¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, maio 31, 2010
 
ESPANHA CRIA NOVO CONCEITO,
0 DAS MULHERES PEDERASTAS



Os espanhóis vivem um certo conflito com uma palavrinha, pederastia. Em abril de 2008, El País noticiava que Sua santidade Bento XVI dissera estar “profundamente envergonhado” pelos casos de pederastia da Igreja Católica nos Estados Unidos. Para o leitor que desconhece as nuanças do espanhol, o jornal estaria falando de homossexualismo. Pois nas línguas latinas, pederastia significa relação homossexual e entre homens. Existe ainda a acepção de atração de um adulto por um adolescente. Mas até aí não chegamos à pedofilia, que é algo distinto.

Vejamos no Larousse: “n. m. (Gr. Paiderastés; 1580). Homme qui s’adonne à des pratiques homossexuelles: Évidemment, il est pédéraste. Puisqu’il ne sort jamais qu’avec des garçons (Beauvoir).
Pédérastie: Pratiques homossexuelles entre un homme et un jeune et, par extens., toute pratique homossexuelle entre hommes.

Dizionario DeAgostini della língua italiana: Pederastia: tendenza omosessuale caratterizzata dall’attrazione di un adulto verso adolescenti // extens. Omossesualità maschile.

Houaiss: Pederasta: indivíduo que pratica a pederastia.
Pederastia: 1. prática sexual entre um homem e um rapaz mais jovem. 2. Por ext. homossexualidade masculina.

Vamos agora ao Diccionario de la Lengua Española, da Real Academia Española: Pederasta: aquel que comete pederastia.
Pederastia: Abuso desonesto cometido contra los niños. // 2. Concúbito entre persona del mismo sexo, o contra el orden natural. Sodomia.

Na primeira e segunda acepções, nenhuma alusão ao sexo do agente. Com uma nuança: pederastia pode ser ato contra a tal de ordem natural. Como se ordem natural houvesse. O dicionarista classifica como pederastas aqueles que utilizam o vas praeposterum uxoris, como diziam pundonorosamente os teólogos. Legado talvez de uma Espanha de Torquemada.

Pedofilia não existe no dicionário da Real Academia e nem nos demais. O problema é que a palavrinha acaba tendo, mesmo sem querer, uma conotação um tanto ridícula no espanhol. Verdade que acabei por encontrá-la, outro dia, no El País. Pressão do noticiário internacional, suponho.

Pressão que já se manifesta, sob outro ângulo, na Real Academia. Segundo reportagem de Cecilia Jan e Antonio Fraguas, para El País, os dicionaristas da RAE acabaram decidindo revisar a definição de pederastia. Será eliminada a referência à sodomia na próxima edição, a ser publicada em 2013. Esta entrada será também atualizada no Oxford Spanish Dictionary, no Pocket Oxford Spanish Dictionary e no Concise Oxford Spanish Dictionary. O espanhol pederasta será traduzido a pederast, no inglês, como primeira acepção, e não a homosexual, como ocorria até agora. A revisão já foi feita este mês na edição eletrônica do Oxford Spanish Dictionary. Assim, quem gosta de práticas pouco ortodoxas não será, do ponto de vista semântico, um pederasta.

Alguns dicionários, no entanto, manterão as referências à homossexualidade. O Diccionario del Español Actual, da Aguilar, modificará só sua primeira acepção da palavra pederastia, que se refere à "relación homosexual de un hombre con niños". Na nova edição que está sendo preparada serão incluídas as mulheres, já que estas também abusam de menores.

Estranho mundo este nosso. Quem diria que o escândalo dos padres pedófilos acabaria por mexer com as estruturas da língua espanhola? Conhecendo os bois com que lavro, dentro em pouco a nova moda atravessará o oceano.

domingo, maio 30, 2010
 
ESCRITORES EM PÂNICO


Leitor me pergunta se o livro e as bibliotecas vão acabar. Em outros termos: o ebook vai acabar com o livro tradicional? A pergunta é ociosa. Esta questão é sempre levantada por intelectuais com falta de assunto, que pretendem responder a perguntas que jamais foram feitas. Sempre leio qualquer consideração sobre livros eletrônicos e nunca vi alguém defender a estúpida idéia de que o livro em papel vá acabar.

A estratégia é simples e típica das esquerdas. Lança-se ao ar uma idéia fácil de contestar – que na verdade nunca foi aventada – e depois passa-se a contestá-la. O leitor cita um artigo de Umberto Eco, "Da efemeridade das mídias", onde o semiólogo italiano brande um único argumento a favor do livro impresso: uma pane ou um vírus nos computadores pode levar a perder definitivamente uma grande quantidade de informação, é por isso que os livros impressos seriam ainda importantes. Isso quer dizer que bibliotecas e museus terão a mesma finalidade?

Pelo jeito, o lúcido Eco ainda não ouvir falar de pendrives, HDs externos, DVDs, que têm uma capacidade quase ilimitada de armazenamento – mais do que muitas bibliotecas -, isso sem falar dos sites que a Internet oferece para a preservação de dados. O argumento é dos mais precários, quase de um neoludita. Em recente livro publicado pela Record, Não Contem com o Fim do Livro, em um diálogo com Jean-Claude Carrière, Eco repete estas bobagens.

"O livro ainda é o meio mais fácil de transportar informação. Os eletrônicos chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos", diz o semiólogo, em entrevista realizada ao Estadão. "Afinal, ciência significa fazer novas experiências. Assim, quem poderia afirmar, anos atrás, que não teríamos hoje computadores capazes de ler os antigos disquetes? E que, ao contrário, temos livros que sobrevivem há mais de cinco séculos?"

Isto não é mais verdade. O livro transporta informação, é claro. Mas o livro nem sempre está onde dele precisamos. Sem ir mais longe, cito este nosso país. Já não mais existem livrarias nas pequenas cidades do Brasil. Quando existem, só vendem bestsellers. Onde você vai encontrar uma obra de Platão, ou de Tomás de Aquino, ou de Descartes, numa cidade do interior? Já não vou tão longe. Procure um Nietzsche, Orwell ou Koestler. Não encontrará. Mas se há telefonia em sua aldeia, e se você tem um computador, poderá ter esses autores – talvez nem todos, mas pelo menos os clássicos – em poucos segundos em sua tela.

Quanto a ler antigos disquetes: quem tem ainda antigos disquetes em sua escrivaninha? Ninguém. Eco, para justificar seus argumentos, está falando de algo que há muito morreu. Carrière, autor que eu considerava inteligente, relembra o blecaute acontecido em Nova York, em julho de 2006: se o incidente tivesse se prolongado, tudo estaria irremediavelmente perdido, sem eletricidade. "Em contrapartida, ainda poderíamos ler livros, durante o dia, ou à noite à luz de uma vela, se toda herança audiovisual estivesse perdida".

Ora, blecautes são temporários, ou não teríamos mais civilização. Não é a leitura que depende de energia, mas o mundo contemporâneo todo. Confesso que me sinto mal se fico doze horas sem energia. Mas doze horas sem ler não é grave. (O pior é ter de subir escadas). Milhões de pessoas passam meses e mesmo anos sem ler neste nosso mundinho.

O argumento mais despropositado foi brandido por Eco. Desde O Nome da Rosa, passei a desconfiar deste senhor. Ele cria um novo gênero literário, que poderíamos chamar de policial-teológico e que, no fundo, em pouco se distingue de O Código da Vinci. Uma história boba e inverossímil, recheada de erudição. O leitor que gosta do gênero policial se sente de repente inteligente, lendo trechos em latim que não entende. Eco questiona a capacidade de discernimento de quem está acessando a Internet. "Lá, encontramos tanto a Bíblia como Minha Luta, de Adolf Hitler. E o que fazer se uma obra não recomendável surgir na tela de alguém despreparado intelectualmente? Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos".

Alto lá, companheiro! Em biblioteca que se preze, temos de ter acesso tanto à Bíblia quanto ao Minha Luta. Como entender o nazismo se não leio Hitler? Isso sem falar que encontramos na Bíblia massacres e convites ao genocídio que Hitler nenhum sonhou.

Carrière acompanha o colega de sandices: "Cada livro traz um personagem só para mim. Há obras que cruzam os séculos e outras não. Isso depende muito do gosto pessoal. Por isso que o livro tradicional não vai desaparecer".

Claro que não vai desaparecer. Da mesma forma, os livros eletrônicos continuam trazendo os mesmos personagens que o livro em papel. O livro é eterno. O que eventualmente muda é seu formato. Papel à parte, não há diferença alguma entre um ebook e um livro impresso.

O que está em jogo é outra coisa, o direito autoral. Editores e escritores, produtores de papel, distribuidores e livreiros estão em pânico com a difusão do livro eletrônico. Imagine, por exemplo, o futuro da lucrativa – e onerosa – indústria do livro didático. Digamos que o livro didático passasse a ser eletrônico. Quantos exemplares precisaríamos para sua edição? Um só. E mais nenhum. Indústrias do papel, gráficas, editoras e livrarias iriam à falência. Não pode. A indústria precisa sobreviver. O consumidor que se lixe.

Como vão viver os escritores? – pergunta-me outro leitor. Que vivam de profissões honestas, como os demais homens. Escritor é profissão? Em um livro que causou algum escândalo na Paris dos anos 70 - Le Bazar des Lettres - Roger Gouze contestou com energia o caráter profissional do ofício. "O estatuto oficial do escritor me parece tão absurdo quanto o das prostitutas que também reivindicam o seu: não se pode ao mesmo tempo desafiar o poder, a polícia, as leis (por hipócritas que sejam) da sociedade e pedir-lhes uma proteção". Se a literatura é uma arte - argumenta Gouze - o escritor deve, como todo mundo, ter uma profissão que o sustente, ao lado da arte que ele alimenta com o melhor de si mesmo. "Não uma segunda profissão, pois a literatura não é uma".

Como viverá então o escritor se a obra não lhe rende nada? "Como todo mundo" - responde Gouze. Claro que Gouze falava de uma época em que literatura era vista como contestação. Hoje, os autores estão se profissionalizando. O editor pesquisa o paladar do público e encomenda um produto de moda. O escritor, como carneirinho dócil, escreve o que o público pede e o editor ordena.

Editores já me pediram para reformular livros meus. Não eram do gosto do público. Claro que não reformulei e claro que não fui editado. Tudo bem. Adeus papel. Hoje escrevo o que quero em meu blog. E posso publicar eletronicamente qualquer livro. A Scribd - e várias outras editoras eletrônicas estão aí para isso.

O personagem mais venal que conheço é o escritor profissional. Ele segue os baixos instintos de sua clientela. O público quer medo? Ele oferece medo. O público quer lágrimas? Ele vende lágrimas. O público quer auto-ajuda? Ele a fornece. É preciso salvar o famoso leite das criancinhas.

Eu jamais faria isso. Sei como fazer. Mas não faço. Nestes dias em que os ebooks libertam o escritor da ditadura dos editores, é espantoso ver escritores como Eco e Carrière condenando esta nova tecnologia.

Ao que tudo indica, estão defendendo seus direitos de autor, coisa que se tornou obsoleta nestes dias de Internet.

sábado, maio 29, 2010
 
NOVAS SOBRE
O VIGARISTA
DE MÁLAGA



Tenho escrito seguidamente sobre a venalidade de Pablo Picasso e sua eterna e sempre renovada mentira em torno ao quadro Guernica, "obra em homenagem às vítimas da cidade basca de Guernica, bombardeada por Franco".

Ora, os fatos são bem outros. Só alguém hipnotizado pela mídia poderá ver cenas de bombardeio em Guernica. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi.

Tenho repetido isto a cada vez que algum jornal retoma o gasto refrão, de que o quadro foi uma homenagem às supostas vítimas de Guernica. E digo supostas porque o episódio é controvertido. Hugh Thomas, em La Guerra Civil Española, falava em 1654 mortos em Guernica, na primeira edição de seu livro. Na segunda, reduziu a 200 este número. É uma diferença considerável.

