¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, março 31, 2009
 
MENTIR OU NÃO MENTIR?


Mentir ou não mentir? – eis uma pergunta adequada para um 1º de abril. Se bem que as mentiras desta data são em geral inofensivas, têm mais o sentido de brincadeira do que a intenção de prejudicar alguém. Verdade que muitas vezes acabam prejudicando. A imprensa nacional – e particularmente a Veja – tiveram a reputação profundamente abalada por uma dessas piadas.

Aconteceu em 1983, quando a Veja endossou como verdade científica uma brincadeira lançada pela revista inglesa New Science. Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria de ciências visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com um pé atrás. Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia “sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica".

Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com hambúrguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na piada.

Azar do redator crédulo. 1º de Abril à parte, escritores e pensadores se dividem, alguns considerando a mentira necessária ao convívio humano, outros banindo-a para o rol dos vícios inaceitáveis. No Estadão de ontem, o psiquiatra Flávio Gikovate afirmava com todas as letras: ''A mentira é um instrumento da inteligência. As pessoas nem sempre gostam de ouvir a verdade". O que é verdade. Os partidários do “me engana que eu gosto” são milhões, haja vista a eleição de um operário analfabeto para a magistratura suprema da nação. Isso sem falar nas pessoas que mentem para si mesmas e acabam acreditando nas próprias mentiras.

Pode a mentira ser necessária? Sem dúvida, e há casos em que salva vidas. Os estudiosos propõem um exemplo: você está sentado no bar da esquina. Uma mulher, desesperada, passa correndo na rua e dobra à direita. Mal some de sua vista, surge um marido – ou animal semelhante – correndo de revólver em punho. E pergunta: você viu passar uma mulher correndo? Para que lado ela foi? Se você disser a verdade, provavelmente condenou a moça à morte.

Numa guerra, a mentira pode ser fundamental para uma vitória. O caso clássico é o de um falso major inglês que jamais existiu, mas cujo cadáver foi decisivo para a vitória contra os alemães na Segunda Guerra. Os aliados precisavam convencer os alemães que seu próximo objetivo não seria a Sicília. Conseguiram encontrar o corpo de um soldado que morrera de pneumonia, o que permitia sugerir a morte por afogamento.

Deram-lhe o nome de William Martin, oficial dos Fuzileiros Reais, forjaram papéis que simulavam sua identidade e largaram o cadáver numa praia de Huelva, Espanha, onde certamente seria encontrado pelos nazistas. Em seu uniforme foi inserida uma mensagem de Lord Mountbatten para o almirante da esquadra, Sir Andrew Cunningham. Uma frase sugeria que a invasão ocorreria na Sardenha. "Ele pode trazer consigo algumas sardinhas — aqui estão racionadas!".

No dia 19 de abril de 1943, oculto no compartimento de torpedos do submarino Seraph, o cadáver de William Martin foi discretamente jogado ao mar próximo à praia. O próprio Hitler caiu no engodo e concluiu que o ataque dos Aliados seria dirigido principalmente contra a Sardenha. Dividiu suas forças e os Aliados puderam entrar na Sicília em ritmo de passeio. William Martin, que jamais existiu, hoje é cultuado como herói na Inglaterra.

Há mentiras que são muito necessárias e toda guerra não passa de um festival de mentiras. A mentira, no caso, não foi exatamente um instrumento da inteligência humana, mas da Inteligência militar. É uma arma tão legítima - e geralmente mais eficaz - quanto um fuzil ou canhão. Mas não é disto que Gikovate fala, e sim das mentiras do dia-a-dia. Segundo o psiquiatra, a sinceridade pode às vezes ser uma coisa maldosa, agressiva. No que tem toda a razão. Digamos que você tenha uma amiga que não foi exatamente favorecida pelos deuses. Ela é decididamente feia. Ora, você não pode dizer isto. Vai magoar, e talvez profundamente, uma pessoa. Mas tampouco precisa dizer que é linda. Melhor calar a boca. Nesses casos, saio pela tangente. Se ela me pergunta sobre sua beleza, tenho resposta pronta: “Não existem mulheres lindas ou feias. Existem apenas mulheres mais abraçáveis ou menos abraçáveis”. O que não deixa de ser verdade.

Quando a mentira faz bem? – quer saber o entrevistador. “Quando é piedosa – diz Gikovate -. “Os médicos nem sempre contam para o doente terminal o real estágio da doença”. Aqui vou discordar do psiquiatra. Depende do paciente. Se se trata de um destes seres que viveram toda uma vida embalados por mentiras, é de fato uma crueldade revelar-lhe a única, a última e pior das verdades. Já para alguém que não teme verdades, por mais cruciais que sejam, parece-me desonesto ocultar-lhe a própria morte. A sonegação da verdade rouba-lhe a chance de deixar tudo pronto antes de partir, organizar seus papéis, testamento, vontades e informações finais. O que torna bem mais fácil a vida dos que ficam. De minha parte, na hora de partir, não quero perto de mim médico algum que partilhe da filosofia do Dr. Gikovate.

Quanto às mentiras do dia-a-dia, a meu ver existem as perfeitamente inofensivas e as absolutamente prejudiciais. Digamos que você está conversando com amigos e subitamente sentiu vontade de estar só. Se você manifestar este desejo, pode melindrar alguém que vai se julgar o motivo de sua vontade de estar só. Se disser que precisa ir em casa para fazer um trabalho urgente, não está dizendo a verdade. Mas tampouco está prejudicando alguém. Pelo contrário, está sendo gentil.

Mas há uma outra mentira do dia-a-dia, certamente a mais encontradiça em nossos dias, que me parece repulsiva. Volto mais tarde.

segunda-feira, março 30, 2009
 
CRISE UNE FAMÍLIA
E RESSUSCITA AMOR



Essa tal de crise da qual tanto se fala, pelo jeito ainda não deu as caras em São Paulo. Ou pelo menos na geografia urbana que uso. Aos fins de semana, se você vai a churrascarias imensas como El Tranvia, Pobre Juan ou Vento Haragano, se for na hora do almoço, encontrará no mínimo meia hora de espera. Veterano, chego sempre um pouco mais tarde. Nos bons restaurantes da Paulicéia – e não estou falando daqueles destinados a pessoas jurídicas, como o Fasano ou Massimo, onde a clientela em geral paga com o dinheiro do contribuinte – você vai ver todos os dias uma turba alegre, conversando, namorando, bebendo e comendo bem. Vilaboim, Vila Madalena, Pinheiros, Jardins, a rua Augusta, hoje revitalizada, continuam fervendo de gentes em busca de boa comida ou lazer noturno.

Verdade que há um certo índice de desemprego entre os proles, como diria Orwell. Mas não vi nem tive notícias de nenhum restaurante fechando ou baixando os preços. Pelo contrário, novas casas estão abrindo todas as semanas. Em Paris ou Madri, você come melhor e mais barato que nesta capital que se gaba de sua gastronomia. Inclusive me consta que hoje sai barato visitar a Islândia, o país mais caro da Europa. Realistas, hoteleiros e restauradores preferiram diminuir seus lucros a perder seus investimentos.

No Primeiro Mundo, a crise corre solta. Já nem falo das seis centenas de milhares de empregos que desapareceram no início do ano nos Estados Unidos. Nem no índice Down Jones, que caiu mais de 2.200 pontos desde setembro do ano passado. Segundo o New York Times, a crise está interferindo até nas relações pessoais. Curiosamente, interferindo de forma positiva. Segundo o jornal, as agências de namoro especializadas em encontrar o parceiro ideal, tanto as online quanto as tradicionais, estão anunciando que o interesse pela paquera cresceu bastante. Sites de relacionamento tiveram grandes lucros nos últimos meses, e firmas offline como a Amy Laurent International, um serviço de busca de parceiros românticos com escritórios em Nova York, Los Angeles e Miami, diz que os negócios aumentaram 40% entre os clientes do sexo feminino nos últimos quatro meses.

Os motivos seriam óbvios. Pessoas desempregadas e subempregadas contam com mais tempo para surfar na Web, e os serviços de namoro online são uma forma relativamente barata de conhecer pessoas. Os programas de encontro organizados são mais baratos do que o financiamento de uma série de jantares potencialmente inúteis com pessoas desconhecidas. E pessoas solteiras – o amor é lindo! – estão buscando o conforto de um relacionamento durante períodos difíceis. Um site que registrava cerca de 80 mil encontros virtuais diários em outubro, aumentou 60%, para uma média de 130 mil encontros. Em dias bicudos, um ombro amigo para chorar as desgraças é sempre bem-vindo.

Se na Paulicéia o clima está mais para último baile da Ilha da Fiscal, nos States as pessoas estão preferindo relações virtuais. Segundo Markus Frind, diretor-executivo de um site gratuito, "durante as recessões as pessoas ficam mais em casa, elas não desejam pagar contas e ir para bares. Elas conectam-se à Internet e conhecem-se no ciberespaço”.

Quem ganha é o tal de amor. Segundo sites de relacionamento na Web, “à medida que os mercados de ações despencam em todo o mundo, as pessoas optam por tentar a sorte no amor online, como forma de esquecer os problemas financeiros e de economizar”. Para a psicóloga nova-iorquina Paulette Kouffman Sherman, se a recessão resultar em um desejo por relacionamento que não se baseie nas finanças pessoais do indivíduo, isso poderá representar de fato um boom para o amor. "Um indivíduo possui muitos aspectos. Focalizar-se apenas em emprego ou dinheiro é algo meio doentio". Pelo jeito, a psicóloga descobriu a América.

O pensador cristão Gabriel Marcel, que passou todo o século passado clamando no deserto, filosofando sobre a supremacia do ser em relação ao ter, deve hoje estar batendo palmas em sua tumba. Nada melhor que uma boa crise para que os consumidores contumazes americanos começassem a pensar nos valores do ser. Segundo Annie Edgerton, uma atriz que mora em Manhattan, “tudo isso fez com que a pressão no sentido de impressionar os outros com dinheiro diminuísse muito. Agora dá para conhecer uma pessoa por aquilo que ela de fato é, e não pelo seu emprego, já que ela pode não estar mais empregada".

Da Espanha, recebo notícias de que divorciar-se virou luxo, recurso apenas ao alcance de quem pode enfrentar uma separação. Divórcio significa duas casas em vez de uma, dois mobiliários em vez de um, despesas que não mais são assumidas em conjunto, mas agora em separado. Os casais, hoje, pensam duas vezes antes de separar-se. Mas, como escreveu o Velho, a humanidade não formula jamais senão problemas que pode resolver, “porque, se olharmos mais de perto, vemos sempre que o próprio problema só surge onde as condições materiais para resolvê-lo existem ou, pelo menos, estão em vias de aparecer”. Sobrou até para um revival de Marx: muitos dos casais que se separam, estão preferindo continuar morando na mesma casa.

