¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, maio 31, 2011
 
PORQUE FIZ OS
CURSOS QUE FIZ



Leitor quer saber se fiz curso de Filosofia e doutorado em Letras apenas para defender a tese de que os cursos de Filosofia e Letras são inúteis. Nada disso, meu caro. A conclusão é a posteriori. Antes de ter feito estes cursos, não tinha noção alguma de suas inutilidades.

Ocorre que, quando jovens, ao escolhermos uma universidade, não temos noção alguma do que vamos encontrar. Até pode ser que alguém nascido em família de acadêmicos possa ter uma idéia do que o espera. Não era meu caso. Eu era filho de camponeses e jamais tive quem me orientasse.

Quando você escolhe Medicina, já se imagina uma espécie de Dr. Kildare, aliviando o sofrimento dos enfermos. Entra na profissão e cai na dura realidade do pagamento ínfimo dos convênios. Tem de desdobrar-se em dois ou três empregos para levar o pão para a casa. Pode até ter sucesso na carreira e muitos chegam lá. Mas isto não é para todos. Escolhe Direito e se imagina um bem sucedido defensor dos fracos e oprimidos, usando sua tribuna para fazer justiça aos que dela necessitam. O Direito Penal sempre atrai os jovens idealistas. Quando você vai ver, se transformou em um burocrata encerrado em um escritório, analisando questões do Direito Tributário. Isso quando você não acaba dirigindo um táxi.

Em minha adolescência, li um livro de Will Durant, onde ele listava um mínimo de autores que um homem culto deveria conhecer. Começava com Platão e Aristóteles, passava por Agostinho e Tomás de Aquino, incluía Descartes, Rousseau, Montesquieu e por aí vai. Fui atrás desses autores todos. Eu vivia então em Dom Pedrito, onde havia apenas uma pequena livraria, que só tinha livros didáticos. Ainda pivete (teria uns quinze anos) viajei a Santa Maria, cidade universitária, onde havia uma sucursal da livraria Globo. Pedi para o balconista ir baixando os livros de minha listinha. Tive sorte. A editora Globo, nos anos 50 e 60, montou uma excelente coleção, a "Biblioteca dos Séculos", que continha boa parte dos livros fundamentais para um homem que se pretenda culto.

O que eu não sabia é que a Suma Teológica tinha dez volumes. Ainda bem que naquela época ainda não fora traduzida. Hoje tenho os dez volumes, em português e latim, quando quero rir um pouco volto à leitura do Boi Mudo. Não li todos os livros sugeridos por Durant, mas li muitos deles. Se hoje considero que nem todos eram fundamentais, foi bom lê-los para saber que não eram.

Daí meu apreço pela filosofia. Achei que se enveredasse por estes rumos, entenderia o homem e o mundo, em suma, a vida. Fiz vestibular também para direito. Primum vivere, deinde philosophare. Como considerava que a filosofia não me daria de comer, pensei em garantir-me com a advocacia.

Foi uma bela aventura intelectual começar com os gregos, socráticos e pré-socráticos. Os Diálogos de Platão me fascinaram, particularmente o Fédon e o Crátilo. Até hoje não esqueço – e seguidamente cito – as considerações do grego sobre as palavras. Crátilo considera que os nomes das coisas estão naturalmente relacionados com as coisas. As coisas nascem — ou são criadas, descobertas ou inventadas — e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. Já Hermógenes pensa que as palavras não são senão convenções estabelecidas pelos homens com o propósito de entender-se. As coisas aparecem ou se apresentam ao homem e este, defrontando-se com a coisa recém nascida, a batiza. O significado das coisas não é o manancial do bosque, mas o poço escavado pela mão do homem, diz Camilo José Cela, comentando Platão. O animal doméstico e familiar do qual há muitas espécies e todas ladram, poderia ter-se chamado lombriga, e o che muove il sole e l'altre stelle, de Dante, poderia chamar-se reumatismo, se assim os homens o quisessem.

No curso, fiz quatro anos de História da Filosofia. À medida que a filosofia avançava, tornava-se obscura e confusa, a ponto de confundir-se com a poesia. Foi quando perdi meu entusiasmo pela coisa. Abominei os filósofos contemporâneos. Terminei o curso por teimosia.

Quanto ao Direito, lá pelo segundo ano já tive consciência de que não conseguiria advogar. Teria de usar terno e gravata e usar linguagem de arcano. Teria também de atualizar-me o tempo todo, dada a fúria legislativa do Brasil. Sem falar que um advogado não pode afastar-me muito de seu escritório. E eu queria viajar. Optei então pelo jornalismo. Terminei o curso também por teimosia. Quando criticasse o Direito, não queria ouvir objeções tipo “ele critica o Direito porque não conseguiu concluir o curso”.

Quanto ao doutorado em Letras, como contei em crônica recente, nada tinha a ver com doutorado. Era uma chance de curtir Paris e eu queria curtir Paris. Se o preço a pagar era um ensaio de algumas centenas de páginas, eu o pagava com prazer.

Ou seja, não fiz Filosofia ou Letras só para concluir que estes cursos eram inúteis. Minha vida aventurosa me levou a estas opções. E por que são inúteis? Porque tanto Filosofia como Letras você pode estudar no conforto de sua casa, sem ter de ouvir aulas monocórdias nem ler livros inúteis. Em um curso acadêmico, você será obrigado a ler disciplinas e obras que não interessam. Em Letras, por exemplo, terá de fazer cadeiras de Teoria Literária e Lingüística, puro lixo intelectual que só serve para dar emprego a professores de Teoria Literária e Lingüística. Se optar pelo autodidatismo, você pode se dar ao luxo de ler apenas o que lhe traz prazer.

Tenho um amigo, o Carlos Freire do Amaral, que hoje fala cerca de cem línguas. Deve ter estudado regularmente umas dez. As outras, ele as aprendeu por conta própria. No aprendizado de línguas, o mais difícil são as primeiras quinze línguas. Depois, como diria Heráclito, panta rei. Tudo flui.

Considero um absurdo, por exemplo, cursos universitários de espanhol para brasileiros. Quatro anos para aprender uma língua que se aprende em seis meses. Sem precisar professor algum. Pegue livros e jornais em espanhol, ouça música para adquirir a pronúncia e consulte uma gramática para pegar algumas regrinhas. Em quatro anos, pode-se aprender muito bem quatro ou cinco línguas. Jamais fiz curso de espanhol e devo ter traduzido uns quinze livros do espanhol.

Um outro leitor acha que estou sendo muito utilitarista, afinal nem só de pão vive o homem. Quanto à última premissa, de acordo. Que as pessoas estudem o que lhes dá mais prazer, seja sânscrito ou grego, seja metafísica ou matemática profunda. O que afirmo é que muitas áreas do conhecimento dispensam universidade.

Admito até que alguém postule uma bolsa no estrangeiro para estudar coisas inúteis. Sempre voltará com um acervo útil: o conhecimento eficaz de uma outra língua e de uma outra cultura. Foi o que fiz. Minha tese é de utilidade ínfima, apenas esclarece um pouco uma obra literária. O mais importante foi conhecer Paris, França e Europa. E este é o legado mais importante de uma bolsa.

segunda-feira, maio 30, 2011
 
PARA QUE SERVE A FILOSOFIA?


Prezada Cristina:

Falei em extinção dos cursos de Filosofia. Não em extinção da filosofia. Esta está extinta há muito tempo. Ou diluída de tal forma que se tornou irreconhecível. A palavrinha, desde suas origens, comporta muitos sentidos. Recorro a Ferrater Mora, que nos ensina que antes de se usar o substantivo filosofia, usou-se o verbo filosofar.

Aparece pela primeira vez em uma passagem de Heródoto, onde Creso, ao dirigir-se a Solón, disse ter tido notícias de seu amor ao saber e de suas muitas viagens a muitas terras com a finalidade de ver coisas. Emprego semelhante se encontra em Tucídides: amamos a beleza, mas sem exageros, e amamos a sabedoria, mas sem debilidade. Se atribui a Pitágoras ter-se chamado a si mesmo de filósofo.

“O problema se complica pelo fato de que, junto ao termo filósofo, se empregaram desde os pré-socráticos outros vocábulos: sábio, sofista, historiador, físico, fisiólogo. Uma primeira precisão surgiu quando filosofar foi entendido no sentido de estudar, isto é, estudar teoricamente a realidade. Sábios, sofistas, historiadores, físicos e fisiólogos foram então considerados filósofos. As diferenças entre eles obedeciam ao conteúdo das coisas estudadas: os historiadores estudavam fatos (e não só fatos históricos), os físicos e fisiólogos estudavam o elemento, ou os elementos últimos que se supunha comporem a natureza. Todos eram, no entanto, homens sapientes e portanto todos podiam ser considerados filósofos, como fizeram Platão e Aristóteles”.

Como vemos, o conceito era amplo e abrigava desde o amor ao conhecimento até mesmo o amor pelas viagens, que também constituem conhecimento. De lá para cá, os saberes foram se tornando autônomos e constituindo disciplinas distintas e independentes da filosofia. Lá pelas tantas, na Idade Média, a filosofia fundiu-se à teologia, e ai dos filósofos se assim não fizessem. Com a fragmentação das disciplinas, a filosofia foi sendo acossada rumo ao vago campo da metafísica e hoje, segundo alguns pensadores, o objeto da filosofia é buscar o objeto da filosofia. De busca do saber, a filosofia evoluiu para a masturbação acadêmica.

Sempre entendi como filósofo o homem que desenvolve um sistema filosófico. Que traz alguma resposta às questões que as épocas impõem. Se não trouxer resposta alguma, é mero solipsista. Filósofos, para mim, são Platão, Aristóteles, Hume, Bergson, Descartes, Kant, Hegel. (Nietzsche, eu o situo mais como poeta. Marx nunca foi filósofo, como pretendem os marxistas. Era jornalista e economista). Hoje, filósofo é qualquer professorzinho de filosofia. É possível que a moda tenha surgido na França. Em meus dias de Paris, meus professores, ao examinar meu currículo, exclamavam: “Ah, vous êtes philosophe”. Nada disso, professor, apenas estudei filosofia.

A propósito, que coisa boba o tal de cogito cartesiano. Colocar toda a realidade circundante em dúvida e concluir que só se existe porque se pensa? Ridículo. Fosse um brasileirinho a proferir tal bobagem, seria tido como delirante. Mas quando um francês arrota às margens do Sena, o arroto vira doutrina.

Estudei História da Filosofia por quatro anos. Nestes estudos, considerei que filosofia é isto: alguém diz que o homem e o universo são assim e vão para lá. Surge outro e diz que o homem e o universo são assado e vêm para cá. A filosofia busca abstrações. Quer definir o que seja o Homem, assim com H maiúsculo. Ora, esse homem não existe. É como buscar o terno ideal que sirva a todos os homens e acaba por não servir a nenhum. O que existe é este homenzinho de todos os dias – com h minúsculo mesmo – que vamos encontrar... na literatura.

O saber racional acaba por negar-se a si mesmo. As filosofias se chocam e se destroem umas às outras. Os filósofos acabam se dando cotoveladas nas enciclopédias, em busca de espaço. Só a literatura permanece. Platão, por fascinante que seja, envelheceu. Já a Ars Amatoria, de Ovídio, permanece eternamente jovem. A vida é mais simples do que imaginam os filósofos. O homem nasce e morre e neste interlúdio esperneia. Fim de papo. A filosofia até pode ter pretendido ensinar o homem a viver. Mas a história está repleta de homens que bem conduziram suas vidas, sem nada entender de filosofia.

À nous deux, Cristina. Não me parece que seja necessário curso universitário para estudar filosofia. A meu ver, basta pegar uma história da filosofia e ir em frente. O manualzinho precário do Manuel Garcia Morente já serve. Se quiser ir mais longe, você pode apelar ao dicionário de Ferrater Mora ou à História da Filosofia, de Abbagnano. O Will Durant não é muito bem visto na academia, mas é muito útil. Veja o que lhe interessa e busque os autores.

A filosofia estilhaçou-se em mil pedaços e hoje duvido que alguém saiba definir, com precisão, em que consiste a filosofia. Pelo que vejo, filósofo é qualquer acadêmico que fala de maneira obscura sobre o homem e o mundo. O Brasil está cheio deles, todo santo dia surge nos jornais alguém se intitulando filósofo. Houve até um senador que quis regulamentar a profissão, mas seu projeto não foi adiante. Nem poderia ir.

Cá entre nós, Cristina: para que servem seus estudos na University of London, no Institute of Philosophy, ou na UCLA? Você vai criar algum sistema filosófico novo? Não vai. Seus estudos vão levá-la a entender o homem e o mundo? Diria que não. O melhor caminho, no caso, são os estudos de história. Suas pesquisas trarão alguma contribuição ao país ou à humanidade? Tenho minhas dúvidas.

Não vou dizer que meus estudos de filosofia tenham sido completamente inúteis. Me ensinaram que a verdade é relativa. Que os homens são diferentes na geografia e que pensaram de forma distinta conforme as épocas que lhes foram dadas viver. E nada mais do que isso. Mas para chegar a estas conclusões, eu não precisava sentar o traseiro nos bancos universitários. Nem percorrer as chatices de Husserl, Heidegger ou Sartre.

