar os desvarios de uma Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Telles vai uma longa distância.

Tese, a meu ver, é um ensaio em que se discute uma determinada visão de mundo. Esta visão de mundo existe nas obras de Dostoievski, Swift ou Orwell. Mas não necessariamente na obra de escritores medíocres que tiram seu sustento da contemplação do próprio umbigo. É possível discutir, comentar, contestar, a obra dos autores que citei. São autores que afirmam algo. Suas ficções são, no fundo, ensaios sobre a condição humana. Já não é possível contestar a obra de quem não afirma coisa alguma.

Enfim, a universidade parece estar se abrindo à sensatez. Talvez um dia aceite la méthode cristaldesque. Desde que não confira o título de doutor ao Paulo Coelho ou à Bruna Surfistinha, vá lá! O que não me surpreenderia, conhecendo os bois com que lavro.

* 20/12/2008

segunda-feira, junho 23, 2014
 
REALEZA BRITÂNICA
HONRA CRACKGARTEN



Em 2011, a Prefeitura de São Paulo queria retirar das ruas, à força se fosse preciso, usuários de drogas que recusassem tratamento. A administração buscava uma alternativa jurídica para isso. Segundo o então prefeito, Gilberto Kassab, a idéia era dar mais liberdade para as equipes de saúde e de assistência social da prefeitura poderem atuar com usuários de drogas. O alvo principal seria a Cracolândia.

Paguei para ver. A Cracolândia já existia há mais de duas décadas e só em 2011 um administrador pensou em tratar do assunto. Antes tarde do que nunca, direis. Mas não vejo como reprimir o consumo da droga em Santa Ifigênia enquanto se libera a marcha da maconha na avenida Paulista. A propósito, os marchadores da maconha parecem pretender estabelecer uma hierarquia entre maconheiros e fumadores de crack. Os maconheiros seriam seres moralmente superiores à turma do crack e não gostam de ser confundidos com estes.

Em dezembro do ano passado, os moradores do bairro organizaram um abaixo-assinado que foi encaminhado aos órgãos públicos, pedindo a remoção dos “usuários” da região. Agora vai! – me escreveu um entusiasmado leitor, otimista incorrigível. Não vai nada, respondi. Desde que o uso da droga foi liberado no Brasil, e depois que os igrejeiros elevaram à condição de direito inalienável do homem o direito de morar na rua, a Cracolândia tem vida eterna assegurada.

A Cracolândia veio para ficar, escrevi no início deste ano. Os incomodados que se retirem. Mesmo que paguem IPTU para residir. Para confirmar-me, no mesmo mês de janeiro, o atual prefeito, Fernando Haddad, ofereceu habitação, alimentação, emprego e assistência médica para moradores da Cracolândia. O emprego consiste no pagamento de 15 reais para cada quatro horas de varrição de ruas.

Novos “usuários” acorreram ao bairro para conseguir uns trocados para comprar as pedras, cujo preço subiu em flecha. A prefeitura conseguiu inflacionar o mercado. Não bastasse isso, no mês passado, para incentivar o uso tranquilo da droga, o prefeito criou cercadinhos nas ruas para consumir o crack sem maiores incomodações. À semelhança das Biergarten da Alemanha, Haddad inovou. Temos agora os crackgarten paulistanos.

Isto vai atrair turismo, comentei na ocasião. Cala-te, boca. A saison vai ser inaugurada pela realeza britânica. O primeiro visitante ilustre é nada mais nada menos que o príncipe Harry, que desfilará sua majestade no pedaço na próxima quinta-feira.

Leio nos jornais que Harry demonstrou interesse em saber como uma cidade grande como São Paulo, maior ainda do que Londres, está lidando com um problema tão grave como o vício em drogas. Foi o próprio príncipe que pediu para conhecer o local.

Na visita, cujo horário está sendo mantido em segredo por questões de segurança, Harry deve visitar a sede do programa, onde viciados (perdão, usuários) em crack recebem orientações, e conversar com seus freqüentadores.

No Discurso da Desigualdade, disse Rousseau, o pai dos utopistas desvairados dos dias de hoje: "O primeiro homem que cercou um pedaço de terra e disse que era sua propriedade e encontrou pessoas que acreditaram nele foi o fundador da sociedade civil. Daí vieram muitos crimes, muitas guerras, horrores e assassinatos que poderiam ter sido evitados se alguém tivesse arrancado as cercas e alertado para que ninguém aceitasse este impostor. Não podemos esquecer que os frutos da terra pertencem a todos nós e a terra a ninguém".

Morto em 1778, em Ermenoville (França), o filósofo suíço adoraria ver, mais de dois séculos depois, sua utopia implantada pelo PT em São Paulo. Parafraseando Rousseau: não podemos esquecer que as ruas pertencem a todos nós e a cidade também. Nóia finalmente adquire cidadania.

Europeu adora pobreza. Longe da Europa, é claro. O príncipe, que certamente jamais pôs seus reais sapatos nos bairros degradados de Londres, privilegia a Cracolândia em sua segunda visita ao Brasil. Para o turista médio europeu, uma visita à favela é programa quase obrigatório em um tour pelo Brasil. A impressão que me fica, é que adoram ver aquilo de que escaparam. De minha parte, só fiz esse turismo uma vez em minha vida, a visita de um terreiro de macumba no Belfort Roxo, no Rio... a convite de um diplomata francês.

Com a visita real, novos turistas certamente virão ver este notável achado de Haddad. Com jeito, se arrumam algumas mesinhas na calçada para tomar uma ceva, contemplando a miséria in loco e confortavelmente.

E ainda há quem lute pela liberação da droga no Brasil!

sábado, junho 21, 2014
 
A COPA E A AMEAÇA ARGENTINA


Charles Pilger, gaúcho, escreve no FB:

“O que mais me entristece nessa história das gurias fazendo a festa com os turistas que aparecem na cidade é o fato de que parece que não houve uma revolução sexual a 50 anos atrás. Oi? Como assim só homem pode se divertir? Como assim a garota que pega um belo holandês é vadia e o cara que pega uma australiana é garanhão? Sério que isso ainda existe?”

Existiu, existe e sempre vai existir, Pilger. Enquanto o macho domina, só o macho tem direito à uma vida sexual livre. Se a mulher ousa tomar a mesma atitude, é puta e mais não se discute. Verdade que os tempos mudaram, e hoje, apesar de ser considerada puta, a mulher é aceita com suas putices e tudo em todos os meios sociais. Mas sempre fica a pecha. O gaúcho sempre vai preferir, para mulher de seus filhos, uma mulher casta e fiel. Se quer um sexo mais divertido, procura as putas.

Verdade que hoje não mais se exigem virgens no casamento. Mas como seria bom... Mas, uma vez casada, a mulher que se comporte. Isso de vida sexual farta continua sendo privilégio do marido.

Enquanto isso, pelo menos às solteiras é permissível a vida folgada. Nem poderia ser diferente. Depois dos anos 60, ficou difícil de controlar a vida sexual das moças.

A pílula libertou as mulheres do maior receio, a gravidez acidental. Antes disso, os prédios e os automóveis haviam dado sua contribuição à libertação sexual. Se em uma cidade pequena se podia controlar a vida das aldeãs, o mesmo não era possível numa cidade com prédios de dezenas de apartamentos e carros. A mulher entrava num carro e ninguém ficava sabendo para onde ia. Entrava num prédio e ninguém sabia quem ia visitar.

Vivi a Porto Alegre dos 70. Fui gravateado em bares e arrastado para a cama. Na rua ou no elevador, bastava um olhar mais eloqüente e dispensava-se quaisquer palavras. A Aids pode ter sido uma ducha de água fria para os mais entusiastas, mas foi algo contornável. Exorcizado o mal, logo se voltou ao bom esporte.

“E o que temos com essa história? – pergunta-se Pilger. “Mais uma prova do quão provinciana a mui leal e valorosa cidade de Porto Alegre é. O que os homens da cidade não estão entendendo é que com a Copa a cidade está passando dias de Rio de Janeiro, onde as mulheres podem ser sexualmente livres e não tem que aguentar fofoquinha e dedos apontados no dia seguinte...”

Os tempos podem ter mudado, Pilger. Mas o resíduo de machismo permanece. Até mesmo quando a mulher traz o de comer para casa. E não é só gaúcho. Isso de marido matando mulher, namorado matando namorada, se repete no país todo. Só nos últimos dias, ocorreram três ou mais casos. É a falência do macho, que eu comentava já nos anos 70. (Segue a crônica abaixo).