Segundo o El País, “a opção por viver só que prolifera em tempos de bonança vive horas sombrias na Espanha. O desemprego e as dificuldades lhe tiraram todo o encanto. Os sozinhos (ou ímpares, como são chamados na Espanha) não sofrem a crise mais que os outros. Mas a sofrem. O número dos que procuram companheiros para dividir apartamento, segundo alguns portais da internet, quase duplicou. O crescimento de domicílios unipessoais, depois de um aumento trepidante, está sendo freado. E as separações, essa fábrica de singles que trabalhou a pleno vapor com o divórcio expresso, agora baixou o ritmo, devido ao fim desse efeito e também à crise econômica”.

Patricia F., catalã entrevistada pelo jornal, diplomada em filosofia e sociologia, é um exemplo típico da crise. Ganhava três 3 mil euros brutos por mês e podia morar sozinha em um apartamento alugado em Barcelona. Teve de baixar o ritmo de consumo. "Porque com o desemprego não tenho nem para a metade dos meus gastos. Cortei tudo: saía para jantar fora no mínimo duas vezes por semana e agora só saio se for a uma festa em casa de amigos. Não sou de comprar muita roupa, mas quando gostava de algo não precisava pensar. Em momentos assim você trabalha para si mesma, vive como lhe apetece, mas agora não".

Os setores de hotelaria e restauração acusam o golpe. Para José Luis Guerra, presidente da Federação Espanhola de Hotelaria, "não se pode distinguir entre todos esses solteiros e o público em geral, mas a queda foi generalizada. Este ano o gasto está caindo entre 9% e 10% ao mês". Não diminuem as visitas aos restaurantes, mas sim o gasto: de dois pratos se passa a um para a dividir e da sobremesa ao café, diretamente.

Uma das soluções é voltar ao ninho paterno. "Isso é algo que ocorre nas recessões, costuma servir para a coesão familiar. Porque no final, em momentos assim, é a família que ajuda”, diz José Luiz Nueno, um outro entrevistado. Quem deve estar vibrando com a crise é Sua Santidade Bento XVI e todos os papistas que há horas reclamam da dissolução familiar e de costumes.

O paradoxal nesta crise é que o Primeiro Mundo está caindo na real, como se diz, e baixando o nível de consumo. Desconheço a situação no Brasil todo. Mas nesta cidade em que vivo, o clima está mais para “bebei e embriagai-vos, caríssimos, pois o reino de Deus está próximo”. Quanto mais se fala em crise, mais os paulistanos fazem festa.

A tal de crise parece estar comendo pelas bordas. Nestes dias em que, santé oblige, virei abstêmio, tenho consumido não poucas latinhas daquelas abomináveis cervejas sem álcool, Kronenbier e Líber. Já ia jogando as latas ao lixo, quando Cristina, minha assessora de assuntos domésticos, me interrompeu. “Não faça isso, professor, essas latinhas eu levo pra casa”.

Fiquei preocupado. Estaria pagando tão pouco a ponto de ela precisar recolher latinhas? Não era bem isso. Ela levava para o filho. Que as vendia para comprar videogames. Setenta latinhas dão um quilo. Que era vendido por três reais. Com a crise, estão pagando só um real por quilo. O moleque está então capitalizando as latinhas, à espera de dias melhores.

Estranho país, este nosso. Quem tiver notícias da crise, que mas envie. Daqui de São Paulo, não consigo vê-la.

domingo, março 29, 2009
 
À SOMBRA ODIOSA DA ODIOSA
COLUNA DE FERRO EMPARAFUSADA



Os jornais de hoje me lembram que, nesta terça-feira próxima, a Dame de Fer está completando 120 anos. Idade respeitável para uma senhora que, centenária, mantém-se rija, esbelta e charmosa. Vivi quatro anos ao lado dela e jamais a visitei. Durante mais de duas décadas, fui e vim de Paris, sempre me contentando em olhá-la de perto, mas sem penetrar sua intimidade. Nutria até um certo orgulho: moro aqui e jamais subi na torre Eiffel. Parecia-me um tremendo lugar-comum ir a Paris e subir até seu cume. Como abomino lugares-comuns, dela sempre mantive uma respeitosa distância.

No entanto, a considero simpática. Depois de existir, passou a simbolizar Paris e nada mais que isso. Não celebra nenhum combate ou vitória, não evoca nenhum massacre ou fato histórico. Não homenageia nenhum tirano ou estadista, nenhum mártir ou herói, nenhum santo ou deus. É neutra. Cada vez que a vejo, me vem à mente um velho dito francês: soit belle et tais-toi! Seja bela e cale a boca! Muda e silente, não emite mensagem alguma, nem religiosa nem política, nem filosófica nem ideológica. Contenta-se apenas em lembrar que foi erigida para inaugurar a Exposição Universal de 1889. Discreta e ao mesmo tempo escandalosa, é como se apenas dissesse, com suas luzes cintilantes: estou aqui, estou aqui, estou aqui.

Havia um outro motivo, as multidões que a buscam. Subir nela significava esperar duas, três ou mais horas, em filas quilométricas ante suas quatro patas. Ora, nenhum espetáculo do mundo me faz esperar nem mesmo uma hora em uma fila. Brasileiros que me visitavam, mal chegavam logo faziam a proposta obscena: vais nos levar até a torre, não? Ok! Levar, até que eu levo. Mas não subo. Verdade que, um belo dia, eu passeava com a Baixinha pelo Trocadero. Estávamos ali, apenas passeando pela cidade, sem nada para fazer e com o dia todo pela frente. É hoje! – pensei. Não era. Multidões se espremiam em cada pata. Uma das filas era mais curta, teria apenas umas trezentas pessoas. Era a fila para subir a pé. Excusez-moi, chérie, mas não vai ser hoje.

Há uns quatro ou cinco anos, viajando com a Primeira-Namorada, nos aproximamos da velha dama. Só vamos olhar de baixo – já fui alertando – porque nela eu não subo. Rumamos até o vasto espaço circundado por suas patas e, milagre, numa delas havia uma fila curtinha. De novo pensei: é hoje! Era mesmo. Em quinze minutos estávamos no topo. Confesso que não me impressionou muito. O Arco do Triunfo, embora bem mais baixo, dá uma visão bem mais esplendorosa de Paris.

Se hoje a Eiffel é um fato consumado – e de um charme universalmente reconhecido – o mesmo não ocorreu nos dias de sua construção. Os ecochatos são como deus, eternos, e desde Babel sempre se opuseram aos mais belos sonhos da humanidade. No caso de Babel, o ecochato-mór foi o próprio Jeová, que não gostou do humano projeto de chegar ao céu e criou várias línguas para confundir seus construtores. Se bem que já ouvi tese inversa. Que eles falavam várias línguas e só começaram a desentender-se quando passaram a falar uma só. Conhecendo os bois com que lavro, não duvido.

Nos finais do XIX, os ecochatos chamavam-se Alexandre Dumas filho – que, mediocrité oblige, foi o responsável pela criação do mito de Anita Garibaldi –, Huysmans, Guy de Maupassant, François Coppée, Leconte de Lisle, Sully Prudhomme, Charles Garnier, Gounod, etc. Em fevereiro de 1887, um violento panfleto, assinado por estes senhores, foi lançado contra o projeto de Gustave Eiffel:

Nós, escritores, pintores, escultores, arquitetos, amadores apaixonados da beleza até aqui intacta de Paris, viemos protestar com todas nossas forças, com toda nossa indignação, em nome do gosto francês não reconhecido, em nome da arte e da história francesa ameaçadas, contra a ereção, em pleno coração de nossa capital, da inútil e monstruosa torre Eiffel.
(...)
A cidade de Paris irá então se associar por mais tempo aos barrocos, às mercantis imaginações de um construtor de máquinas, para se enfeiar irreparavelmente e se desonrar?
(...)
Basta imaginarmos uma torre vertiginosamente ridícula dominando Paris, como uma negra e gigantesca chaminé de usina, esmagando com sua massa bárbara a Notre-Dame, a Sainte-Chapelle, a torre Saint-Jacques, o Louvre, o Dôme des Invalides, o Arco do Triunfo, todos nossos monumentos humilhados, todas nossas arquiteturas diminuídas, que desaparecerão nesse sonho estupefiante. E durante vinte anos, nós veremos alongar-se sobre a cidade inteira, ainda comovida com o gênio de tantos séculos, como uma mancha de tinta, a sombra odiosa da odiosa coluna de ferro emparafusado.


A impressão que fica deste manifesto é que a altura da torre os incomodava. Uma vez erguida, alguns fizeram marcha a ré e Gounod chegou a defini-la como um concerto nas nuvens. Longa é a jornada dos brutos até o entendimento. O curioso é que os brutos em questão constituíam a elite intelectual de Paris. O que só demonstra que nem os mais brilhantes cérebros de uma nação estão imunes a grandes equívocos.

Gosto da Eiffel. Mal saímos do aeroporto, é o primeiro ícone que se nos apresenta aos olhos. Mesmo chegando pela primeira vez a Paris, temos uma impressão de déjà-vu, como se a torre pertencesse – como de fato pertence – ao imaginário universal. Mas a mais terna lembrança da elegante Dama de Ferro, eu a tenho de outras circunstâncias. Em meus dias de Gália, tive uma amiga francesa que morava na Rue de la Bourdonnais, perto da École Militaire. Jornalista, vivia em uma diminuta chambre de bonne no sétimo andar de um prédio antigo. Sem elevador, é claro. Quando entrei pela primeira vez em seu quarto, um pôster colossal, dourado e desproporcional da torre, me ofuscou os olhos.

Não era pôster. Era a torre que entrava janela adentro, toda trêmula, vestida de um ouro ofuscante. Não digo que tenha sido um concerto nas nuvens. Mas foi um belo dueto, à sombra odiosa da odiosa coluna de ferro emparafusada.

sábado, março 28, 2009
 
PRISÕES SURPREENDENTES
NO PARAÍSO DA ILICITUDE



Há muitas definições do que seja a lei. Eu prefiro a de José Hernández:

La ley se hace para todos,
Mas sólo al pobre le rige.

La ley es tela de araña
- En mi inorancia lo esplico -.
No la tema el hombre rico;
Nunca la tema el que mande;
Pues la ruempe el bicho grande
Y sólo enrieda a los chicos.

Es la ley como la lluvia:
Nunca puede ser pareja;
El que la aguanta se queja,
Pero el asunto es sencillo:
La ley es como el cuchillo:
No ofiende a quien lo maneja.

Le suelen llamar espada
Y el nombre le viene bien;
Los que la gobiernan ven
A dónde han de dar el tajo:
Le cai al que se halla abajo
Y corta sin ver a quién.