Foi muito bom, sem dúvida alguma, conhecer Platão e Sócrates. Mas para isto basta apanhar alguns livros numa livraria ou biblioteca. Continuo considerando os cursos de Filosofia – como também os de Letras ou Jornalismo – completamente inúteis.

 
A MENSAGEM DE CRISTINA


Caro Janer,

De antemão, reconheço que a minha crítica não estará à altura da resposta astuta que me espera, porque realmente a sua criatividade é admirável. Porém, como me vejo ligeiramente afetada – me encaixo em 1 ou 2 categorias de inúteis elencadas no artigo - me vejo obrigada a replicar sobre a parte que me toca.

Sou jovem (tenho 31 anos) e doutora em filosofia. Sou mulher também. E além disso, não só onerei o contribuinte brasileiro, como o europeu e o norte americano (e sigo onerando nos dois últimos casos). Ou seja, é possível que seja uma inútil muito bem sucedida.

A minha única crítica ao artigo (já que a réplica e tréplica enviadas por Henrique Codato são suficientes) é com respeito ao que é pesquisar filosofia. A minha hipótese é que você entende que pesquisa em filosofia é fazer história da filosofia. O curso brasileiro em filosofia, implantado com a diretriz francesa, realmente formava intérpretes de filósofos. Porém, o que se faz nos melhores centros do mundo, nos quais estive e ainda estou (como a University of London, Institute of Philosophy, UCLA), está bastante longe dessa prática.

Acho que ambos concordamos que este não é o lugar de explicar o que é a pesquisa em filosofia (já que concordo que o meu trabalho não é buscar/justificar o “objeto” que estudo). De outra forma, se você já concorda com a diferença entre medíocres leitores de filósofos/as e filosofia séria, então não entendo exatamente a campanha de extinção à filosofia.

domingo, maio 29, 2011
 
E LÁ PRAS BANDAS DO SUL...


E lá pras bandas do Sul,
Pra cá do Prata um pouquito,
Deus engastou Dom Pedrito,
Essa jóia tão rara...



Feliz de quem tem uma província no coração, disse alguém, não lembro quem. Acho que foi o Mário Quintana. Eu tenho uma e se chama Dom Pedrito. Não é minha cidade natal, nasci no distrito de Upamaruty, zona rural de Livramento. Mas foi a primeira que conheci. Quando tinha dez anos, peguei minha bicicleta e fui estudar no povoado, como se diz por lá. Fui com o coração aos pulos, não sabia o que era cidade. Imaginava, certamente de ouvir contos de fada, algo dourado e brilhante, cheio de castelos. Pega a estrada real e vai em frente, disse meu pai. Foi o que fiz. Já na várzea do Santa Maria, vi ao longe a silhueta do casario.

Decepção total. A cidade nada tinha de dourado. Era cinza e me pareceu um tanto sem graça. Mas era minha nova geografia e a ela tinha de adaptar-me. Os pátios das casas me chocaram. Lá no campo, meu espaço vital terminava no horizonte, onde começava o Uruguai. Em Dom Pedrito, terminava dez metros adiante, onde começava outra casa. Mais adiante, quando fui morar em apartamento, tive outra surpresa. A casa terminava na janela.

Vivi cinco anos em Dom Pedrito. Naqueles dias pré-televisivos, em que as pessoas punham as cadeiras na calçada, na frente das casas, e ficavam tomando mate, contando causos e mexericando sobre a vida alheia. O grande lazer da cidade era o footing em torno à praça General Osório. No início da noite, os pedritenses chegavam à praça e começavam a circular em torno dela, em duas marés em sentido oposto uma à outra. Este sentido oposto é importante. Fossem todos em uma só direção, não haveria trocas de olhares, namoros, talvez nem mesmo casamentos.

Outro momento de lazer, pelo menos no verão, era a praia do Chiquilim, pomposamente chamada de Chiquilin’s Beach. Ficava justo no passo do Santa Maria por onde don Pedro de Ensuategui, basco que dera com os costados naquelas plagas, passava seus contrabandos. Daí o nome da cidade.

O rio tinha duas praias, uma à esquerda e outra à direita do passo, quem saía da cidade. Na primeira, iam às famílias. Na segunda, as prostitutas. Certo dia, peguei uma canoa e mais duas ou três moças da praia da direita. Remei à montante e cruzei, glorioso, a praia das moças de bem. Elas jamais esqueceram aquele gesto. Anos mais tarde, encontrei uma delas em um bar em Porto Alegre. Ela reconheceu-me e convidou-me a seu apartamento. “Como te esquecer? Sempre foste um revoltado” – me disse. Chorou boa parte da noite relembrando aquele passado perdido. Eu também.

Em Dom Pedrito começaram meus primeiros embates da vida. Lá descobri o poder das palavras. Comecei escrevendo num jornalzinho estudantil, o Pirilampo. Certo dia, escrevemos um artigo onde defendíamos a tese de que, para fazer a reforma agrária, não era necessário mexer na Constituição, já que ela estava prevista na Carta Magna.

Nossa! Escândalo em Dom Pedrito. O Ponche Verde, o vibrante hebdomadário local – se me é permissível a expressão – nos tachou de comunistas. Exigimos direito de resposta, que nos foi concedido. Mas nosso artigo foi prudentemente cercado por outros três, um deles de autoria do Dr. Márcio Bazan, latinista emérito, daqueles que escrevia mais em latim do que em português. Um outro era de João Bosco Dihl, nosso professor de português. Exigimos tréplica. E a salpicamos com alguns data venias, mais uns quousque tandems e latinórios outros. Ninguém entendia na cidade aquela erudição de adolescentes. Só a entendeu o padre Chico, sacerdote alemão professor de matemática.

- Eu sei. Focês lerram as páchinas finais do Aurrélio.

Acertou na mosca. O Aurélio daqueles dias tinha várias citações latinas ao final do tomo. Já o professor de português levou uma paulada severa. Em seu artigo, ousou empregar um pronome oblíquo no início da frase. Até hoje não esqueço nossa resposta ao final do artigo:

- Admoestamos ao ínclito mestre da língua vernácula que as mais elementares regras gramaticológicas coarctam o emprego do pronome oblíquo nos proêmios de uma frase.

Eram dias em que nossas mães queimaram nossas bibliotecas incipientes. Não por censura, mas por temor aos militares. Em verdade, não havia razão para tanto. Mas mãe é mãe. Não gostavam de nos ver reunidos discutindo filosofia. Íamos então para a praça General Osório. Mas as noites de Dom Pedrito, quando fustigadas pelo minuano, são gélidas. O recurso era o bar do Santinho, onde continuávamos discutindo nossas concepções de homem e de mundo. Mas o Santinho fechava lá pelas dez. O último recurso era o bordel.

Visitávamos as moças para continuar discutindo filosofia. Por um lado, tínhamos medo de mulher, constituam um mistério que a gente ainda não conhecia. Por outro, mal tínhamos dinheiro para uma cervejinha. Lembro que uma delas era uma defensora efusiva da reforma agrária. Mas nós, como diria Sartre, éramos uma paixão inútil. Com o passar dos dias, colocaram uma atalaia na janela. Mal surgíamos na esquina, fechavam a casa. “Lá vêm os filósofos, dali não sai grana alguma”.

 
PRA CÁ DO PRATA UM POUQUITO...


Ao sair do Upamaruty, consegui bolsa no Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, dirigido por padres oblatos da Alemanha. Isto graças aos bons ofícios de um fazendeiro do Ponche Verde, don Érico Berrutti Corsini. Que morreu este ano, rijo como um carvalho, aos 108 anos de idade. Foi uma dessas raras pessoas que podem chamar o papa de “aquele guri”. Homem profundamente católico, me consta que permaneceu lúcido até o fim de seus dias, escrevendo nos jornais de Livramento.

Se lá no campo eu vivia em um universo pagão, no Patrocínio, sofri forte doutrinação católica. Fui congregado mariano e – pasma, leitor! – presidente da Congregação Mariana. Como devotos de Maria, era ponto de honra comungar todos os sábados. Os crentes que se preocupam com a sorte futura deste ateu empedernido não precisam preocupar-se. Fiz as promessas de comunhão dos sete sábados e das cinco sexta-feiras. Ou sete sextas e cinco sábados, não lembro mais. O que sei é que ambas garantem, antes da hora da morte, a redenção e arrependimento dos pecados passados. Isto é: paraíso, se existe, são favas contadas.

Foi quando descobri que meus congregados, que comungavam bonitinho nos sábados, ajoelhados e de fita azul no pescoço, passavam as noites de sextas nos bordéis da cidade. Não tive dúvidas. Eu teria uns quinze anos e fazia dois ou três programas de rádio semanais, na rádio Ponche Verde. Desfechei minhas baterias contra a prostituição.

Qual um Savonarola dos pampas, conclamei os pedritenses a acabar com o deboche. Não podemos acabar com a prostituição no mundo. Mas podemos acabar com ela em Dom Pedrito. Vamos fechar esses antros, encaminhar essas pobres meninas a casas de recuperação.

Para meu espanto, a cidade toda se virou contra mim. Entrevistei em um de meus programas o comandante do Exército local. Ele me desautorizou. Que seus soldados tinham instintos e precisavam saciá-los. Até o padre Antônio Paul, pároco local e diretor do Patrocínio, que eu considerava meu aliado óbvio, condenou minha cruzada. Se fechamos os bordéis, que vai ser de nossas empregadinhas? Ele usava – fui descobrir mais tarde – os argumentos de Santo Agostinho: eliminai as cloacas de um castelo e o castelo se tornará sujo e infecto.

Fui alvo de derrisão da cidade toda. Passei a ser chamado de menina-moça. Padre Antônio cortou-me a matrícula no Patrocínio. Mas encaminhou-me para uma bolsa no colégio Santa Maria, em Santa Maria, instituição marista. Que fosse criar problemas em outra freguesia. Lá, encontrei padres mais arejados e passei a militar na JEC, Juventude Estudantil Católica. Resumindo: todos os padres que trabalharam conosco acabaram por largar a batina.

Alguns anos mais tarde, voltei a Dom Pedrito. Havia deixado uma herança naqueles pagos, que me fustigava a alma como urtiga das brabas. Uma guarani linda, que não posso dizer que foi meu primeiro afeto, porque comecei minha vida afetiva com duas mulheres. Voltei, para buscar o que considerava ser meu.

Num domingo de inverno, fomos namorar no pavilhão de exposições rurais, nos arrabaldes da cidade. Ficamos ali uma tarde inteira, até o pôr do sol. Eu mergulhado naqueles olhos negros e profundos, ela me abraçando com carinho. Quando voltamos pela Rio Branco, ao anoitecer, vozes escondidas atrás de janelas nos insultavam dos dois lados da rua. Eu estava roubando algo dos pedritenses, algo do qual se sentiam legítimos proprietários.

Vivemos dias paradisíacos em Porto Alegre, eu, ela e a Baixinha. Sem muita grana, mas carinho sempre sobrando. Foram daqueles dias aos quais só damos valor depois de passados. Eu acordava de madrugada, para enrolar-me n'Ela tão logo sua companheira de quarto saía para o trabalho. No ônibus, sentia-me eleito dos deuses, ao lado de operários com rostos amarrotados por um sono ruim, dirigindo-se azedos à rotina diária de um trabalho extenuante e mal pago. Lépido e faceiro, barbeado e perfumado, jovem e vencedor, eu rumava ao paraíso.

Nem sempre se come pão quente. Por circunstâncias que não vêm ao caso, tivemos de separar-nos. A despedida aconteceu numa noite sofrida, naquela escadaria que desce da Duque de Caxias até a Fernando Machado. Abraçados, choramos até a madrugada. Solo queda al desgraciao, lamentar el bien perdido.

Meses mais tarde, para exorcizar aquele fantasma, escrevi o conto abaixo. Foi uma catarse. Acabei por inscrevê-lo em um concurso literário. Tive o primeiro lugar. Levei-o então ao P. F. Gastal, editor do suplemento literário do Correio do Povo, Olha Gastal, este conto foi premiado em concurso, pelos doutores Fulano e Sicrano. Era sexta-feira à noite, o suplemento saía no sábado. Gastal estava escasso de matéria e o baixou à gráfica. Sem lê-lo. Eu intuía as conseqüências da publicação. A verdade é que queria, como Hernán Cortez, queimar minhas naus.

Pra que, meu Deus? Na segunda-feira, uma expedição punitiva vinda expressamente de Dom Pedrito, liderada por aquele professor de português do “pronome oblíquo nos proêmios de uma frase”, pedia ao Gastal minha cabeça. Escapei por muito pouco de uma surra na Rua da Praia. Fui proibido de voltar à cidade. Não havia nenhum edital do prefeito, apenas a singela promessa da comunidade de castrar em brasas o herege. A ofensa à cidade, ao que tudo indica, havia sido de ordem sexual. Eu havia roubado à comunidade a mulher que cada pedritense julgava sua.