Quanto às gaúchas... sempre é bom trocar de cardápio. Naqueles mesmos anos 70, escrevi crônica na Folha que teve repercussão enorme e inesperada. Lembrei de duas ou três amigas que costumavam ir ao Rio em férias e voltavam sideradas. Eu estava sem assunto e generalizei. Escrevi crônica intitulada “As gaúchas e o Rio”.

O gaúcho nada entendia de mulher. Quem entendia era o carioca. O gaúcho era um bruto. O carioca, um princípe. O gaúcho era possessivo. O carioca, um liberal. O que as gauchinhas não se davam conta era que os amores de verão duravam o que duram as rosas. Não havia tempo para entediar-se, nem sequer para conflitos. Voltavam apenas com boas lembranças, já que as más nem tiveram tempo de ocorrer.

Aproveitei ainda para publicar pesquisa feita entre as cariocas que diziam que o carioca... era um bruto. Claro, as moças tinham de agüentar os conterrâneos o ano todo. As gaúchas, só o verão.

Pra quê, meu Deus! A redação foi inundada de telefonemas, de moças alegando que não era por isso que elas iam ao Rio. Ora, no “isso” eu nem havia falado. Sem sequer imaginar no formigueiro que havia mexido, descobri um fluxo subterrâneo no Portinho. Hoje, não é preciso mais ir ao Rio. Em Porto Alegre mesmo se pode aplacar os ardores. Continua Pilger:

“E é aquilo: se queriam mulherada vindo para a cidade que apoiassem outro evento, não uma Copa do Mundo! Chamam um bando de macho e depois reclamam? Oras!”

Mas talvez não seja bem isso, Pilger. E sim a proximidade do jogo da Argentina no Beira-Rio. Os porto-alegrenses nunca olharam com bons olhos nuestros vecinos. Perder uma percanta para um hincha de allá deve doer mais que perder a Copa.


FALÊNCIA DO MACHO *

Descobriu tudo e deu três tiros na mulher. Para bom entendedor, a manchete já disse tudo, nem é preciso ler a notícia. O crime ocorreu sexta-feira passada, na esquina da Sete de Setembro com a João Manoel. Entrei num edifício do centro, o porteiro comentava:
- Nesses casos, a culpa é sempre da mulher. O homem sempre tem razão.

A meu lado, estava o homicida potencial.

Em minha pasta de recortes, as notícias sobre maridos que matam mulheres já estão ocupando um espaço excessivo. Ora o marido mata a mulher que o traiu, ora mata o amante da mulher, quando não mata os dois. O fato comporta algumas variantes. Mas a decisão do júri é uma só: absolvição. Defesa da honra, pretextam. Mas que honra é essa que exige sangue para ser lavada?

Vejo algo de mais profundo e sintomático nessa atitude do marido e do júri. Não creio se trate apenas de defesa da honra. Mas sim medo do homem de nossa época ante a nova mulher que surge.

Houve um momento na História em que o Estado encarregava-se de vingar os brios do macho insultado. Antes do surgimento da roda e da máquina, era senhor quem tinha maior força física, ou seja, o homem. O homem erigiu o Estado e as leis eram um reflexo de sua vontade absoluta. A mulher era sua propriedade, o adultério era antes de mais nada um roubo. O Estado punia esse roubo. Jogava os adúlteros na fogueira. Ou pendurava-os no patíbulo.

Os tempos mudaram. Hoje, força física não alimenta ninguém, exceto ídolos do futebol ou campeões olímpicos. A máquina permite que uma mulher execute o mesmo trabalho de um homem. Não está mais em jogo sua força física, mas sua capacidade mental. Mesmo ainda inferiorizada, a mulher pode hoje prover o seu sustento, decidir, comandar.

Em outras palavras, equipara-se ao homem. Se nos primórdios da humanidade a subsistência dependia de músculos rijos, manejo do tacape ou machado, argúcia na caça, hoje subsistência depende de conhecimento, técnica, cultura. Sabemos como vive – ou melhor, sobrevive – quem só dispõe de força física para o trabalho.

A fêmea do homem evoluiu. O macho continua o mesmo.

Posso ser dono de um livro, de um par de sapatos, de um carro. São coisas, objetos. Eu os possuo e deles disponho como bem entender. Mas não posso ser dono de uma mulher, de um outro ser humano com vontade própria. Se minha mulher me troca por um outro homem, creio existirem apenas duas atitudes a tomar.

Uma, seria cumprimentar minha mulher, caso tenha encontrado um homem melhor dotado e com mais capacidade de oferecer-lhe amor e compreensão. (Pois é bem possível que eu não seja o mais perfeito e amoroso dos homens, não é verdade?) A outra atitude seria dar-lhe pêsames, por ter-me trocado por um homem inferior e incapaz de oferecer-lhe amor. (Pois é bem possível que eu não seja o mais imperfeito e egoísta dos homens, não é verdade?)

Mas o macho contemporâneo não renunciou à sua condição de senhor. Vê na mulher uma escrava, uma coisa de sua propriedade. Sente-se roubado? Mata. Os jurados o inocentam, numa espécie de alerta: “Cuidado, querida. Se me traíres, te mato. E meus colegas me absolverão”. Chamam a isto defesa da honra.

Os tempos mudaram. A mulher se transformou. O homem continua o mesmo. Ao sentir-se traído, só conhece uma forma de diálogo: reage à bala. Isto é, o macho está falido.

*Porto Alegre, Folha da Manhã, 03/11/1975

sexta-feira, junho 20, 2014
 
EM ELEITOR NÃO SE
BATE NEM COM FLOR



São Paulo está virando Paris. Na capital francesa, já faz parte dos usos e costumes a depredação anual de centenas de carros nos réveillons. Aqui, segundo a Veja, só nos quatro primeiros meses deste ano, ao menos 227 ônibus foram incendiados no Brasil em 38 cidades. Não temos notícia de um só responsável pelo vandalismo que tenha ficado atrás das grades. Pelo menos doze capitais registraram o mesmo tipo de ocorrência.

No que diz respeito a São Paulo, o número de coletivos queimados nesse período ultrapassa o total de ocorrências registradas durante todo o ano de 2013. Foram 70 e 53, respectivamente. O Estado do Rio de Janeiro aparece como a segunda frota mais afetada – 31 ônibus – e Minas Gerais e Pernambuco surgem na sequência com 15 e 14 veículos atingidos. Apenas na cidade de Caruaru, em Pernambuco, no último dia 7, um incêndio criminoso atingiu uma garagem e destruiu 12 coletivos em uma só noite.

Mês passado, a depredação de ônibus nesta capital acabou da noite para o dia. Foi após descobrir-se a ligação de um vereador do PT com o PCC, o grande responsável pela queima de coletivos. O serviço de vans, que é dominado pelos criminosos, não teve um só veículo queimado nesse tempo todo. Cobram o que querem durante as greves e permanecem incólumes. Se alguém precisa de prova maior do comprometimento dos proprietários de vans, é porque se recusa a aceitar o óbvio.

Ontem foi dia de festa para os bagunceiros em São Paulo. Para não sujar mais o pau de galinheiro em que virou o PT, nenhum ônibus foi incendiado. Mas foram invadidas duas concessionárias de carros importados. Só aí, um prejuízo de 3 milhões de reais. Foram ainda quebrados os vidros de agências bancárias e lojas, e destruídas lixeiras, orelhões e vasos de plantas. A manifestação, que reuniu 1.300 pessoas, pedia fim da tarifa do transporte e bloqueou marginal Pinheiros. Era uma comemoração da gloriosa Revolução de Junho de 1913. Tudo contra o capital e o comércio! Viva 1917!

Segundo a Folha de São Paulo, o protesto, organizado pelo MPL (Movimento Passe Livre, terminou com ao menos cinco agências bancárias, duas lojas de carros de luxo e um veículo de imprensa depredados ontem, na zona oeste de São Paulo. O ato, iniciado na av. Paulista, reuniu 1.300 pessoas. Ou seja, basta algumas centenas de pessoas para paralisar o trânsito das principais vias da cidade e depredar a gosto o que quiser.

Índios munidos de arcos e flechas também participaram do ato e cobraram a demarcação de terras. Tudo isso com total permissão das autoridades. A televisão mostrou batalhões de choque, munidos de ameaçadoras armaduras, escudos e bombas de gás... a 300 metros de onde os arruaceiros quebravam os carros. Mais não se aproximaram. O ano é eleitoral e urge evitar alguém ferido. Ou seja, teremos ainda muito a ver até as eleições.

Curiosamente, a imprensa absolve os ativistas do MPL e atribui a baderna aos tais de black block que, coincidentemente, sempre estão juntos com os primeiros. O MPL se exime dos quebra-quebras. "Não escolhemos quem participa dos nossos atos. Não foi o MPL que começou a destruição e não conseguimos sequer terminar o nosso ato, pois quando chegamos perto do largo da Batata fomos atingidos por bombas da polícia."