Sempre faz bem ao espírito ver atrás das grades criminosos de alto coturno, detentores de grandes fortunas que do dia para a noite passam a ver o sol quadrado. Neste sentido, a prisão de Eliana Tranchesi, proprietária do shopping de mais alto luxo do país, oferece ao público uma sensação de que a lei atinge também os ricos. Junto com Tranchesi, foram presos outros sete envolvidos, entre eles seu irmão, pelos crimes de formação de quadrilha, descaminho (importação fraudulenta de produto lícito) e falsidade ideológica, por fazer constar nas faturas que a compradora das mercadorias era a importadora e não a butique. A pena para a proprietária da Daslu, de mais de 94 anos, parece à primeira vista desproporcional, dado que autores de crimes tremendos têm penas bem menores e alguns continuam livres como passarinho, como é o caso do jornalista Pimenta Neves, que matou uma colega de redação com tiro pelas costas, por uma prosaica questão de bancar o macho.

Mas... mas... mas...

Em crime de formação de quadrilha foi incurso o ex-ministro Zé Dirceu e, pelo que me consta, autoridade alguma cogitou de enviá-lo à prisão. Pelo mesmo crime de descaminho, foi preso em novembro de 2007 o chinês Law Kin Chong, suspeito de ser maior fornecedor de mercadorias contrabandeadas da 25 de Março. Tido como o rei do contrabando em São Paulo, em março de 2008, por obra de um habeas corpus, Chong estava tão livre como Pimenta Neves ou Zé Dirceu. Foi de novo preso em 25 de abril do mesmo ano. Dia 29 do mesmo mês estava de novo nas ruas, libertado por novo habeas. Tranchesi e seus cúmplices também. Mal passaram uma noite na cadeia. Até aí, nada surpreendente. Foram condenados em primeira instância e têm o direito de responder ao processo em liberdade. Não se pode condenar, como se está condenando, juízes que cumprem a lei. Errado não é o juiz. Errada é a lei.

O fato é que a prisão de Chong em nada contribuiu para estancar o contrabando em São Paulo. Continua correndo solto, a céu aberto, não só na 25 de Março, como também na Santa Ifigênia e mesmo na Avenida Paulista, orgulho dos paulistanos. Uma ou duas vezes por ano, a Receita Federal dá uma batida nesses centros de ilegalidade, confisca 40 ou mais toneladas de muamba. No dia seguinte, o contrabando continua firme, como se a apreensão do dia anterior sequer lhe tivesse feito mossa. Na região da Santa Ifigênia, mais precisamente na rua Aurora, está instalado o 3º Distrito Policial de São Paulo. À frente de sua fachada, estão sempre estacionados três ou quatro camburões. A dez metros do último camburão, a muamba está esparramada pelas calçadas. Coibir o contrabando quando este se instala ao lado de um distrito policial é utopia de sonhador desvairado.

Mais ainda: no Brasil o contrabando é mais ágil que o comércio legal. Em dezembro de 2006, Keith Beeman, o diretor mundial de propriedade intelectual da Microsoft, Keith Beeman, foi levado pela reportagem do Estadão até a Santa Ifigênia. O executivo americano se espantou ao ver que os camelôs já comercializavam o Windows Vista, o Office 2007 e o Exchange Server 2007 - novos programas da Microsoft -, que ainda nem haviam sido lançados para o consumidor final.

A impressão que a Polícia Federal deixa é que contrabando não é permissível aos ricos, tanto que Chong como Tranchesi foram levados à prisão. Pobre pode contrabandear à vontade. Rico fora dos círculos do poder do Planalto não pode formar quadrilha. Político dentro do inner circle do PT, que forme quadrilhas a seu gosto.

Por outro lado, salvo engano meu, o artigo 180 do Código Penal define como receptação qualificada o ato de adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. Pena: prisão de um a quatro anos e multa.

Pode alguém ignorar, depois das anteriores passagens da Daslu pelas páginas da crônica policial, que as mercadorias lá vendidas eram produto de crime? As personalidades do grand monde paulistano e nacional que por lá passaram – e posaram para fotos, como se fossem convivas do Olimpo, com Eliana Tranchesi – não seriam cúmplices da contrabandista? Financiar o ilícito não é também ilícito, como lembrava há pouco o presidente do STF?

É de supor-se que empresa de tal porte tenha contabilidade. Não seria necessário esforço maior de investigação, por parte da polícia, arrolar esta lista de receptadores. Mas quem há de? Desde há muito o Brasil é um paraíso de ilicitude. Se as autoridades pretendessem de fato punir quem comete crimes, melhor seria deixar a criminalidade entregue à lei da selva e criar um pequeno presídio para que lá vivesse em segurança quem não cometeu crime algum.

 
CONFESSO QUE NÃO ENTENDI


Independentemente do juízo que se possa fazer das sentenças do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, há algumas semanas ele andou anunciando o óbvio, que financiar o ilícito é também ilícito. E o óbvio é algo que muito gente não quer ouvir, principalmente este governo que financia generosamente o crime. E não é que financie às ocultas, por baixo dos panos. Financia abertamente e ainda gaba-se de estar financiando movimentos sociais, quando em verdade está financiando uma guerrilha comunista, o MST.

Hoje, no entanto, o ministro me confundiu. Ao rebater declaração do senador Pedro Simon, que se referiu ao STF como "arquivo morto" por nunca ter condenado nenhum parlamentar processado. Mendes respondeu que Simon é "muito dado a frases de efeito": "É bom que o senador saiba que tribunal existe para julgar e não para condenar. Tribunal existe para condenar na Venezuela, em Cuba e na antiga União Soviética... Nada contra a Venezuela, é só uma questão de independência judicial".

Sempre entendi que todo julgamento implica ou condenação ou absolvição. Se o Judiciário não condena, a quem cabe condenar? Ao Executivo? Ao Legislativo? Confesso que não entendi. A resposta do ministro me confundiu. A menos que algum luminar do Direito haja elaborado alguma nova teoria a respeito das funções dos três poderes e eu ainda não tenha dela tomado conhecimento.

 
MOMENTOS SUBLIMES DO CORÃO


Ó Profeta, em verdade, tornamos lícitas, para ti as esposas que tenhas adotado, assim como as que a tua mão direita possui (cativas), que Deus tenha feito cair em tuas mãos, as filhas de teus tios e tias paternas, as filhas de teus tios e tias maternas, que migraram contigo, bem como toda a mulher fiel que se dedicar ao Profeta, por gosto, e uma vez que o Profeta queira desposá-la; este é um privilégio exclusivo teu, vedado aos demais fiéis. Bem sabemos o que lhes impusemos (aos demais), em relação às suas esposas e às que suas mãos direita possuem, a fim de que não haja inconveniente algum para ti. E Deus é Indulgente, Misericordioso. Podes abandonar, dentre elas, as que desejares e tomar as que te agradarem; e se desejares tomar de novo a qualquer delas que tiveres abandonado, não terás culpa alguma. Esse proceder será sensato para que se refresquem seus olhos, não se aflijam e se satisfaçam com o que tiveres concedido a todas, pois Deus sabe o que encerram os vossos corações; e Deus, é Tolerante, Sapientíssimo. Além dessas não te será permitido casares com outras, nem trocá-las por outras mulheres, ainda que suas belezas te encantem, com exceção das que a tua mão direita possua. E Deus é Observador de tudo.

(Sura 33:50-52)

sexta-feira, março 27, 2009
 
ONU E ISLÃ PROPÕEM
IDADE MÉDIA TOTAL



Sempre me reservei o direito de criticar toda e qualquer religião. Se criticamos o Estado, se criticamos filosofias e comportamentos, se criticamos artes e literatura, por que estaríamos proibidos de criticar religiões? Estariam as religiões acima de qualquer crítica? Não estão. Se isto fere suas convicções, paciência. Qualquer jornal que você leia, em algum momento, inevitavelmente, vai ferir seu modo de ver o mundo. Democracia é assim mesmo. Idade Média é outro departamento.

O mesmo não pensa a Organização das Nações Unidas. Leio nos jornais que o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) aprovou ontem uma resolução que condena a difamação religiosa e passa a considerar o ato como uma violação aos direitos humanos. O documento também pede que governos adotem leis protegendo as religiões de ataques.

Diz a sura 2:191, do Corão: “Matai os infiéis onde quer que os encontreis”. Quem são os infiéis? Segundo o Islã, todos os que não são muçulmanos. Todo aquele que não aceitar Alá como deus único e Maomé como seu profeta está ipso facto condenado à morte. A ONU, em nome dos tais de Direitos Humanos, quer que os governos adotem leis que protejam os maometanos de qualquer crítica a esta incitação ao assassinato. E mais ainda: crítica nenhuma ao profeta. As leis do Ocidente podem tipificar à vontade como pedofilia ou estupro as relações de um adulto com uma menina de nove anos. Mas que jamais alguém ouse condenar como pedófilo ou estuprador um bode velho por ter deflorado Aisha... aos nove anos de idade. Aisha foi uma das onze mulheres de Maomé. Alá permite quatro, mas concedeu privilégio especial a seu profeta bem-amado.

Calem-se os historiadores sobre as guerras de conquista tanto do Islã como da Igreja Católica. Isso ofende profundamente papas, cardeais, bispos, padres, aiatolás e mulás. Isso sem falar nos crentes, que se ouriçam todos mal lembramos da Inquisição. Daqui para a frente, proibido falar das fogueiras que católicos e protestantes ergueram na Europa e mesmo Além-Mar para queimar bruxas e hereges. Se os governos aderirem à vontade da ONU, cuidem-se os ateus ou crentes de outras religiões que vêm nos dogmas da Igreja de Roma ridicularias do medievo. Em alguma punição deverão ser incursos.

Palavrinha nenhuma contra os absurdos pronunciamentos de um papa que envia uma mensagem de morte a um continente todo, ao condenar os preservativos. Daqui para a frente, não será mais ridículo pregar a castidade ou o uso de cilícios. Aliás, Sua Santidade que se cuide. Que não ouse citar doravante imperadores de séculos passados, como já o fez com Manuel II Paleólogo, que pedia a um interlocutor persa: "mostre o que Maomé trouxe de bom e verás apenas coisas más e desumanas, como sua ordem de divulgar a fé usando a espada". Esta lembrança feriu profundamente as meigas almas muçulmanas.