Agora temos novidades. Ontem, no The Guardian, falando do quarto volume da biografia de Picasso, o historiador britânico John Richardson afirmou que o pintor manteve conversações com o regime de Franco para organizar uma retrospectiva de sua obra em Madri, em 1956. A tentativa foi feita. Pelo jeito, após ter feito fortuna fazendo propaganda comunista, Picasso queria faturar mais alguns milhões de dólares na Espanha de Franco. O vazamento desses contatos e as pressões de seu entourage frustraram o projeto. Richardson, que foi integrante do círculo de amigos do malaguenho nas décadas de 40 a 60, nos conta:

“Naquele momento, a idéia de uma retrospectiva na Espanha era mais importante para ele que o Partido Comunista”. Segundo o crítico José Maria Moreno Galván, que foi o intermediário das conversações entre o pintor e o assessor cultural da embaixada espanhola em Paris, José Luis Messia, este lhe disse: “Pena que Lorca não esteja vivo. Teríamos matado dois pássaros com um tiro só”. Sobrou até para o poeta de Fuente Vaqueros.

Um grupo de exilados espanhóis pediu a Picasso que não expusesse na Espanha, como consta do diário do escritor francês Jean Cocteau. Ao final de tudo, foi o próprio ministério de Relações Exteriores espanhol que, ante o vazamento da notícia à imprensa, decidiu suspender as negociações. Não fosse isso, teríamos o escroque malaguenho endossando o regime del caudillo de España por la gracia de Diós.

Franco perdeu um grande aliado.

sexta-feira, maio 28, 2010
 
HAJA PANACAS
NESTE MUNDO!



Quando mais jovem, jamais me preocupei com seguro saúde em minhas viagens. O que é uma imprevidência, confesso. Mesmo que você tenha boa saúde, acidentes acontecem. Foi o que ocorreu comigo em 1990, quando fui a Berlim quebrar os cacos que ainda restavam do muro. Tinha um problema crônico de menisco e volta e meia me acometia a tal de água no joelho. Claro que não faltaram as más línguas a aventar a hipótese de uísque no joelho. A bem da verdade, aquele líquido tinha uma certa cor de bom scotch. Sabe-se lá!

Parti rumo ao muro, sem lenço nem documento, como se diz. Em Paris, escorreguei e a perna começou a inchar. Pensei ir ao médico, mas desisti. Sabia qual era o tratamento. Ele faria uma punção no joelho, extrairia o líquido sinovial e me ordenaria repouso. Se é para ficar de molho, pensei, fico em Berlim, mais perto do muro. Embarquei.

No trem, desastre. A perna foi inchando a ponto de mal caber na perna da calça. Eu viajava com uma amiga, que seria minha anfitriã. Nem deu para ir à casa dela. Ela telefonou para o hospital e do trem fui direto para lá. Onde já me esperavam dois médicos, com uma maca na recepção.

Não, não quero falar das atribulações de meu menisco. Ocorre que as aventuras de minha perna me proporcionaram uma oportuna comparação entre a medicina capitalista e socialista. Era janeiro e estava em Berlim ocidental, bem entendido. A reunificação só ocorreria mais adiante, em outubro. Aconteceu o previsto. Os médicos extraíram o líquido e me mandaram ficar em repouso. Quando perguntei quanto pagaria, riram na minha cara. Que deixasse um endereço e depois enviariam a conta. Nunca enviaram.

Mas o muro estava ali, quase a meu lado, esperando meu martelo. Mal me equilibrei nas pernas, fui lá tirar meus cacos. Caminhava devagar, sem forçar o joelho. Deu certo. Fui então para Praga. Ora, Praga é uma cidade belíssima, concebida para pedestres. Impossível não caminhar. Foi quando me acometeu de novo a praga, sem trocadilhos. A perna começou a intumescer e tive de procurar hospital.

O hospital, uma espécie de pátio de milagres, gente doente atirada no chão, em colchões espalhados pelos corredores. Eu, tentando achar um médico. Falava em inglês, os funcionários me entendiam. O problema é que respondiam em checo. Lá perto de meio-dia, descobri que havia uma ala diplomática no hospital. Fui para lá. Consegui me comunicar.

Nossa! O panorama mudou. Muita limpeza, muita higiene, não vi mais gente deitada nos corredores. Me atendeu uma médica que fizera estágio em Cuba e falava espanhol. Bonitaça, ela aproximou seu rosto do meu, começou a queixar-se de sua vida, me confessou suas mais íntimas angústias. Eu, que não sabia se voltaria ao Brasil com uma perna ou duas, não percebi naquele momento que a moça estava me insinuando outros serviços que não os médicos. Por uns vinte dólares, eu talvez até tivesse esquecido o inchume de meu joelho. Seja como for, a ala diplomática era limpa e abordável. Com acesso aos serviços VIP da doutora.

Acabei sendo atendido por um certo Dr. Dvorjak. Que me pôs uma tala de isopor na perna e me prescreveu um remédio que, soube mais tarde, se prescreve para cavalos. Voei entalado para Paris e não tive remédio senão voltar ao Brasil. (Mas pelo menos com os cacos do muro). Apesar da fama de gratuidade da medicina socialista, acabei pagando mais de cem dólares. Por uma tala de isopor. Mais o preço do remédio para cavalos.

Em São Paulo, conversando com jornalista que foi correspondente em Moscou, ele me dizia que, no mundo socialista, toda profissional liberal era uma prostituta potencial. Devia saber do que falava. Ganhar em meia hora o salário de um mês é uma tentação à qual dificilmente uma brava mulher socialista resiste. Debilitado e desinformado sobre as práticas das camaradas, eu havia perdido uma adorável e loura checa em Praga.

Tudo isto, como introdução a um filme muito safado, que vi hoje na madrugada, Sicko, do agitprop ianque Michael Moore. Vi com atraso. O filme é de 2007 e se pretende documentário. No fundo, uma defesa inverossímil da medicina cubana. Moore começa expondo os altos custos da medicina americana, no que não vai nada de novo. Depois se transporta para o Canadá, França e Inglaterra, onde a saúde é subsidiada pelo Estado. Mostra americanos felizes morando em Paris e Londres, como se estivessem no paraíso. No Canadá, há até mesmo americanas casando com canadenses, por um seguro saúde.

O “documentarista” é tão fiel aos fatos que chega a mostrar um cidadão que se fere em Londres, no momento em que atravessa uma rua plantando bananeira e logo após suas démarches junto aos serviços de saúde. Documentarista bom é isso mesmo, pega a história desde o início. Moore estava no exato instante do acidente, para depois acompanhar a história toda. Mas o filme não tem por objetivo mostrar as excelências dos serviços de saúde da Europa. E sim dos de Cuba, o paraíso do Caribe.

Moore descobre que em Guantánamo os prisioneiros lá encarcerados têm assistência médica total e gratuita. E reúne vários americanos em dois barcos, três deles com seqüelas decorrentes do socorro às vítimas do atentado às torres gêmeas. Aproxima-se da prisão, pelo mar, e pede internação de seus passageiros na prisão americana. Como se Guantánamo fosse um hospital público. Na verdade, Moore fala apenas para seu câmera. Fala de longe, em pleno mar, sem ao menos usar um megafone. Claro que não recebe resposta alguma.

O agitprop pega então sua turma e dirige-se ao paraíso. Em Cuba, como se fosse a coisa mais normal do mundo chegar a um país para receber tratamento médico, todos são bem recebidos em um hospital de primeira linha. Com cuidados personalizados. Voltam curados para casa. Sem pagar nada ou quase nada. Por remédios que custam U$ 120 nos Estados Unidos, os americanos pagam 0,5 cents em Havana. Por tratamentos que custam de 7 mil a 15 mil dólares, pagam zero dólar em Cuba. Porque é assim? – pergunta o cineasta à Aleida Guevara, filha de um dos mais operosos assassinos do continente. “Porque nós podemos e vocês não” – responde Aleida.

Resposta definitiva. Incontestável. Ingênuos no Brasil é o que não falta para acreditar que a saúde é um direito de todo cidadão na Disneylândia das esquerdas. Em 2008, lia-se na Folha de São Paulo, numa espécie de repercussão ao filme de Moore:

Regime de Fidel cerceou democracia e direitos
humanos, mas melhorou qualidade de vida


Dizia o texto:

Em quase meio século como líder de Cuba, Fidel Castro escreveu uma história pontuada por grandes conquistas e perdas significativas. Se educação, saúde, redução de miséria e emprego são áreas em que é impressionante a evolução do país após a revolução, em categorias como direitos humanos, liberdade de expressão, democracia e acesso a bens de consumo Cuba consta como um contra-exemplo no cenário mundial.

Melhoras na saúde? Como podem existir melhoras na saúde em um país que vive à beira da fome? Onde os gêneros alimentícios são racionados por uma libreta? Onde carne e pescados são reservados aos turistas que pagam em moeda forte? Onde o cubano vive de massas e açúcar? Onde um médico recebe 15 dólares por mês? Onde é melhor ser taxista trabalhando com turistas que médico formado? Onde os médicos estão migrando para o Brasil – e mesmo para a Venezuela de Chávez – em busca de salário decente? No país das jineteras, onde prostituição se tornou mercadoria corrente? Onde pais e maridos oferecem suas filhas e mulheres aos turistas numa boa? Como pode uma ilhota que vive em regime de miséria oferecer medicina gratuita a americanos?

Que milagre é esse? Estamos diante de um novo Cristo, que faz não a multiplicação dos peixes, mas dos remédios? É de perguntar-se porque todos os americanos, em peso, ainda não migraram para Cuba. O que vemos é cubanos, aos milhares, arriscando a vida – e mesmo morrendo – na tentativa de chegar a Miami. Cá em São Paulo, não passa mês sem que eu encontre uma petista que me jura de pés juntos que Cuba chegou a um atendimento gratuito e universal em termos de saúde.

No entanto, o filme de Moore fez fortuna. Haja panacas neste nosso mundinho.

quinta-feira, maio 27, 2010
 
CINEMA QUER GORJETA
SEM PRESTAR SERVIÇO



Quem me acompanha, sabe que faz mais de trinta anos que não vejo cinema nacional. O último filme nacional que vi em minha vida foi Aleluia Gretchen, do Sílvio Back. Eu o assisti em Tunis, Tunísia, lá por 78 ou 79, quando fazia a cobertura do Festival de Cinema de Cartago. Assisti porque fui coagido, mais ou menos manu militari, pelo diretor. Depois disso, nunca mais.

Em primeiro lugar, porque o cinema tupiniquim não me agrada. Em segundo, porque quem financia os filmes nacionais somos nós, contribuintes. Compulsoriamente. Muitas vezes nem financiamos filmes, mas apenas o bem-estar dos diretores, vide Norma Benguel e Guilherme Fontes. Se nós financiamos, não vejo porque pagar para assistir o que já pagamos. Talvez até pensasse no assunto se a produção do filme viesse me buscar em casa de limusine. Mesmo assim, não sei.

Comentei há dois dias o estúpido e totalitário projeto de lei do senador Cristovam Buarque, de empurrar goela abaixo dos estudantes o medíocre nacional. O cinema nacional está morrendo de morte morrida. Não bastassem os dias de exibição obrigatória, o Senado – que já aprovou o projeto – pretende empurrá-lo aos estudantes. Como já se empurra Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Luís Fernando Verissimo e outros que tais.

Dito isto, gosto de revisitar, de vez em quando, a culinária francesa que São Paulo oferece. Digo de vez quando, porque restaurante francês em São Paulo é sinônimo de exploração. Por acaso, está em minha escrivaninha o cardápio do Chartier, um dos mais antigos e tradicionais restaurantes de Paris, fundado em 1896. Não é a grande cozinha, é verdade. Mas é cozinha honesta. Sem falar que o restaurante, instalado em um salão magnífico, foi tombado como monumento nacional. Preço dos pratos: entre 10 e 12 euros. Isto é, entre 22 e 27 reais, na cotação de hoje. Vinhos, entre 10 e 20 euros. Ou seja, entre 22 e 44 reais. Por cem reais, você come e bebe bem. Com direito a sobremesa.