Até pode ser. Mas as manifestações pacíficas do movimento sempre terminam com carros e lojas incendiadas e milhões de reais de prejuízo. Quando alguém é preso – ou apreendido, este gentil eufemismo que a imprensa endossou quando o arruaceiro é menor de idade – tem seu nome registrado na polícia e é logo liberado, sem precisar sequer de advogado.

Segundo Denis Cicuto, diretor do Grupo Caltabiano, dono das duas lojas de carros depredadas, que foram abertas nove dias atrás: "Isso aqui não é terra de ninguém", Tem razão. É terra dos que se julgam no sagrado direito de destruir propriedades alheias. Com apoio das mais altas autoridades do país.

Alguém ainda lembra de Dona Dilma, quando, em junho do ano passado, saudava os vândalos como a nova força da naçãoo? Se alguém já não lembra, eu lembro. Segundo a presidente, depredar ônibus, carros e bancos eram manifestações pacíficas próprias da democracia.

“O Brasil hoje acordou mais forte. A grandeza das manifestações de ontem comprovam (o plural é dela) a energia da nossa democracia, a força da voz das ruas e o civismo da nossa população. É bom ver tantos jovens e adultos, o neto, o pais, o avô juntos com a bandeira do Brasil cantando o hino nacional, dizendo com orgulho ‘eu sou brasileiro’ e defendendo um país melhor. O Brasil tem orgulho deles”, disse então a presidente.

O Brasil se orgulhava de seus baderneiros. Fernando Henrique Cardoso, que de seu glorioso climatério assistia de camarote os distúrbios de rua, perdeu uma ocasião única de ficar calado. Desqualificar os protestos dos jovens em São Paulo e outras capitais "como se fossem ação de baderneiros" constituía, na avaliação do ex-presidente, "um grave erro".

Para ele, "dizer que essas manifestações são violentas é parcial e não resolve. É melhor entendê-las, perceber que essas manifestações decorrem da carestia, da má qualidade dos serviços públicos, das injustiças, da corrupção". Geraldo Alckmin, que iniciou classificando os manifestantes como "vândalos" e "baderneiros", logo acudiu com panos quentes: "Queria fazer um elogio às lideranças do movimento e também à segurança pública e à Polícia Militar”. Para o governador, a primeira reunião com os utópicos desvairados do Movimento Passe Livre (MPL) foi positiva. "Foi uma reunião muito madura, muito proveitosa."

O resultado é o que vimos ontem, antes de ontem e desde há um ano. Não bastasse isto, o Crakgarten inaugurado por Haddad continua conquistando território. Os viciados na droga (perdão, leitor! Viciado é quem fuma cigarros. Quem fuma crack é usuário) ergueram nova favela no centro da cidade, entre a alameda Cleveland e a rua Helvétia, região mais degradada da Luz, centro de São Paulo, a uns 15 minutos de caminhada aqui de casa. E olhe que meu bairro é tido como nobre!

Trata-se do mesmo terreno onde foi erguida uma pequena favela removida no mês passado pela prefeitura ao lançar o programa "de Braços Abertos”, que consistiu em retirar os barracos e alojar seus moradores em quatro hotéis da região em troca de salário e emprego. Na época, com estes subsídios aos – como direi? – usuários, o preço do crack subiu em flecha no pedaço. A nova favela nem é para residência. Segundo um dos proprietários dos "imóveis", servem para ganhar algum dinheirinho: são alugadas para consumo do crack e relações sexuais. Leio no IG:

“Pode passar! Se você andar pelo canto da calçada, ninguém mexe”. O conselho é de um agente da Guarda Civil Metropolitana (GCM), que às 15h da última quinta-feira (20) acompanhava do carro a movimentação de pelo menos uma centena de dependentes de crack concentrados na região.

“Eles começaram a voltar faz umas duas semanas”, estimou ao iG um dos seguranças particulares que montam guarda na região, mas que pediu sigilo sobre sua identidade. Ao todo, cinco vigilantes observam o tumulto munidos de escuta e rádio. “Sem nenhuma autoridade ninguém anda aqui.”

Aos mais desavisados, a surpresa começa no largo Coração de Jesus, entre as alamedas Glete e Dino Bueno. O lixo pela rua, o comércio fechado e as discussões em voz alta impedem o avanço de quem precisa atravessar a via. A única garantia de segurança é uma viatura da CGM estacionada na metade do caminho.

A surpresa se transforma em susto ao se aproximar da esquina da Helvétia com a Cleveland. No entroncamento, dezenas de usuários de crack andam de um lado para o outro. Alguns consomem a droga, outros trocam socos, enquanto há quem prefira atendimento médico em uma tenda montada no terreno, mas ninguém ultrapassa o perímetro, delimitado por duas viaturas, duas motos e um micro ônibus da CGM.

A polícia está lá para proteger os – como direi? – utentes do crack, não o cidadão que paga seus tributos. Ou alguém já viu duas viaturas, duas motos e um micro ônibus da polícia protegendo alguém que não os crackeiros.

São Paulo é refém da democracia. Em ano eleitoral, em baderneiro não se bate nem com flor.

quarta-feira, junho 18, 2014
 
ALGUMAS COISAS A FAZER
ANTES DO FIM DO MUNDO *


- ler a meia centena de livros das últimas viagens, que ainda me esperam em minha cabeceira
- organizar meus baús de cartas, herança daquela distante época em que se escrevia cartas. Se bem que... para quê?
- rever uma bugra guarani, que namorei nos dias de Dom Pedrito e que me sussurrava ao ouvido: xemboraihú
- rever uma gaúcha de Porto Alegre que um dia reencontrei no Kungsträdgården, transida de frio, em Estocolmo. E com ela fazer de novo tudo o que fiz naquele dia
- ouvir czardas no Café Central, em Viena
- ouvir violinos ciganos no Gundel,em Budapeste
- tomar uma Leffe radieuse no Metropole, em Bruxelas
uma jarra de cerveja, daquelas de litro, na Hofbräuhaus, em Munique
- um cochinillo no Sobrino de Botín, em Madri, regado por um Marqués de Riscal
- uma andouillette A.A.A.A.A. no Aux Charpentiers, em Paris, com um bom Cahors
- um baba au rhum no Julien, em Paris
- uma île flottante, no Bofinger, em Paris
- rever aquela Carmen filmada pelo Francesco Rosi, com a Julia Migenes
- rever Die Zauberflötte, com a orquestra do Ludwigsburger Festspiele, com Deon van der Walt e Ulrike Sonntag, como Tamino e Pamina
- rever Don Giovanni, regida por Wilhelm Furtwängler, com Cesare Siepi no papel-título e Otto Edelman como Leporello
- ouvir Chavela Vargas, Miguel Aceves Mejía, Jorge Negrete
- subir Toledo a pé
- comer um cordero lechal no Aurélio, em Toledo
- descer Toledo a pé
- beber uma manzanilla no Venencia, em Madri
- degustar outro cochinillo naquela cave medieval do Café de Oriente, também em Madri
- subir de novo Santorini em lombo de mula
- descer Santorini em lombo de mula
- revisitar os vulcões de Lanzarote
- comer um churrasco assado nas lavas dos vulcões de Lanzarote
- rever a árdega peoniana de Skopje, que alegrou meus dias em Paris
- ver de novo um nascer de sol junto ao Tridente, no Assekrem, no Sahara argelino
- ouvir tuaregues contando histórias em torno a uma fogueira no topo da montanha
- beijar mais uma vez uma distante amiga numa meia-noite gélida em Paris, vendo além dos olhos dela a agulha da Notre Dame penetrando a lua em quarto crescente
- rever também aquela sabra baixinha e linda que alegrou meus dias numa travessia do Atlântico
- ver uma aurora boreal
- rever o sol da meia-noite, tomando um vinho naquela noite que não é noite com a Primeira-Namorada, em Tromsø, Noruega
- conhecer Svalbard
- Atacama, que ainda não conheço
- viajar ao México e empinar una copa junto a uma banda mariachi
- cantar canções de corno com os mariachis
- flanar pelas ruas desertas de Veneza, ouvindo o chiado dos sapatos no silêncio da noite
- reencontrar a peoniana na Piazza San Marco, num domingo ensolarado, no Café Florian, com violinos ao fundo - rever o rancho onde nasci, lá na Linha, hoje tapera
- debruçar-me sobre os pastos e beber água na cacimba frente ao rancho
- abraçar minha professora de francês, dos dias de ginásio, em Dom Pedrito
- uma janta de despedida com o pequeno círculo de amigos que até hoje me acompanham. Discutiríamos a Bíblia, teologia e o apocalipse. Sempre embalados pelo sangue das uvas
- tomar mais um vinho com a Primeira-Namorada no topo do Edifício Itália, enquanto o sol se põe sobre esta São Paulo desvairada
- quando soarem os primeiros sinais do Apocalipse, vou sentar-me nalgum boteco e ler o Qohélet
- não é dado aos que partem voltarem. Se fosse, trocava tudo isto por um dia – um só dia, não mais que um só dia - com minha Baixinha adorada. E mergulharia feliz no buraco negro