Três ou quatro anos mais tarde, quando o temporal parecia ter amainado, fui revisitar os meus. À noite, com amigos, em um de nossos refúgios na madrugada, os cabarés da Baixada da Paulina, por pouco não fui linchado. A "terrinha" sentira-se ofendida com o conto. "Tudo é uma questão de interpretação", tentei argumentar. O pessoal não se deixou enganar: "não vamos te deixar falar, falando tu nos confundes. Vamos é te bater o brim". Ex-colegas de ginásio, de repente surgidos do nada, me livraram do justiçamento: "no Janer, ninguém bate". Salvo pelo gongo. Mas tive de voltar a Porto Alegre no dia seguinte.

Nada como o tempo para cicatrizar feridas. Hoje volto àquela cidade e sou recebido com carinho por meus companheiros de geração. Mas por que volto a estes dias passados? É que Dom Pedrito está hoje no youtube e até mesmo nos jornais de São Paulo. Uma molecada de quartel andou cantando e dançando o hino nacional em ritmo de funk. A pátria amada ofendeu-se.

Como me dizia um bom amigo, o Pacase: “Dom Pedrito só sai na imprensa da capital quando tem enchente”. Bom, agora não foi enchente. Mas quando Fafá de Belém estuprou o hino no enterro do Tancredo Neves, seu gesto foi visto como magnífica interpretação.

O mesmo fez a cantora Vanusa, em março de 2009, em evento promovido pela Assembléia Legislativa de São Paulo. Na quinta estrofe do hino, em vez de cantar "és belo, és forte, impávido colosso", cantou "és belo, és forte, és risonho e límpido", palavras que fazem parte da estrofe anterior. Na tentativa de disfarçar e consertar o erro, Vanusa repetiu algumas estrofes e perdeu o ritmo da música.

Fafá e Vanusa foram relevadas. Os moleques de Dom Pedrito estão sendo vistos como criminosos.

sábado, maio 28, 2011
 
DOM PEDRITO: O PÂNTANO COMO FUGA *


- ... ou vais deixar de amar um artista, apenas por temor ao sofrimento e dilaceração que isto implica?

Por ocasião das cheias, o Santa Maria aumenta uns cinco ou seis quilômetros em sua largura. Ao descerem as águas, resta uma várzea lamacenta e extensa. Entardece. Afasto-me com ela da cidade e sentamo-nos diante desse transitório pântano, que exerce curioso fascínio sobre mim. A cidade fica exatamente às nossas costas. Os reflexos não agressivos das poças de água pútrida enviam-nos paz. Uma brisa constante que não dá trégua aos cabelos separa-nos do mau cheiro. O pensamento divaga, do mesquinho ao belo, das minhas possibilidades aos seus vislumbres de amplidão, do silêncio rouco e pensativo de Cíci às minhas mãos claras, punhos negros contra a grama cinza. Estamos deitados num promontório seco, à beira do lodaçal, virados um para o outro, absorvendo o que de plástico o pútrido oferece, distantes dos vinte mil homens secos da cidade. Simples habitantes.

Eu estava fazendo tudo para que minha pergunta fosse a última. Passáramos a tarde conversando. Vã fase das palavras.

Mas como levá-la ao meu pântano particular, sem dizer-lhe? Ela ficara atordoada ante minha última pergunta. Antes de responder-me, quase perguntou para onde iríamos. Apertei-lhe suavemente o braço, dirigindo-a para longe da cidade. Agradeci que sua resposta fosse esquecida. Caminhávamos leves, como se há pouco tivéssemos emergido de um banho total.

Todos os lugares com possibilidades de acolher-nos insatisfaziam nosso consciente desejo de aproximação. Se os nativos vissem-nos de mãos dadas, sua reputação estaria perdida. Visitá-la em casa estava fora de nossas cogitações. Entrar comigo no hotel constituiria demissão do emprego, agressões e abordagens que lhe impossibilitariam a vida naquele pequeno aglomerado urbano. Passáramos a tarde sentados em um antiortopédico banco de praça, desajeitadamente virados um para o outro, sem um lugar decente – e permissível pelos ciosos cidadãos, que sem discrição alguma vigiavam os deslizes éticos de seu monstro sagrado – onde pôr as mãos. Que profunda e carnal percepção da sem-razão humana. Dom Pedrito: uma organização de perfeito funcionamento, visando impedir que um homem descanse a boca no bico dos seios de uma mulher, sem seguir as normas burocráticas usuais do rebanho, estabelecidas para quem quiser descansar a boca no bico dos seios de uma mulher.

Caminhávamos para o ocaso, sedentos de sua paz sanguínea. Tirei-lhe as luvas de couro e aqueci suas mãos. Primeiras palavras da pele. Escapáramos do raio de ação embrutecedor e mesquinho do clima humano pedritense.

Em cinco anos, ela não fenecera. Curioso. Todas as meninas que conheci em seus 15, 16 e 17 anos satisfizeram-se com um lustro de bocas joviais e olhares límpidos. As revi murchas, com vestes horrendas ocultando-lhes as formas, gordos anéis em qualquer dos anulares, ostentados a qualquer despropósito, gestos exemplarmente recatados. Sutiãs quase metálicos, protetores, calcinhas enormes, anti-sensuais, desenhadas sob alguma veste mais justa. Cinco anos. Eu crescera, ela conservara-se viva, a cidade mantivera perfeitamente seu ritmo de declínio. Desejei perguntar-lhe como preservara a saúde do olhar e dos lábios da doença intrínseca ao lugarejo, mas – justiça façamos às palavras – tal idéia era por demais complexa para uma transmissão simpática. Ainda que fracassasse o encontro, prometi-me não repetir o que até então fora meu grande erro.

Os homens todos da cidade, inconscientes de suas impotências, a desejavam. O próprio delegado encarregara-se de virar a terra e carpir o jardim de sua mãe viúva. Pusera inclusive um guarda-noturno à sua disposição para, à noite, acompanhá-la da emissora onde fazia a locução até sua casa. Se todos a possuíam em seus sonhos lúbricos, ocultavam tais desejos sob uma elegante crosta de extrema delicadeza e prestatividade.

O sol venceu-nos na corrida até o horizonte. Eu julgava, sinceramente, impraticável um pôr-de-sol naquela terra. Não gosto de sentir pena dos seres que amo. Ainda bem que a ternura associou-se à piedade que senti, ao notar a avidez com que ela absorvia aqueles raios de luz de uma intensidade provinciana. Uma sensação desagradável invadiu-me ao pensar no que restaria de minhas ambições se não tivesse fugido: aquele pouco era-lhe tudo. Chegados até onde o barro nos permitia, estendi minha japona num lugar seco, delicadamente fi-la deitar e apertamo-nos com fraca força, dizendo-lhe assim o que até então fora impossível.

A brisa pura fazia com que sentíssemos nitidamente os contornos de nossas feições. O sol já bandeara a linha longínqua e a várzea toda mutou-se em cinza. Sapos e grilos iniciaram, numa harmonia improvisada, a bordar o silêncio. Éramos dois pequenos pontinhos negros ante o vento e a várzea, bem menores que seus olhos cor-de-espanto.

Até então eu pensara ser possível uma relativa resistência à ação corrosiva do meio. Nosso relacionamento provou-me o contrário. Há cinco anos, ela fora apresentada a um adolescente tímido, que além de dizer “muito prazer”, disse-o trêmulo, gaguejando ante seu porte, sua voz, enfim, sua força. Apaixonados mutuamente, como bons adolescentes nos relacionávamos com todos, menos conosco mesmos. Ah! Falávamos muito de sexo, amor livre, emancipação da mulher.

Ei-la agora temerosa ante minha voz grave, intimidada com minha calma e desembaraço preguiçoso. Ei-la pequena, mas viva. Fisicamente, eu não crescera até sua altura. Mas o tempo psicológico deu-me maturação mais intensa, longe de meu berço odioso. Ela não pudera fugir, exaurira quase que suas forças na apenas tentativa de não barbarizar-se. Aceradas que estavam minhas faculdades telepáticas, consegui ler em suas faces tristes: “Sonho: longe, só, sem passado. Começar de zero. Amputar, ainda que doendo, as raízes todas. Como se então nascesse de mim mesma, num consciente e desejado autoparto. Crescer eu só”.

Rocei a boca fechada e imóvel na sua, dizendo-lhe assim certos detalhes que havia omitido no primeiro gesto.

Quando a insultara, na noite anterior (o primeiro encontro após minha longa fuga) não sabia ainda dos problemas psicológicos que a cidade lhe causara. As palavras cruas com que a esbofeteara foram de enorme eficácia terapêutica. Fizeram-na chorar e sofrer. Ela confessara-me alguns namoros, fora inclusive noiva do Evilásio. Estigmatizei-a: “foste imbecil ao ser assim complacente com os imbecis”. Só eu a merecia. Perdoei-a, pois estivera ausente.

Sua doença. Os pedritenses têm concepções bastante diferentes das minhas quanto a esta palavra. Em uma reunião dançante, devidamente anatematizada por mim, ela sofrera um longo desmaio convulsivo, após ter-se sentido gradativamente sufocada. Desmaiara ainda uma outra ocasião, quando seu namorado, ao perder uma pequena disputa intelectual, tentara estrangulá-la. “É claro, não vamos chegar a extremos, mas alguma demonstração de virilidade é necessário darmos à noiva”, justificara-se em voz máscula. Diagnóstico de médicos locais: disritmia. Disritmia ou não, neste nosso encontro, embora eu portasse esses bacilos tão conscientizadores da condição humana, os de Koch, éramos as pessoas mais saudáveis do lugarejo. Dois seres quentes, humanos, conversando sem lógica alguma, absolutamente ininteligíveis pela subvida que fluía, diante de nós, na tarde na praça.

Bem público da urbe, nenhum a possuía, pois todos pretendiam possuí-la. Cada qual atribuía-se direitos a seu corpo do mesmo modo que à sua voz. Seu emprego como locutora a fazia onipresente na cidade, suscitando comentários e alusões no cinza sem calor dos lares, no vermelho tépido dos cabarés, nas horas mecânicas do dia, nos minutos vivos das madrugadas. Se para escutá-la bastava a cada um ligar o receptor e girar o dial, para conquistá-la julgavam-se também todos aptos. Não chegariam a limites extremos, é claro, pois todo pedritense, na acepção lata deste termo, tem lúcida consciência de que o namoro é, não o amor, mas um prelúdio deste.

Mesmo assim, reagiam curiosamente quando ela namorava alguém. Agrediam-na e injuriavam-na através de um eficiente ramal de donas-de-casa, sensatas mães de moças-de-família, estas inclusive. Mesmo os senhores casados da localidade sentiam-se então esbulhados. As próprias prostitutas, que com ela simpatizavam bastante, eventualmente não escondiam uma certa inveja cortante. A partir dos comentários, julgando-a amante deste ou daquele bon-vivant local, também julgavam irônico e inexplicável seu acesso a qualquer grupo social.

Há muito o sol se pusera, nem mais resquícios seus restavam, e nós cada vez mais atolados no promontório seco, em nós mesmos e na paz das poças pálidas. Cada veste e cada minuto que caíam nos agrilhoavam cada vez mais a uma espécie de fatalidade imprevista.

Na tarde, quando passeávamos, homens e mulheres aglomeravam-se curiosos atrás das portas de bares e lojas, buscando reconhecer-me. Ao olharmos para alguma vitrine, chegavam a diminuir os passos, na esperança de que voltássemos os rostos antes de cruzarem por nós. Quando, curioso, perguntei-lhe porque gostava tanto daquelas escassas vitrines, ornadas com um mau gosto exemplar, respondeu-me que, de fato, só gostava de uma. Não dos objetos, utensílios de plástico, nem da disposição dos mesmos, mas da profusão e intensidade das cores.

Pena e ternura.

Amo esta cidade quando os seus dormem. Além de Cíci, amei então os cães e os galos. Ladridos agressivos, lúdicos, profissionais. Sem convicção, todos, e por isso os amei, pois a convicção é que dá aos nativos uma ilusão de força. Nus, enrolados nas japonas. Esmago-a com desespero: certas sutilezas que havia esquecido no gesto anterior. A realidade em Dom Pedrito é mais caricatural que a própria ficção. Pela manhã, estivéramos no topo de um monumento intrínseco à cidade, uma colossal caixa-d’água, situada no centro geométrico da praça e da cidade, em cujo bojo funciona uma biblioteca. Conseguíramos as chaves com o gerente da hidráulica local, entramos pela biblioteca, algumas portas, escadas em ziguezague, e saímos num terraço.

Dali dominávamos toda a cidade, mas nossa ambição era maior. Mais algumas escadas, agora verticais, e acabamos trêmulos numa última plataforma de menos de dois metros quadrados de superfície. Estávamos no lugar mais visível de toda a cidade, víamos os comuns sentados nos bancos da praça, em frente ao clube, entrando na igreja, apanhando sol na porta do hotel, trabalhando nos bancos ou repartições. Divisávamos qualquer ponto da cidade e de qualquer ponto poderíamos ser vistos. Mas pedritense algum cogitaria...

Poderíamos ter feito amor naqueles dois metros sobre as cabeças de todos. O lugar mais público e mais discreto. Mas nem beijá-la quis, pois o beijo situa-se no resvaladiço limite entre o desejo e a ternura.