É chegada a hora de banir das bibliotecas e livrarias autores como Nietzsche ou Voltaire. Ou mesmo Kazantzakis ou Saramago, que ousaram propor desenlaces diferentes aos Evangelhos. O Vaticano já pode reativar o Index Librorum Prohibitorum, onde estão catalogadas as obras dos inimigos da fé. A propósito, condene-se a monumental obra do historiador Ernest Renan, sua história do cristianismo e sua história do judaísmo. Bom também proibir qualquer história da Igreja, dos papas ou mesmo do Islã. São lembranças que podem ofender os crentes. Essa recente safra de autores ateus, como Michel Onfray, Daniel Dennet, Christopher Hitchens, Richard Dawkins, Sam Harris, pode ir se acostumando à idéia de ver seus livros recolhidos do mercado. Bom também proibir de vez a Bíblia, que considera obra do demônio o culto a qualquer outro deus que não o judaico-cristão.

Cuidem-se os pastores evangélicos que atacam a macumba e a umbanda como obras do demônio. Cuidem-se também juízes, promotores e jornalistas que ousam condenar as vigarices dos evangélicos. Está na hora de libertar e absolver de toda culpa aqueles santos pastores encarcerados numa prisão dos Estados Unidos, a bispa Sonia e o apóstolo Estevam Hernandes. A prisão destes dois mártires fere profundamente a sensibilidade dos seguidores da Renascer.

A resolução da ONU tem um endereço certo. Foi proposta pelos países islâmicos, que há dois anos trabalham pela aprovação de decisões para proteger sua religião. A proposta foi apresentada pelo Paquistão e copatrocinada por quem? Pela Venezuela de Hugo Chávez. Pelo jeito, o caudilho de opereta está querendo abrigar, sob as cálidas asas da ONU, seu brilhante achado, o “bolivarianismo”. Entre os que votaram a favor da resolução, além de Cuba e Venezuela, estavam países africanos e islâmicos, estes magníficos exemplos de democracia. A Europa votou contra a resolução, alegando que a medida fere a liberdade de expressão e de imprensa. Foi voto vencido, como seria de se esperar.

A ONU ignorou solenemente o acórdão Handyside, de 1976, reconhecido pela Corte Européia de Direitos do Homem. Que declara:

“A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática”.

O que a ONU está propondo, no fundo, é uma Idade Média total. Se na Idade Média eram proibidos apenas os livros e autores que contestavam a Igreja de Roma, a entidade agora quer a proibição de qualquer livro ou autor que conteste toda e qualquer religião. Enquanto isto, o Islã, autor da proposta, continua se reservando o direito de matar os infiéis, onde quer que se encontrem.

Palavra do Profeta. Allah-u-akbar!

 
TABULA RASA


De Humberto Quaglio, recebo:

Olá Janer!

Saudações!

Lembrei-me de você e de alguns de seus artigos publicados no blog, como o último (Afrodescendentada dividida), imediatamente após a leitura de um trecho de um parágrafo de um livro excelente que estou terminando de ler. Trata-se do Tabula Rasa – A Negação Contemporânea da natureza Humana, do psicólogo canadense Steven Pinker. O livro é recente, foi publicado pela primeira vez em 2002. Vou deixar que o autor fale por si, transcrevendo o trecho que me chamou a atenção (páginas 202 e 203 da primeira edição publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2004):

“...embora as diferenças genéticas entre raças e grupos étnicos sejam muito menores que as encontradas entre indivíduos, elas não são inexistentes (como vemos em sua capacidade de originar diferenças físicas e diferentes suscetibilidades a doenças genéticas, como a doença de Tay-Sachs e a anemia falciforme). Hoje virou moda dizer que as raças não existem, que são puramente construções sociais. Embora isso certamente seja verdade com respeito aos escaninhos burocráticos como ‘de cor’, ‘hispânico’, ‘asiático/habitante de ilha do pacífico’ e à regra generalizante para ‘negro’, é um exagero quando falamos das diferenças humanas em geral. O antropólogo e biólogo Vincent Sarich observa que uma raça é apenas uma família imensa e parcialmente endógama. Algumas distinções raciais, portanto, podem ter um grau de realidade biológica, embora não sejam fronteiras exatas entre categorias fixas. Os humanos, tendo evoluído recentemente de uma única população fundadora, são todos aparentados, mas os europeus, como se reproduziram principalmente entre si durante milênios, são em média parentes mais próximos de outros europeus do que de africanos ou asiáticos, e vice-versa. Como os oceanos, desertos e cordilheiras impediram as pessoas de escolher seus parceiros aleatoriamente no passado, as grandes famílias endógamas que denominamos raças ainda são discerníveis, e cada qual tem uma distribuição de freqüência de genes um tanto diferente das demais.”

O livro traz bastante informação sobre a questão dos ianomâmis, defendendo o Napoleon Chagnon, que você cita em seu também excelente Ianoblefe.

Pinker ataca três mitos presentes há séculos no pensamento humano, especialmente caros às esquerdas do nosso tempo: o mito da mente como “tabula rasa”, sem nenhum componente inato, como se todos os seres humanos nascessem iguais e todos os traços da personalidade, do caráter, dos gostos, fosse aprendido, fosse exclusivamente advindo da cultura; o mito do “bom selvagem”, este especialmente caro às muitas bestas que no Brasil costumam ostentar o título de antropólogos; e o mito do “fantasma na máquina”, este especialmente caro aos religiosos, com suas crenças em almas e espíritos, ou seja, o de que a mente é algo mais do que o armazenamento e processamento de informações no cérebro, de que a mente não pode existir tendo como componente apenas a matéria. O autor se baseia em terreno sólido: a neurologia, a psicologia evolucionista e a biologia.

Eu recomendo a leitura da obra. Tenho a forte impressão que o livro vai te agradar muito.

Um grande abraço.

quinta-feira, março 26, 2009
 
AFRODESCENDENTADA DIVIDIDA


Comentei ontem a questão das cotas. E reafirmei meu respeito aos negros que se recusam a entrar na universidade pela porta dos fundos. São pessoas que geralmente não têm espaço na imprensa, pois remam contra a correnteza. Verdade que, nos últimos anos, jornalistas e escritores já começaram a perceber que o sistema de cotas só serve para fomentar racismo. Mas constituem uma minoria impotente. Quanto mais que gritam e mostram o óbvio, mais o sistema de cotas avança no mundo acadêmico e já ameaça o mercado de trabalho.

Assim, foi com surpresa que li ontem, no Estadão, em página nobre, artigo do advogado José Roberto F. Militão, membro da Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios Conad-OAB/SP e ex-secretário geral do Conselho da Comunidade Negra do governo do Estado de São Paulo, títulos que à primeira vista sugerem um defensor das cotas. Militão é negro mas não caiu nesta armadilha do racismo negro.

“Estamos trilhando a contramão da história" – escreve o advogado. “Sem pensar nas gerações futuras, leis e políticas públicas estão racializando o Brasil e violando os artigos 5.º e 19.º da Constituição, segregando direitos da cidadania. Não é disso que precisamos. Queremos que o Estado nos assegure o direito à igualdade de tratamento e de oportunidades, o que não equivale a privilégios raciais. (...) No caso da escassez de vagas nas universidades, não é razoável que, sem qualquer novo investimento público, sob alegação de falacioso direito racial, venha o Estado retirar vagas de brancos pobres para entregá-las a pretos também pobres, oriundos de mesma escola pública e mesmo ambiente social. Basta, portanto, a reserva de 50% das vagas por meio de critérios sociais e de origem na escola pública, suficientes para ampliar oportunidades e igualar a disputa entre os pobres. Com isso também se reduz o privilégio dos ricos”.

Até aí assino embaixo. É o que venho afirmando há mais de década. O leitor, se tiver paciência, pode conferir nos jornais: depois da queda do Muro de Berlim, aumentaram consideravelmente nos jornais as alusões a raça e racismo. As motivações não exigem grande esforço intelectual para serem entendidas. São sempre as esquerdas, mais precisamente as viúvas do Kremlin, que empunham a bandeira das cotas. Tornou-se ridículo falar em lutas de classes. A antiga nomenclatura, a oposição entre proletariado e burguesia, tornou-se obsoleta. Tão absurda como a luta de classes. Desde há muito os chamados proletários querem fugir de sua classe e incorporar-se a dos então chamados burgueses. Tanto que – exceto alguma múmia perdida nos trópicos, como Niemeyer – já não ousam empregar este vocabulário.

Ora, sem luta as esquerdas não sabem como respirar. Morta a luta de classes, instaurou-se a luta racial. Militão não caiu neste conto das viúvas. Mas não escapou do conto da Unesco: “A Constituição federal repudia a classificação racial e está conforme as convenções internacionais que, desde a 2.ª Guerra Mundial e desde a Declaração Contra o Racismo da Unesco, de 1950, têm reiterado o consenso de que a luta contra o racismo exige esforços estatais para a destruição da crença em raças. Isso pressupõe a necessária abstenção do Estado para não legitimar essa crença racial”.

Ora, se a Constituição repudia a classificação racial, todos os sensos do IBGE são inconstitucionais, já que definem claramente as raças predominantes do Brasil: branca, mulata (no caso, chamados de pardos), pretos e índios. Ora, raça é um conceito científico e não político. Quando os Estados Unidos não aceitam que um turista ou migrante branco latino-americano se defina como branco no pedido de visto, usa-se um conceito político e não biológico. Esta política oficial americana é um dos últimos resquícios das infamantes leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954. No entanto, desde 1880, constituíram a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça.

Militão demonstra bom senso ao denunciar a injustiça flagrande das cotas. Mas pretende que o Estado destrua a crença em raças. Em bom português: quer que o Estado elimine o conceito de raça. A virgindade de Maria é uma questão de crença. Mas a existência de raças não. Há até algo de religioso nesta pretensão. É como se após os animais se diferenciarem a partir de raças, alguma mão divina interrompeu a evolução e decretou: depois do Homo Sapiens, não se fala mais em raça. Ora, sejamos coerentes: se não se fala mais em raças humanas, tampouco se fale em raças animais. Não existem mais dálmatas, buldogs, bassets, beagles, dobermanns, filas, chihuahuas, chowchows, cockers, malteses, pequineses, pitbulls, poodles, yorkshires, São Bernardos, rottweilers. Mas apenas cães. Urgem esforços estatais para destruir as infames denominações de raças árabe, crioula, Holsteiner, mangalarga, puros sangues ingleses, espanhóis e lusitanos, lipizzaners, appaloosa e quartos de milha, percherons, paint horses, campolinas, favacho, JB, Bela Cruz. O que existe são simplesmente cavalos. Abaixo o racismo no mundo animal!

Mas os negros que abominam Militão por sua recusa em aceitar a política de cotas são os mesmos que também o abominarão por sua defesa da abolição do conceito de raça. A afrodescendentada está dividida. Se antes das cotas, os apparatchiks dos movimentos negros defendiam esta bandeira, agora é outro o trote da mula. Ser negro tem vantagens. Então é claro que raça tem de existir.