* 10/09/2008

terça-feira, junho 17, 2014
 
CADEIRA DE RODAS
AINDA É VANGUARDA




Ao elogiar Miguel Nicolelis, cujo projeto de um exoesqueleto tinha como objetivo devolver o movimento às pessoas com paralisia, liberando-as do uso de cadeiras de rodas, Juliano Alves Pinto, o paraplégico escolhido para dar o chute inicial na Copa do Mundo, acaba por desmitificá-lo. Para começar, Juliano não é um paraplégico qualquer. Atleta, participa de jogos olímpicos e, pernas à parte, tem mais músculos e saúde que a maioria dos mortais. Há 7 anos e meio, ele perdeu o movimento das pernas ao fraturar a coluna em um acidente de carro. Em entrevista à Zero Hora, diz Juliano:

— Minha vida mudou. Antes eu conseguia fazer as minhas coisas e, de repente, precisava das pessoas para me ajudar. Tive de reaprender a fazer tudo sozinho. Hoje, levo uma vida praticamente independente, dirijo, pratico esportes, me troco, tomo banho.

Só agora vi a foto do rapaz. Veja a mobilidade de Juliano em seu triciclo e compare com sua imobilização total no exoesqueleto de Nicolelis, nas fotos publicadas em jornais. Na estrovenga bolada pelo neurocientista, seja lá o que isto quer dizer, Juliano não consegue mexer um dedo. O chute, pelo segundo que se viu na televisão, poderia ser chute ou um empurrão da perna. Não se levantou da cadeira de rodas, como estava previsto, não andou até o meio do estádio e, quanto ao chute, acredita quem gosta de acreditar. Sem a carapaça que o envolvia, provavelmente chegaria ao meio do campo plantando bananeira.

O jornal brande a grandeza da promessa, classificada quase como um milagre: munido de uma veste robótica, um paraplégico levantaria de uma cadeira de rodas, caminharia até o gramado do Itaquerão e chutaria uma bola acionando apenas a força do pensamento. Não foi o que ocorreu.
— O tempo foi muito curto para que isso acontecesse — responde Juliano. Ou seja, a própria cobaia desmente seu mentor, que assegurou no Twiter que o prometido foi entregue.

Experimentos semelhantes e bem mais viáveis estão sendo testados na Europa, diante dos quais o aparelho de Nicolelis parece pertencer à Era da Pedra Lascada: http://ec.europa.eu/information_society/newsroom/cf/dae/itemdetail.cfm?item_id=10120

No entanto, os cientistas tupiniquins parecem não ter notícias disto. Mesmo assim, a cadeira de rodas continua na vanguarda do achados da ciência do neurocientista. Isso sem falar nesses corredores de jogos paralímpicos que, com uma mola de aço substituindo os pés, correm mais rápido que um atleta normal.

domingo, junho 15, 2014
 
QUEM TEM
TEM MEDO



Em 2010, contei episódio de minha chegada a Paris. Voei com uma chusma de colorados, com aquele uniforme do Banrisul, alguns enrolados na bandeira. E entrei no Charles de Gaulle com aquela canalha gritando em unissono: "atirei um pau no Grêmio e mandei tomar no cu."

Eram animais que iam para um jogo em Abu Dabi. Não é que devam ser proibidos de entrar na França. Deveriam ser proibidos de entrar na Europa. Interessante observar que constituem uma elite econômica, de alto poder aquisitivo. Não é qualquer brasileiro que banca uma viagem a Abu Dabi para ver um jogo de seu time. Se esta elite se comporta assim, que sobra para o povão?

Naquele dia, senti vergonha de ser brasileiro. Vontade de declarar ao guardinha de fronteiras que era paraguaio, haitiano, ugandense. Mas futebol é isso mesmo. O início da guerra civil, como dizia Orwell. Quem não quiser ouvir impropérios, que não vá a estádios. De minha parte, nunca fui. O problema é que a chusma me atocaiava onde menos esperava encontrá-la, na chegada a Paris.

Está causando celeuma na imprensa a vaia levada por dona Dilma, que foi mandada ao mesmo lugar que o Grêmio. Pelo que sei, é a primeira vez na história do país que um presidente é submetido a tal vexame. Alguns jornais querem dourar a pílula, estabelecendo distinções entre o que deva ser crítica e o que é insulto. Mas quem disse que a turba queria criticar o regime?

Queriam mesmo é insultar. E insultar não o regime, mas especificamente a presidente. Óbvio que tal gesto não foi gratuito. Dona Dilma, ao pretender apoderar-se da Copa em proveito de sua reeleição, fez por merecer. Dia seguinte, a presidente passou recibo da vaia.

"Na minha vida pessoal, enfrentei situações do mais alto grau de dificuldade. Situações que chegaram ao limite físico. Suportei não agressões verbais, mas agressões físicas", disse a uma platéia de operários e trabalhadores do sistema de trânsito do Distrito Federal, governado pelo petista Agnelo Queiroz.

Com a falta de lógica que lhe é peculiar, a presidente trocou as bolas. Uma coisa é estar na condição de prisioneira de uma ditadura, em local onde bons tratos não são de esperar-se, e cercada por funcionários que têm por função humilhar suas vítimas. Outra, e bem distinta, é ir a um estádio onde a multidão festeja um evento e ninguém tem por profissão vaiar. A vaia é sempre espontânea. Vaia-se quem soa antipático, repulsivo. Talvez isto fosse até digerível em outras circunstâncias. Ocorre que estamos a poucos meses das eleições e dona Dilma é o dauphin de Lula.

"Não vou me deixar atemorizar por xingamentos que não podem ser escutados pelas crianças e pelas famílias", acrescentou Dilma, que falava em meio a gritos de apoio dos operários. A presidente falava sobre a Copa quando os ouvintes entoaram: "a taça do mundo é nossa, com a Dilma não há quem possa".

Discurso chocho, como o de todos os políticos. A presidenta falava a seus acólitos, àqueles aos quais não é preciso convencer porque convencidos já estão. Nem a taça do mundo é nossa, nem com a Dilma não há quem possa. É claro que o governador petista não iria reunir os ‘negativistas profissionais” – como se dizia durante a ditadura – para ouvir a donzela ofendida.

Só pode ser ódio ao PT. Se a mais leve crítica ao partido é tida como ódio, imagine um “vai tomar no cu” transmitido urbi et orbi.

"Quem perdoa ganha. Perdoar não é esquecer, perdoar não é discutir, perdoar não é aceitar que isso se repita ou compactuar com isso. Perdoar é não deixar que entre no seu coração o veneno do ódio", afirmou. Lula não poderia deixar por menos. Segundo ele, esta será "uma campanha violenta" e a elite brasileira "está conseguindo despertar o ódio de classes".

Voltamos à época pré-queda do Muro, quando o ódio era o motor da história. Para amenizar o fiasco universal e insólito, Lula desvia o insulto para um outro alvo:

"Foi um ato de cretinice com o povo brasileiro, que está cansado de ser pisado e escanteado", disse a sexta-feira em Recife. O ex-presidente afirmou que a imprensa "incentivou o tempo inteiro essa reação da sociedade" e atribuiu os xingamentos à "elite" brasileira.

Apesar de Dilma ter sido nominada com todas as letras, o insulto foi dirigido ao povo brasileiro. Então tá! Se foi um ato contra o povo brasileiro, então a dignidade da presidenta está preservada. Por que, então, tanta indignação?

Lula, raposa velha, preferiu assistir ao jogo longe das “elites”. O jogo Brasil/Croácia marca um momento histórico no século. A partir de então, quem tem tem medo.

sábado, junho 14, 2014
 
CIENTISTA FAZ O MELHOR
GOL CONTRA DA COPA



Se meu time dileto, o da Croácia – não porque seja dileto, mas porque jogava contra o Brasil – me decepcionou na quinta-feira, pelo menos o dia me reservou uma alegria, o rotundo fracasso da demonstração do exoesqueleto, o “científico” achado deste senhor sedento de Nobel e publicidade, Miguel Nicolelis, que faria paraplégicos recuperarem movimentos a partir de impulsos elétricos comandados pelo cérebro. Em vez de apresentar seu trabalho em uma revista científica ou ante um colegiado de pares, preferiu os holofotes de nada menos que a Copa do Mundo.