A brisa reboja no pântano, o cheiro é de barro bom. Com toda a ternura selvagem de sua raça na voz, sussurrou:

- Xemboraihu... **


* Meu primeiro conto, in Correio do Povo, Porto Alegre, 20/07/1968

** Meu querido, em guarani.

sexta-feira, maio 27, 2011
 
HOMOSSEXUALISMO VIRA BANDEIRA


Leitor me pergunta se vou escrever algo sobre o kit gay do ministério da Cultura. “Nove em cada dez pessoas com quem converso e se opõem ao kit por "incentivar a homossexualidade" não assistiram nenhum dos vídeos. Dá a impressão de que a oposição do homem médio por aí ao kit é apenas prazer sádico em dizer não e com isso inflar o sentimento de superioridade ou, sei lá, inflar uma idéia distorcida de poder”.

Vamos lá! Não, não vejo nenhum prazer sádico em dizer não. Penso que o Estado – como também a Igreja – nada tem a ver com a vida sexual de quem quer que seja. Não que eu concorde com a presidente. Ela concorda comigo, já que desde jovem defendo esta tese. Com uma diferença. Eu a defendo porque assim penso. Não preciso comprar votos da bancada evangélica para defender um ministro corrupto.

Para começar, não tenho simpatia alguma pela tal de educação sexual, pelo menos como vem sendo ministrada. Que se dê a um adolescente noções do aparelho reprodutivo, informações sobre doenças venéreas e sua prevenção, tudo muito louvável, digno e justo. Daí a entrar em detalhes sexuais, como vem sendo feito, considero um abuso por parte dos professores. Estão roubando ao adolescente o prazer da descoberta. Nada melhor que deparar-se com algo desconhecido e penetrar aos poucos no mistério.

Se bem que, nestes dias em que a pornografia está à distância de um clique de mouse, nem isto é possível. De qualquer forma, é perfeitamente dispensável nas escolas. Já ouvi e li relatos sobre professoras empunhando uma banana em plena aula para ensinar como se põe um preservativo. Como se fosse preciso ensinar. Estão subestimando a inteligência da meninada.

Por outro lado, sexualidade é uma questão de opção individual. Não falta quem diga que as pessoas nascem hetero ou homossexuais. É a besteira inversa daquele axioma da Simone de Beauvoir: uma mulher não nasce mulher; se torna mulher. Ora, homens e mulheres – salvo alguma anomalia genital – nascem homens e mulheres. Homossexualidade é escolha. A pessoa um dia degusta o fruto e dele gosta. Frutos proibidos existiam nos tempos bíblicos. Hoje não há fruto proibido algum. Pelo menos no Ocidente.

Surgiu nas últimas décadas uma profissão espúria, como tantas outras que andam por aí, tipo psicanalista, astrólogo, quiromante: a profissão de sexólogo. Como se sexo precisasse ser ensinado: "olha, isto aqui você põe ali". Proliferam também os manuais de educação sexual, que pretendem ensinar como portar-se na cama. Virou gênero literário. Confesso jamais ter lido tais manuais e deles jamais senti falta.

Vi os filminhos em discussão. Me pareceram uma apologia bichesca ao homossexualismo. Explico. Uma coisa é ser homossexual, outra é ser bicha. Por homossexual, entendo aquele homem ou mulher que gosta do mesmo sexo, sem renunciar à sua masculinidade ou feminilidade. Bicha, em minha acepção, é esse homossexual com trejeitos femininos e voz de pato Donald. É o que vemos nos filmes, pelo menos no que discute o homossexualismo masculino. O menino homossexual é um estereótipo. Ora, um homem não precisa ser uma caricatura de mulher para ser homossexual.

Outra solene bobagem: pelo que se vê, as relações entre os personagens são, antes de tudo, amorosas. No fundo, a velha concepção catolicona de amor. Por trás dos vídeos, pelo jeito há militantes igrejeiros. No que se refere a lesbianismo, até pode ser. Mulher não é tão devassa como nós, varões. Quanto a homossexualismo masculino, não é bem assim. Os homens se movem mais por desejo do que pelo tal de amor. Esses namoricos entre homem e homem é abominável modismo contemporâneo. Não é, a meu ver, o que fazia um Alcebíades buscar Sócrates.

Por outro lado, o projeto de lei anti-homofobia é mais tentativa de censura à expressão do pensamento do que defesa de opção sexual. Pelo que tenho lido, daqui pela frente toda crítica ao homossexualismo fica proibida. A senadora Marta Suplicy abriu uma exceção no projeto: em templos pode. Assim, se você não gosta deste tipo de comportamento – o que é um direito seu – terá de buscar um templo para criticá-lo. Quanto ao heterossexualismo, este pode ser criticado à vontade.

Os vídeos me pareceram, sim, um aceno ao homossexualismo. Mostra este comportamento como algo idílico e desejável, nos moldes daquele amor tão ao gosto da Igreja de Roma. Ora, o Estado nada tem a ver com opções sexuais. Ao que tudo indica, há um núcleo gay militante no MinC, que pretende mostrar ao mundo como ideal o comportamento homossexual. O veto da presidente é hipócrita. Se acha que Estado nada tem a ver com o assunto, deveria começar demitindo seu ministro da Educação, o responsável último pelos vídeos e outras besteiras anteriores.

Convivo com homossexuais desde minha adolescência. Quando a imprensa internacional incensou como grande novidade os prefeitos de Paris e Berlim, esqueceram Dom Pedrito. Tivemos, lá pelos anos 70, um prefeito assumidamente homossexual. Nada tinha de bicha. Era másculo e adversário temível nos debates políticos.

Já contei há uns cinco anos, me sinto obrigado a contar de novo. Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes. Comentário indiferente na cidade: "O Brasil vai perder muito com esta cassação". Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. "Já procurei até médico" - confessou-me um dia Bastide -. "Mas que vou fazer? É a minha natureza".

Sua detenção pelos militares virou folclore. O vereador estava prestando seus serviços ao Brasil, quando batem na porta de seu apartamento. Ainda pelado, entreabriu a porta. Três militares o procuravam, um oficial e dois soldados, de metralhadoras em punho. O senhor é o Rui Bastide? - perguntou o oficial. Sou. Então o senhor está convidado a comparecer às dependências do 14º Regimento de Cavalaria. Acho que vou declinar do gentil convite - respondeu Bastide. Ocorre que não é bem um convite. O senhor terá de ir. Agora e como está. Então me levem - disse o Rui - abrindo a porta e os braços, em plena glória de sua nudez. "Os soldadinhos enrubesceram, não sabiam para onde apontar as metralhadoras. Aí, me deram tempo. Tomei banho, me perfumei, me despedi do Brasil, não sabia quanto tempo ia ficar preso".

Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide. Pelo jeito, a prisão foi produtiva. Em vez de xingar a ditadura, Rui encenou um balé, onde bravos lanceiros do Ponche Verde, envergando diáfanas bombachas brancas, executavam impecáveis pas de deux enquanto cantavam uma ode ao 14 º RC: Querido Exército...

A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso pedritense. E vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados.

Há fatos que na infância nos marcam a memória e só depois de muito viver lhes conferimos a verdadeira dimensão. Ocorreu no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira com o Uruguai, onde vivi meus dias de guri. Torrão de gente rude, onde qualquer adulto tinha de cuidar-se com a língua para não morrer. Lá na Linha Divisória - como era mais conhecida a região - uma palavra mal empregada, ou mal entendida, podia custar uma vida. Lá na Linha, conheci Seu Alvarino.

Fora trazido da cidade, como cozinheiro do Peixoto, um bolicheiro local. Negro, enorme, espadaúdo, durante o dia cuidava da cozinha e das coisas do Peixoto. Nas tardes de domingo, cumpridas suas tarefas caseiras, vestia uma blusinha de rendas cor-de-rosa, punha sua mais rodada saia longa e sentava na porta do bolicho, munido de agulhas e novelos. A gauchada ia chegando, boleando a perna e atando os cavalos no alambrado. Em meio àquela gente armada, revólveres e facões pendendo da guaiaca, seu Alvarino, indiferente às charlas e ruídos de esporas, permanecia absorto em seu crochê, como se ali estivesse tricotando desde o início dos tempos.

Nunca precisamos de cartilhas do MinC para aceitar a sexualidade alheia. Homossexualismo, naqueles pagos, não era bandeira a ser brandida. Apenas um comportamento como qualquer outro.

quinta-feira, maio 26, 2011
 
SONAMBULISMO E SEXO ORAL


Há vinte ou trinta anos, o ovo era tido pelos médicos como a própria boceta de Pândora, origem de inúmeros males, entre eles o aumento do colesterol sanguíneo e das chances de desenvolvimento de doenças isquêmicas do coração. Eu, que desde a infância gostei de ovos, cheguei a evitá-los por algum tempo.

Hoje, a partir de pesquisas americanas, se considera que um fosfolipídio do ovo interfere na absorção do colesterol, reduzindo notadamente sua captação pelo intestino. Hoje é considerado “um alimento nutricionalmente completo e ideal para o consumo, possui vitaminas A, D, E, e do grupo B e minerais, entre os quais predominam o ferro, fósforo, zinco e selênio, que ajudam na homeostase do organismo. Por ser uma proteína de origem animal, fornece aminoácidos essenciais, os quais nosso corpo é incapaz de sintetizar”. Em duas ou três décadas, o ovo passou de veneno a cápsula de virtudes.

Há cerca de quatro ou cinco anos, comentei algo sobre o paradoxo do Périgord. Como ninguém mais deve lembrar do que seja, volto ao assunto. Lá pelos 80, quando viajaria para a França, recomendou-me um médico de Florianópolis: cuidado com o vinho. Seja moderado. E muito cuidado com os queijos e foie gras. Ora, considero que prescrições médicas devem ser levadas a sério. Era no mês de meu aniversário. Amigos me receberam com muito vinho, champanhe, queijos e foie gras. Eu, beliscando como um tico-tico. Bebendo pouco e comendo menos ainda.

Vai daí que, ao tomar o avião de volta, comprei um Nouvel Observateur. A reportagem de capa era sobre o “paradoxe du Périgord”, algo que até hoje perturba a medicina politicamente correta. Por este paradoxo entende-se o estranho fenômeno de o Périgord ser uma região de alto consumo de patês, queijos e vinhos e, no entanto, seus habitantes gozarem de excelente saúde cardíaca e vascular. Um médico declarava, na reportagem, que inclusive um pouco de boudin no leite das crianças era muito saudável. Boudin é a versão francesa da nossa morcilha. Mais suave e um de meus pratos prediletos. Me senti roubado.

Ao voltar a Santa Catarina, busquei meu médico. De Nouvel em punho. Doutor, o senhor ouviu falar disto, o paradoxo do Périgord? Não, não havia ouvido falar. Então leia esta reportagem. Não leio em francês, disse-me. Tudo bem – respondi – eu traduzo. E traduzi.

Ele fez marcha à ré. Bom... meia garrafa de vinho por dia é sempre bom para o coração. Ou duas doses de uísque. Entende-se que o boudin seja saudável às crianças, contém ferro. Mas nós, médicos, não podemos admitir isto. Seria estimular o alcoolismo.

Há dois anos, li que o vinho tinto pode ser muito mais potente do que se imaginava no prolongamento da vida humana, segundo cientistas que pesquisam drogas para a longevidade. O estudo se baseava em doses dadas a camundongos de resveratrol, um ingrediente de alguns vinhos tintos. Alguns cientistas já estariam tomando resveratrol em forma de cápsula, embora outros acreditem que é cedo demais para tomar a droga, especialmente usando vinho como sua fonte, até que haja melhores dados sobre sua segurança e eficácia.

Pior ainda. Segundo um estudo, publicado em fevereiro de 2009, pelo Instituto Nacional Francês do Câncer (INCA), na relação entre o que comemos e bebemos e as possibilidades de vir a ter um câncer, o álcool é o primeiro a sentar-se nos banco dos réus. Na referência álcool-câncer não existiria "dose protetora". Com seus efeitos invisíveis, "as pequenas e repetidas doses são as mais nocivas", destacava o presidente do INCA, Dominique Maraninchi.

Comentei isto na ocasião. Para Paule Martel, diretora de pesquisa do Instituto de Investigação Agrônoma (INRA), "é desaconselhado todo o consumo diário de vinho". Segundo o estudo, "o consumo de bebidas alcoólicas está associado a um aumento do risco de se sofrer câncer de boca, faringe, laringe, esôfago, cólon e reto, mama e fígado". O risco aumenta 9%, no caso de câncer de cólon e reto, se for consumida uma taça ao dia. E esse risco chega inclusive a 168% para os cânceres de boca, faringe e laringe.

Isto foi em fevereiro. Em abril do mesmo ano, a dose letal de uma taça por dia anunciada pelo INCA foi desqualificada. Segundo um novo estudo, intitulado Coorte Color, pela primeira vez foi demonstrado que o vinho, consumido de uma a três taças por dia – e só o vinho entre as bebidas alcoólicas – , estava associado a uma baixa de 20% da mortalidade por câncer. Estes estudos foram confirmados por pesquisadores da Dinamarca.

Na época, o professor Henri Joyeux, cirurgião cancerologista da Faculdade de Medicina de Montpellier e especialista nas relações entre nutrição e câncer, declarou que “o estudo do Inca confundia os consumidores regulares de álcool forte (uísque, gim, vodca) que aumentavam incontestavelmente os riscos de câncer da boca e das enfermidades cardiovasculares, sobretudo se são acompanhadas do tabagismo”. Ele sublinhava de passagem os aspectos positivos do consumo de vinho durante as refeições como uma digestão facilitada, a prevenção de infecções urinárias e a constipação.