Não bastasse assumir a ditatorial proposição da Unesco, o advogado encerra seu artigo com chave de ouro, citando Malcolm X: “Com sabedoria, nossas avós ensinaram: somos homens e mulheres "de cor". Elas deduziam que a cor de pretos e pardos é uma característica biológica natural, diferente do conceito de "raça negra" - uma construção social para oprimir, violar a dignidade dos humanos de cor e sonegar a inteira humanidade, conforme dizia o líder afro-americano Malcom (sic!) X”.

Ora, quem foi Malcolm X? Um ativista negro americano e racista, que pregava a violência e se converteu ao Islã. Este sim acreditava em raças, tanto que defendia a separação total entre brancos e negros. Como Aiatolavo, Militão é outro que ouviu o galo cantar mas não sabe onde.

No fundo, o velho e humano desejo de poder e privilégios. Quanto mais for intensificada a luta racial no Brasil, mais vibrarão as viúvas. A ditadura de uma classe foi sonho de uma noite de verão. Quem sabe uma ditadura racial? Talvez não ditadura, mas a boa e antiga supremacia racial, agora com sinal invertido?

A esperança nunca morre.

quarta-feira, março 25, 2009
 
ASTRÓLOGO EXCOMUNGA APEDEUTA


O caso da menina de Alagoinha nos proporcionou um colossal festival de besteiras, alimentado por pessoas que jamais tiveram um código de Direito Canônico em mãos e pouco ou nada entendem do instituto da excomunhão. Sobrou até mesmo para um doublé tupiniquim de Nostradamus e Torquemada, que se pretende ao mesmo tempo astrólogo, filósofo e cristão. No fundo, demonstra uma desperdiçada vocação para bartender, capaz de elaborar exóticos coquetéis com os mais incompatíveis ingredientes. Escreve Aiatolavo no Diário do Comércio:

O sr. presidente da República mostra-se escandalizado, chocado, abalado até o fundo de seus sentimentos éticos mais nobres quando a Igreja discorda de sua singela opinião de que para proteger uma criança deve-se matar duas. Se ele fosse ateu, budista ou membro da Seicho-no-Ie, tudo o que os católicos poderiam fazer diante de seu discurso abortista seria resmungar. Mas ao defender o aborto como dever moral, ele insiste em enfatizar que o faz "como cristão e católico", o que o enquadra, sem a mais mínima possibilidade de dúvida, na categoria dos heresiarcas.

Heresia, para quem não sabe, não é qualquer doutrina adversa à da Igreja: é falsa doutrina católica vendida como católica – exatamente como o discurso presidencial contra Dom José Cardoso Sobrinho. Mas, no fundo, isso não faz a menor diferença.


Vamos à citação literal do que disse o Supremo Apedeuta: “Como cristão e católico, lamento profundamente que um bispo da Igreja Católica tenha um comportamento conservador como esse. Não é possível que uma menina estuprada por um padrasto tenha esse filho, até porque a menina corria risco de vida”.

Ou seja, nada entendeu do que seja ser cristão ou católico. Como cristão, até que poderia manifestar-se a favor do aborto. Sempre encontrará alguma seita cristã que o admita. Como católico, não. Em 1869 – há apenas século e meio - o Papa Pio IX declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize. No que vai nada de extraordinário. Lula é useiro e vezeiro em falar do que não entende.

Enquadrar um analfabeto na categoria dos heresiarcas já constitui uma impropriedade óbvia e mais, um insulto a todo heresiarca que se preze. Heresias são doutrinas, não bobagens soltas ao vento por um falastrão que de religião nada entende. Neste sentido, o astrólogo sequer percebeu ter concedido um upgrade ao apedeuta. Promoveu-o a doutrinador.

Mas o besteirol maior vem mais adiante. Continua o Nostradamus tupiniquim:

Por seu apoio continuado e impenitente aos regimes e partidos comunistas, Lula já está excomungado latae sententiae faz muito tempo e não precisa ser excomungado de novo. A excomunhão latae sententiae, isto é, "em sentido amplo" decorre automaticamente de ações ou palavras, independentemente de sentença oficial e até mesmo de aviso ao excomungado.

Ouviu o galo cantar e não sabe onde. Se o papa Pio XI definiu o comunismo como intrinsecamente mau em sua encíclica Divini Redemptoris, em 1937, isto nada tem a ver com o caso. Assim fosse, há muito estariam excluídos da comunhão da Igreja milhares de cardeais, arcebispos, bispos e padres. Ser comunista não está incluído entre os nove itens que implicam esta punição do Direito Canônico. Aiatolavo – que há horas vem demonstrando sua ignorância da doutrina que diz professar – está excomungando Lula por conta própria. Ora, não me consta que astrólogos detenham poderes excomungantes.

É o roto xingando o descosido.

 
QUEM QUER COTAS, QUE
AS ASSUMA NO DIPLOMA



Em julho de 2006, escrevi artigo intitulado “Nazismo negro e guilda branca”, no qual comentava a nuvem de estupidez que pairava sobre o Congresso nacional naqueles dias. Não que sobre o Congresso costumassem pairar nuvens de inteligência. Mas naqueles dias a estupidez concentrou-se e ameaçava cair como chuva sobre o país todo. Dois projetos, que pretendiam mandar o Brasil de volta alguns séculos para trás, estavam sendo discutidos em Brasília. Um deles, o do senador Paulo Paim, já aprovado no Senado, queria mandar o país de volta à América racista do tempo das leis Jim Crow, ou talvez à Alemanha hitlerista ou mesmo à África do Sul do apartheid.

O Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador, decretava a extinção do mulato. Mais ainda, previa a identificação racial dos negros em documentos de identidade. Segundo o Estatuto, os negros passariam a ter carteirinha de negro. Curioso observar que nas décadas passadas os movimentos negros haviam concluído que raça não existia. Agora passou a existir e deve constar em documento. Como o branqueamento é bastante generalizado no Brasil, talvez fosse melhor uma tatuagem ou adereço bem visível, como Hitler instituiu na Alemanha para judeus e homossexuais.

Daí o título de meu artigo. Há poucos dias, recebo irado email de um cidadão negro:

Nazismo negro... Que colocação mais lamentável. Você classifica uma etnia inteira como nazista. Se esquece que muitos de nós negros que cursamos ou estamos cursando uma faculdade, não utilizamos o sistema de cotas.

Em primeiro lugar, louvemos as virtudes da Internet. Escrevo um artigo há quase três anos e ainda hoje estou recebendo contestações. Isto jamais existiu no tempo do jornalismo em papel. Em segundo lugar, não classifiquei etnia alguma como nazista. Classifiquei como nazista o projeto do senador gaúcho. Sei que muitos negros não utilizam o sistema de cotas e tenho por estes o maior respeito. São pessoas que não querem ganhar no tapetão e sim entrar na universidade por seus próprios méritos. Pelos mails que recebi desde então, sei que estes leitores têm grande apreço pelos artigos que tenho escrito sobre a questão negra. Continua o irado leitor:

Mas parece que você "esqueceu" dos horrores que os negros passaram e passam no país. Dia desses vi dois dos "ameaçados" de sua etnia perseguindo, a bordo de um belo carro do ano, uma senhora negra, já com as costas curvadas, pelo simples prazer de importuná-la. Casos em que minha etnia passa por situações como essa, existem aos milhões. Estranho não ver colunistas importantes comentando com tal repúdio tais casos. Não sou e nunca fui a favor dessas cotas universitárias. Sou a favor de uma cota por respeito. Uma que, utopicamente falando, reduza o desrespeito que a sua "ameaçada etnia" dispensa a esse enorme contingente, que corresponde a 5,4 por cento da população brasileira, em pelo menos 25 por cento.

Para começar, nunca afirmei que os de minha etnia estão ameaçados. O leitor está colocando palavras em minha boca. Pessoas de carro perturbando transeuntes perturbam tanto negros como brancos. Ser desrespeitado no trânsito, no Brasil, nunca foi privilégio de negros. De repente, o leitor transforma um caso em milhões. Diz querer uma cota por respeito. Ora, respeito todo mundo quer, sejam brancos ou negros. Daí a cota por respeito, vai uma longa distância. Se me falar em cota por pobreza, sejam os beneficiados brancos ou negros, até posso considerar a idéia. (No fundo, nem esta a aprovo. A universidade é para os melhores e não tem por função praticar caridade). Mas por que só o negro pobre teria tal direito? O leitor brande de novo minha “ameaçada etnia”. Mas quem falou em ameaçada etnia? Meu interlocutor atribui sandices a meu artigo para melhor atacá-lo. Isso se chama desonestidade intelectual.

Não tema que no amanhã, você tenha que se deparar com negros que venham a te suplantar em eficiência, dentro de uma redação de um jornal ou revista qualquer. Com relação ao termo mulato, ele deve mesmo ser extinto. Estude a etimologia da palavra e em como ela é ofensiva. Não para você é óbvio. Mas para um grande contingente, sim, ela é. E agradeça à estupidez desse congresso. Sem ela, você não poderia cometer essa leviandade de classifica-nos como o fez, chamando a nós negros de futuros nazistas.

Não no amanhã, mas em meu passado mesmo, encontrei tanto na universidade como nas redações de jornais negros de grande competência profissional. Eles não entraram na universidade por cotas. Foram admitidos concorrendo lealmente com seus colegas brancos. Quanto à estupidez, sempre a deploro, jamais a agradeço. E repito: jamais chamei os negros de nazistas. Defini como nazista o projeto do senador. E defino como nazistas todos os negros que defendem a idéia de uma carteirinha de negro para beneficiar-se de vantagens. Como definiria como nazista todo branco que brandisse uma carteirinha de branco. Mas nem todos os negros participam desta loucura, já que nem todos são racistas. Amanhã volto ao assunto.

Last but not least, se consagradas definitivamente as cotas, deixo modestamente minha sugestão. No diploma dos negros que entraram na universidade por este sistema, que conste em letras garrafais:

ADMITIDO NA UNIVERSIDADE PELO SISTEMA DE COTAS

Quem defende a idéia, que a assuma publicamente.

terça-feira, março 24, 2009
 
QUE TÊM A VER COM ATEÍSMO CRÍTICAS
À BÍBLIA, À IGREJA OU AO PAPA? (I)



Quando comento a Bíblia ou critico a política da Igreja ou pronunciamentos do papa, recebo uma saraivada de emails me acusando de ateu militante. Este personagem – costumo afirmar – é um religioso de sinal trocado. No fundo, no fundo mesmo, está doidinho para encontrar um outro deus qualquer, mais de acordo com suas idiossincrasias. O que explica o aparente paradoxo de certos autores que fazem do ateísmo uma profissão e, ao final da vida, convertem-se à “verdade”. São vigaristas que, tendo exaurido os ganhos de um lado do balcão, passam a faturar do outro lado.