"A idéia é que a gente possa demonstrar a habilidade de um paciente paraplégico, e com lesão medular severa, se levantar de uma cadeira de rodas usando a atividade cerebral para controlar o exoesqueleto, caminhar até o centro do campo recebendo todo o feedback tátil desses passos, e finalmente chutar a bola para inaugurar a Copa do Mundo" - disse o cientista.

O experimento foi um fracasso. E exposição também, para felicidade de Nicolelis. Viu-se por pouco mais de um segundo um hipotético chute de um paraplégico, um vago movimento de pé e a bola já rolando. Mais a cobaia, um deficiente encaixotado em um monstrengo de 70 quilos, e ainda apoiado por duas pessoas. "O paraplégico não ficou em pé sozinho, não andou, não chutou. Foi tudo muito diferente do que havíamos visto nos vídeos ou nas animações divulgadas pela equipe do Andar de Novo", diz Alberto Cliquet Júnior, professor titular do departamento de Ortopedia e Traumatologia da Unicamp e de Engenharia Elétrica na Universidade de São Paulo (USP).

Será que chutou? Ou seu chute terá tido um empurrãozinho nada científico? Algo como chutar a bola contra as pernas do adversário para provocar escanteio? Seja como for, o que se sabe é que a grande descoberta custou ao Erário 33 milhões de reais. Isto é, quem pagou aquele chute, tão verdadeiro como uísque paraguaio, foi o meu, o teu, o nosso dinheirinho. Como também a Copa, diga-se de passagem. A semana foi de vitória – roubada – do Brasil e derrota dos brasileiros.

Nicolelis não escondeu a decepção pelo curto espaço de divulgação do seu exoesqueleto, durante a festa no Itaquerão, hoje - sabe-se lá por quê - chamado arena. E passou a bola para a Fifa:

- A Fifa deveria responder pela edição das imagens que impediu q a demonstração fosse transmitida na integra. Responsabilidade é toda dela - declarou Nicolelis no Twitter, satisfeito pela conclusão de todo o experimento - O que foi prometido, foi entregue. Depois de 17 meses de trabalho insano, a missão foi cumprida integralmente.

O escroque deveria dar graças aos deuses. Apresentar uma experiência científica a um público televisivo é o mesmo que fazer uma palestra sobre o arco-íris a uma platéia de cegos. Se sinais cerebrais se transformaram em impulsos elétricos, ninguém sabe, ninguém viu. O que escassamente se viu – se é que alguém viu, foi uma geringoça de 70 quilos, amparada por duas pessoas, na qual foi encaixado um deficiente físico.

Mobilidade nenhuma, autonomia zero. Nada foi entregue, e se entregue tivesse sido, teria sido entregue ao público errado. Algo semelhante ao que ocorre com outro grande enganador do mundo científico, sempre caitituado pela mídia.

Sem nada entender de Física, sempre vi Stephen Hawkings como uma espécie de vigarista talentoso. Explico. Há muito anos, o vi dando uma entrevista em sua cadeira cheia de recursos tecnológicos. Com o dedo, única parte do corpo que podia mover, o físico digitava as respostas e um processador transformava o texto em voz. Só havia um problema, para processar uma frase eram necessários longos minutos, muito mais que o tempo exigido para digitar.

Pergunta-se: por que a enfermeira que o acompanhava não lia o texto? Seria bem mais prático e mais rápido. Sua postura era de uma arrogância tecnológica semelhante a do perseguidor brasileiro do Nobel. Hawking foi o criador da teoria dos buracos negros, que durante décadas – e até agora – seduz físicos e astrônomos do mundo todo. O cientista britânico tornou pública sua teoria em 1974.

Nada entendo de física ou de buracos negros. Quem atesta a vigarice de Hawking é o próprio Hawking. Em entrevista recente para a revista científica Nature, acabou por retratar-se. "Não existem buracos negros" - disse.

A declaração tenta colocar um ponto final em uma discussão que se arrasta há décadas – diz a revista - e que, em última instância, está na base de um dos principais desafios da Física: unificar a Teoria da Relatividade (que explica o mundo macroscópico) com a Mecânica Quântica (que explica o mundo microscópico).

A idéia de buraco negro - um objeto cosmológico resultante do colapso de uma estrela, cuja massa gigantesca (que pode ser milhões de vezes maior que o Sol) é condensada em um único ponto, com tamanha força gravitacional que suga tudo o que está a sua volta, até mesmo a luz -- vem do início do século 20.

Pergunta que se impõe: como ficam os institutos e autoridades científicas que publicaram centenas de fotos de algo que não existe, os buracos negros? Silêncio sepulcral. Mas continuam surgindo todos os dias, na imprensa, simulações de buracos negros devorando estrelas.

Ora, por que um elefante branco de 33 milhões de reais, que exige amparo humano, quando existe um atalho bem mais singelo, prático e barato, a cadeira de rodas? Que custa de 500 reais a 15 mil reais, se for motorizada. E exige apenas um – ou nenhum - auxiliar? Ninguém precisa ser neurocientista para responder a esta pergunta.

A estrovenga do nobelizável tupiniquim me lembra conto que li quando jovem, sobre pesquisadores que queriam criar uma laranja e acabaram chegando à conclusão que plantar uma laranjeira era bem mais fácil e eficaz.

Assim como Marcelo, Nicolelis fez gol contra si mesmo e contra seu time de pesquisadores. Para benefício da ciência e de todo cientista honesto.

quinta-feira, junho 12, 2014
 
ŽIVI HRVATSKA!


Verde e amarelo são duas cores muito bonitas. Pelo menos quando separadas. Juntas, para mim pelo menos, causam brotoejas. Lembram não só a pátria, pela qual não tenho especial apreço, mas também o fanatismo futebolístico. É quando mais aparecem. A Copa, de longe, é o evento mais cultivado no país. Semana da Pátria é obrigação chata de militares e colegiais.

Há quem imagine que detesto futebol. Nada disso. Aliás, o considero um esporte bonito e inteligente. O problema são as multidões e o fanatismo que gera. Jamais entrei em um estádio. Enfim, a bem da verdade, certa vez entrei em um, em construção, para fazer uma reportagem. Foi em janeiro de 1969. Estava começando como repórter no Diário de Notícias, de Porto Alegre, e “seu” Olinto, o diretor de redação, me chamou:

- Janer, vai até o Gigante da Beira-Rio ver o andamento das obras.

Minha resposta quase custou-me o emprego:

- Certo, “seu” Olinto! De que time é mesmo esse estádio?

Perplexidade na redação. A sala era enorme, tínhamos de falar alto. Os redatores não acreditavam no que haviam ouvido. Do setor de esportes, voou pela redação uma pergunta indignada do editor:

- Tu não sabes a que time pertence o maior estádio particular do mundo?

Não sabia. Aliás, sabia até demais para minha erudição na área. Sabia pelo menos que o tal de Gigante tinha algo a ver com futebol. Essa foi a única vez que entrei em um estádio. Não por preconceito. Eu até que era bom no esporte, me lembro que certa vez fiz um gol. Milagres acontecem! Meus colegas não conseguiam acreditar no que haviam visto. Ocorre que multidões me horrorizam, sejam quais forem. Se uma multidão vai para o sul, eu rumo ao norte. Pela mesma razão, jamais assisti a uma tourada. Os réveillons quase sempre me pegam nalguma capital européia. Em vez de comemorar na rua com a multidão, me refugio no quarto do hotel.

O futebol é o início da guerra civil, escreveu Orwell. Civilizada seria a nação em que uma torcida aplaudisse uma jogada brilhante do time adversário. Mas isso pertence ao reino da utopia. Há no entanto um momento em que viro torcedor. É quando o Brasil é finalista. Só então me disponho a torcer... contra o Brasil. Se o Brasil perder na finalíssima, melhor ainda. Me soa como orgasmo interrompido pela chegada do marido.

Ninguém se iluda com essa gente que quer um Brasil sem Copa. Mal a bola começar a rolar, estarão ou nos estádios – que agora, sei lá por quais razões, chamam-se arenas – ou grudados na TV, torcendo pelo hexa. Os protestos são de mentirinha, nada mais que ameaças de desordem para obter ganhos, desde casa própria paga pelos contribuintes, tenham estes ou não casa própria - a aumentos salariais. É claro que continuarão durante a Copa. Mas, no fundo do coração do brasileiro médio, vai morar sempre um fanático.