Transporto o leitor para São Paulo. Em restaurantes que mal têm uma década de idade, sem o requinte arquitetônico do Chartier, por 20 reais você não paga nem a entrada. Pratos, a partir de 40 ou 50 reais. Vinhos, por baixo, na faixa dos 100 reais. Para quem gosta de exibir status, há também os de dois, três, quatro ou cinco mil reais. Estes últimos significam duas passagens de ida-e-volta a Paris e ainda sobra troco.

Volto ao cinema. Para meu pasmo, leio hoje na Folha de São Paulo, na coluna de Mônica Bergamo, iniciativa ainda mais insólita:

“Ameaçado de fechar as portas após perder o patrocínio do banco HSBC, o cinema Belas Artes, na rua da Consolação, está negociando com um grupo de restaurantes para obter receita e manter as atividades. "A idéia seria o cliente acrescentar um valor na conta, que iria para um fundo de ajuda ao espaço", diz André Sturm, sócio do cine. A iniciativa partiu de 14 restaurantes, entre outros, Le Casserole, Arabia e Ici Bistrô. A primeira reunião para detalhar o projeto estava marcada para ontem”.

Só o que faltava. Ao ir a um restaurante, não bastassem os dez por cento de gorjeta – dos quais metade não vai para o garçom, mas para o restaurador – tenho agora de subsidiar as salas de cinema paulistanas. Entre os restaurantes que participam da malsinada idéia, estão o Casserole e o Ici Bistrô. São casas que freqüento, uma ou eventualmente duas vezes por mês, quando quero introduzir alguma amiga na cozinha francesa.

O Casserole é o mais antigo restaurante francês de São Paulo. Foi fundado em 1954. Isto é, tem pouco mais de mísero meio século. Resiste ainda no centro degradado da cidade. Com amplas janelas, dá para uma floreira, o que atenua a paisagem hostil do entorno. É ambiente agradável, que nos transporta a uma São Paulo que já não mais existe.

O Ici fica aqui perto de casa. Terá uns cinco anos de idade. É o que chamo de um restaurante com visão do futuro: a sua frente, está o cemitério da Consolação. Carta de vinhos hostil. Passo lá de vez em quando, para matar as saudades de um cassoulet ou escargot. Mas se for para contribuir com uma sala de cinema, nunca mais.

O cinema está em estado terminal no Brasil. Não que a arte, em si, esteja morrendo. É que é desconfortável ir ao cinema. A estrutura da cidade afasta o público das salas. Estacionamento, flanelinhas, risco de assalto, gente comendo pipoca e conversando como se estivesse assistindo a um DVD com amigos. Melhor então ficar em casa e ver um DVD, ora bolas!

Preciso ver quais outros restaurantes querem ressuscitar o cadáver. Para eliminá-los de minha rotina. Falta de respeito! Imagine um parisiense chegar num restaurante francês e pagar um percentual para salvar o cinema francês! Sai todo mundo entoando a Marseillaise.

quarta-feira, maio 26, 2010
 
NÁPOLES É CASO À PARTE


Heitor, um leitor, me escreve:

Faz tempo que o Janer não vai à Europa! O Porto tem flanelinhas e na Boavista! E Nápoles tá cheio de trombadinhas. Só que lá as mães acompanham nos assaltos.

Não, não faz tanto tempo assim. Ocorre que Nápoles é exceção na Europa. Sempre teve uma tradição de assalto a turistas. Não são trombadinhas. São trombadões. É certamente a cidade mais suja do continente e onde o visitante está mais exposto a ser roubado. Há uns dez anos, em Roma, passei numa agência de turismo, para reservar um hotel em Nápoles. O agente foi curto e grosso:

- Não vá a Nápoles. Você vai se arrepender.

Como?

- Vá a qualquer cidade da Itália. Menos Nápoles.

Mas eu queria conhecer Nápoles. E se eu ficar numa cidade próxima e for visitá-la rapidamente?

- Qualquer cidade na Itália é melhor que Nápoles – insistiu meu interlocutor.

Por meu acento ao falar italiano, ele logo intuiu que eu era brasileiro. Fez uma ressalva:

- Claro que não é como no Brasil. Lá você morre por qualquer trocado. Aqui, o assaltante avalia: até que ponto vale perder a liberdade por pouca coisa? Você não será assassinado, nem ferido. Mas provavelmente será assaltado.

Estava bem informado sobre o Brasil, meu agente. Mas havia uma solução. Sair com pouco dinheiro na rua, bem protegido, e sem documentos. Acabei desistindo de Nápoles. Ocorre que o trem atrasou e chegaria muito tarde a Sorrento. Não gosto de procurar hotel no meio da noite. Decidi ficar na cidade que o italiano desrecomendava. Procurei ficar perto da estação, para não expor-me muito.

Hotel imenso, de arquitetura solene, decadente. E com um fedor abominável, proveniente sei lá de onde. Seriam umas cinco da tarde. Resolvemos – eu e minha mulher - dar um giro pelo centro antigo. Na primeira entrada do bairro, uma italiana nos advertiu: “cuidado com o bolso”. Em cada esquina, grupos ameaçadores. Avançamos sem medo, afinal não levávamos nada roubável. Mas voltamos logo para o hotel fétido e no dia seguinte, na primeira hora, rumamos a Sorrento. A poucos quilômetros dali, mas com uma diferença abissal. Podia-se andar pelas ruas na madrugada sem sensação alguma de insegurança.

Quer dizer, não vale citar Nápoles. É uma das raras cidades na Europa – senão a única – onde você é assaltado pelos nativos. Nas demais, você será assaltado por árabes, ciganos, paquistaneses, romenos e até mesmo ex-iugoslavos.

Quanto a Portugal, está cada vez pior. Estive há umas duas décadas em Porto, não havia flanelinha algum. Nos últimos anos, tive notícias de que já havia alguns em Lisboa. Não eram portugueses. E sim brasileiros, que quiseram introduzir o ofício na cidade. Pelo que me consta, foram presos. De qualquer forma, nos dias de hoje não é muito salutar flanar pela noite no Rocio e Praça do Comércio. A ameaça não são os lusos. Mas os africanos. Estive em Lisboa em novembro passado e preferi não passear à noite pelo centro.

O mesmo está ocorrendo em Barcelona, onde todo imigrante tem direito a assaltar qualquer turista, desde que não roube mais que 400 euros. A verdade é que a Europa de hoje não é mais aquela de uns trinta anos atrás, quando se podia flanar tranqüilamente pelas madrugadas em suas capitais.

Mas a violência não parte dos europeus. Parte dos imigrantes.

 
EL PAÍS PROMOVE CUBA
A ESTADO DEMOCRÁTICO



Na edição de hoje de El País, leio em artigo de Fernando Navarro:

"Lejos de la simple anécdota, la caricatura de Kim Jong-il, al frente del único régimen estalinista que aún existe, pasa por asfixiar a una población de 25 millones de habitantes, que vive en un absoluto estado de propaganda, sin libertades y en la hambruna".

Único regime stalinista que ainda existe? Cuba terá virado de repente uma democracia? Ou alguém acha que a transição de um Castro para outro Castro mudou algo na Disneylândia das esquerdas?

Continua Navarro:

"Primero y único líder heredero en el mundo comunista, el hijo del Kim Il-sung, designado por Stalin para gobernar Corea del Norte tras su fundación en 1948, nunca tuvo dotes de jefe".

Ocorre que herança não existe apenas de pai para filho. Ou não é herança a ilha que Raulito recebeu de su hermanito Fidel?

terça-feira, maio 25, 2010
 
SENADO QUER ENFIAR GOELA ABAIXO
O MEDÍOCRE CINEMA NACIONAL



Quando não mais indignar-me, é porque estou envelhecendo, dizia André Gide. Se assim for, o Brasil me promete eterna juventude. Nos estertores do século passado, Cristovam Buarque, ex-governador do Distrito Federal, afirmava em seu cartão de fim de ano: “O século XX criou o computador e o flanelinha, a nave espacial e o trombadinha, o robô e o pivete, o internauta e o cheira-cola”. O sofisma não só passou impune, como foi citado como um momento de brilho do governador.

Fosse eu o século XX, processava por calúnia este senhor e ainda exigiria indenização por danos morais. Pois quem criou o computador e a nave espacial não foi o século, mas os Estados Unidos. Quanto aos flanelinhas, trombadinhas e cheira-colas, estas originais instituições são coisas nossas, made in Brazil. Sofismador de mão cheia, o governador junta avanço tecnológico e miséria no mesmo saco e os atribui ao tempo.

Que me conste, a Europa vive em nosso mesmo século e lá não encontramos os flanelinhas, trombadinhas e cheira-colas, instituições que, à semelhança dos juízes classistas, reitores eleitos por bedéis e cheques pré-datados, são tupiniquins. A frase do governador é típica de patrioteiros: o Brasil é lindo e suas mazelas são decorrências do tempo que passa.

No início deste ano, comentei brilhante projeto do analfabeto agora senador, que estava prestes a ser examinado na Comissão de Educação do Senado, propondo que os estudantes brasileiros das escolas públicas e privadas assistissem no período de um mês a pelo menos duas horas de filmes nacionais.

Ora, em dezembro passado, o sedizente filho do Brasil assinou decreto fixando a cota mínima de exibição de filmes brasileiros nas salas de cinema de todo o país. Cada sala deverá exibir 28 dias de 2010 de filmes nacionais. Parece que não foi suficiente. Sua biografia, apesar dos bilhetes distribuídos com desconto para sindicatos, encalhou. Até um outro vigarista, o Chico Xavier, atraiu mais público.

Rola na rede uma tese interessante, a de que Fábio Barreto cometeu um equívoco ao pintar seu personagem como um herói impoluto. Que brasileiro não gosta de heróis impolutos. Que se Lula fosse pintado como é, malandro adepto da lei de Gérson, o filme seria mais verossímil. Existe uma massa de jovens indefesos na rede escolar? Jogue-se então Lula, o filho do Brasil, goela abaixo dessas gerações.

A medida é de caráter obrigatório. Rosalba Ciarlini, senadora do DEM, partido tão venal como o PT, deu então dois pareceres totalmente diferentes sobre o projeto. Em maio passado, defendeu sua rejeição. “Esse tipo de norma, por sua rigidez, conquanto possa servir a interesses diversos e estranhos à escola, pouco ou nada contribui para a melhoria do ensino. Ao contrário, pode diminuir a margem de autonomia e de flexibilidade dos estabelecimentos de ensino".

Em novembro, por ocasião do lançamento do hagiológio ao analfabeto-mor, a senadora só teve elogios para a proposta, sob a alegação de que a obrigatoriedade das escolas exibirem filmes nacionais "será benéfica para ambos, estudantes e indústria cinematográfica. A produção nacional, com raras exceções, tem qualidade plástica e conteudista irretorquível, diversidade temática e de público-alvo". O que a senadora propõe, no fundo, é a exibição obrigatória de uma ficção sobre o presidente mais analfabeto, mais incoerente, mais mentiroso, mais corrupto e o maior acobertador da corrupção que o Brasil jamais teve em seus dias de república.

Leio hoje na Veja on line que o Senado aprovou o projeto de lei do estúpido senador. A proposta foi apreciada em caráter terminativo na Comissão de Educação, Cultura e Esporte e agora segue para a Câmara dos Deputados, antes de ser sancionada pelo presidente. Se a lei for colocada em prática, as unidades de ensino básico do país terão que separar pelo menos duas horas por mês da grade extracurricular para exibições do cinema nacional.

As artes nacionais, de tão excelentes, vivem hoje de esmolas do poder. Tanto escritores como cineastas, artistas plásticos, atores de teatros, são humildes pedintes de verbas governamentais, que estendem o chapéu ao Planalto e vivem de caridade pública.

Segundo Buarque, o projeto estimulará a formação de público para o cinema brasileiro. Ele acredita que as crianças e os adolescentes que tiverem acesso aos filmes agora vão desenvolver o senso estético e passar a apreciar a produção cinematográfica do país, hoje feita basicamente por meio de incentivos fiscais e verba pública. "A médio e longo prazo, o público poderá de fato financiar o cinema, como acontece em outros países", afirma o desinformado senador.