Que mais não seja, que tem a ver ateísmo com críticas à Igreja ou com a constatação de contradições insanáveis na Bíblia? Nada a ver. Leio no Journal du Dimanche, edição de domingo passado, que mais de 40% dos católicos franceses querem a renúncia do Papa, em função de seus últimos despautérios. Pelo menos 43% dos católicos franceses esperam que o Papa Bento XVI renuncie, ou se aposente, contra 54% que não desejam que isso aconteça (3% não se pronunciaram), de acordo com o Institut français d’opinion publique (IFOP). Ou seja, não são os malvados ateus que estão cansados com o papado de Bento XVI, mas o próprios católicos. Outros dados da pesquisa:

A proporção de católicos franceses que desejam a saída de Bento XVI chega a 47% entre os não-praticantes, mas cai para 31% entre os católicos praticantes. Interrogados sobre se a Igreja Católica deve "modificar seu discurso e suas posições para levar em conta as mudanças que se apresentaram na sociedade e nos costumes", uma ampla maioria dos católicos franceses estima que "sim", sobretudo, no que diz respeito aos métodos anticoncepcionais.

Segundo a pesquisa, 85% desejam que a Igreja modifique sua posição sobre a contracepção (75% entre os católicos praticantes); 83% esperam que faça o mesmo sobre o aborto; 77%, sobre o casamento entre divorciados; e 69%, sobre a homossexualidade. Por último, 49% dos católicos franceses consideram que o Sumo Pontífice não defende "muito bem" os valores do catolicismo.

O fato é que a Igreja está há muito dividida. Segundo Phillippe Portier, especialista em catolicismo contemporâneo e diretor de Estudos do Grupo Sociedades, Religiões e Laicidade da Escola Prática de Altos Estudos da Sorbonne, há múltiplas igrejas no interior da grande Igreja. “Os bispos e o Papa tentam produzir uma unidade mas se chocam com a vontade de pluralidade desejada pelos próprios católicos. Os católicos hoje se organizam conforme suas próprias concepções de fé, independentemente de um aparelho que não consegue mais lhes controlar”.

Por mais que Sua Santidade declare a excomunhão de quem aborta, considere doentes passíveis de cura os homossexuais ou condene o preservativo, católicos – que não pretendem renunciar à sua condição de católicos – nem ligam ao que Bento ou a Igreja dizem. E continuam praticando aborto, fazendo sexo como e com quem bem entendem e usando preservativos. A autoridade que a Igreja de Roma exercia sobre seus fiéis há apenas meio século, de lá para cá foi corroída pelo tempo.

Ou seja, criticar a Igreja ou seu líder há muito deixou de ser atitude de ateu. Se a pesquisa do IFOP fosse feita no Brasil, teríamos certamente resultados ainda mais surpreendentes.

 
QUE TÊM A VER COM ATEÍSMO CRÍTICAS
À BÍBLIA, À IGREJA OU AO PAPA? (II)



Quanto à Bíblia, não é preciso ser ateu para nela ver um livro cheio de contradições. Todo e qualquer estudioso sério do cristianismo não as nega. Para o leitor atento, as incoerências começam já no início do primeiro livro, o Gênesis. No primeiro capítulo, versículo 1: 27, temos:

Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. 28 Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a.

Já no segundo capítulo, versículo 2: 21, a história muda:

Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre o homem, e este adormeceu; tomou-lhe, então, uma das costelas, e fechou a carne em seu lugar; 22 e da costela que o senhor Deus lhe tomara, formou a mulher e a trouxe ao homem.

De repente, surge um elemento novo, a costela. Isso sem falar que o pecado de Adão e Eva, segundo um consenso universal, seria o sexo. Mas sem sexo, como frutificar e multiplicar-se? Ou Jeová estava um tanto confuso naqueles dias primevos, quando tudo ainda era caos, ou o hagiógrafo ouviu mal. Ora, se o Livro começa se contradizendo em seus primeiros dois versículos, pode-se imaginar o que vem pela frente, nos outros 72 livros (pelo menos da Bíblia católica), escritos ao longo de 1300 anos, a partir de tradições orais. O mínimo que se pode dizer é que foi irresponsavelmente editorado, sem a revisão de um bom controlador de texto.

Por falar em Gênesis, estudiosos contemporâneos têm visto a fusão de dois livros distintos em um só, resultante da existência anterior de dois deuses, Jeová e Elohim. O Gênesis seria então obra de pelo menos dois redatores, designados pelos estudiosos como o redator javista e o redator eloísta. Jeová é mais antropomórfico, apresenta-se aos homens, entrega pessoalmente as tábuas da lei a Moisés. Elohim, que seria um outro deus, oriundo das tribos do Norte, é mais distante e impessoal. Não fala muito com os homens, manifesta-se geralmente através de arautos. O redator final da obra fundiu Jeová e Elohim, daí a incongruência de diversos momentos do Livro.

Em Êxodo, 3:6, lemos, em uma antiga versão francesa da Bíblia: “Je suis l’Élohim de tes pères, l’Élohim de d’Abraham, l’Élohim d’Isaac, l’Élohim de Jacob”. Em determinado momento, surge a expressão l’Élohim des Élohim, o que nos sugere um deus que é singular e plural ao mesmo tempo.

Para eludir as contradições os tradutores modernos omitiram o incômodo Elohim. Nas versões mais recentes, lemos: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”. Diga-se de passagem, a tendência dos tradutores é eliminar definitivamente também o Jeová, ficando apenas com a palavra Deus. É uma forma de driblar as contradições.

Não é minha pretensão deitar erudição sobre a Bíblia, livro que – modestamente – conheço bastante bem. Mas apenas salientar que o estudo de suas contradições está longe de ser preocupação de ateus. É preocupação de todo estudioso que tenta entendê-la.

Sou ateu, simplesmente. Nunca convidei ninguém a participar de minha descrença. Sou ateu como sou gaúcho, brasileiro, e nunca louvei as supostas virtudes da gauchidade ou da brasilidade. Sou ateu da mesma forma que gosto de vinhos, livros, mulheres ou viagens. São características de minha personalidade que naturalmente determinam meu modo de ver o mundo e minhas opções na vida. Mas não sou nem nunca fui ateu militante.

Deixo isto para os sedentos de Deus.

 
LEITOR ME CORRIGE


Ô, Janer, Em que mundo você vive,rapaz?

Eu costumava tocar uma “violinha” com a galera nos fins de semana e o violão mais caro que já tive a oportunidade de tocar ,e já toquei muitos, custava R$ 850,00, violões de R$ 8000,00 ficavam na vitrine das lojas apenas para atraírem nossos olhares cobiçosos. Ninguém, a não ser que seja um profissional ou tenha muito dinheiro, dá R$ 8000,00 num violão, ainda mais no Brasil. No mais, quaisquer R$ 500,00 dá pra comprar um instrumento razoável e “tirar” um som legal.

De qualquer forma concordo que o desfalque é doloroso.

Ramos


Ok, Ramos. Mas o STF não especificava o valor do roubo. Violão por violão, pode ser o de um profissional ou o de um seresteiro sem maiores pretensões. Mas, como você mesmo diz, mesmo um violãozinho barato constitui um desfalque doloroso. E este é o cerne da discussão.

segunda-feira, março 23, 2009
 
RECÓRTER TUCANOPAPISTA NÃO LÊ
OS MOMENTOS SUBLIMES DO LIVRO



Em sua defesa obstinada do indefensável, escreve hoje em Veja o recórter tucanopapista hidrófobo:

“Vocês sabem: militares israelenses são estúpidos assim. Quando precisam dar uma ordem ilegal, eles a escrevem. Em breve, alguém encontrará uma outra mais ou menos nestes termos: “Matar velhas e crianças”. É o fim da picada!”

Não precisa. Já está escrito no Livro que determina a fé e as leis de Israel. Em Números 31, por ocasião do massacre dos midianitas, Moisés ordena:

14 E indignou-se Moisés contra os oficiais do exército, chefes dos milhares e chefes das centenas, que vinham do serviço da guerra,
15 e lhes disse: Deixastes viver todas as mulheres?
16 Eis que estas foram as que, por conselho de Balaão, fizeram que os filhos de Israel pecassem contra o Senhor no caso de Peor, pelo que houve a praga entre a congregação do Senhor.
17 Agora, pois, matai todos os meninos entre as crianças, e todas as mulheres que conheceram homem, deitando-se com ele.


Ou em II Crônicas 36:

15: E o Senhor, Deus de seus pais, falou-lhes persistentemente por intermédio de seus mensageiros, porque se compadeceu do seu povo e da sua habitação.
16 Eles, porém, zombavam dos mensageiros de Deus, desprezando as suas palavras e mofando dos seus profetas, até que o furor do Senhor subiu tanto contra o seu povo, que mais nenhum remédio houve.
17 Por isso fez vir sobre eles o rei dos caldeus, o qual matou os seus mancebos à espada, na casa do seu santuário, e não teve piedade nem dos mancebos, nem das donzelas, nem dos velhos nem dos decrépitos; entregou-lhos todos nas mãos.

 
VIGARICE COM DINHEIRO PÚBLICO
INVADE A GASTRONOMIA NACIONAL



Em novembro de 2002, há mais de seis anos portanto, escrevi:

"Em reação aos bárbaros costumes dos homens do Norte, surgiu na Itália, em 1989, o movimento Slow Food, criado pelo jornalista e gastrônomo Carlo Petrini. O ponto de partida do movimento foi a inauguração, no mesmo ano, de um Mc’Donalds na Piazza di Spagna, em Roma. É de supor-se que de gastronomia Carlo entenda. Como jornalista, não parece se dar bem com as palavras. Para começar, italiano sendo, batiza seu movimento no linguajar dos bárbaros. Por que não Lento Mangiare? Já denotaria então, na própria denominação, a origem italiana desta reação civilizada. Em suma, o movimento foi bem recebido até nos Estados Unidos e o New York Times considerou-o como uma das melhores idéias do ano em 2001. O Slow Food já tem suas representações no Brasil, com grupos ativos em Porto Alegre, Rio e Belo Horizonte e em formação em São Paulo e Salvador.

"Ora, nada há de novo no Slow Food, prática que sempre existiu. Há séculos vem sendo cultuado nessas casas soberbas, que nos esperam sempre de portas abertas, nas ruas e vielas de qualquer capital do Ocidente. E não só nas capitais. Verdade que, nas pequenas cidades brasileiras, cafés e restauração são geralmente um desastre. Mas em qualquer aldeia européia que se preze, lá está aquele oásis acolhedor, que nos refrigera como leque no verão e nos aquece como um útero no inverno. Não é preciso organizar o orgânico. Não há propriamente um contra-ataque aos restaurantes Fast Food, como reivindicam os adeptos do Slow Food. O Fast Food, isto sim, foi um ataque aos hábitos de bem comer.