Todo leitor mais velho deve lembrar da Copa de 70, que Médici assumiu como coisa do governo. Eram os dias do “milagre econômico” e do “ninguém segura este país!” Torcer pela vitória do Brasil era alinhar-se à ditadura. As esquerdas fizeram boquinha de siri e torciam encabuladas, às escondidas. Isso que a Copa foi no México.

Já que falamos em Médici, vejamos a visão do cronista Nelson Rodrigues sobre 64: “muito antes do primeiro momento eu já achava que só as Forças Armadas podiam salvar o Brasil”. E sobre Médici: “Esse soldado é de uma natureza simples e profunda. Está disposto a tudo para que não façam do Brasil o anti-Brasil. Seja como for, deixará este nome, para sempre: – Emílio Garrastazu Médici”.

Hoje, Nelson parece ter virado porta-voz das esquerdas. Achados seus, como pátria em chuteiras e complexo de vira-latas foram encampados pelo governo e citados canhestramente até por Dona Dilma, vítima da ditadura dos militares que Nelson tanto incensava e chegou inclusive a negar que fossem torturadores.

“Uma outra coisa importantíssima surgiu no Brasil, importantíssima. E eu vou falar o que é. Ela está ligada, de uma certa forma, a uma crônica feita por um senhor que se tivesse nascido em qualquer lugar de língua inglesa seria considerada gênio lá. (…) Ele fez uma crônica ─ ele chamava Nelson Rodrigues, ele era muito engraçado ─ ele fez uma crônica que chamava “Complexo de Vira-lata”. Ele dizia que ─ isso foi na época, se eu não me engano, do jogo com a Suécia, final com a Suécia, não tenho certeza, mas foi na final, um pouco antes da final com a Suécia ─ ele fez uma crônica que ele dizia o seguinte: que o Brasil tinha complexo de vira-lata e que ele não podia ter complexo de vira-lata, e que a equipe era boa, tanto que a equipe era boa que ela era boa tecnicamente, taticamente, fisicamente, artisticamente. Tanto é que nós dessa vez ganhamos a Copa. Mas ele sempre falava desse complexo de vira-lata que pode… a gente pode traduzir como um pessimismo, aquela pessoa que sempre acha que tudo vai dar errado, que ela é menor que os outros. E ele dizia uma coisa, e eu queria dizer isso para vocês. Ele dizia que se uma equipe entra… eu não vou citar literalmente, não, mas se uma equipe entra para jogar com o nome Brasil, se ela entra para jogar com o fundo musical do Hino Nacional, então ela é a pátria de chuteiras”.

Com a Copa, até Nelson, o inimigo figadal das esquerdas, virou gênio para o PT. Como o cronista agora dileto da presidente atesta não ter havido torturas durante a ditadura, é até provável que seus alegados tormentos sejam fruto de uma imaginação fértil.

Dona Dilma garante que os turistas não levarão as obras viárias de apoio à Copa nem os estádios. No que diz respeito às obras viárias, pelo que dizem os jornais, nem a metade será concluída até o começo da competição. Quanto aos estádios, seria melhor que os levassem. Muitos ficarão como elefantes brancos, monumentos faraônicos vazios de público, em memória de sonhos de poder do PT.

Mas a hora é de união. Até mesmo um cronista liberal – seja lá o que isto quer dizer – e fanzoca deslumbrado da Disneylândia como Rodrigo Constantino, se abraça à presidente em seu amor pelo Brasil:

“É hora de deixar as diferenças de lado e vestir a camisa do Brasil. Assim que acabar a Copa, serei o primeiro a criticar o governo em tudo que ele merece ser criticado – e a lista é infindável. Aliás, pretendo continuar com as críticas durante os jogos. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Mas enquanto for o Brasil, e não o governo, representado pelos 11 jogadores em campo, pretendo torcer sim, e bastante. Pra cima deles, Neymar!”

Rodrigo Constantino e Dilma Rousseff, mesmo combate, quem diria? Vamos terminar com esses protestos idiotas contra um governo que investe mais em futebol que na educação e saúde. É vício de negativistas profissionais, como se dizia nos saudosos anos Médici.

Só se vê o que existe no fundo de um lago quando as águas baixam. Imagine então uma Copa que pretende ser a Copa das Copas. A escolha do país-sede foi obra de Lula e o PT quer tirar um caldo desse osso. O oportunismo está mais para tiro no pé. Os tempos são outros e a maior parte da nação parece estar cansada do dito partido dos operários. Hoje, atrapalhar a Copa se tornou, para muitos, obrigação cívica.

Ocorre ainda que o ano é eleitoral e as eleições ocorrem logo depois dos jogos. O que o PT condenava como recurso da ditadura no governo Médici, agora endossa com entusiasmo. Se a Copa, como organização, for um fiasco, milhões de votos a menos para Dona Dilma. Se o Brasil não emplacar o hexa, provavelmente o PT não emplaque o governo. O que parecia ser um trunfo, passou a ser aposta arriscada. Já prevendo uma eventual derrota, o governo está planejando um governo paralelo para o próximo mandato, a cargo de sovietes sob a tutela do PT.

De minha parte, continuo o mesmo de sempre, o torcedor das finais. Contra o Brasil. Uma vitória dá ao povão uma sensação ilusória de algum ganho pessoal, quando na verdade só perderam tempo, trabalho e dinheiro. Particularmente nesta Copa, que apesar de ser um evento que gera lucros fabulosos, será patrocinada pelo teu, pelo meu, pelo nosso dinheirinho.

Uma desclassificação, de preferência já nos primeiros jogos, seria para mim uma dádiva dos deuses. Para a nação, um salutar banho de água fria em um público que se deixa nutrir alegremente por pão e circo.

Que viva a Croácia!

quarta-feira, junho 11, 2014
 
PARA TI *


Viagem infame, aquela! Nossa noite já havia sido de angústia, prenúncio de uma partida sem volta. No dia seguinte, imbecis, rumamos um para o norte, outro para o sul. Te apertei com desespero até a estação, não sabia quando te voltaria a ver . Sei, há muitas mulheres no mundo, mas se tu existias para que buscar outra companheira de caminhada? Minto, não é bem isso, é algo ainda mais simples. Te adorava, e pronto! Posso perder a memória, mas jamais a lembrança daquela manhã que não desejo a ninguém, manhã abominável, para sempre permaneça sepultada lá em Madri.

O Talgo começou a mover-se, lento como todos os trens que separam amantes, lento mas inexorável, cada vez menos lento e mais inexorável, e teu vulto envolto em lãs e distância foi se tornando cada vez mais distante e mais terno, um nó começou a me estraçalhar a garganta, não resisti. As lágrimas foram rolando sem muita cerimônia.

Um espanhol a meu lado, muito discreto, desviou o olhar para não imiscuir-se em meus sentimentos. Lembras aquele boné de bisão que me deste em Amsterdã? Pois é, o espanhol tomou-me por russo, tenho certeza que intimamente se perguntava por que razões andaria este cossaco chorando em Madri. Cossaco é a vovozinha, sou gaúcho de Ponche Verde. Gaúcho chora? Chora sim, basta que sofra.

Quando cheguei em Paris, estavas em Lisboa. Era tempo ainda, bastaria um telefonema para o aeroporto para pôr fim àquela insensatez. Mas sempre fui obstinado, continuei teimando em minha viagem rumo ao frio. Mais algumas horas e um oceano estaria nos separando. Seria tarde para voltar e eu queria que fosse tarde para voltar – para não voltar.

Em uma gare apanhei o resto de minhas malas e atravessei aquela Paris, cheia de charme quando chegamos, cheia de cinza quando voltei. A neve que aconchegava os campos, que contigo me parecera tão macia e tão morna, era agora cada vez mais neve e mais fria. Frio por dentro, atravessei aquela Alemanha fria sem disposição alguma para divertir-me às custas dos Deutschen e seus ares marciais, como fazia quando contigo.

Atravessei uma Holanda sem graça, uma Dinamarca sem graça, rumo a uma Estocolmo sem graça alguma. A graça estava em ti e tu voavas rumo ao sul. No ferry-boat para Helsinborg – já estarias próxima a Porto Alegre – fugi do restaurante e fui até a proa, se estava enregelado por dentro pouco importava enregelar-me por fora. O barco avançava com dificuldade no mar congelado, o céu era cinzento e me pesava como chumbo aos ombros e eu, o estúpido, tinha ganas de jogar-me ao Báltico, estou certo que quebraria sua crosta hibernal, cabeça-dura como sou.