Que outros países, senador? Estará Vossa Excelência se referindo aos extintos países socialistas, onde toda arte dependia da complacência do poder? Ou aos Estados Unidos, onde um Kubrick quase foi à falência para rodar Apocalipse Now, mas não recebeu um vintém do Estado? Ou à Itália, que produziu um Fellini – e tantos outros cineastas de gênio – sem jamais meter a mão no bolso do contribuinte? Ou a outros países do Ocidente, onde cinema é uma questão de indústria e não de esmola estatal?

Para a cineasta e professora do curso de Audiovisual da Universidade de Brasília, Dácia Ibiapina, a proposta será muito bem recebida entre os produtores e diretores de cinema, que convivem com um mercado exibidor restrito. "O ideal era que naturalmente os brasileiros demandassem seu cinema, mas, como a gente vive num país em que a indústria cinematográfica tem muita dificuldade de se afirmar e muitos filmes nem chegam a ser lançados, mecanismos como essa lei podem ajudar a reverter essa situação".

Claro que será muito bem recebido por produtores e diretores de cinema, estes corruptos que não conseguem fazer arte decente e dependem do Estado para vender seus peixes podres. Porque cargas d’água eu, brasileiro, tenho de ver cinema brasileiro? Vejo o cinema que me agrada, ora bolas! Os distribuidores já nos impõem o cinema ianque, os Titanics, Arcas Perdidas e Avatares da vida. Agora o Estado brasileiro passa a impor os abacaxis nacionais. Os abacaxis do Norte pelo menos têm melhor gramática.

Não bastasse o contribuinte financiar esta mediocrada que faz cinema, teatro e literatura no Brasil, agora os filhos dos contribuintes terão de engolir goela abaixo as “obras” – no sentido pejorativo do termo – dos medíocres amigos do poder. A medida é de um viés totalitário que sequer foi sonhado pelos países comunistas. Aliás, nem precisava ser imposto, já que todo cinema era estatal. Mas pelo menos não era obrigatório nas escolas.

Nestes dias em que se luta contra o ensino de religião nas escolas, urge agora lutar contra medida mais grave, o projeto do senador. O Senado já o engoliu. A Câmara certamente o aprovará. E é óbvio que o filho do Brasil o sancionará.

Você imaginou seu filho sendo obrigado a assistir odes a Lula e Chico Xavier? Mais apologias a terroristas e traficantes de drogas? Esta corrupção, com patrocínio do Legislativo, jornal algum denuncia. Os jornais são cúmplices. Suas páginas abrigam e louvam escritores, atores e artistas que são gigolôs do poder. Que nada valem por suas obras e que só são conhecidos porque impostos a um público indefeso. A União Soviética morreu há duas décadas. E o Brasil continua financiando escritores e artistas venais, como faziam os comunistas no século passado.

A meu ver, o projeto do senador Cristovam Buarque é tímido. Bem que podia ir mais longe. Mais duas horas obrigatórias de teatro nacional. Mais outras duas de Rede Globo. Mais outras tantas de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil. Mais duas de Xuxa e Sílvio Santos. E mais duas – por que não? – de Edir Macedo e R. R. Soares.

Tudo pela cultura nacional.

segunda-feira, maio 24, 2010
 
A GRANDE PROSTITUTA


(Idealizado pela editora Cia. das Letras o seminário Acadêmico Internacional sobre Jorge Amado promove hoje e amanhã palestras sobre o universo do escritor baiano e sua criação literária. Coordenado pelo departamento de Antropologia da FFLCH/USP, Prof. Dr. Júlio Assis Simões, Profa. Doutora Heloísa Buarque de Almeida e Profa. Doutora Laura Moutinho.

Claro que nenhum dos professores doutores vai abordar o passado nazista e stalinista de Amado. Para que a memória não se perca, aqui vai minha singela contribuição ao evento. Este artigo foi publicado na revista Brazzil, em Los Angeles, 1998. Jamais seria publicado na imprensa brasileira).



A palavra bordel, para quem não sabe, nasce em Paris. Na época em que as "maisons closes" ficavam às margens do Sena, quando alguém ia em busca de mulheres, dizia eufemisticamente: "j'vais au bord'elle". Sena, em francês, é palavra feminina, la Seine. Portanto, quando alguém dizia "au bord'elle", queria dizer "au bord de la Seine". Daí, bordel. Não é de espantar que a capital que deu ao mundo esta palavra queira homenagear, nos dias 20 e 25 de março próximos, no 18º Salão do Livro de Paris, a prostituta maior das letras contemporâneas.

O Brasil será o país homenageado do Salão e terá como convidado de honra e representante de nossas Letras, Jorge Amado, o mais vendido escritor nacional, que começou sua carreira como estafeta do nazismo, continuou como agente do stalinismo e hoje é roteirista oficioso de Roberto Marinho. Amado ainda receberá, na ocasião, o título de Dr. Honoris Causa por uma universidade parisiense. Nada de espantar: os parisienses, de longa tradição colaboracionista e stalinista, não perderiam esta oportunidade de homenagear, neste século que finda, o colega que desde a juventude militou nas mesmas hostes.

Do nazismo ao stalinismo

Autor brasileiro mais divulgado no exterior, com traduções em mais de 40 idiomas, colaborador de publicações nazistas, ex-militante do Partido Comunista, deputado constituinte em 46, Oba Otum Arolu do candomblé Axé Opô Afonjá na Bahia, membro da Academia Brasileira de Letras, Amado nasceu em uma fazenda de cacau, em 10 de agosto de 1912, no então recém-criado município de Itabuna, na Bahia, filho de pai sergipano e mãe baiana de ascendência indígena.

Em 1936, é preso no Rio, em conseqüência da Intentona de 35, tentativa de tomada do poder ordenada pelo Kremlin e liderada no Brasil por Luís Carlos Prestes. Em 1940, durante a vigência do pacto de não-agressão germano-soviético, assinado por Stalin e Von Ribbentrop, assume a edição da página de cultura do jornal pró-nazista Meio-Dia. Em uma reunião do Partido Comunista, é denunciado por Oswald de Andrade como "espião barato do nazismo" e instado pelo escritor paulista a retirar-se de São Paulo. Quando interrogado sobre o trabalho sujo deste período, Amado diz simploriamente: “Não me lembro”. Mas Oswald de Andrade lembra. Em antiga entrevista, republicada mais recentemente, em Os Dentes do Dragão, dizia Oswald:

"Diante de tantos erros e mistificações, retirei a minha inscrição do partido. Numa reunião da comissão de escritores, diante de quinze pessoas do PC, apelei para que o sr. Jorge Amado se retirasse de São Paulo e denunciei-o como espião barato do nazismo, antigo redator qualificado do Meio-Dia. Contei então, sem que Jorge ousasse defender-se, pois tudo é rigorosamente verdadeiro, que em 1940 Jorge convidou-me no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Jorge, depois me informou que esse livro iria render-me 30 contos. Recusei, e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas do mesmo alemão".

Em 45, Amado é eleito deputado federal pelo Partido Comunista e publica Vida de Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, uma apologia ao líder comunista gaúcho e membro do Komintern. O panfleto, encomendado pelo Kremlin, foi traduzido e publicado nas democracias ocidentais e nas ditaduras comunistas, como parte de uma campanha para libertar Prestes da prisão, após sua sangrenta tentativa, em 1935, de impor ao Brasil uma tirania no melhor estilo de seu guru, o Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, mais conhecido como Stalin. Para Amado, Prestes, é o “Herói, aquele que nunca se vendeu, que nunca se dobrou, sobre quem a lama, a sujeira, a podridão, a baba nojenta da calúnia nunca deixaram rastro".

Prestes preso, segundo o escritor baiano, é o próprio povo brasileiro oprimido: “Como ele o povo está preso e perseguido, ultrajado e ferido. Mas como ele o povo se levantará, uma, duas, mil vezes, e um dia as cadeias serão quebradas, a liberdade sairá mais forte de entre as grades. ‘Todas as noites têm uma aurora’, disse o Poeta do povo, amiga, em todas as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora, guiando os homens até o amanhecer. Assim também, negra, essa noite do Brasil tem sua estrela iluminando os homens, Luís Carlos Prestes. Um dia o veremos na manhã de liberdade e quando chegar o momento de construir no dia livre e belo, veremos que ele era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança; calor no dia, certeza”.

Em 46, como constituinte, Amado assina a quarta Constituição Brasileira. Dois anos depois, seu mandato é cassado em virtude do cancelamento do registro do PC. Neste mesmo ano, 1948, fixa residência em Paris, onde convive, entre outros, com Sartre, Aragon e Picasso. Em 1950, passa a residir no Castelo da União dos Escritores, em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreve O Mundo da Paz, uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro é publicado, recebe em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias.

Esta década é marcada por longas viagens, entre outras, à China continental, Mongólia, Europa ocidental e central, à ex-União Soviética e ao Extremo Oriente.

“Vós sabeis, amigos, o ódio que eles têm - os homens de dinheiro, os donos da vida, os opressores dos povos, os exploradores do trabalho humano - a Stalin. Esse nome os faz tremer, esse nome os inquieta, enche de fantasmas suas noites, impede-lhes o sono e transforma seus sonhos em pesadelos. Sobre esse nome as mais vis calúnias, as infâmias maiores, as mais sórdidas mentiras. ‘O Tzar Vermelho’, leio na manchete de um jornal. E sorrio porque penso que, no Kremlin, ele trabalha incansavelmente para seu povo soviético e para todos nós, paras toda a humanidade, pela felicidade de todos os povos. Mestre, guia e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu. Sim, eles caluniam, insultam e rangem os dentes. Mas até Stalin se eleva o amor de milhões, de dezenas e centenas de milhões de seres humanos. Não há muito ele completou 70 anos. Foi uma festa mundial, seu nome foi saudado na China e no Líbano, na Romênia e no Equador, em Nicarágua e na África do Sul. Para o rumo do leste se voltaram nesse dia de dezembro os olhos e as esperanças de centenas de milhões de homens. E os operários brasileiros escreveram sobre a montanha o seu nome luminoso”.

Em função de sua militância no PC, no início de sua trajetória foi traduzido na China, Coréia, Vietnã e ex-União Soviética. Só depois então é puxado para os países ocidentais, pelas mãos de seu tradutor para o alemão. Em Munique, em 1978, entrevistei Curt Meyer-Clason, o responsável pela introdução de Amado na Europa ocidental. O baiano invade com sua literatura o mundo livre, que tanto caluniou, através da finada República Democrática Alemã. “Devido à proteção do PC, a RDA incumbiu-se da publicação de todos os seus livros, já nos anos 50” -disse-me Meyer-Clason -. “Depois, por meu intermédio, passou diretamente à República Federal da Alemanha”. Não por acaso, Meyer-Clason acaba de ser denunciado, pela revista alemã Der Spiegel, como espião do Terceiro Reich no Brasil.

Da mesma forma que nega seu passado nazista, Amado não comenta seu passado stalinista. Em seu último livro, Navegação de Cabotagem, declara:

"Durante minha trajetória de escritor e cidadão tive conhecimento de fatos, causas e conseqüências, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. Deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive ações subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do Partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo real chega a seu triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga conseqüência alguma, mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotações, morrem comigo".

Realismo Socialista

Em 1954, julgando talvez insuficiente a defesa do stalinismo feita em O Cavaleiro da Esperança e O Mundo da Paz, Amado publica os três tomos de Subterrâneos da Liberdade, onde pretende narrar a saga do Partido Comunista no Brasil. Só em 58, com Gabriela, Cravo e Canela, deixará de lado sua militância comunista e passará a fazer uma literatura eivada de tipos folclóricos baianos, que mais tarde será transposta em filmes nacionais e novelas da Rede Globo.

O romancista baiano foi o introdutor nas letras brasileiras do realismo socialista, também conhecido como zdanovismo, fórmula de confecção literária para a pregação do ideário comunista, concebida pelos escritores russos Maxim Gorki, Anatoli Lunacharski, Alexander Fadéev, e sistematizada pelo coronel-general Andrei Zdanov.