Jean-Charles Tastavy, presidente dos Vinicultores Independentes de Hérault, impetrou em nome da associação Honneur du Vin um recurso administrativo junto ao Ministério da Saúde. Por sua parte, Vin et Societé (que representa o setor francês do vinho) observou que se o consumo de vinho na França foi dividido por dois em 50 anos, o número de cânceres, por sua vez, dobrou. É então difícil bem delimitar os laços de causa e efeito entre o câncer e o consumo do vinho.

E durma-se com um barulho destes. Há dois ou três dias, a Folha de São Paulo acenava com o apocalipse:

“O tabaco, substância presente no cigarro, e o consumo de bebidas alcoólicas sempre foram apontados como um dos principais fatores para desenvolvimento de câncer na região da garganta. Pois agora cientistas afirmam que o sexo oral ocupa o topo da lista entre os comportamentos de risco”.

Segundo a professora Maura Gillison, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, alguém infectado com um tipo de vírus associado ao câncer de garganta tem 14 vezes mais chances de desenvolver a doença. "O fator de risco aumenta de acordo com o número de parceiros sexuais e especialmente com aqueles com quem se praticou sexo oral", afirmou a pesquisadora.

Essa agora! O homem pratica sexo oral provavelmente desde o Homo sapiens e só hoje, dois milênios após o Cristo, se descobre que a prática produz câncer. Leigo, não vou contestar a medicina. Mas nós leigos também observamos. Que viver dá câncer, disto todos estamos cientes. A pergunta é outra: os médicos sempre analisam o universo dos pacientes. E esse universo todo que gosta do bom esporte e nunca teve câncer? Não entra nas estatísticas?

A medicina me lembra um pouco Os Sonâmbulos, ensaio de Arthur Koestler sobre o avanço da ciência. As idéias que o homem faz do universo evoluíram no decurso dos séculos, mas seria um erro imaginar que o progresso da ciência segue uma curva ascendente regular, escreve o autor húngaro. A linha que parte da crença antiga colocando a terra no centro do mundo e que chega à concepção moderna de espaço, onde nosso planeta é satélite de um sol ele próprio tributário de uma galáxia, esta linha acusa muitos ziguezagues e recaídas no absurdo. Tudo se passa “de uma forma que lembra menos as performances de um cérebro eletrônico que as de um sonâmbulo”.

Reservo-me o direito à dúvida.

quarta-feira, maio 25, 2011
 
SOBRE DOMINIQUE
E PIMENTA NEVES



Nestes dias em que Dominique Strauss-Khan está atrás das grades por estupro e arrisca 73 anos de prisão, é oportuno voltar ao caso de Pimenta Neves, jornalista que em agosto de 2000 matou sua amante, a também jornalista Sandra Gomide, com dois tiros pelas costas. Enquanto o poderoso ex-diretor-presidente do FMI foi preso incontinenti, o ex-diretor de redação do Estadão permaneceu onze anos livre como um passarinho. Com um breve interregno de sete meses de cárcere, é verdade. Pena gentil para crime tão covarde.

Ora, direis, Strauss-Khan já não está mais no cubículo onde estava encarcerado. Certo. Mas está privado de liberdade, com tornozeleiras. O que é, no mínimo, insólito, para um diretor do FMI.

Pimenta Neves foi preso novamente ontem, esgotadas as instâncias recursais, como dizem os causídicos. Fora condenado a 19 anos de prisão pelo Tribunal do Júri de Ibiúna, onde o crime ocorreu. Mas conseguiu, no STJ (Superior Tribunal de Justiça), reduzir a pena, a ser cumprida inicialmente em regime fechado, para 15 anos.

Até lá morreu o Neves, escrevi em 2006. Na época, o jornalista tinha 69 anos e se aproximava da idade confortável da impunidade. Segundo o ex-juiz Luiz Flávio Gomes, que acompanhava o caso, “até lá, Pimenta terá 70 anos e, se ficar comprovado que está doente, poderá ficar em prisão domiciliar mesmo condenado em definitivo".

Considerando-se que cada instância demora cerca de três a cinco anos para julgar um recurso – escrevi então – o leitor já pode ter uma idéia muito precisa de quando estes senhores olharão o mundo por trás das grades: nunca. A persistir esta tendência do Judiciário, teremos uma privilegiada elite de megatérios, todos devidamente condenados pelo rigor das leis e gozando das delícias de suas posses, em meio à afável companhia de amigos e parentes. Com uma pequena restrição, a de não poder viajar ou sair de casa. Mas idade provecta é idade de ficar em casa mesmo. Principalmente quando lei alguma impede a entrada de bons vinhos e champanhes, boa trufa e bom caviar.

Me enganava. Neves voltou a ser preso, quando faltavam apenas cinco anos para a prescrição do crime. É o que dá ser longevo. Mas ninguém imagine que o jornalista amargará mais cinco anos de prisão. Segundo seus advogados, como já cumpriu sete meses, caso receba atestado de boa conduta, poderá solicitar a progressão ao semi-aberto depois de 1 ano e 11 meses, regime no qual o preso pode sair pelo menos cinco vezes por ano para visitar a família. Caso tenha emprego, pode trabalhar durante o dia e voltar para dormir. Para quem foi condenado a 15 anos, a fatura saiu barato.

Ou seja, ficará mais 23 meses na prisão. No total, terá cumprido menos de três anos de cárcere por um crime brutal. Dominique Strauss-Khan está arriscando ver o sol quadrado por sete décadas. É possível que se safe. Já correm boatos na imprensa que seus advogados teriam oferecido uma simpática soma a partir de sete dígitos à família da moça, que vive em condições miseráveis à beira de uma estrada na aldeia de Tchiakoullé, na Guiné. Mas imagino que não será fácil convencer a polícia nova-yorkina da inocência de DSK, como vem sendo chamado.

Segundo a ministra Ellen Gracie, o caso era um dos mais difíceis de explicar no exterior. "Como justificar que, num delito cometido em 2000, até hoje não cumpre pena o acusado?", disse ela, para quem a quantidade de recursos da defesa foi um "exagero".

Tem razão a ministra. Acontece que cabe a ela, como ministra de uma suprema corte, dar a resposta. E não fazer a pergunta. A pergunta, somos nós que a fazemos. Advogados caros e safados, que jamais discutem o mérito da questão, atendo-se aos arabescos colaterais do direito adjetivo, sempre conseguem afastar das grades clientes ricos. Quanto aos pobres, vão irremediavelmente para a cadeia por bagatelas.

Cada vez que comento esta malandragem perfeitamente aceita nos tribunais, não resisto a citar Swift, que já no século XVIII via este recurso tão usual no século XXI. Em As Viagens de Gulliver, escreve o deão, a propósito da hipotética disputa de uma vaca:

- Ao defender uma causa,os advogados evitam cuidadosamente entrar no mérito da questão. Mas são estrondosos, violentos e enfadonhos no discorrer sobre todas as circunstâncias que não vêm a pêlo. Por exemplo, no sobredito caso, não querem saber quais ou direitos ou títulos que tem o meu adversário à minha vaca, mas se a dita vaca era vermelha ou preta, se tinha os chifres curtos ou compridos, se o campo em que eu a apascentava era redondo ou quadrado, se era ordenhada dentro ou fora da casa, a que doenças estava sujeita, e assim por diante. Depois disso, consultam os precedentes, adiam a causa de tempos a tempos e chegam, dez, vinte ou trinta anos depois, a uma conclusão qualquer. De maneira que são precisos trinta anos para decidir se o campo, que me legaram há seis gerações os meus antepassados, pertence a mim ou pertence a um estranho que mora a seis milhas de distância.

Enquanto o direito adjetivo servir para livrar criminosos da cadeia, que ninguém espere justiça neste país. Os americanos, ao que tudo indica, não se deixaram envolver na armadilha dos recursos processuais.

terça-feira, maio 24, 2011
 
POLÍCIA PROÍBE PASSEATA
MAS PERMITE A MACONHA



A chamada Marcha da Maconha, que reuniu sábado passado cerca de 700 gatos pingados na avenida Paulista, foi reprimida pela polícia, com bombas de efeito moral e balas de borracha. É o que leio na Folha de São Paulo. Ainda segundo o jornal, Geraldo Alckmin, o governador de São Paulo, disse que os participantes da marcha de sábado erraram ao prejudicar o trânsito, mas que a polícia também errou ao usar violência.

"Um erro não justifica o outro. A polícia tem competência para lidar com essas questões sem cometer violência. Não compactuamos com isso. Vai ser averiguado se houve excesso", afirmou Alckmin. A PM diz que houve apologia ao uso de drogas e princípio de tumulto entre grupos contrários e, por isso, agiu "de forma enérgica".

Se o governador acha que tanto polícia como manifestantes agiram errado, eu acho que ambos estão sendo ridículos. Primeiro os manifestantes, que querem legalizar o que há muito está legalizado. Quando você viu alguém ser preso por fumar maconha? Se viu, foi lá no século passado. Há exatamente um mês, eu afirmava que isso de defender a legalização da maconha no Brasil era bandeira sem causa. Algo como defender a legalização do amanhecer. Quando falo nisto, me sinto como João clamando no deserto. Parece que até hoje ninguém percebeu que a droga está há muito permitida.

Em segundo lugar, a polícia. A cerca de um quilômetro aqui de casa, centenas de zumbis vagam pelas ruas fumando crack e maconha a céu aberto, na chamada Cracolândia. Numa movimentada travessinha da Basílio da Gama, próxima à praça da República, no centro nervoso da cidade, dezenas de vagabundos jogados na calçada acendem seus cachimbos, em plena luz do dia. No terminal do aeroporto de Cumbica, do outro lado da praça, outros tantos pobres diabos jazem na calçada, dando uma bela imagem da cidade ao estrangeiro que aqui aporta. A polícia faz que não vê.

Ainda em fevereiro deste ano, Dona Dilma, que se diz tão preocupada com o problema das drogas, trocava beijinhos com o ex-presidente Fernando Henrique, em pleno auditório da imponente Sala São Paulo. Que está cercada pela Cracolândia. A cem metros da presidente, a droga corria solta nas calçadas. Como a droga mais consumida é o crack, convencionou-se chamar aquele espaço de Cracolândia. Mas lá você encontra o que quiser, desde a canabis até a cocaína.

Não imagine o leitor que este comércio é operado na clandestinidade. Nada disso. Ocorre à luz do dia, na frente de viaturas de policiais. Não gosto muito da palavra dantesco, me parece um lugar comum, mas é a única que encontro para definir o local. Dante ilustrado por Doré. Há uns dois anos, passei de táxi por uma extremidade da rua Guaianases, a que mais concentra drogados. Dantesco e assustador. Centenas de zumbis, crianças e adultos, homens e mulheres, enrolados em cobertores e capuzes, cachimbando crack, coalhavam a rua. Nenhum taxista ousa entrar no pedaço. A rua toda foi tomada pela droga. Tudo isto no centro da mais importante capital do continente.

Já apologia da droga não pode. (Exceto quando feita por roqueiros do Primeiro Mundo, que recebem então toda segurança e proteção da polícia). Segundo o coronel reformado da PM José Vicente da Silva Filho, consultor em segurança pública, “a maconha é proibida. Enquanto for assim, não há outra interpretação a não ser proibir qualquer forma de apologia a ela”.

Em que mundo vive este senhor? Pelo que sei vive em São Paulo, onde o consumo de crack e maconha é feito nas ruas em plena luz do dia. Será que o coronel não sabe que a Cracolândia está se espalhando como mancha de óleo pela região central da cidade? Será que nunca passou por aquela travessa junto à praça da República, onde dezenas de quase-cadáveres, fedendo à urina e fezes, jazem na calçada?

Em julho de 2009, vinte órgãos públicos e mais de 250 policiais não foram suficientes para acabar com a cena que se vê há 20 anos na Cracolândia. Seis horas após o início de uma nova operação destinada a revitalizar uma das áreas mais degradadas da capital, centenas de viciados voltaram às ruas, com cachimbos em mãos e cobertas nas costas, nos pontos tradicionais de consumo da droga.

Em vez de atacar o problema com o rigor devido, autoridades fornecem cachimbos aos drogados para que se droguem sem maiores problemas. Enquanto isso, fazem Blitze contra os fumantes nos restaurantes. Já chegamos, ao que tudo indica, à condição das coffee shops da Holanda, onde você recebe um cardápio para escolher maconha ou cogumelos alucinógenos. Mas está proibido de fumar cigarros.

segunda-feira, maio 23, 2011
 
USP, FREDRIC JAMESON E
INDIGÊNCIA INTELECTUAL



Em crônica recente, eu afirmava que cursos como os de Letras, Filosofia e Sociologia são perfeitamente inúteis. Recebi não poucos protestos, entre eles esta pérola: “Pelo que eu entendi o senhor tem certeza que bastão livros para termos pós-graduados como o senhor, e assim sendo ao invés de aumentarmos as vagas nas universidades como propõe o REUNI, devemos fazer apenas mais bibliotecas”.