"Defender a tal de Slow Food é mais ou menos fazer o papel de M. Jourdain, que fazia prosa sem o saber. Nós, adeptos dos antigos restaurantes, desde há muito praticamos a restauração lenta, sem necessidade alguma de nominá-la em língua de bárbaros. Se você, leitor, for um dia convidado a participar da coisa, não caia nessa estratégia de marqueteiros. Vai acabar pagando mais caro pela griffe, por algo que já sem griffe não é exatamente barato. Isso sem falar nessa deplorável falta de dignidade, a de batizar o que seria uma iniciativa italiana na língua do invasor".

Leio no Estadão de ontem sobre a versão tupiniquim da antiga moda: “Por todo o País já são 19 centros Convivium - onde se praticam seus preceitos. Três deles ficam em São Paulo - um na capital e os outros dois em Campinas e Piracicaba. No mundo todo são mais de mil”.

Mas não se trata mais de apenas comer com vagar. A versão brasileira introduziu um toque vegetariano ao que de vegetariano nada tinha. Segundo a reportagem, “o ponto alto da filosofia Slow Food é incutir o prazer de comer bem a todos. Mas, para isso, se faz necessário defender a cultura dos alimentos”. Ora, o que significa comer bem para os tais de conviviuns? É consumir alimentos orgânicos e regionais e degustações de alimentos em risco de extinção. “Esses produtos constam de um catálogo mundial chamada A Arca do Gosto. São 750 alimentos ameaçados no mundo todo, incluindo alguns brasileiros: arroz vermelho, babaçu, bergamota montenegrina, farinha de batata-doce Krahô, marmelada de Santa Luzia, pirarucu, umbu, palmito juçara, guaraná nativo sateré-mawé, feijão canapu e castanha de baru”.

Que tem a ver isso com o comer com vagar? Onde estão as carnes, aves, caça, frutos do mar? Não existem mais peixes no mercado além do pirarucu? Ou para ser Slow Food, os alimentos agora precisam ser ameaçados? E o bom e velho boi, os cordeiros, os frangos e porcos, será que perderam seu lugar na mesa? Desde quando Slow Food é sinônimo de produtos em via de extinção? Integrantes do movimento criaram um menu especial a partir desses alimentos. "É uma dificuldade terrível, porque são produtos de diferentes partes do País, perecíveis e caros para transportar. Nos últimos dois anos, no entanto, conseguimos fazer a Semana Slow, onde não apenas preparamos um menu mas colocamos os produtos à venda", diz Margarida Nogueira, que faz parte da comissão da Arca e inaugurou em novembro de 2000 no Rio o primeiro Convivium brasileiro.

Ou seja, a tal de Arca não ouviu nem metade da missa. O que no fundo não passava de uma reação italiana ao fast food americano, no Brasil virou uma espécie de culto a frutas e vegetais. Me lembra um pouco uma nutricionista que certa vez me forneceu uma lista de alimentos que me seriam saudáveis. Só havia quase frutas e mais da metade delas, se eu quisesse saber do que se tratava, teria de ir ao dicionário. Claro que nem quis saber do que se tratava.

No Brasil nada se perde, tudo se corrompe. Mais uma picaretagem invade a restauração nacional. Aliás, o país está se tornando reserva de caça de chefs que têm seus restaurantes às moscas em Paris, mas pelo fato de terem um restaurante em Paris, cobram fortunas por pratos que antes de parecerem comida mais parecem ikebanas. Como crédulos é o que nunca falta para vigaristas, é até possível que dona Margarida encontre sua clientela.

Ao ler a notícia, suspeitei de dinheiro público no projeto. Lá está: nove dos alimentos inerentes ao Slow Food tupiniquim “fazem parte das Fortalezas, projetos feitos desde 2004 com grupos de pequenos produtores, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, para protegê-los”.

É natural que um vigarista queira vender seus peixes podres, isto faz parte de seu ofício. O que espanta é que um jornal como o Estadão os compre.

domingo, março 22, 2009
 
PARA LIVRAR-SE DA PECHA DE SOLTAR
RICOS, STF LIBERA PEQUENOS FURTOS



Da mesma forma que o Bento em Roma, os magistrados do Supremo Tribunal Federal parecem viver em um hipotético Olimpo, longe da História, do cotidiano e dos demais mortais. Recente decisão da Corte confirma isto. Leio na Folha de São Paulo que furtos de pequeno valor não devem ser considerados crimes, conforme já se manifestaram todos os ministros do STF em julgamentos do tribunal. Levantamento do próprio Supremo mostra que em ao menos 14 casos julgados em 2008, a Corte considerou insignificantes os delitos praticados.

Claro que punir o roubo de um shampoo ou de uma galinha com um ano de prisão é uma distorção do Direito. Já tivemos o caso de uma empregada doméstica, Maria Aparecida, que mal sabia assinar seu nome, permaneceu mais de onze meses na prisão. Ela foi acusada de tentativa de furto de um xampu e um condicionar, no valor de R$ 24,00 de uma farmácia de São Paulo. Um morador de rua, no Rio de Janeiro, passou seis meses na também por furtar um shampoo, no valor de R$ 13,00. Foram casos como estes que levaram os ministros do STF a defender a aplicação do princípio da insignificância.

Ainda segundo a Folha, ao analisar habeas corpus que chegaram à Corte, os ministros mandaram arquivar ações penais que corriam na primeira instância, mandando soltar aqueles que ainda estavam presos por casos como o furto de um violão, de um alicate industrial, entre outros. Esta conduta não deve ser obrigatoriamente seguida pelos demais magistrados do país, mas constituem uma clara sinalização às instâncias inferiores para que deixem de aplicar penas em casos de crimes considerados bagatelas, isto é, de baixo valor. Caso contrário, suas decisões serão revertidas quando chegarem ao STF.

Tudo muito humano, tudo muito coerente. Claro está que há algo errado no ordenamento do jurídico do país quando uma doméstica passa um ano na prisão pelo furto de um shampoo e um jornalista de renome permanece livre como um passarinho após ter matado uma colega com um tiro pelas costas. Ocorre que vivemos no mundo real, e não na torre de marfim do STF. A decisão da Suprema Corte pode gerar uma onda de pequenos furtos que infernizariam a vida de todo mundo, particularmente nas grandes cidades.

Se pequenos roubos não são mais passíveis de punição, lojas e supermercados serão depenados de boa parte de suas mercadorias. Nada impede que um assaltante ataque um cidadão na rua e lhe exija dez, vinte, cinqüenta ou mesmo cem reais. São bagatelas. Pelo menos para o Supremo. Para um pobre diabo que ganha um salário mínimo é um desfalque e tanto. Um gangue que imponha pedágio a adolescentes – como tantas que existem perto das escolas – não estaria cometendo crime algum se depenasse os alunos de seus trocados para gulodices. É claro que estas gangues terão conhecimento da decisão do STF.

O Supremo mandou soltar um ladrão que estava preso por ter furtado um violão. Ora, um violão não é exatamente uma bagatela. São instrumentos que podem custar de oito mil a trinta mil reais. Fiquemos com os mais baratos. Para um músico bem sucedido, oito mil reais é argent de poche. Para um operário que tem alguma habilidade para a coisa e gosta de fazer a viola chorar num botequim, é um desfalque e tanto.

O STF pretenderia mostrar que não são apenas os ricos com acesso a advogados que conseguem decisões favoráveis no tribunal. O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, recebeu críticas em 2008 por ter mandado soltar por duas vezes o banqueiro Daniel Dantas. Para compensar a soltura de Daniel Dantas, os juízes vão onerar o cidadão comum, já escorchado pelas chantagens dos flanelinhas e cambistas.

A Folha teve acesso aos processos dos considerados crimes de bagatela. O furto de uma garrafa de catuaba, uma garrafa de conhaque, um saco de açúcar e dois pacotes de cigarro, produtos com valor de R$ 38, por exemplo, chegaram ao STF no ano passado. Em outro caso, os ministros julgaram o furto de uma carteira com documentos e R$ 80 em espécie.

O absurdo destas ocorrências não está tanto no valor dos furtos, mas no fato de que tais questões tomem o tempo de juízes que deveriam estar julgando as disputas jurídicas verdadeiramente relevantes da nação. Já tive notícias até de briga de vizinhos que chegou ao Supremo. O que deveria ser resolvido numa delegacia de polícia, acaba atulhando a pauta da mais alta corte jurídica do país. Em vez de negar o caráter criminoso de tais fatos, melhor fariam os meritíssimos se se negassem a receber tais processos. O problema não está no Direito Penal. É distorção do Direito Processual.

Ora, vivemos em um país onde a ilicitude é a regra. Quando os pequenos ladrões e assaltantes souberem que o ilícito agora é lícito, será cada mais vez mais inviável sair às ruas. Enquanto isso, um camponês que mata um tatu para alimentar a família é enquadrado como autor de crime hediondo, sem direito a fiança ou liberdade provisória. Ter um passarinho em casa pode também significar um bom tempo de molho na prisão.

Isto, o STF não vê.

sábado, março 21, 2009
 
PAPA NA ÁFRICA TROCA
SEIS POR MEIA DÚZIA



Aconteceu em 87, em Madri. Eu assistia a uma aula de cultura espanhola no Instituto de Cooperación Iberoamericana (ICI), ministrada por um professor extremamente cioso de sua hispanidade. Alguém falou da cultura francesa e ele foi fulminante: “Ustedes saben cual es número de brujas, videntes y cartomantes que hay en Francia? Y después ellos se pretienden herederos de la razón cartesiana”.

Não pude deixar de dar meu pitaco:

- Pero, Profesor, en vuestra España tán moderna y llena de luces, son millones los que creen en un Diós nacido de una palomita!

Silêncio constrangedor na aula. Ele ficou perplexo, quase apoplético, mudou de assunto e continuou falando como se nada tivesse ouvido. Me ocorre esta lembrança a propósito da visita de Sua Santidade a Angola. Quero mudar de assunto, mas o homem não me deixa.

Do alto de seu autismo e de sua condição de vice-deus, pediu aos católicos da África que combatam a superstição, a bruxaria e os maus espíritos existentes em regiões da África. E que ofereçam o Evangelho às pessoas “desorientadas, que vivem no terror”. Não sei se Bento notou, mas está concitando os angolanos a uma guerra religiosa. Bruxaria e maus espíritos fazem parte dos cultos animistas. Em nome de uma religião supostamente superior, o papa pede a todo um continente que não mais acreditem em Epilipilia, o deus da caça das florestas equatoriais, nem em Kaggen, outra entidade superior dos bosquímanos e também deus da caça, nem em Gaub, representante das forças do mal, nem em Tsui-Goab, demiurgo e chefe do povo, senhor do raio e das chuvas, que faz as plantas crescer. Muito menos em Nzambi-Karunga, deus dos hereros angolanos, senhor do tempo e mestre dos infernos, para angolanos e namíbios. Quer que os zulus esqueçam Unkulunkulu, que os zagas deixem de venerar Ruwa, que os bantus abandonem Mulunga.