Nos países em que foi traduzido, Amado é visto como um escritor que faz literatura brasileira. Em verdade, obedecia a uma fórmula tosca, mais panfletária que estética, produzida por teóricos em Moscou. Wilson Martins, em A História da Inteligência Brasileira, traduz em bom português as características do novo gênero:

“De um lado, os bons, ou seja, os que se incluem na “chave” mística do “trabalhador”, do “operário”; de outro lado, os maus, isto é, todos os outros mas, em particular, o “proprietário” e a “polícia”, as duas entidades arimânicas deste singular universo. Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos delicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes (embora revoltados),imaginativos e incansáveis, focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos, sede de paixões violências (oh! no bom sentido!), modelos de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos, em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo. O “trabalhador” é o herói característico desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem tantas relações com a realidade quanto o próprio Amadis de Gaula.

“Já o “proprietário” é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos, arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada “capitalismo”, onde, como todos sabem, é invulnerável a solidariedade existente entre seus membros; indivíduo que favorece todos os deboches, inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta, ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava a si mesma.”

Wilson Martins continua enumerando detalhadamente os demais estereótipos utilizados neste tipo de romance, entre eles a polícia, o tabelião, o posseiro, o governador, o latifundiário, o camponês. Seria por demais monótono continuar a descrição deste universo maniqueísta, como tampouco teria sentido acompanhar a repetição - ad nauseam - de uma fórmula primária de fabricar livros.

Vamos então enfiar logo as mãos no lixo. Os Subterrâneos também foi escrito em Dobris, no mesmo castelo da União de Escritores Tchecoeslovacos onde Amado produzira O Mundo da Paz, de março de 1952 a novembro de 1953, ou seja, no período imediatamente posterior à obtenção do Prêmio Stalin. Como pano de fundo histórico temos, como não poderia deixar de ser, a Revolução de 1917.

Outras datas e fatos posteriores determinarão poderosamente a construção dos personagens.Em 1935, ocorre no Brasil a Intentona Comunista. Em 36, Prestes é preso, e sua mulher Olga Benário, judia alemã que é oficial do Exército Vermelho, é deportada para a Alemanha de Hitler. Getúlio Vargas consegue persuadir o Congresso e criar um Tribunal de Segurança Nacional para punir os insurgentes.

Ainda neste ano de 36, eclode na Espanha a Guerra Civil, confronto que envolveu todas as nações européias e constituiu uma espécie de ensaio geral para a Segunda Guerra, detonada em 1939, circunstância amplamente explorada por Amado. Em 1937, os integralistas lançam Plínio Salgado como candidato às eleições presidenciais de janeiro do ano seguinte, abortadas a 10 de novembro pelo golpe com que Getúlio consolida o Estado Novo. Para desenvolver sua história, Amado fixará um dos mais turbulentos períodos deste século, que até hoje continua gerando rios de bibliografia. A ação de Os Subterrâneos situa-se precisamente entre outubro de 37 (às vésperas do Estado Novo e em meio à Guerra Civil Espanhola) e finda aos 7 de novembro de 39, 23º aniversário da proclamação do regime soviético na Rússia.

Amado, escritor e militante, tem por incumbência várias missões. A primeira consiste na defesa dos ideais de 17, encarnado em Lênin e Stalin, potestades várias vezes invocadas ao longo dos três volumes. Segunda, fazer a defesa do Messias que salvará o Brasil, Luís Carlos Prestes, e não por acaso a trilogia encerra-se com seu julgamento. Missões secundárias, mas não menos vitais: denunciar o imperialismo ianque, condenar a dissidência trotskista, pintar Franco com as cores do demônio e fustigar Getúlio por ter esmagado a atividade comunista a partir de 35.

Seus personagens são títeres inverossímeis e sem vontade própria, embebidos em álcool se são burgueses, ou imbuídos de certezas absolutas, mais água mineral, se são operários ou militantes, estes sempre obedientes aos ucasses emitidos às margens do Volga. A obra, composta por três volumes - Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A Luz no Túnel - constituiria apenas a primeira parte de uma trilogia mais vasta, com pretensões a ser o Guerra e Paz brasileiro. Os três tomos são publicados em maio de 1954, um ano após a morte de Stalin e dois antes do XX Congresso dos PCURSS, o que obriga o autor a interromper seu projeto. Pela segunda vez, na trajetória literária de Amado, sua ficção será determinada não por uma análise da realidade brasileira, mas por decisões tomadas em Moscou.

A onipresença do novo Deus

O personagem por excelência do romance é o Partido Comunista, onipresente como o antigo deus cristão e feito carne na figura de Stalin. A luta do PC é a luta - na ótica do autor - do povo brasileiro contra a tirania, no caso, Getúlio Vargas. Externamente, os inimigos são os Estados Unidos da América, a Alemanha, Franco e Salazar. Sem falar, é claro, na IV Internacional e nos trotskistas. O PC está infiltrado na classe dominante, disperso na classe média e fervilha nos meios operários. Invade as cidades e o campo, a pampa e a floresta, os salões burgueses, as fábricas e os portos, corações e mentes.

“Quantos outros, do Amazonas ao Rio Grande do Sul”, - reflete o militante Gonçalo -“não se encontravam nesse momento na mesma situação que ele, ante problemas complicados e difíceis, devendo resolvê-los, sem poder discutir com as direções, sem poder consultar os camaradas? Gonçalo sabe que os quadros do Partido não são muitos, alguns mil homens apenas na extensão imensa do país, alguns poucos milhares de militantes para atender à multidão incomensurável de problemas, para manter acesa a luta nos quatro cantos da pátria, separados por distâncias colossais, vencendo obstáculos infinitos, perseguidos e caçados como feras pelas polícias especializadas, torturados, presos, assassinados. Um punhado de homens, o seu Partido Comunista, mas este punhado de homens era o próprio coração da pátria, sua fonte de força vital, seu cérebro poderoso, seu potente braço. Esta onipresença extrapola o país, manifesta-se onde quer que andem os personagens, no Uruguai, França, Espanha, no planeta todo. Inevitáveis as referências à foice e ao martelo. E a Stalin, naturalmente, guia, mestre e pai.

A litania dirigida ao grande assassino tem por vezes características de humor negro: “- Quantos mais formos” - diz a militante Mariana - “mais trabalho terão os dirigentes. Pense em Stalin. Quem trabalha no mundo mais que ele? Ele é responsável pela vida de dezenas de milhões de homens. Outro dia li um poema sobre ele: o poeta dizia que quando todos já dormem, tarde da noite, uma janela continua iluminada no Kremlin, é a de Stalin. Os destinos de sua pátria e de seu povo não lhe dão repouso. Era mais ou menos isto que dizia o poeta, em palavras mais bonitas, é claro...”O poeta em questão é Pablo Neruda, já citado em O Mundo da Paz: “Tarde se apaga a luz de seu gabinete. O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.”

Consta de uma ode a Stalin, subtraída às Obras Completas do poeta chileno, onde, por enquanto, ainda se pode encontrar uma “Oda a Lenin”. Hoje, temos uma idéia precisa do que planejava Stalin nas madrugadas tardias de seu gabinete.

Quando Apolinário Rodrigues, por exemplo, (personagem calcado em Apolônio de Carvalho, oficial brasileiro exilado que participara da Intentona de 35) chega a Madri, sente-se em casa pois, para onde quer que se vire, lá está o Partido. A única cor local da capital espanhola parece ser a luta pela libertação de Prestes:

“Quando chegara à Espanha, vindo de Montevidéu, vivera dias de intensa emoção, ao encontrar por toda a parte, no país em guerra, nas ruas bombardeadas das cidades e aldeias, nos muros da irredutível Madri, as inscrições pedindo a liberdade de Prestes. Cercava-o o calor da intensa solidariedade desenvolvida pelos trabalhadores e combatentes espanhóis para com os antifascistas brasileiros presos e, em particular, para com Prestes. (...) Era uma única luta em todo o mundo, pensava Apolinário, ante essas inscrições, o povo espanhol o sabia, e em meio às suas pesadas tarefas e múltiplos sofrimentos, estendia a mão solidária ao povo brasileiro.”

A coincidência da instituição do Estado Novo com a explosão da Guerra Civil Espanhola é uma oportunidade única para Amado de inserir seus personagens no conflito internacional que redundaria na II Guerra, expondo ao mesmo tempo a linha do Partido. Tão única é esta oportunidade e tanto o autor quer aproveitá-la, que chega a deslocar para 1938 uma greve dos portuários de Santos, efetivamente ocorrida em 1946, o que aliás provocou um certo debate. Estaria Amado realmente sendo fiel ao método que “exige do artista uma representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário”, conforme proclamavam os estatutos da União de Escritores Soviéticos? Ao autor isto pouco importa.

Deslocando a greve para 38, pode criar um navio alemão que vem buscar, no Brasil, café para a Espanha. De uma só tacada, Amado fustiga Hitler, Getúlio e Franco: “Em algumas palavras (o velho Gregório) historiou o motivo por que adireção do sindicato havia convocado essa sessão: o governo oferecera ao general Franco, comandante dos rebeldes espanhóis (“um traidor”, gritou uma voz na sala), uma grande partida de café. Agora se encontrava no porto um navio alemão (“nazista”, gritou uma voz na sala) para levar o café.”Na Guerra Civil Espanhola, segundo Amado, há apenas “nazistas alemães e fascistas italianos”.

Tão pródigo em elogios à Stalin e à União Soviética, em sua trilogia o autor silencia sobre a presença russa na Espanha, constituída por pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes e policiais. A primeira presença estrangeira em terras de Espanha foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal militar altamente qualificado, em troca das três quartas partes (7800 caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis pelo Banco de España. Pagos adiantadamente. Silêncio de Amado: a representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário pode esperar mais um pouco.

A presença do Partido permeará a trilogia das primeiras páginas de Os Ásperos Tempos às últimas de A Luz no Túnel. Nestas, a militante Mariana, antes de presa, assiste ao julgamento de Prestes. A voz do líder comunista é “a voz vitoriosa do Partido sobre a reação e o terror”:

“Eu quero aproveitar a ocasião que me oferecem de falar ao povo brasileiro para render homenagem hoje a uma das maiores datas de toda a história, ao vigésimo terceiro aniversário da grande Revolução Russa que libertou um povo da tirania...”

Seria monótono e redundante perseguir esta onipresença do Partido na trilogia de Amado. Neste universo imperam o bem e o mal absolutos. O bem, evidentemente, é representado pelo novo Deus, o proletariado. O mal, pela burguesia detentora do capital. Entre um universo e outro transitam eventualmente seres camaleônicos, “traidores de classe” ou traidores do Partido. Dividir o universo em duas metades, uma boa e outra má, nada tem de novo e original.

Tal princípio vem do século III, através da doutrina do persa Mani. O espantoso é que continue a viger em pleno século XX, e mais: impondo gostos, comportamentos e até mesmo filiação partidária aos personagens de um romance. Os representantes do Bem amam. Os representantes do Mal têm amantes. Os bons bebem café ou água mineral. Os maus bebem cachaça ou uísque. Os bons são magros e idealistas. Os maus são gordos e mesquinhos. Os bons têm gargalhar sadio, os maus têm dentes podres. Os bons não têm posses. Os maus são proprietários. Os bons são pobres, os maus ricos. Os bons pertencem ao Partido ou com ele colaboram. Os demais são maus. Os bons, diga-se de passagem, estão aprisionados em tal camisa-de-força ideológica que sequer podem se dar ao luxo de gostar de pintura surrealista ou naïve.

Até 1954, Amado traduzirá em sua literatura as determinações do Partido Comunista russo. Em entrevista para Isto é (18/11/81), Amado reconhece seu stalinismo:

“Não sei se o termo “realismo socialista” se aplica a todos os meus livros daquela época. Estariam em face do realismo socialista, mas o fato é que Jubiabá (1935), Mar Morto (1936) e Capitães de Areia (1937), do período ao qual você se refere, só puderam ser publicados em russo depois da morte de Stalin. Acredito que a classificação seja justa para Terras do Sem Fim (1943), Seara Vermelha (1946) e Subterrâneos da Liberdade (1954). Se existe um livro meu totalmente influenciado pelo stalinismo, é Subterrâneos da Liberdade, que reflete uma posição totalmente maniqueísta.”