Estocolmo. Noites brancas e sempre frias. Da janela de meu quarto, em meio a um silêncio que feria os ouvidos, eu não olhava sequer a neve, mas o vazio. Não poucas noites fiquei em pé, frente à janela, olhando aquele vazio que não seria vazio se estivesses lá. Sos um boludo, che! – dizia-me um boliviano – en Brasil hay una mujer que te quiere, que haces en esta tierra de hombres tristes? Que fazia? Não sei, como tampouco ele sabia que fazia lá. Errâncias...

Lá, recebi e dei calor, calor humano e animal. Muitas noites enrosquei-me em uma lena (doce, em sueco) Lena, que por sua vez me apertava sonhando apertar um romeno de Bucareste. Amávamos por procuração, sem que nenhum mandato nos tivesse sido outorgado. Mas não era ela quem eu apertava, tampouco era eu quem ela apertava. Desculpa o lugar comum: éramos apenas bons amigos, angustiados amigos. Até que um dia deixei de ser besta, atei a mala nos tentos e voltei a trote largo pra querência. E se não me esqueço daquela manhã infame em Madri, tampouco esqueço aquela manhã linda no Rio. Não te esperava e lá estavas, chorando grudada às grades do portão do cais.

Vivendo e aprendendo! Sonhei com divas e deusas e cá estou comovido com uma baixinha dentuça. A quem espero, mesmo de cabelos brancos, jamais chamar de minha mulher ou minha esposa, mas simplesmente de minha guria.

* Porto Alegre, Folha da Manhã, 13/06/77

terça-feira, junho 10, 2014
 
FRASES CRETINAS *


O mundo está cheio de frases cretinas. Inteligentemente formuladas, mas cretinas. Vou comentar algumas delas. A primeira, já a comentei em 2000. Volto ao assunto: Que és tu para contestar autoridades que já pensaram o mundo?

Este é argumento mais safado usado pelos crentes – em Deus ou em qualquer outra superstição – para dissuadir um jovem que tem dúvidas. Como ilustres sumidades é o que não falta para proferir bobagens ao longo da história, eles sempre encontram nomes de prestígio para citar.

A Igreja foi buscar-me ainda no campo. Uma catequista uruguaia apanhava-me em um jipe na Linha Divisória entre Livramento e Dom Pedrito para jogar-me nas aulas de catecismo.

Na cidade, fui estudar em colégio católico, dirigido por padres oblatos. A eles agradeço minha iniciação em latim, francês e inglês. E só. Para desgraça de meus catequistas, muito cedo comecei a ler a Bíblia. Como não há fé em Deus que resista a uma leitura atenta da Bíblia, minhas dúvidas começaram a inquietar os oblatos. Um sacerdote de Bagé, franzino e inquisitorial, veio às pressas para tentar trazer o herege em potencial de volta ao rebanho.

Discutimos um dia todo, com várias jarras de água e um almoço de permeio. A cada preceito de fé que eu contestava, o padre Fermino Dalcin me jogava no rosto a acusação: "Arrogância. Orgulho intelectual. Quem és tu para contestar, aqui em Dom Pedrito, o que autoridades decidiram em Roma?"

Era um argumento pesado para um piá de uns quinze anos. Eu só tinha como defesa descrer do que não conseguia entender. Mas resisti e consegui, ainda adolescente, libertar-me do deus judaico-cristão. Sou um ser dotado de pensamento lógico.

Por mais que padre Fermino citasse São Tomás ou Santo Agostinho, não me afastava um milímetro de minha posição. Do alto de minha razão, eu enfrentava o Torquemada de Bagé. Há pensadores que ganharam renome na história e até hoje fazem escola proferindo sandices. Por mais espaço que ocupem nas enciclopédias, a mim nada dizem. Essas pergunta – quem é você? – é uma das mais perversas que conheço. Se o interlocutor não tem muita segurança, o vigarista ganha a parada.

Uma outra frase, não menos safada, é esta: ninguém é ateu no leito da morte. Comentei-a há alguns meses. Pior é quando é proferida por um médico. Como médico lida com morte, seu ofício parece dar-lhe mais autoridade.

Eu não conheço ateu no leito de morte – disse um cardiologista gaúcho, o dr. Lucchese, em um debate televisivo em Porto Alegre. O médico é um autor de livros de auto-ajuda que viraram best-sellers, com mais de meio milhão de exemplares vendidos. O que, para mim, já depõe contra o dr. Lucchese. Best-sellers são livros elaborados conforme os baixos instintos do grande público. Mas deixo de lado a fortuna literária do doutor e me atenho à sua afirmação.

Pretende o doutor que, na hora da morte, até ateus passem a crer em Deus. É o que deduzo de sua afirmação. Vou traduzir o crer em Deus por crer em uma vida após a morte. Pois para quem morre, o que interessa não é Deus, e sim a transcendência que sua existência implica.

Dr. Lucchese, antes de ser médico, revelou-se um católico fanático. (Pelo que sei, agora anda namorando os evangélicos televisivos). Daqueles que não admitem que alguém possa viver bem – e morrer bem – sem acreditar em deus. Mais ainda, sem esperar nada no Além. Se alguém vive bem e morre sem pedir água, toda a fé do Dr. Lucchese é vã. Ele precisa justificar sua muleta e então diz uma bobagem dessas.

Esta afirmação tem algo de ofensivo. No fundo, o médico está afirmando que todo ateu é um covarde, que na hora do vamos ver apela a Deus. Não é bem assim. Isso é coisa de religioso que não acredita – nem admite – que alguém possa viver bem sem esperanças de vida além da morte.

Não, Dr. Lucchese, nós ateus não temos razão alguma para almejar vida eterna. Uma só vida já está de bom tamanho. Nos leitos de suas cirurgias, o dr. terá encontrado simulacros de ateu, que sequer sabem o que seja descrer. Ateu que se preza não pede quartel.

Já vivi situações próxima da morte e nem pensei no tal de Deus. Pensei, isto sim, nos amigos e amigas que tive e tenho, e nos bons momentos que passamos juntos. Quando minha mulher morreu, nem eu nem ela pensamos em tais bobagens. Aliás, exigi a retirada de um Cristo obsceno que dominava a capela mortuária.

Outra variante também safada da frase do médico é esta: ninguém é ateu quando o avião está caindo. Já vivi também tal situação – não que o avião estivesse caindo, mas eu pensava que estava – e tampouco em momento algum pensei no tal de criador de todas as coisas. Apenas apertei a mão de minha mulher e fiquei à espera do pior. Ou talvez do melhor, nunca se sabe o que vem pela frente.

Na esteira das frases cretinas sobre aviões, uma outra se sobressai. É quando, em caso de acidente, um sobrevivente diz: graças ao bom Deus, me salvei. Sorte a sua, companheiro. Mas que tinha seu bom Deus contra os que morreram?

Adelante! Esta ouvi de um companheiro de bar: não deves estar à frente de tua época. Era marqueteiro et pour cause. Não é bom que um marqueteiro esteja à frente de sua época. Se estiver, não será entendido pelos seus conterrâneos e perderá clientes. De minha parte, sempre procurei ler os autores que pensaram à frente de seus coetâneos. A meu modo, sempre estive à frente dos meus. Quando estava em moda ser comunista, eu há muito criticava os comunistas. Fui católico, é verdade. Mas isto foi um acidente de percurso, do qual eu não estava imune, e do qual libertei-me tão logo comecei a ler a Bíblia.

É frase que concorre forte ao Nobel das frases idiotas. Claro que este companheiro de boteco não esquentou muito banco em minha mesa. Esta assertiva é a mais cabal negação de todo avanço na história, na ciência e no conhecimento. Não fossem os homens que pensaram adiante de sua época, viveríamos ainda na Idade Média.

Para concluir, esta outra, safadérrima: o hábito de perguntar por quê arruinou o mundo. É de autoria do padre Padre Pio de Pietrelcina, sacerdote católico italiano, elevado a santo pela Igreja Católica e objeto de particular veneração do Aiatolavo de Carvalho, outro ao qual deve incomodar muito o hábito de perguntar por quê.

Era malandro desde pequeno, quando se tornou amigo do seu anjo da guarda, a quem recorria muitas vezes para auxiliá-lo no seu trajeto nos caminhos do Evangelho. E eu que não sabia que até os anjinhos da guarda conheciam os Evangelhos. Vai ver que tinham aulas de catecismo nas alturas. Conta a história que ele recomendava muitas vezes as pessoas a recorrerem ao seu anjo da guarda, estreitando assim a intimidade dos fiéis para com aquele que viria a ser o primeiro sacerdote da história da igreja a receber os estigmas do Cristo do Calvário.