Tem razão, meu caro. Livros não “bastão”. Livros bastam. É espantosa a nonchalance com que certos leitores, que não conseguem flexionar um verbo, se sentem autorizados a discutir ensino universitário. Eu fiz Filosofia e fui professor de Letras, na graduação e pós-graduação, sem jamais ter feito curso universitário de Letras. Fiz doutorado, direto. É portanto com conhecimento de causa que afirmo o que afirmo.

Do Rodrigo, estudante de Filosofia na USP, a propósito da crônica de ontem, recebo:

Janer,

Não sei se tem ciência disto, mas na USP Jameson é ensinado como paradigma da crítica estética moderna e "pos-moderna". Estou no último ano do curso de filosofia e, para me formar, sou obrigado a ler as asneiras deste senhor em disciplina obrigatória. Salvo honrosas exceções, a área de Estética e Filosofia da Arte é coalhada de adeptos da Escola de Frankfurt. É muito difícil encontrar discussões sobre gigantes como Octavio Paz e Ortega y Gasset. Aquele até recebe alguma atenção, mas este é simplesmente ignorado. Outro dia fui conversar com um professor a respeito de Ortega, e assim ele interrompeu minha fala: "Você está falando sobre aquele pensador católico?". Percebi na hora que a conversa não vingaria, e cortei o assunto. Eis o ambiente de miséria intelectual. Felizmente, há, sim, docentes que se salvam nesta universidade picareta.


Bom, Rodrigo, estou afastado há anos da universidade, onde perdi meu tempo, e hoje não sei quais são os teóricos da moda. Em meus dias, eram Althusser, Lacan, Kristeva, o indefectível Gramsci, mais alguns alemães cujo nome já não lembro. Na época, não era de bom tom citar americanos.

Desconheço algo mais precário, no mundo acadêmico, que o tal de método. Método significa o seguinte: você usa o pensamento de um teórico qualquer, de preferência alemão ou francês – paraguaio ou boliviano não vale, é claro! – para embasar suas reflexões. (Claro que nenhum PhDeus que se preze vai aceitar um espanhol ou um hispânico). Ou seja: você não pode pensar. Quem pensa é o teórico. Que isso tenha importância na área científica, entendo. Só não sei quem importou o tal de método para a área das ditas ciências humanas. Método é um freio ao livre pensar. Você quer um galão que o habilite ao ensino universitário? Então renuncie a seu próprio pensamento e pense como nós, da Academia, pensamos. Você não está aqui para ser original. Pense como pensamos todos.

Escreveu Lígia Chiappini Moraes Leite – por sinal minha conterrânea e hoje professora na Freie Universität de Berlim – em A Invasão da Catedral: “É por isso que os seminários da pós-graduação continuam a ser, na sua maior parte, aulas ou conferências dadas pelo professor ou por um aluno, e as teses, exercícios escolares sem grandes audácias, onde a invenção é mal vista e a submissão aos métodos do orientador, predominante. O que interessa não é entrar na aventura da pesquisa, mas seguir a trilha bem comportada e segura que levará aos títulos”.

Conversando com a Lígia, disse-me ela um dia: “Não existe legislação alguma que obrigue um doutorando a utilizar teorias em sua pesquisa”. Ora, numa instituição esclerosada como a universidade, isto soa como heresia. Na Idade Média, seria fogueira na hora.

Pelo que me escreves, Rodrigo, já estão impondo teoria na graduação. Em meus dias de magistério, uma aluna veio perguntar-me:
- Professor, que método devo usar?
- Nenhum, minha querida. Comigo não há métodos. Pensa com tua cabeça.

Ela ficou perplexa, nunca tinha ouvido algo igual. Acho que também se sentiu no mato sem cachorro. Método é uma grade. Como ela não sabia o que pensar da literatura que analisava, aplicar uma grade teórica a um texto era sua salvação. É deste tipo de aluno que os PhDeuses gostam. Aqueles que não têm idéias próprias. O que me lembra uma colega de doutorado em Paris. “Não quero pensar” – me disse. “Vou usar o método estruturalista” .

Esse Jameson é um velho comunista americano, que fez carreira como crítico literário e de artes. Não entendo como possa ser tema de disciplina obrigatória em um curso de Filosofia. Comunista em pleno século XXI, duas décadas após a queda do Muro e da desmoralização definitiva do comunismo, deveria estar internado em um leprosário em vez de ser convidado para palestras no Brasil. Este é o mal dos cursos de Letras e Filosofia. Em vez de estudar a obra de escritores e filósofos, você perde seu tempo lendo teóricos que nada têm a vez com o peixe.

Você quer estudar filosofia? Pegue uma boa história da filosofia, escolha os filósofos que mais o marcam e vá em frente. Terá de começar pelos gregos, é claro. Pode até dar uma olhadela naqueles teólogos que se pretendiam filósofos, tipo Agostinho e Tomás de Aquino. Sempre é bom para ter uma idéia do obscurantismo. Mas pode deixar de lado, sem perder nada, pensadores confusos como Husserl, Heidegger ou Sartre. Quanto a Jameson, é tempo roubado que você poderia dedicar a boas leituras.

Em janeiro de 2000, em um excelente estudo intitulado “As Raízes do Marxismo Universitário”, José Arthur Reis escrevia:

“Na Europa, nos arraiais das ciências da sociedade, muito antes da queda do Muro e do desmoronamento do regime soviético e dos seus satélites, o marxismo era visto como doutrina sectária e ultrapassada. Com exceção da França, não desfrutava do prestígio intelectual dos anos 40 e 50. Nada parecia alterar, nestes trópicos, a tranqüilidade dos meios acadêmicos, cada vez mais dominados pela esquerda, criando o paradoxo de um ensino superior eivado de marxismo sob um regime militar em choque contra a guerrilha armada, o terrorismo e a subversão”.

Mais de meio século depois de a Europa ter abandonado uma doutrina do século XIX, a universidade brasileira ainda busca apoio teórico no marxismo. A USP, que deveria constituir a vanguarda de qualquer pensamento no Brasil, demonstra indigência intelectual ao apegar-se ao que de pior o século XX alimentou.

domingo, maio 22, 2011
 
MARX, FREUD E ROCK
PARA OS BOTOCUDOS



Voltando à vaca fria... Há vigarices em que só caem pessoas cultas. O marxismo é uma delas, a psicanálise é outra. Analfabeto algum cairá nesses contos do vigário. Tais vigarices intelectuais só encontram fortuna em países subdesenvolvidos, que seguem a reboque de crendices pseudocientíficas oriundas da Europa. Para atrair intelectuais, uma vigarice precisa estar eivada de conceitos abstratos e palavras difíceis. O concreto não atrai intelectuais. Muito vulgar.

É espantoso ver, neste século XXI, como a imprensa ainda presta reverência a pensadores já obsoletos no século XX e que ainda vivem mentalmente no XIX. Por exemplo, Elisabeth Roudinesco, psicanalista, historiadora, docente, escritora, que entre seus títulos ostenta o de ser discípula de Jacques Lacan e amiga de Jacques Derrida.

Andrei Netto, correspondente do Estadão em Paris, a interrogava em entrevista publicada em 2009: o pensamento de Freud é íntegro e poderoso ainda hoje? Sua força criativa ainda existe?

Responde a Roudinesco:

- Sem dúvida. Creio que vamos assistir a um grande retorno a dois pensadores, inclusive: Marx e Freud. Não ao comunismo e à psicanálise, mas a Marx e Freud. Autores como Marx, Freud, Nietzsche e toda a filosofia da rebelião se tornaram malditos nos últimos 20, 30 anos, quando caímos em um estado de neoconservadorismo. A crise econômica, em especial como a que se passou nos Estados Unidos, vai desempenhar um papel considerável. Vamos voltar ao pensamento da rebelião.

Afirmar isto vinte anos depois da queda do Muro de Berlim revela, sem dúvida alguma, grande coragem intelectual. Ou desfaçatez, virtude que só tem trânsito no universo acadêmico. As grandes vigarices intelectuais só conseguem sobreviver em um caldo de cultura que só o topos uranos universitário propicia. Safadamente, a fulana introduz Nietzsche em seu rol de pensadores diletos, logo Nietzsche que nunca foi cúmplice de vigarice alguma.

Como as idéias de Freud retornarão? Com que aplicação? – pergunta o repórter.

- Retornarão com as de Marx. Mas não sei como serão aplicadas. O que está voltando com muita força é a idéia de que temos um inconsciente, de que o desejo é capital. A psicanálise, bem pensada, permite compreender os moeurs, o inconsciente, o desejo e a sexualidade de uma forma inteligente. É uma teoria do desejo, afinal.

E ainda há quem dê ouvidos a esta senhora. Costumo afirmar que Marx e Freud só morrerão de vez quando morrer esta velharada, que deles fez currículo e ganha-pão. Não é fácil, para um macróbio, olhar para trás e constatar que sua vida toda foi um equívoco, de alto a baixo. O pior é que deixam discípulos, que continuam a defender, por inércia, o obscurantismo. Talvez a humanidade tenha de esperar pelo menos mais duas gerações para libertar-se desta peste intelectual.

Acusações à psicanálise sempre geram reações iradas dos escroques que dela vivem. Não por acaso, a Roudinesco subiu em seus tamancos quando Michel Onfray, no ano passado, desancou a psicanálise e os psicanalistas. Roudinesco acusou Onfray de ter tirado as coisas do contexto – velho argumento de marxistas que não gostam de ouvir citações inconvenientes – e afirmou que Freud de maneira alguma apoiou o fascismo e nunca fez apologia dos regimes autoritários. "Quando sabemos que oito milhões de pessoas na França tratam-se com terapias derivadas da psicanálise, está claro que no livro e nas palavras do autor há uma vontade de causar danos", disse.

Quer dizer: se oito milhões de franceses garantem o bem-estar dos psicanalistas franceses, Freud deve ter razão. É um argumento curioso. Soa mais ou menos como: se um bilhão de pessoas acredita no Cristo, vai ver que deus existe. Se milhões de pessoas acreditaram no comunismo, vai ver que Stalin era um santo. Aos sofismas enumerados por Aristóteles no Organon, Roudinesco acrescenta o da quantidade. Se milhões acreditam em algo, esse algo é, ipso facto, verdadeiro.

Desde muito jovem, abominei a psicanálise. Sempre defendi a tese de que psicanálise é fé, religião, vigarice, tudo menos ciência. O que me levou a ser submetido, em um concurso público, a uma junta psicanalítica. Velha tese dos psicanalhas: quem contesta a psicanálise é porque precisa de psicanálise.

A guilda reage energicamente quando seu sustento é ameaçado. Em 2006, o psicanalista Renato Mezan, nas páginas amarelas de Veja, pretendia que Freud não morrera, mas continuava presente em toda a psicologia e também na cultura. Melhor faria se dissesse que continuava presente em uma cultura daquela classe média que gosta de pagar caro pelo que não entende.

Tentando explicar por que no mundo árabe a psicanálise não tinha muito futuro, Mezan dizia que "nos países islâmicos é mais complicado, não porque os muçulmanos não tenham inconsciente. O fato é que um xiita em crise dificilmente procuraria um analista. É mais provável que ele procurasse um líder religioso".

Ou seja: nós, que abominamos a psicanálise, somos comparados a fanáticos muçulmanos que jamais procurariam um analista, mas sim um líder religioso. Em parte, Mezan tem razão. Psicanálise, como religião, não passa de uma muleta metafísica, um placebo para enfrentar o desconforto - pelo menos para os fracos de espírito - de existir.

Sobre a crônica de ontem, me escreve uma leitora:

Olá, Janer.

A psicanálise não cura, mas proporciona um alívio através de um método muito simples: o bom e velho desabafo. Você paga para ser ouvido sem críticas ou qualquer outra restrição. Posso falar com propriedade porque já fiz análise. Abandonei e não faria novamente, mas na época eu era inexperiente, a angústia estava muito intensa e eu não sabia para onde correr.


A leitora tem mais profundidade do que as Roudinescos da vida. Mas a velha confissão católica pelo menos era gratuita. Tenho uma amiga que – além de ser petista – faz análise. Me confessou algo revelador: “quanto menos minha analista fala, melhor”.

Eu diria que o pagar é o que faz o sucesso da psicanálise. Valoriza-se mais uma coisa pela qual se paga do que algo que se recebe de graça. Eu me considero um excelente analista, nada a ver com os profissionais. Tenho ajudado muita gente em mesa de bar. Mas minha amiga petista vive em pé de guerra comigo. Já lhe sugeri uma hipótese: nos encontramos em um restaurante, eu deixo ela falar, não digo uma palavra e ela paga o almoço e o vinho. Não topou. Ela faz análise há uns dez ou mais anos, e ainda não se deu por curada.

Está chegando ao Brasil, para abrir a série de oito conferências da edição 2011 do ciclo Fronteiras do Pensamento, o assim chamado crítico cultural americano Fredric Jameson, marxista e freudiano. (Pelo jeito, crítico cultural virou profissão nos Estados Unidos).

Segundo Jameson, “a idéia de inconsciente político está ligada à interpretação do texto, o que está por trás dele, e, no final das contas, à própria ideologia e à natureza da ideologia como uma forma de inconsciente. Tentei explorar, e até desvelar, um conceito mais novo e complexo de ideologia que o tradicional. Não chamaria de freudo-marxismo, mas seria uma combinação de Marx e Freud. Assim como para Freud há um inconsciente, que se volta para experiências da infância etc., há também um inconsciente marxiano, que é a fonte da ideologia".