Denunciados os crimes do stalinismo por Kruschov, em 1954, dois anos depois Amado molha o dedinho na língua e o ergue ao ar, para sentir de onde sopram os ventos: o sentido da História é agora uma literatura popularesca, ao estilo da rede Globo. Passa então a produzir uma literatura de evasão em torno a motivos baianos. Não sem antes fazer um tímido e discreto mea culpa, publicado em 10 de outubro de 1956 pela Imprensa Popular:

“Aproximamo-nos, meu caro, dos nove meses de distância do XX Congresso do PCUS, o tempo de uma gestação. Demasiado larga essa gravidez de silêncio e todos perguntam o que ela pode encobrir, se por acaso a montanha não vai parir um rato. Creio que devemos discutir, profunda e livremente, tudo o que comove e agita o movimento democrático e comunista internacional, mas que devemos,sobretudo, discutir os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós,nossos erros enormes, os absurdos de todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais daninha e venenosa das árvores, floresceu no estrume do culto aqui levado às formas mais baixas e grosseiras, e está asfixiando nosso pensamento e ação. (...) Sinto a lama e o sangue em torno de mim, mas por cima deles enxergo a luz do novo humanismo que desejamos acesa e quase foi submergida pela onda dos crimes e dos erros.”

Como se o simples fato de sentir “a lama e o sangue” em torno a si o redimisse das cumplicidades passadas. Mas as denúncias dos crimes do stalinismo não geraram nenhum tribunal de Nuremberg e Jorge Amado sente-se como um ingênuo, enganado pelos ventos do século. No entanto, não mais permite a reedição de O Mundo da Paz. Quanto à sua obra ficcional, embasada no realismo socialista, esta continua sendo reeditada e traduzida. Mas o agitprop baiano se vê obrigado a mudar de rumos e publica, em 1958, Gabriela, Cravo e Canela.

Em 61, lança Os Velhos Marinheiros, considerado um dos melhores momentos de sua literatura. Neste mesmo ano, é eleito membro da Academia Brasileira de Letras, instituição que havia apedrejado e insultado em sua juventude. No discurso de posse, com a inocência de um moleque que relembra travessuras passadas, reitera sua oposição à Casa que o recebe:

"Chego à vossa ilustre companhia com a tranqüila satisfação de ter sido intransigente adversário desta instituição naquela fase da vida em que devemos ser necessária e obrigatoriamente contra o assentado e o definitivo. Ai daquele jovem, ai daquele moço aprendiz de escritor que no início de seu caminho, não venha, quixotesco e sincero, arremeter contra as paredes e a glória desta Casa. Quanto a mim, felizmente, muita pedra atirei contra vossas vidraças, muito adjetivo grosso gastei contra vossa indiferença, muitas vaias gritei contra vossa compostura, muito combate travei contra vossa força".

Em resposta aos que o condenam, diz o escritor: "Mas tudo na vida obedece a formalidades e se eu sou socialista não quer dizer que ignoro o mundo formal que me rodeia". De Moscou, recebe o apoio de Ilya Ehremburg: "Amamos Jorge Amado e temos confiança nele. Eu só o vi numa fotografia levemente mais gordo, em fardão de acadêmico. Olhei e sorri. Aos acadêmicos brasileiros dão um luxuoso fardão. Além disso usam espadas como seus colegas franceses. Não há nada de mal em que o homem simples de ontem apareça uma vez por ano na roupagem de imortal".

De amores com o imperialismo ianque

Com a transposição de seus romances para as novelas televisivas, o revolucionário aposentado torna-se uma espécie de roteirista da Rede Globo. Gaba-se até hoje de seu passado esquerdista. Mas foi o primeiro escritor brasileiro a felicitar pessoalmente Fernando Collor de Mello por sua vitória. Claro que não foi apoiá-lo durante o impeachment. Com a nova guinada, seus livros começam a ser publicados nos Estados Unidos.

Em depoimento autobiográfico, concedido em 1985 à tradutora francesa Alice Raillard, em sua mansão na Bahia, de inimigo incondicional do capitalismo, Amado vira sócio:

"Sim, esta casa... Esta casa, eu digo sempre que foi o imperialismo americano que me permitiu construí-la! Era um velho sonho meu ter uma casa na Bahia. (...) Construir uma casa na Bahia? Eu tinha vontade, mas não o dinheiro. Foi então que vendi os direitos para o cinema de Gabriela à Metro Goldwin Mayer".

Em uma entrevista concedida à Folha de São Paulo, em dezembro de 94, expõe ao repórter a mansão comprada graças aos dólares da Metro Goldwin Mayer:

"Esse é o quarto do casal. Passei a vida a xingar os americanos, mas tudo o que temos é graças ao dinheiro dos imperialistas ianques. Compramos essa casa em 63 com a venda dos direitos de Gabriela para a MGM, rodado 21 anos depois. Cobrei barato, só US$ 100 mil”.

A parceria com o inimigo capitalista se revela lucrativa e permite a Amado a realização de outro sonho, morar na Paris que tanto insultou quando marxista:

“Em 86, os americanos me pagaram um adiantamento alto pelos direitos de tradução de Tocaia Grande: US$ 250 mil. Juntamos com os guardados de Zélia e compramos nossa mansarda no Marais, em Paris”.

Este senhor, que empunhou com entusiasmo as piores e mais assassinas bandeiras do século, que no final da vida confessa sem nenhum pudor seu venalismo, é quem hoje representa o Brasil no Salão do Livro em Paris. Em verdade, tal fato não é espantar: Amado vende à Europa uma imagem que a Europa aceita como sendo a do Brasil.

Ainda segundo Wilson Martins:

“A verdade é que a nossa literatura é sempre encarada como algo de exótico, de tropical. É por isso que Jorge Amado é extremamente popular nos outros países, ele oferece esse estereótipo da violência, da conquista da terra, da luta de classes e da opressão racial. Essa idéia exótica, uma espécie de ilha dos mares do sul, todos de tanga pelas ruas, armados de arco e flecha, e caçando onças na Avenida Rio Branco. Quando aparece um brasileiro branco e com grande cultura internacional, ele causa um espanto extraordinário. Nós alimentamos esse preconceito com todas as forças. Fazemos questão de mostrar que somos tropicalistas, que isto aqui é um país tropical, que somos mestiços, que branco aqui não tem vez. Quem defende tudo isso são esses grupos dos baianos e dos novos baianos, dos trios elétricos. É até um preconceito contra a cultura, no sentido ecumênico da palavra”.

Interrogado recentemente sobre como gostaria de ser lembrado em uma enciclopédia daqui a 50 anos, a grande cortesã responde com a candura dos inocentes: "Um baiano romântico e sensual. Eu me pareço com meus personagens - às vezes também com as mulheres".

Talvez seja um de seus personagens femininos o que melhor representa a ambivalência do “baiano romântico e sensual”: Dona Flor, a que administrava tranqüilamente dois maridos. Ao homenagear Amado, em verdade Paris está condecorando um escritor venal, que prestou os piores desserviços ao Brasil ao lutar para transformá-lo em mais uma republiqueta soviética, em nome de uma rápida ascensão literária e fortuna pessoal.

domingo, maio 23, 2010
 
LIVRO NÃO SE LIBERTA


A idéia nasceu de um projeto americano, o Book Crossing – lemos no Estadão de hoje –. Você deixa um livro em qualquer lugar público: um banco de praça, um café, um cinema. Caso encontre um exemplar, pega, lê e depois passa adiante. E, assim, de mão em mão, o livro vai circulando. O Book Crossing ganhou fôlego em mais de cem países, até no Brasil.

O projeto não tem sentido. Livro bom não largamos na rua. Livro bom fica em nossa biblioteca. Mesmo que, desprendidos, comprássemos um Dostoievski ou Cervantes para entregá-lo aos pobres, quem garante que quem o encontra vai lê-lo? Por outro lado, digamos que você tenha, por alguma razão, livros horrorosos em sua casa e deles quer livrar-se. Ora, você não presta nenhum serviço a alguém fornecendo-lhe um livro ruim.

Idéia de jerico. Livro não se lê ao acaso. É algo que procuramos. Uma livraria pode nos oferecer milhares de livros e nenhum deles nos interessa. Se você oferece um livro a quem não lê, de nada adianta oferecê-lo. Quem não lê pode estar na biblioteca mais rica do mundo. Só vai se sentir entediado. Livro é para quem lê. Para quem não lê, de nada serve.

Subservientes a toda idéia besta que vem de fora, um grupo de cariocas decidiu ampliar a corrente e criou o Livro de Rua. O movimento não só deixa livros em lugares públicos, como também instala as "bibliotecas da liberdade" em lugares carentes. "O Book Crossing é uma ótima idéia, mas os livros acabam só circulando em áreas mais nobres, onde as pessoas têm acesso a livrarias e bibliotecas. Acaba sendo um grande clube do livro", diz Pedro Gerolimich, de 28 anos, um dos idealizadores do Livro de Rua. "Queremos democratizar o acesso à leitura".

Bibliotecas da liberdade é nome que soa bem. Mas mesmo nas “áreas mais nobres, onde as pessoas têm acesso a livrarias e bibliotecas”, há muita gente que não lê. Neste nosso mundo audiovisual, leitor é minoria. Ora, quem chegou à idade adulta sem ler é pessoa perdida para a leitura. Sem falar que ler não é critério de cultura. O mundo está cheio de gente lendo Harry Potter, Paulo Coelho, Stephen King, Zíbia Gasparetto e – cá entre nós – esta gente ganharia mais se não soubesse ler. O analfabeto não deixa de ter uma grande vantagem. Está fora do alcance da má literatura.

Nas "bibliotecas da liberdade" não há burocracia – diz o jornal –. Qualquer pessoa pode levar quantos livros quiser. Não precisa mostrar documento de identidade nem fazer cadastro. Ninguém é obrigado a devolver os exemplares. O único compromisso é passar o livro adiante ou deixar em lugar público. O lema do projeto é a "libertação" dos livros.

Muito biscateiro vai adorar o projeto. O quilo de papel sempre rende alguns trocados. A tal de libertação dos livros é delírio de quem não lê. De livro bom não nos libertamos. Eles são nossos eternos prisioneiros. Há livros que condenei à prisão perpétua, jamais sairão de minhas estantes. Para amigos muito próximos, até pode ser. Mas cada vez que um deles sai aqui de casa, me sinto como uma mãe cujo filho foi escalado para combater no Iraque.

Tenho também os livros horrorosos. São aqueles que fui obrigado a ler quando lecionei na universidade. Já pensei em doá-los. Mas dar livro ruim é colaborar com o avanço da estupidez. Não quero ser responsável por isso. Qualquer dia ainda os repasso a catadores de papel. Tenho certeza de que não irão lê-los.

"O livro serve para que as pessoas possam ler e não para ficar em uma estante. Ele tem de circular. Já libertamos 5 mil livros em quase dois anos", diz Gerolimich. A maioria foi parar nas cinco bibliotecas montadas pelo grupo. Três na Baixada Fluminense, um bolsão de miséria no entorno do Rio, duas em Belo Horizonte. E já há planos para chegar também a São Paulo e Brasília. As bibliotecas são instaladas em lugares como lan houses e postos de saúde. "A gente leva o livro onde as pessoas estão por outro motivo. Mas, quando dão de cara com os livros, elas acabam pegando. Queremos que elas adquiram o hábito da leitura".

Não é assim. Isto é visão de quem não lê. Livros servem para formar bibliotecas. São a nossa memória. Em minhas estantes, conservo livros da época universitária. Todos devidamente sublinhados, o que inclusive me serve para rever a mim mesmo nos dias de jovem. Sou leitor que não gosta nem de livro emprestado. Se gosto do livro, vou querer sublinhar. Não posso fazer isso em livro que não é meu. Da mesma forma, quando alguém me pede livro que me dói emprestar, tomo uma providência elementar: compro o livro e o dou de presente.

Gerolimich fala em bibliotecas montadas pelo grupo. Ora, bibliotecas custam dinheiro. Metro quadrado não se encontra de graça. Duvido que os libertadores as custeiem de seu bolso. O movimento dos tais de libertadores de livros me soa a ONGs que vivem de dinheiro do contribuinte.

sábado, maio 22, 2010
 
COITADINHOS DOS ATEUS!