Aos 23 anos teve seu primeiro estigma, tinha o dom da bilocação e era muito milagreiro. Já que falei em aviões, relato um de seus milagres. O personagem é um piloto americano de bombardeiro durante a Segunda Guerra e devoto do padre Pio, que o salvou nos ares.

"O avião estava voando para o aeroporto onde ia pousar depois de descarregar suas bombas. Mas o avião foi danificado por um avião de caça japonês. "O avião" - disse o filho - explodiu antes que a tripulação tivesse a chance de saltar com o pára-quedas. Eu só tive sucesso saindo do avião. Eu não sei como eu fiz. Eu tentei abrir o pára-quedas, mas eu não tive sucesso fazendo isto.

Então eu teria me esmagado no chão se eu não tivesse recebido a ajuda de um frade que me apareceu no ar. Ele tinha uma barba branca, ele me levou em seus braços e me colocou suavemente no aeroporto. Você imagina, que tipo de surpresa eu tive, isto retirou minha fala.

Ninguém acreditava em mim, mas por causa de minha presença todo mundo teve que acreditar. Eu reconheci o frade que salvou minha vida quando, depois de alguns dias me deram licença e eu fui para casa. Eu vi o monge nas fotografias de minha mãe. Ela me falou que tinha pedido para Padre Pio que cuidasse de mim".

Quanto à tripulação, que se lixe. Não eram devotos do santo padre. Explodiram com o avião. Este é o paradoxo de todos os milagres aéreos. Por que? Ora, padre Pio detesta esta perguntinha.

Era homem que sabia do que falava. Nesta pergunta reside a origem de todas as heresias e a libertação do homem de dogmas absurdos. Todo religioso a detesta.

Se o leitor conhece outras perguntinhas deste teor, favor enviar para minha coleção.

* 19/12/2012

segunda-feira, junho 09, 2014
 
ENTRE CEBETE E SÓCRATES *


A geração anterior à minha está partindo. Há pouco se foram Jockymann e Scliar. Millôr está pela bola sete. Soube que está há cinco anos em cadeira de rodas, condição que não estimula viver. A próxima rodada será a nossa, a dos que hoje estamos nos 60. Há uma fase em nossas vidas em que lemos as participações de nascimento para saber de nossos contemporâneos. Mais adiante surge a outra, em que lemos os necrológios para saber das novas. Os de minha geração estão chegando lá.

Nos últimos quatro ou cinco anos, mais da metade de uma mesa de meu boteco partiu. Cirrose, câncer, coração. Há poucos meses, um de meus companheiros de bar me noticiou, assustado, a última partida.

- Estou ficando sozinho. Jesus está chamando.

São os sinais. Como dizia um dos profetas de A Vida de Brian, ao anunciar o apocalipse: “E chegarão os dias em que os homens não mais saberão onde puseram os pequenos objetos”. Este me parece ser o prelúdio do fim. Ainda não cheguei lá, mas estou atento aos sinais. Já me preocupei muito com a morte em meus dias de adolescente. Como esta senhora podia visitar-me amanhã, procurei viver intensamente cada dia. Não foi má idéia. Como a fulana não chegava, dela acabei me esquecendo. Mas sempre chega o dia em que dela voltamos a lembrar. Manifestei esta inquietação a uma amiga de minha idade Sua resposta:

- Como acredito em vida posterior a morte, isto não me preocupa. O que me preocupa é o sofrimento.

Pode ser. Quem pratica a filosofia corretamente aprende a morrer e não teme a morte – diz Sócrates em Fédon. Eram dias em que filosofar era raciocinar com clareza para se chegar a alguma conclusão. Nada a ver com estes nossos dias, em que filosofar se resume a discutir qual será o objeto da filosofia. “Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? – pergunta-se o ateniense -. Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa?”

Ao que objeta Cebete, um de seus interlocutores:

- Sócrates, dificilmente os homens poderão acreditar que a alma, uma vez separada do corpo, venha a subsistir em alguma parte, por destruir-se e desaparecer no mesmo dia em que o homem fenece. No próprio instante em que ele sai do corpo e dele sai, dispersa-se como sopro ou fumaça, evola-se, deixando, em conseqüência, de existir em qualquer parte. Porque, se ela se recolhesse algures a si mesma, livre dos males que há pouco enumeraste, haveria grande e doce esperança de ser verdade, Sócrates, tudo o que disseste. Mas o fato é que se faz mister de não pequeno poder de persuasão e de muitos argumentos para demonstrar que a alma subsista depois.

A preocupação é antiga. Quatrocentos anos depois, Paulo irá jactar-se: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”. O fanático judeu sabe que sua pregação tem suas bases no absurdo: “Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a vossa fé”.

Para quem não acredita em ressurreição, toda fé é vã. Mas vida posterior à morte tem seus problemas. De minha parte, me recuso à serenidade de Sócrates e fico com as dúvidas de Cebete. Penso que outra vida não tem graça alguma. É de supor-se que iríamos sem o corpo pra lá, não? Afinal, apodreceu por aqui. Bom, e daí? Seríamos uma consciência pura vagando pelo espaço, uma espécie de fumacinha – como aventa Cebete – zanzando em meio ao nada, conversando com outras fumacinhas?

Reencontraria eu lá os bares que tanto amei? Na hipótese de ir para o paraíso – porque também existe a outra hipótese – estariam lá me esperando o Le Procope, la Petite Périgourdine, o Rélais de l’Ódeon, Aux Charpentier, Bofinger, Tire-Bouchon? ? El Oriente, Gijón, o Sobrino de Botín, El Espejo, o Venencia, a Cerveceria Alemana? O Sept Portes, Los Caracoles, Mi Burrito y Yo, o Salamanca? A Tasca do Chico, o Berlenga, o Tavares, o João-do-Grão? El Greco ou Florian? Lá tem Leffe, Grimbergen, Guinness, Delirium Tremens? Kirschwasser, akvavit, metaxas, calvados, orujo, queimada? Terá Riojas, Neros d’Avola, Cahors, Malbecs ou Carménères? Camembert, bouillabaisses, foie gras, boudin, andouilletes? Cochinillos, corderos lechales y pata negra?

Nunca ouvi falar de restaurantes, cervejarias ou vinícolas lá no Além. Então não quero. Hemingway dizia que os americanos bons, quando morrem, vão para Paris. Muito melhor. Outra pergunta: reencontrarei meus amigos e minhas amadas nas paragens do além? Seria muito bom. Mas também os chatos que procuro evitar na vida terrena? Pois é de supor-se que chatos também tenham direito à vida eterna. Só o que faltava tropeçar nalguma esquina do Além com alguma das figurinhas que não suporto nem ver nos botecos da Paulicéia.

Por outro lado, sem corpo não há prazeres. Não há sexo, não há palato, não há música nem odores. Falar nisso, teria eu óperas ou música erudita? Ou o paraíso já estaria globalizado, contaminado pelo rock? A lembrança de um filme de 1966, Modesty Blaise, me aterroriza. Nele, Dirk Bogarde sofre uma tortura atroz. É amarrado entre estacas no deserto. Com um radinho de pilhas no ouvido, tocando música dos Beatles. Você imaginou isto para toda a eternidade? Prefiro as chamas do inferno, o choro e ranger de dentes.

Passo. Eternidade é um risco. Isso sem falar que deve ser um saco. Outra hipótese é a espírita. A gente reencarna aqui no planetinha mesmo. Mas... se eu reencarno com tudo, mas sem a memória da vida passada, de que adianta? É como se tivesse morrido. Pior ainda: e se eu reencarnasse como antropólogo, sociólogo, petista ou psicanalista? Seria uma nova vida, só que de vergonha e opróbrio.

Há uma terceira hipótese, a budista. Libertar-se do eu. Mas essa é inviável. Eu sou eu e nada mais, ora bolas! O que dá dramaticidade à vida é sua brevidade. Se temos a perspectiva de menos de século, temos de agir rápido. Imagine se alguém vivesse, não digo pela vida eterna, mas por mil anos? Vestibular? Vou deixar lá pros 200 anos. Profissão? Quem sabe aos 500. A História sofreria um retardo irremediável.

Volto a Sócrates: quem pratica a filosofia corretamente aprende a morrer e não teme a morte. Não sei ainda se aprendi a morrer. Veremos isto mais adiante. Mas desde há muito aceito tranqüilamente a idéia de morte. Sei que vou ficar triste por abandonar a festa. Certamente vou chorar. Como um dia chorei, ao partir de Madri.

Ou, conforme as circunstâncias – nunca se sabe! – ficarei talvez alegre por abandonar o sofrimento. Mas da vida eterna declino prazerosamente.

* 06/03/2011