As Fronteiras do Pensamento, em pleno século XXI, trazem ao Brasil um marxista freudiano para nos explicar como se deve pensar. O que é opróbrio vira título. No Rio de Janeiro, apresentou-se hoje, com estádio lotado, Paul MacCartney. O país dos botocudos continua sendo um mercado promissor para o primeiro mundo, que nos exporta seu lixo cultural, Freud, Marx e rock.

sábado, maio 21, 2011
 
DEVE-SE ACABAR COM A PSICANÁLISE?


Foi lançado no Brasil, só agora em 2011, O Livro Negro da Psicanálise, publicado em Paris em 2005. A antologia de ensaios denuncia a psicanálise como um embuste e Freud como um charlatão. O livro certamente fará muito ruído chez nous, afinal sempre estamos na rabeira dos grandes debates. Se a pergunta entre americanos é se deve-se ou não acabar com os doutorados, em Paris a pergunta é outra, assim enunciada pelo Nouvel Observateur: "Deve-se acabar com a psicanálise?"

Qualquer uma das duas questões ainda causa perplexidade nesta terra de papagaios. No Estadão de hoje, lemos entrevista com a editora franco-argelina Catherine Meyer, responsável pela antologia. Interrogada sobre se Freud era um mentiroso, a moça não tem papas na língua:

- Sim, porque ele fraudou seus resultados. Não foi o único; há outros a trapacear no meio científico. Mas você sabe como as coisas funcionam na ciência: define-se uma hipótese, mesmo que inacreditável - como Édipo e o amor de um filho pela mãe e a pedra angular de nossa vida psíquica. Eis uma hipótese! Um filho tem desejo e quer ter relações sexuais com sua mãe. É o complexo de Édipo. Quando se faz uma hipótese científica, a seguir passa-se à fase de verificação. Procede-se um percurso de pesquisa para constatar a hipótese pela sua eficiência. Quando se imagina um medicamento para a tuberculose, ele é testado em várias pessoas. A seguir, usamos a lixeira para jogar fora todas as hipóteses refutadas. O que os teóricos explicam muito bem no Livro Negro da Psicanálise é que Freud lançou hipóteses e elas nunca deixaram de ser apenas isso: hipóteses. Ele traficou a realidade para confirmar suas hipóteses.

Claro que o livro vai gerar acerbos protestos, afinal demole com o ganha-pão de não poucos vigaristas em Pindorama. Mas o debate é antigo e já tem pelo menos 40 anos. Em 1965, os cientistas americanos Edward e Cathey Pinckney publicaram The Fallacy of Freud and Psychoanalysis, traduzida em 1970 no Brasil como Psicanálise, a Mistificação do Século, pela Edigraf, que reduzia Freud à condição de vigarista. No Brasil, Silva Mello publicou, em 1967, um gordo ensaio de 536 páginas, intitulado Ilusões da Psicanálise, publicado pela Civilização Brasileira.

Escrevem os Pinckney:

- Não existe uma única prova científica em apoio de que a psicanálise – definida como Freud como uma forma de tratamento da doença mental – tenha curado alguém ou possa curar uma doença! Ao contrário, existem numerosas observações documentadas demonstrativas não apenas dos insucessos da psicanálise, mas ainda, o que é pior, das suas conseqüências prejudiciais.

- O que mais contribui para comprovar a mistificação psicanalítica é o fato de os psicanalistas se esforçarem desesperadamente para rotular de ciência o seu método de exploração, sem contudo preencher nenhum dos postulados estabelecidos e aceitos pelos cientistas de todo o mundo, os únicos capazes de permitir-lhe o reconhecimento como verdadeiramente científica.

Isto foi escrito em 1965, há 46 anos. Os autores continuam desancando Freud por mais 218 páginas.

Estes livros repercutiam denúncias anteriores da grande vigarice do século XX. A psicanálise, mal surgiu, foi violentamente contestada. Em Gog, publicado em 1932, Giovanni Papini via Freud como um médico fracassado com pendores literários. Incapaz para a medicina, Freud dedicou-se à ficção. Assim nasceu a psicanálise. Mr. Goggius, o personagem do escritor florentino, é um milionário americano que a certa altura de sua vida quis conhecer o mundo e sai a viajar para ouvir as maiores personalidades da política, da ciência e das letras de sua época. Na entrevista com Freud, diz o criador da psicanálise:

- Que minha cultura é essencialmente literária demonstram-no, abundantemente, as minhas contínuas citações de Goethe, Grilpazer, Heine e outros poetas. A forma de meu espírito está inclinada para o ensaio, para o paradoxo, para o dramatismo, e nada tem da rigidez pedante e técnica do verdadeiro homem de ciência. Há uma prova irrefutável: em todos os países em que a psicanálise penetrou, foi ela mais bem entendida e aplicada pelos escritores e pelos artistas do que pelos médicos. Por outro lado, meus livros se assemelham muito mais a obras de imaginação do que a tratados de patologia. Os meus estudos sobre a vida cotidiana e sobre os movimentos do espírito são verdadeira e genuína literatura, e em Totem e Tabu também me exercitei na novela histórica. O meu desejo mais antigo e tenaz seria escrever verdadeiras novelas: possuo um tesouro de material em primeira mão que faria a fortuna de cem novelistas. Mas receio que agora seja muito tarde.

- Seja como for, soube, transpondo as dificuldades, vencer o meu destino e logrei o meu sonho: continuar a ser um literato, embora com as aparências de médico. Em todos os grandes homens de ciência há o sopro da fantasia, mãe das intuições geniais; mas nenhum se propôs, com eu, a traduzir em teorias científicas as inspirações da literatura moderna.

Isto escrevia Papini em 1932. Há quase oitenta anos. Antes da morte de Freud.

Ano passado, em livro que já comentei, Le crépuscule d’une idole - L’affabulation freudienne, Michel Onfray atacava o ídolo em que teria se convertido Freud e a vigarice que constitui a psicanálise. Era o que eu dizia nos anos 70. Pena que sou gaúcho e não gaulês.

No livro, publicado em 2010, o autor acusa o pai da psicanálise de ser mentiroso, fracassado e defensor de regimes totalitários. A psicanálise é comparável a uma religião e sua capacidade de curar as pessoas é semelhante a da homeopatia. Freud teria tranformado seus próprios "instintos e necessidades fisiológicas" em uma doutrina com pretensão de ser universal. Mas, para Onfray, a psicanálise seria "uma disciplina verdadeira e justa no que diz respeito a Freud e ninguém mais".

Freud fracassou na cura de pacientes que ele mesmo atendeu, mas ocultou ou alterou suas histórias clínicas para dar a impressão de que o tratamento havia sido bem sucedido. Ele afirma, por exemplo, que Sergei Konstantinovitch, indicado por Freud como "o homem dos lobos", continuou fazendo psicanálise mais de meio século depois de ter sido supostamente curado por Freud. E diz que Bertha Pappenheim, conhecida como "Anna O." e apresentada por Freud como um caso em que o tratamento contra histeria e alucinações funcionou, continuou tendo recaídas.

"A psicanálise cura tanto quanto a homeopatia, o magnetismo, a radiestesia, a massagem do arco do pé ou o exorcismo feito por um sacerdote, quanto uma oração diante da gruta de Lourdes”, afirmou Onfray, em debate promovido pelo Nouvel Observateur. "Sabemos que o efeito do placebo constitui 30% da cura de um medicamento", acrescentou. "Por que a psicanálise escaparia desta lógica?"

Nada de novo sob o sol.

sexta-feira, maio 20, 2011
 
AFFAIRE PALOCCCI:
A MINA DE OURO
ESTÁ NA PLANÍCIE



Comentando em março passado as falcatruas da Máfia do Dendê, patrocinadas pelo Ministério da Cultura (MinC), afirmei que no Brasil, mal se puxa o fio de uma meada, vem um novelo junto. Que o diga Antonio Palloci, o atual ministro da Casa Civil, aliás já enrolado em falcatruas anteriores, como a chamada Máfia do Lixo e quebra de sigilo bancário de um pobre caseiro. Domingo passado, a Folha de São Paulo revelava que o petista, em apenas quatro anos, multiplicou por vinte seu patrimônio.

Em 2006, o ministro havia declarado à Justiça Eleitoral que tinha uma casa de R$ 56 mil em Ribeirão Preto, onde fora prefeito junto com a Máfia do Lixo. Além disso, tinha um terreno e três carros, entre outros bens, num total de R$ 375 mil. Entre 2006 e 2010, este patrimônio passou para cerca de R$ 7,5 milhões. Que incluem um apartamento de R$ 6,6 milhões, adquirido no ano passado, e um escritório de R$ 882 mil em 2009, ambos não no Planalto, mas na planície, em São Paulo. E depois ainda existem negativistas profissionais que acham que este país nosso não compensa quem trabalha.

Ora, homem nenhum investe cem por cento de seu patrimônio em um apartamento e um escritório. Obviamente, havia mais fio a ser puxado. Já na segunda-feira, surgiram as primeiras camadas do imbróglio. O Estadão noticiava que pelo menos mais cinco ministros do atual governo tinham empresas de consultoria que continuavam ativas em pleno exercício do cargo.

Hoje recém é sexta-feira e a Folha desenrolou o resto do novelo. O faturamento da empresa de consultoria de Palocci, a Projeto, foi de R$ 20 milhões em 2010, ano em que o atual ministro coordenou a campanha que elegeu Dilma. Não é que o patrimônio deste operoso consultor tenha se multiplicado por 20 em cinco anos. Multiplicou-se 56 vezes, apenas no ano passado.

Em documento que deve ser enviado hoje à Procuradoria-Geral da República, Palocci informa que trabalhou para pelo menos vinte empresas, incluindo bancos, montadoras e indústrias, e que boa parte dos pagamentos foi concentrada entre novembro e dezembro do ano passado quando anunciou aos clientes que não mais atuaria no ramo de consultoria.

A reportagem da Folha encontrou, no escritório do ministro, apenas uma única telefonista, que disse não ter a mínima idéia do que seu chefe fazia. Não havia sequer uma servente, para oferecer cafezinho a tão distinta clientela. Palocci é um virtuose em matéria de consultoria. Atende 20 empresas de porte sem os serviços de nem mesmo um assessor. Isso sem falar no trabalho na Casa Civil. É homem que deve viver estressado.

Folga para a irmã do irmão aquele, Ana de Holanda, do MinC, que há duas semanas autorizou a captação de R$ 1,9 milhão para a primeira turnê no Brasil da cantora Bebel Gilberto, sua sobrinha. A propósito, a titia tem um carinho especial pelos sobrinhos. Em março passado, o MinC liberou 1,3 milhão de reais para um projeto de produção de vídeos da musa da Máfia do Dendê, Maria Bethânia, dos quais 600 mil iriam para sua modesta poupança. Outra parte do dinheiro iria o produtor dos vídeos, o cineasta Andrucha Waddington. Sobrinho adivinhe de quem? Sobrinho da tia Ana.

Graças ao providencial escândalo envolvendo o ministro da Casa Civil, a ministra da Cultura sai da berlinda e das manchetes. Para blindar o ministro, o governo usou de uma truculência insólita. Na edição de hoje, o Estadão bota a boca no mundo.

“Nunca se viu em algum país civilizado, na vigência do regime democrático, o que o governo fez na manhã da quarta-feira para impedir que o ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, fosse chamado a explicar ao Congresso como conseguiu multiplicar o seu patrimônio por 20 enquanto exercia mandato de deputado federal, entre 2006 e 2010. Cumprindo a sua parte na operação decidida na véspera no Palácio do Planalto, o líder do governo na Câmara, o petista Cândido Vaccarezza, acionou os serviços da Casa, com a provável cumplicidade da presidente em exercício, Rose de Freitas, do PMDB, para bloquear - pela força - o acesso dos membros de duas comissões legislativas permanentes às respectivas salas. (...) Numa iniciativa equivalente, no plano simbólico, ao fechamento do Poder Legislativo, políticos transformados em cães de guarda do principal quadro do governo Dilma Rousseff mandaram trancar os plenários das citadas comissões - e chamaram a Polícia Legislativa para, no papel de leão de chácara, barrar a passagem dos parlamentares”.

Tais abusos por parte do governo atestam mais do que nada o temor de uma convocação do ministro. Que está enrolado em um caso óbvio de tráfico de influência, advocacia administrativa e venda de informações privilegiadas. A presidente não tem ainda seis meses de governo e já tem sete ministros envolvidos em falcatruas. Uma média de mais de um por mês.

Para um ministro, ministério no Planalto é argent de poche. A mina de ouro mesmo está na planície. Pelo jeito ainda há muito novelo a desenrolar. E recém é sexta-feira.

quinta-feira, maio 19, 2011
 
ESCRITORES QUEREM
VIDA MANSA ÀS CUSTAS
DO CONTRIBUINTE



Leio na Folha de São Paulo, em reportagem de Lucas Ferraz, que a Argentina quer instituir uma pensão social para escritores. A idéia, inspirada em leis aprovadas na França e na Espanha, é defendida há anos por um grupo de escritores do país. "Com a barriga vazia, o escritor não escreve", diz o poeta Miroslav Scheuba, coordenador da Sociedade Argentina de Escritores. "Como escritores são boêmios, não economizam e acabam sem nada", completa.