O ateísmo é a condição natural do ser humano, costumo afirmar. Todos nascemos ateus. Ninguém nasce com a idéia de deus ou deuses na cabeça. Esta idéia é decorrente da educação. Surge na família, na escola, na igreja, na sociedade. Crianças, não temos mecanismos de defesa contra o que nos é enfiado a machado na cabeça. Nos tornamos então crentes. Passamos a temer a morte e deste temor surge a crença na imortalidade, em castigos ou recompensas após o fim do prazo de garantia. Sem a morte, não existiriam religiões.

Uma vez adulto, você tem duas opções. Ou continua ingerindo placebos, ou deles se liberta. A maior parte das gentes prefere os placebos e inclusive vive bem com eles. Outros, mais audazes – ou lúcidos, se quisermos – consideram uma fuga viver dependendo de ilusões post-mortem. Estes somos nós, os ateus. É decisão adulta de quem não suporta viver embalado por mentiras. Nada a ver com aquele ateísmo de infância. Na infância, do mundo nada sabemos.

Ser crente é fácil. Basta crer e estamos conversados. Ser ateu é mais complexo. Além de negar a crença em um ser superior, precisamos nos libertar das decorrências dessa crença. Para isso, precisamos conhecer religião melhor do que o crente. Ele não está preocupado em libertar-se de nada. Nós estamos. Em nada espanta que um ateu conheça melhor a Bíblia que um católico. O católico vai atrás do que o padre disse. Nós vamos aos textos. O fato é que hoje nem os padres conhecem a Bíblia. Têm apenas vagas noções do catecismo aprendido nos seminários. Na verdade, nem os papas conhecem muito os textos sacros. Bento XVI, sem ir mais longe, quando fala de religião dá a impressão de não ter lido sequer os Evangelhos.

Ao contrário do que pretendem certos meninos que fazem do ateísmo uma religião, em minha seis décadas de vida jamais me senti discriminado por ser ateu. Há alguns anos, fui violentamente atacado por outros meninos que, se pretendendo católicos, do catolicismo não conheciam sequer os dogmas. Eu, ateu, tive de introduzi-los pacientemente nos meandros do catolicismo. Não por acaso, eram todos discípulos do astrólogo aquele que se pretende cristão, como se cristianismo fosse compatível com astrologia. Diz Isaías, entre outros: “"Já estás cansada com a multidão das tuas consultas! Levantem-se pois, agora os que dissecam os céus e fitam os astros, os que em cada lua nova te predizem o que há de vir sobre ti. Eis que serão como restolho, o fogo os queimará; não poderão livrar-se do poder das chamas; nenhuma brasa restará para se aquentarem, nem fogo para que diante dele se assentem".

Mas não era disto que pretendia falar. Ser atacado por defender determinadas convicções faz parte da vida. Quem quer que pense terá de confrontar-se com quem pensa o contrário. Desde meus primeiros artigos, lá pelos quinze anos, em um modesto jornalzinho do interior, fui atacado por meus adversários. Inclusive por um de meus professores. Quando fazia jornalismo em Porto Alegre, as cartas me xingando – e também as me defendendo – eram tantas, que a coluna dos leitores tornou-se mais interessante que a minha.

Ao longo de meu trabalho, fui chamado, mais ou menos pela ordem, de:

- comunista
- anarquista
- devasso
- imoral
- pachá dos pampas
- porco chauvinista (insulto dos anos Simone de Beauvoir)
- machão
- bicha
- agente do Dops
- agente do SNI (promoção nacional)
- agente da CIA (promoção internacional)
- porco sujo imperialista
- reacionário (disto até hoje me chamam)
- sionista (quando condenei o terrorismo de Arafat)
- anti-semita (quando comentei as prescrições absurdas de Maimônides)
- Robin Hood às avessas: rouba de todos e não dá nada a ninguém
- Savonarola às avessas: nos condena por não pecarmos

E certamente mais algumas gentilezas, que agora não recordo. Nos dias de universidade, enquanto eu depunha no DOPS tentando provar que não era comunista, na universidade era pichado como agente do DOPS. A mais curiosa acusação surgiu há uns três ou quatro anos. Uma leitora, judia ortodoxa, me apodou de católico fanático. Essa conseguiu surpreender-me. Jamais imaginaria que era católico e muito menos fanático.

Perdi amigos e namoradas por tais acusações. Também faz parte da vida. Quem não tem inimigos, não tem amigos. Jamais lamentei tais perdas. Considerei-as normais e segui tranqüilamente meus rumos. Insultos e agressões são rotina na vida de quem escreve. Há dois ou três anos, consegui reunir uma curiosa comunidade de desafetos, a dos ornitólogos. Em função de um singelo artigo que escrevi – “A periculosidade social dos ornitólogos” – fiquei recebendo bicadas dos defensores de pássaros por mais de ano. Paciência.

Recebi, nos últimos dias, uma revoada de mails indignados de um setor que me espanta até mais que a leitora judia. Dos ateus. Todos me xingando, porque afirmei não ter visto discriminação contra ateus no Brasil. Eu, o ateu, o inimigo figadal dos religiosos, tornei-me de repente alvo dos ateus. Perdoem-me os leitores minha falta de modéstia: isso exige algum talento.

Os argumentos são basicamente dois. O primeiro, de pessoas que perderam empregos por se professarem ateus. Confesso que jamais vi isso em minha vida, e meus interlocutores não me apresentam casos concretos. Se você vai a um hospital, é sempre interrogado sobre sua religião. É cuidado que o hospital tem, inclusive para tratar de sua alimentação. Judeu não come porco nem moluscos. Muçulmano come moluscos mas não porco. E por aí vai. Mas jamais tive notícia de empresa que perguntasse pela religião de um candidato a emprego. Se perguntar, tanto faz como tanto fez. Você não responde e pronto. A uma empresa deve interessar a eficiência e não a fé do funcionário. Se prevalece a fé, tome distância dessa empresa.

Verdade que, em décadas passadas – e talvez até hoje – havia universidades e jornais onde você não entrava se não fosse marxista. Mas aqui a religião era outra e implicava você ser ateu. Era época em que as águas eram divididas. Hoje, o mundo está cheio de católicos comunistas.

O segundo argumento é o mais divertido. Recebi não poucos mails de meninos que sentiram discriminados ao perderem uma namorada por se revelarem ateus. Coitadinhos! Como se perder uma namorada fosse critério de discriminação. Quando investimos em uma mulher, estamos fazendo uma aposta. Podemos perder ou ganhar. Ora a moça nos considera feios, ou incompetentes, ou chatos, ou baixinhos, ou altos demais. Pode até não gostar de nós porque somos petistas. Ou porque não somos petistas. Porque somos ateus. Ou porque somos religiosos.

Só o que faltava uma mulher ter a obrigação de gostar do primeiro candidato que se apresenta. Perdi não poucas mulheres em minha vida e nunca me senti discriminado. Não gostou de mim? Ok, é direito dela. Acontece que o mundo está cheio de mulheres. Uma mais amável que a outra. Se uma não nos quer, outra nos adora. E é claro que esta outra está deixando de lado – ou discriminando, como diriam os aprendizes de ateus – dezenas de outros homens.

Pode até acontecer que a musa eleita o considere feio e desinteressante. Para não magoá-lo, a moça alega que você é ateu. Ora, está sendo apenas gentil.

sexta-feira, maio 21, 2010
 
SEM CRACK, ONGS
PERDEM EMPREGOS



A poucos minutos de táxi daqui de casa, na região da estação da Luz, há um vasto território onde o consumo de toda e qualquer droga é livre. Como a droga mais consumida é o crack, convencionou-se chamar aquele espaço de Cracolândia. Mas lá você encontra o que quiser, desde a canabis até a cocaína.

Certo dia, passei de táxi por uma extremidade da rua Guaianases, a que mais concentra drogados. Dantesco e assustador. Centenas de zumbis, crianças e adultos, homens e mulheres, enrolados em cobertores e capuzes, cachimbando crack, coalhavam a rua. Nenhum taxista ousa entrar no pedaço. Tudo isto no centro da mais imponente capital do continente.

Leio hoje no Estadão que em cinco anos, o número de usuários de crack quase dobrou no Brasil: de 380 mil para 600 mil. O problema agora mobiliza o governo federal, que planeja dobrar o número de vagas para internação de usuários neste ano - de 2,5 mil para 5 mil - e lançou ontem um programa de R$ 410 milhões. Mas se São Paulo, base das ações governamentais anteriores servir de exemplo, o desafio está longe de ser vencido.

A Prefeitura quer revitalizar a Cracolândia. Para isso, está tocando um projeto que chamou de Nova Luz. Uma vasta área está sendo desapropriada e será demolida para dar lugar a um centro administrativo. O que me parece uma ótica de cegos. Centros administrativos se tornam desertos depois das seis da tarde. Mesmo que os marginais sejam afastados durante o dia, todos voltarão à noite a seu habitat. Todas as semanas, os jornais nos trazem fotos de pobres coitados fumando crack. Alguns permanecem dias deitados, já nem conseguem parar em pé. Só a polícia, que tem um distrito policial justo na Cracolândia, parece não ver nada.

A dita revitalização da Cracolândia está gerando um efeito funesto. Os nóias estão se espalhando pelas áreas adjacentes, inclusive pelo centro histórico da cidade. Hoje, na praça da República, e mesmo junto ao terminal de Cumbica, você vê pobres diabos jogados na sarjeta, sempre em grupos, chupando tranqüilamente seus cachimbos, em plena luz do dia.

Há dois anos, o prefeito Gilberto Kassab chegou a anunciar, na Folha de São Paulo, que a Cracolândia havia sido definitivamente banida da cidade: “Não existe mais a velha cracolândia deteriorada, a serviço da droga, a serviço do crime. Cada vez mais essa é uma página virada na história de São Paulo”. Santa ilusão! Hoje os nóias estão contaminando o centro todo. Se no começo eles circulavam entre Campos Elísios e República, agora estão também em Santa Cecília e Higienópolis. A polícia vê mas não faz nada. Considera-se que o problema é social, não policial. Às vezes, para mostrar serviço, esvaziam as ruas do crack por algumas horas. Apenas por algumas horas. Ninguém é preso, nem usuários nem traficantes. O governo lança um programa de R$ 410 milhões para internar usuários de crack. Em cadeia, ni pensar.

A única providência até agora tomada por ONGs que querem resolver o problema foi fornecer um cachimbo de madeira aos usuário, com o objetivo de incentivar o não compartilhamento do instrumento. Isso porque os coitadinhos dos viciados constroem modelos artesanais de metal, que queimam a boca, causando feridas, e podem transmitir doenças quando compartilhado com outras pessoas. Ou seja: quando ONGs fornecem impunemente instrumentos para o consumo da droga, não vejo como o governo pretenda extirpá-lo.

Há alguns meses, a polícia deteve centenas de usuários de crack e os levou para uma base de uma Ação Integrada Centro Legal. Assustados com a chegada dos viciados, os agentes municipais que trabalham na base abandonaram o local e se refugiaram sob a cobertura de um ponto de ônibus. “É um risco para a gente”, explicou dos agentes de saúde. São estes mesmos agentes da saúde, mais as assistentes sociais e os ditos defensores dos tais de Direitos Humanos, os primeiros a protestar quando a polícia recolhe os drogados. “Estão minando a confiança que conquistamos junto a eles”, alegam. Em entrevista ao O Estado de São Paulo, o secretário das Subprefeituras da Prefeitura de São Paulo – pomposo cargo - Andrea Matarazzo afirmou: “Tinha uma ONG que levava um estojinho com seringa, cachimbo, água destilada e manteiga de cacau e distribuía para as crianças. Isso é um absurdo”.

Se é. Os dirigentes de tais ONGs deviam estar na cadeia, junto com os usuários. São pessoas que estimulam até mesmo crianças ao consumo do crack. No fundo, defendem seus empregos. Sem crack, nenhum salário. Urge pois que o tráfico e o consumo existam. Há uma hipocrisia incomensurável nas políticas governamentais de combate às drogas. Proíbe-se seu consumo, tanto que traficantes são punidos. Mas o consumidor não é punido. Há ativistas supostamente modernosos pretendendo descriminalizar o consumo de drogas no Brasil. Demagogia, bandeiras vãs, cantigas para ninar pardais. Há muito a droga está descriminalizada no Brasil.

Você, leitor, teve notícia nas últimas décadas de alguém que tenha sido preso pelo uso de maconha, cocaína, ecstasy ou crack? Eu não tive. Todos sabemos – e é de supor-se que a polícia não ignore – que cada show de rock ou cada rave é um mercado divino para o consumo de drogas. Os pais dos adolescentes que freqüentam tais festas estúpidas também sabem disso. Todo mundo faz que não sabe.

Sociólogo defendendo o uso do crack é o que não falta. Há quem condene a repressão à droga comparando-a ao macartismo. Disse um destes senhores:

“A proibição ocupa hoje o lugar que ontem ocupava a guerra ao comunismo. Há um paralelismo possível entre a guerra às drogas e a guerra ao terror. A droga como mal universal, com o inimigo a ser combatido, como o demônio. Esse discurso que antes justificou o macartismo e hoje justifica a intervenção em nome do combate ao terrorismo é muito útil para a manutenção do discurso que legitima a desigualdade e a subalternização da periferia pelo centro. A vida privada é protegida contra qualquer interferência estatal, salvo quando há risco a terceiros. Quem consome drogas ilegais só causa dano à própria saúde, logo não há alteridade, o que deslegitima qualquer intervenção do direito penal. O homem se relaciona com substâncias psicoativas há milênios e a violência só passou a fazer parte dessa equação após a adoção do modelo bélico”.

Ok! Deixemos este lixo humano perambulando quais zumbis pelas ruas das cidades. Ao que tudo indica, é o que as autoridades também querem, já que nada fazem para reprimir este tráfico. Mas, por favor, que perambulem longe de quem quer viver em paz.

Se droga é permissível, que os nóias pelo menos voltem pra Cracolândia, onde estarão entre os seus.

quinta-feira, maio 20, 2010
 
MOSCOU DESBUROCRATIZA TURISMO


Sempre tive um certo xodó pela Rússia. Começou com Dostoievski, continuou com Kuprin. Tolstoi e Gorki nunca me atraíram muito. Em suma, a primeira bolsa que solicitei no Exterior foi para a Patrice Lumumba. Não havia nada de ideologia nisso. Eu estudava russo na época e a Patrice oferecia bolsas. Eu queria era sair do Brasil. Não importava para onde. O que interessava é que esse onde fosse longe. De preferência que nele se falasse uma língua para mim estranha.

Meu apreço pela Rússia teve poderoso reforço com José Monserrat Filho, hoje especialista em Direito Espacial pela Lumumba. Eu teria uns 17 anos, quando o encontrei numa madrugada no café do Matheus, Praça da Alfândega, Porto Alegre. Ele voltava de Moscou. Eu não conseguia acreditar estar falando com pessoa que falava russo, que havia vivido naquelas plagas. Perguntei-lhe sobre como era residir na universidade. Disse-me que os quartos tinham três beliches para seis alunos. Naquela mesma noite, meu apreço pela Rússia diminuiu em muito.

Felizmente, não ganhei a bolsa. Em Estocolmo, encontrei tristes privilegiados. Terminados seus cursos em Moscou, tinham de sair do país. Naqueles dias, para o Brasil não podiam voltar. Considerava-se que quem estudava em Moscou era ipso facto comunista. O que nem sempre era o caso. Com graduação superior, acabavam tendo de permanecer num limbo europeu onde lavavam pratos. Eu os chamava internationela diskare. Em sueco, lavadores internacionais de pratos. Verdade que o Monserrat escapou desta condição e acabou trabalhando no Jornal do Brasil, como redator de assuntos espaciais.

Mas curiosidade é algo que não morre. Em Paris, tive várias chances de ir a Moscou e a preços muito em conta. O PCF financiava parte da viagem. Mas não me agradava a idéia de ter de pagar hotel com antecedência e menos ainda de ter de viajar com datas fixas. Não poderia demorar-me em uma cidade se gostasse dela. Tinha dia preciso para ir e dia preciso para voltar. Sem falar que a Europa estava cheia de cidades fascinantes que eu ainda não conhecia.

Acabei indo à Rússia só em 2.000. Ou melhor, a São Petersburgo. Viajava pela Escandinávia e a Finlândia constava de meu roteiro. Ora, São Petersburgo está a sete horas de trem de Helsinki. Considerei que era uma ocasião mais ou menos única de conhecer o país, ou pelo menos parte dele. Aí começaram meus dissabores.

Para início de conversa, visto só em Brasília. Até aí, nada demais. O problema era que, para ter o visto, eu precisava ter hotel reservado e antecipadamente pago. Vá lá! Na Tchayka, agência que tratou dos trâmites, me aconselharam: não tenta hotel barato, vais te arrepender. No mínimo, hotel de preço médio. Tudo bem. Topei.

São Petersburgo não deixa de ter charme. Fundada sobre um pantanal por Pedro, o Grande, em 1703, pretendia ser uma porta para o Ocidente. Foi capital do Império Russo por duzentos anos e deixou de sê-lo em 1918, após a Revolução Russa. Cortada por canais, é também conhecida como a Veneza do Norte. Sua arquitetura, gloriosa em muitos momentos, está hoje em cacos. Basta percorrer a cidade para ver que um projeto, inicialmente grandioso, foi interrompido por algo. Esse algo, sabemos o que foi.

Eu saíra de Helsinki, de uma estação ferroviária belíssima, que hoje é monumento histórico. Fui cair na Estação Finlândia, lá onde Lênin chegou para desfechar a tomada do Palácio de Inverno, onde hoje está o Ermitage. Cheguei numa daquelas noites brancas cantadas por Dostoievski. A noite era linda, irreal. Se bem que eu já as conhecia de outras andanças. A estação, tétrica. Deserta e hostil. Minha mulher queria voltar. Mas não havia como voltar.

Chegamos ao hotel. Para começar, nos retiveram o passaporte. Tinha de ser registrado na polícia local. Mas que tem a ver a polícia com minha visita à cidade? – perguntei. Nada feito. Fiquei sem passaporte por 48 horas. No quarto, não havia lâmpada que acendesse. Muito menos papel higiênico. E isso que paguei relativamente caro, 130 dólares. Na Suécia, país que de barato não tem nada, eu me hospedara em bons hotéis por 70 dólares.

Antes de viajar, eu havia marcado um restaurante na Nevsky Prospekt, o Kafe Literaturnoje, a poucos passos do Ermitage. No salão superior, belíssimo, onde Puschkin teria feito, em 1837, sua última ceia antes de morrer, havia uma excursão de japoneses, um pianista e uma cantora de voz esganiçada. Os japoneses, em ordem unida, ergueram um último brinde e deram no pé. Ficamos, eu e minha mulher, sozinhos, naquele restaurante magnífico, sem ver sombra de russos por perto. Exceto o garçom, o pianista e a taquara rachada. Pagamos em torno de trinta dólares por uma refeição para dois, mais vinho. Nada demais para quem viaja por terras estrangeiras. Mas aquele café centenário, que nos tempos dos tzares abrigara a elite da literatura russa, depois de setenta anos de comunismo, tornara-se proibitivo para russos.

Visitei depois o Nicolai, suntuoso restaurante instalado na mansão de um ministro do Tzar, de mesmo nome. De novo um grupo de turistas erguendo brindes. Findos estes, de novo eu e minha mulher olhando para os garçons, lustres e tapeçarias. Percorri outros, sempre baratos, mesmo se comparados a preços de São Paulo. Sempre vazios ou com alguns turistas, jamais com russos. O salário mensal de um russo mal pagava uma refeição em um restaurante. E se pagava, acabava o salário do mês.

Outra instituição das mais antipáticas são os preços diferenciados para turistas. Um russo para 15 rublos para entrar numa catedral ou navegar pelo Neva. O estrangeiro paga 250. Entendo que o russo não possa pagar 250 rublos. Mas não precisava descontar em nós, estrangeiros.

Sim, é bom visitar São Petersburgo. Mas não recomendo a quem ainda não tenha visto o melhor da Europa. Em todo caso, tudo isto é para saudar a recente decisão da Federação Russa. A partir do 07 de junho próximo, cai a necessidade de visto para viagens de curta duração. É de supor-se que também caia o pagamento adiantado de hotéis. Melhor ainda seria se caísse a obrigação de deixar as cidades em dias pré-determinados.

Desde os tempos de Lênin, a Rússia alimentou uma psicologia de fortaleza assediada. Todo turista era visto como um espião em potencial. Nos dias de Stalin, um anjo da guarda era designado para acompanhar cada visitante. Não conheci esses dias. Mas mal cheguei na Rússia, fui registrado na polícia. Isso uma década depois do desmoronamento da União Soviética. Foi necessária mais uma década ainda para que Moscou desburocratizasse o turismo.

Longa é a jornada dos comunistas rumo ao entendimento.

quarta-feira, maio 19, 2010
 
VELHO SAFADO
NEGA PASSADO



Leio na Agência Estado que Fernando Gabeira, o candidato do PV ao governo do Rio de Janeiro, reagiu com indignação às declarações feitas neste domingo passado pela ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy sobre a sua atuação no seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969. "Esse sim sequestrou", disse a petista, afirmando que caberia à Gabeira a incumbência de matar o embaixador.

A vestal do PV reagiu indignada: "Ela está equivocada, está inventando coisas, está mentindo. Não havia escala para isso (para um assassinato). Lamento que ela use esse tipo de coisa na campanha eleitoral. Até porque tem muita gente dentro do PT que sabe bem dessa história", afirmou.

Ao acusar Gabeira, Dona Marta respingou Franklin Martins, um dos seqüestradores do embaixador e hoje ministro da Comunicação Social no governo do PT – et pour cause. De Madri, o velho terrorista apressou-se a autorizar o outro velho terrorista: "O Gabeira não foi escalado. Não tinha ninguém escalado para matar. A participação do Gabeira era ser basicamente o responsável pela casa."

Ora, se você seqüestra alguém isto significa que não vai libertá-lo se não obtiver satisfação às suas exigências. E se o governo não atendesse as reivindicações dos terroristas? Estes iriam devolver Elbrick intacto à embaixada americana? Se assim fosse, para que seqüestrar então? Seqüestro implica sempre uma ameaça de morte. Armas servem para matar. Que mais não seja, ser responsável pela casa em que se guarda um seqüestrado é ser cúmplice do seqüestro.

Gabeira disse que não pretende processar a petista pelas declarações. "Vou ignorá-la. Como ela merece, de uns anos para cá". Nem teria como processá-la. Por acaso Dona Marta disse alguma inverdade? Há um ar de indignação nos jornais, a afirmação de que a ex-prefeita “apelou”. Apelou como? Quem não sabe que Gabeira teve um passado terrorista? Há até quem fale em pós-dedo-durismo. São lindos os neologismos. Têm a virtude de “enjoliver” uma realidade suja.

Gabeira, se alguém não lembra, é também o deputado que não hesitou em beneficiar-se da farra das passagens aéreas, para visitar sua filha no Exterior. Que deitou verbo contra as bolsas-ditadura de dois vigaristas do Pasquim, Ziraldo e Jaguar, ao mesmo tempo em que reivindicava uma bolsa-ditadura junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, pelos dias em que passou puxando fumo em Estocolmo.

Gabeira é a vestal que, como se nada tivesse a ver com as falcatruas do Senado, escreveu em sua coluna na Folha de São Paulo, em julho do ano passado: “Não se trata só de um constrangimento ao ver o Senado definido como casa de horrores. Mas o de conviver um grupo de homens idosos, movendo-se com uma desenvoltura criminosa, unindo nos lábios do povo as palavras velho e safado, como se fossem gêmeas que nascem ligadas. Tempo de tormentas”.

De sua militância comunista, Gabeira não escapou ao velho vício stalinista, o de devolver qualquer acusação a quem o acusa. Minha mãe, não. É a tua. Velho e safado, quer hoje negar seu passado como terrorista.