A entidade já conseguiu aprovar o projeto em Buenos Aires, em 2009. São 100 escritores beneficiados, que recebem por mês 2.650 pesos - cerca de R$ 1.080. A prefeitura da cidade analisa atualmente o pedido de pensão de outros 30 autores. Pelos cálculos do governo, no âmbito federal, seriam quase mil beneficiados.

Os requisitos para o autor postular à pensão é não ter fonte de renda - ou tê-la menor que o valor da bolsa-escritor. É necessário ter mais de 60 anos, ter se dedicado mais de 20 anos à atividade literária ou publicado mais de cinco livros. Outro quesito essencial é morar há pelo menos quinze anos na Argentina.

Trocando em miúdos: os escritores argentinos querem delegar ao contribuinte seu sustento e os gastos de suas boêmias. Se não conseguem viver de direitos de autor, passam a conta aos leitores. Ou nem mesmo a eles, já que quem não os lê também vai marchar. O escritor passa a ser uma espécie de incapaz do ponto de vista econômica, a ser sustentado por esmola estatal.

Ainda segundo o jornal, uma voz isolada levantou-se contra o projeto, o escritor Cesar Aira: "Faz tempo que se discute isso por aqui. Sou contra". Aira comenta o caso do México, onde uma lei garante a qualquer pessoa maior de 18 anos, após escrever um livro, pensão vitalícia do Estado. "Não acredito que isso seja bom para a literatura."

A brilhante idéia já surgiu em Pindorama. Mais precisamente em 2002 quando Mário Prata, medíocre cronista do Estadão, pediu ao presidente da república o reconhecimento da profissão de escritor: "O que eu quero, meu presidente, é que antes de o senhor deixar o governo, me reconheça como escritor". Claro que não era apenas a oficialização de uma profissão que estava em jogo. Mas o financiamento público da guilda.

Esquecendo que existe um Congresso neste país, o cronista pedia ao presidente a elaboração de uma lei. Mais ainda. Citava a Inglaterra como exemplo de país onde o escritor é reconhecido. Lá, segundo o cronista, toda editora que publicar um livro, tinha que mandar um exemplar para cada biblioteca pública do país. "Claro que os 40 mil exemplares são comprados pelo governo. Quem ganha? Em primeiro lugar o público. Ganha a editora, ganha o escritor. Ganha o País. Ganha a profissão".

E quem perde? - seria de perguntar-se. A resposta é simples: como o governo não paga de seu bolso coisa alguma, perde o contribuinte, que com os impostos tem de sustentar autores até mesmo sem público. É o que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento: a indústria do texto. É uma indústria divina: você pode não ter nem um mísero leitor e vender 40 mil exemplares.

Como vão viver os escritores? – perguntava-me então um leitor. Que vivam de profissões honestas, como os demais homens. Literatura é profissão? Em um livro que causou algum escândalo na Paris dos anos 70 - Le Bazar des Lettres - Roger Gouze contestou com energia o caráter profissional do ofício. "O estatuto oficial do escritor me parece tão absurdo quanto o das prostitutas que também reivindicam o seu: não se pode ao mesmo tempo desafiar o poder, a polícia, as leis (por hipócritas que sejam) da sociedade e pedir-lhes uma proteção". Se a literatura é uma arte - argumenta Gouze - o escritor deve, como todo mundo, ter uma profissão que o sustente, ao lado da arte que ele alimenta com o melhor de si mesmo. "Não uma segunda profissão, pois a literatura não é uma".

Como viverá então o escritor se a obra não lhe rende nada? "Como todo mundo" - responde Gouze. Claro que Gouze falava de uma época em que literatura era vista como contestação. Hoje, os autores estão se profissionalizando. O editor pesquisa o paladar do público e encomenda um produto de moda. O escritor, como carneirinho dócil, escreve o que o público pede e o editor ordena.

O personagem mais venal que conheço é o escritor profissional. Ele segue os baixos instintos de sua clientela. O público quer medo? Ele oferece medo. O público quer lágrimas? Ele vende lágrimas. O público quer auto-ajuda? Ele a fornece. É preciso salvar o famoso leite das criancinhas.

No fundo, saudades da finada União Soviética, onde os escritores eram pagos pelo Estado comunista para louvar o Estado comunista. Sobrou até mesmo para a prostituta-mor das letras brasileiras. Em 1950, o ex-nazista e militante comunista Jorge Amado passou a residir no Castelo da União dos Escritores, em Dobris, na ex-Tchecoslováquia, onde escreveu O Mundo da Paz, uma ode a Lênin, Stalin e ao ditador albanês Envers Hodja. No ano seguinte, quando o livro foi publicado, recebeu em Moscou o Prêmio Stalin Internacional da Paz, atribuído ao conjunto de sua obra, condecoração geralmente omitida em suas biografias.

Escritor financiado pelo Estado é escritor que vendeu sua alma ao poder. É o que acontece quando literatura vira profissão. Alguns se rendem ao que pede o grande público e fazem fortuna considerável. Uma minoria consegue exercer honestamente a literatura e manter a cabeça acima da linha d’água.

Uma imensa maioria, que não consegue ganhar a vida nem honesta nem desonestamente, apela à cornucópia mais ao alcance de suas mãos, o bolso do contribuinte.

 
NO BRASIL, SIMPATIZAR
COM HITLER RENDE VOTOS



O cineasta dinamarquês Lars von Trier, que compete pela Palma de Ouro no Festival de Cannes, causou escândalo na imprensa européia ao afirmar que era nazista e que simpatizava um pouco com Hitler. “Durante muito tempo, eu pensei que fosse judeu, e eu estava feliz com isso. Mas então um dia vi que era, na verdade, nazista. Entendo Hitler, simpatizo um pouco com ele.” Para remendar, disse que também gostava muito dos judeus. “Muito, não. Um pouco”. Mais adiante, disse o dinamarquês: “Bom, eu, como nazista…”. O mediador preferiu encerrar a entrevista.

O cineasta foi declarado persona non grata no Festival. Chez nous, pode-se apoiar Hitler à vontade. Em 1979, em entrevista à Playboy, um outro senhor afirmou: "O Hitler, mesmo errado, tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer". Este senhor chamava-se – e ainda se chama – Luís Inácio Lula da Silva e foi eleito e reeleito presidente da República.

quarta-feira, maio 18, 2011
 
EU, ELITISTA


Em função do que escrevo, particularmente das últimas crônicas sobre Higienópolis, tenho sido chamado de elitista. O que não me surpreende, sempre fui elitista. Mas meu conceito de elite não é o vigente. Não tem nada a ver com posses ou poder. Não tenho consideração alguma por pessoas que são apenas ricas ou detentoras de poder. Se forem ricas e cultas, se forem dotadas de sensatez, refinamento e savoir vivre, bem-vindas sejam à minha mesa. Se são ricas e poderosas, mas vazias por dentro, por favor mantenham distância. Vejo mais sensatez em meu barbeiro do que em PhDeuses da USP. Minha faxineira tem mais bom senso que muito acadêmico. Prefiro conversar com meus garçons do que com professores de Teoria Literária.

O mundo está cheio de ícones bafejados pela mídia, tipo papa, Dalai Lama, Lady Gaga, Beatles, Pelé, Lula, Xuxa et caterva. Para mim, não valem um vintém. Particularmente o papa, dedicado funcionário do obscurantismo. Não tributo nenhum respeito a estes senhores. Se um dia me estendessem a mão, recusaria a minha. Meus heróis são outros. Platão, Sócrates, Galileu, Giordano Bruno, Cervantes, Swift, Nietzsche, Renan, Hernández, Pessoa, Orwell, Alexandre, Schliemann, Fernão de Magalhães, Champollion, Mozart, Verdi, Bizet, Fellini, Kurosawa. Hesito entre qual vida mais me fascina, se a de Alexandre, de Schliemann ou de Magalhães.

Entre os amigos e amigas de meu pequeno círculo, não há ninguém famoso. Nem rico. Conheci de perto pessoas que sonham em roçar-se a certos ídolos. Certa vez, em uma festa em Alphaville, vi um monte de gente se espremendo para tirar uma foto junto a um afrodescendentão cheio de dentes. Quando perguntei a alguém de quem se tratava, tive uma resposta perplexa. Como que eu não sabia de quem se tratava? Era um famoso apresentador de televisão. Confesso que jamais ouvira falar do distinto. Da televisão nacional, só assisto a algum noticiário e olhe lá!

Fiquei também sabendo que era comunista. Mais uma razão para tomar distância. Não conheço comunista honesto. Pelo que li mais tarde, elegeu-se deputado ou senador. Ou coisa que o valha. Hoje, está atolado até o pescoço nessas corrupções inerentes a políticos. É arriscado tirar foto com certas personalidades. Suponho que Obama, Sarkozy, Berluscone ou Lula hoje se arrependam amargamente de terem posado, cheios de sorrisos, junto a Kadafi.

Isto sem falar nas sumidades que um dia abraçaram o poderoso responsável pelo FMI, Dominique Strauss-Kahn. Que acabou se revelando um vulgar puxador de saias. A affaire revela o caráter destes senhores. Como pode, um homem que com um estalar de dedos teria as mulheres que quisesse, atacar uma camareira de hotel? De potestade do planeta a prisioneiro em uma cela de 12 metros quadrados em Rikers Island. De candidato preferencial à Presidência da França a personagem do Law & Order. Foi preso pela Special Victimes Unit, como no seriado. Profundo mistério! Não, não tenho apreço algum por detentores de poder, dinheiro ou fama. Prefiro o convívio com meus anônimos amigos.

No fundo, sou um aristocrata. Mas na acepção aristotélica de aristocrata, aquele que possui a aretê, conceito elaborado pelos antigos filósofos gregos, que podemos traduzir por virtude. No grego moderno tem mais o sentido de mérito, qualidade, aptidão. No antigo, o de coragem e honra. Não que eu conheça grego antigo ou moderno. Consultei uma boa amiga, apaixonada pela Heléia.

“Nas minhas idas e vindas pela cidade – dizia Sócrates –, não faço outra coisa senão persuadir-vos, novos e velhos, a que vos preocupeis mais, nem tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa alma, para a tornardes o melhor possível, dizendo-vos: a virtude não vem da riqueza, mas sim a riqueza da virtude, bem como tudo o que é bom para o homem, na vida particular ou pública."

O conceito de aretê está intimamente ao de paidéia, o "processo de educação em sua forma verdadeira, a forma natural e genuinamente humana" na Grécia antiga, segundo Werner Jaeger, a cultura construída a partir da educação. O objetivo da paidéia não era formar profissionais, mas treinar o cidadão para o exercício da liberdade e da nobreza. É deplorável que esse conceito tenha ficado enterrado no fundo dos tempos e a educação, hoje, tenha se transformado em instrumento de aquisição de dinheiro ou poder. O avanço na história jamais coincidiu com superioridade moral. Quantos mortais, hoje, teriam a dignidade de um Sócrates ou a visão e coragem de um Alexandre?

Naqueles dias, lemos na República, homem superior era o filósofo. Era o homem que não se entregava à multiplicidade das impressões sensoriais, nem se deixava arrastar durante a vida inteira pelo vai-e-vem das simples opiniões. Só ele possuía um conhecimento e um saber no verdadeiro sentido destas palavras. Só ele podia dizer o que era belo e justo em si. As opiniões da massa a respeito destas e das restantes coisas oscilavam na penumbra entre o não-ser e o verdadeiro Ser. O filósofo possuía a episteme. As massas se contentavam com a doxa, o saber vulgar. O mundo mudou, e não foi para melhor. Hoje, homem superior é o roqueiro ou jogador de futebol. E filósofo é qualquer acadêmico que fala de forma obscura sobre coisas claras.

Sou oriundo de uma geografia onde ser alfabetizado era como ter um olho em terra de cegos. Desde muito cedo intui que conhecer é mais desejável que ter. Uma boa biblioteca, para mim, vale mais do que um iate ou casa na praia. Considero mais inteligente viajar do que ter carro. Nunca tive carro, não sei sequer dirigir, mas conheço bastante bem o planetinha. Com carro não se vai longe. Melhor dois pés na Europa que quatro rodas no Brasil. Melhor conhecer cinco ou seis línguas do que ter dez ou vinte imóveis e ser monoglota. Melhor conviver com quem gostamos do que roçar-se em mitos. Melhor gostar da mulher que está a meu lado do que daquela que está longe.

Até hoje, guardo a terna lembrança de uma amiga sueca. Era, para desgosto de sua família, guia turística. Seus pais prefeririam que tivesse profissão mais rentável. Eram os dias da Guerra Fria. Se um dia os russos invadirem a Suécia – me dizia Lena – podem tomar as posses de todos os suecos. Mas minhas viagens eles não me tomam. Boa parte de meus amigos são viajantes sem cura. Possuem posses que ninguém rouba. Eu também. Se um dia um assaltante invadir meu apartamento, terá perdido seu tempo.

Sim, sou elitista. Mas elitista a meu modo. Nada a ver com o que se chama usualmente de elite.