Que verdades oferece sua santidade em troca das superstições africanas? Nada mais que outras superstições adotadas pela Europa: a crença numa mãe virgem, num homem que é deus, que ressuscitou dos mortos, as promessas de vida eterna e de um paraíso inexistente ou, na pior das hipóteses, no fogo lento do purgatório ou no fogo eterno dos infernos. Está trocando seis por meia dúzia. Às pessoas “desorientadas, que vivem no terror”, oferece o terror do castigo eterno.

Mas sobre o melhor ainda não contei. Joseph Ratzinger está preocupado com o sacrifício dos meninos de rua considerados bruxos. Logo quem! O cardeal e ex-prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora do Santo Ofício. Se em nossos dias alguém ainda não lembra do que seja o Santo Ofício, explico. Era a denominação popular, na Idade Média, da Santa Inquisição, criada pela Igreja Católica Apostólica de Roma. Que levou à fogueira milhares de pessoas – em geral mulheres – acusadas de bruxaria. A instituição foi inclusive adotada de bom grado pelos protestantes. Bento bem que podia escolher tema menos espinhoso e constrangedor para seu périplo pelo continente negro.

Não há idéia precisa do número de mulheres acusadas de bruxaria que foram queimadas pela Igreja na Idade Média. Segundo Henry Charles Lea – autor do excelente Histoire de l’Inquisition au Moyen Âge – não se queimava mais bruxas individualmente. Eram queimadas aos magotes, tanto por católicos como por protestantes. Um bispo de Genebra queimou quinhentas em três meses. Média de mais de cinco por dia. Um outro bispo de Bamberg, seiscentas. Um bispo de Würzbourg, novecentas. Oitocentas foram condenadas de uma só vez pelo Senado de Savóia.

Um tratado jurídico escrito por Frei Nicolau Emérico (1320 – 1399), da Ordem dos Pregadores e grande Inquisidor de Aragão, intitulado O Manual dos Inquisidores, regulamentava a tortura para obter confissões de hereges e bruxas. Uma outra obra, de autoria dos dominicanos Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger, o Malleus Maleficarum (Martelo dos Bruxos), dedicava-se exclusivamente aos crimes de bruxaria. Se em nossos dias a tortura é escondida nos porões das ditaduras, naqueles radiosos dias do Medievo era regulamentada publicamente por autoridades eclesiásticas.

Muitos eram os métodos para descobrir se uma mulher era bruxa. Os mais populares eram as chamadas ordálias, ou juízos de Deus. Eram de uma simplicidade e eficácia extraordinárias. A acusada era amarrada pelos braços e pernas e jogada num rio. Se não afundasse, era óbvio que era feiticeira: a água, elemento puro, não aceitava a bruxa, elemento impuro. Era então enviada à fogueira. Se afundasse, era porque a água, elemento puro a considerava também pura. Morria afogada. Mas pelo menos sua alma estava salva.

Uma outra ordália era carregar nas mãos, de um ponto a outro, por uma distância de cerca de dez metros, um ferro em brasa. Se a infeliz tivesse as mãos queimadas, era óbvio que era bruxa ou herege. Se não as queimasse, ficava claro que era inocente.

A Igreja já se desculpou – com quase quatro séculos de atraso, é verdade – pela condenação de Galileu Galilei. Mas jamais se desculpou pelas atrocidades da Inquisição. Pedir perdão seria igual a condenar dezenas de papas e isto o Vaticano jamais fez nem jamais fará. Ratzinger, herdeiro e guardião da tradição inquisitorial, preocupa-se em Angola com o sacrifício de meninos acusados de bruxaria.

Haja cinismo e falta de tato.

 
REPUBLIC OF SHRIMPS, DEI GAMBERI,
DE LAS GAMBAS OU DES CREVETTES?



Ainda as palavras. Vários leitores estranharam quando, ao falar do Cameroun, escrevi: “que a imprensa brasileira insiste em traduzir por República dos Camarões”. Um deles me afirmou conhecer uma habitante do país que jurava de pés junto ser República dos Camarões, em português. De minha parte, já li artigo de um diplomata do Cameroun, lotado em Brasília, reclamando com veemência da tradução brasileira. Um outro leitor escreve:

Eu já ouvi foi um torcedor camaronês na época de uma das Copas do Mundo, reclamando da mesma coisa. Na Enciclopédia Britannica, que eu julgo confiável, mais que a Wikipedia, com certeza, encontrei o seguinte texto:

The country's name is derived from Rio dos Camarões (River of Prawns)—the name given to the Wouri River estuary by Portuguese explorers of the 15th and 16th centuries. Camarões was also used to designate the river's neighbouring mountains. Until the late 19th century, English usage confined the term the Cameroons to the mountains, and the estuary was called the Cameroons River or, locally,the Bay. In 1884 the Germans extended the word Kamerun to their entire protectorate, which largely corresponded to the present state.


Permanece minha dúvida. Para Costa do Marfim temos em inglês, Cote d’Ivoire. Em francês, Côte d’Ivoire. Em espanhol, Costa de Marfil. Em italiano, Costa d’Avorio. Seguíssemos a mesma norma, teríamos para Camarões, respectivamente, Republic of Shrimps (ou of Prawns, já que o camarão seria de rio), République des Crevettes, Republica de las Gambas, Repubblica dei Gamberi. Se a Britannica traduz Rio dos Camarões por River of Prawns, por que não usaria o mesmo critério para demoninar o país? No entanto, não é assim. Em inglês temos Cameroon, em francês, Cameroun, em espanhol Camerún e em italiano Camerun. Me parece muito inviável que, do ponto de vista lingüístico, Camarões tenha derivado para estas denominações.

Que mais não seja, no site em português da embaixada do país, lá está: Embaixada da República do Cameroun no Brasil. A Secretaria de Comunicação da Universidade de Brasília (UNB) fala em República de Cameroun.

No Portal Consular do Ministério das Relações Exteriores, temos: “República do Cameroun (em francês) ou Cameroon (em inglês). Em português é constantemente referido como República dos Camarões”. Ou seja, nem a embaixada do país nem o MRE põem a mão no fogo por Camarões. A meu ver, a tradução usual brasileira foi mais uma dessas versões canhestras que invadem a língua e são adotadas pela imprensa.

Quando trabalhava na Folha de São Paulo, sugeri ao responsável pelas normas de grafia do jornal que a Folha teria poder suficiente para consertar este erro. "Agora é tarde" - me respondeu.

 
PALAVRAS, PALAVRAS...


São misteriosas, as palavras. Às vezes, imaginamos que são modernas e são no entanto antiqüíssimas. Sempre tive sororité como um achado das feministas francesas. Nada melhor do que ter leitores atentos. De Ilha Solteira, SP, Aloísio Celeri me alerta:

Janer,
Sobre "sororidade", que eu não conhecia, curiosamente o Houaiss não a registra.
Em inglês, ela existe desde 1532: http://www.etymonline.com/index.php?term=sorority.
Abraços.


Lá está: sorotity: "body of women united for some purpose". Mais ainda, vem do latim sororitas, "sisterhood, of or pertaining to sisters". O que resta saber é se o sororité não foi uma dedução espontânea das viragos gaulesas. Pode acontecer. Grato, Aloísio.

sexta-feira, março 20, 2009
 
SORORIDADE CONTAMINA
O PARLAMENTO EUROPEU



O movimento feminista começou empunhando uma bandeira interessante, a libertação da mulher do jugo masculino. Logo logo descambou para o ridículo. Isto começou provavelmente com Simone de Beauvoir que, em O Segundo Sexo – livro que contaminou gerações de cabeças ocas – afirmava que uma mulher não nasce mulher. Se torna mulher. Daí a afirmar que não havia diferença alguma entre homem e mulher foi um passo rapidamente transposto.

A histeria feminista acabou invadindo os vernáculos. Homens deixou de ser genérico de homens. Tornou-se quase obrigatório – quando se falava dos seres humanos em geral – usar a expressão homens e mulheres. Os políticos, como bons demagogos, logo adotaram a moda. Na França, ninguém mais se dirigia aos franceses, mas aos franceses e francesas. Político algum hoje no Brasil se dirige aos brasileiros em geral. Mas aos brasileiros e brasileiras. O politicamente correto passou a dominar o idioma. No país da Simone, o ridículo chegou a tal ponto que as feministas pretenderam trocar o “liberté, egalité, fraternité” por “liberté, egalité, sororité”.

Quando eu imaginava que feminismo era um fenômeno do passado, surge na Espanha a soror Bibiana Aído, ministra da Igualdade, que num excesso de sororidade falou, ano passado, em seu primeiro comparecimento à Comissão de Igualdade no Congresso de Deputados, em “miembros y miembras”. Ante o pasmo de seus interlocutores, explicou que o lapso fora provocado por sua recente visita a uma cúpula na América Latina, “onde se utiliza uma terminologia similar”. Se reconheceu o lapso, não descartou a hipótese de que a expressão poderia ser incluído no vernáculo.

Protesto indignado de Gregorio Salvador, da Real Academia Española: “Isto só pode ocorrer a uma pessoa carente de conhecimentos gramaticais, lingüísticos e de todo tipo. A língua é um sistema econômico de expressão e o masculino, neste caso, vale como termo neutro que serve para masculino e feminino”. Para o acadêmico, a ministra da Igualdade deveria deixar de fazer piadas e ocupar-se em resolver problemas de desigualdade preocupantes que há na Espanha, como as dificuldades que têm os pais em algumas comunidades para que seus filhos estudem castelhano.

Se na Espanha Bibiana foi relegada ao ridículo, Bruxelas o retomou. Imbuído de uma mescla de feminismo e linguajar politicamente correto, o Parlamento Europeu está propondo um rígido manual de estilo acabar de uma vez por todas com o uso sexista da língua. É o que leio no El País.

O Grupo de Alto Nível sobre Igualdade de Gênero e Diversidade da Câmara européia não chega ao ridículo do “miembros y miembras”, mas não fica longe disto. Não se deverá mais falar em todos os membros do Comitê, mas em “cada membro do comitê”, o que pelo menos elude o masculino. Em suas orientações específicas para o espanhol, o gíficas para o espanhol, o grupo recomenda que, em vez de usar-se “os andaluzes”, que aparentemente exclui as andaluzes, se empregue a forma mais ecumênica de “o povo andaluz”.

O rídiculo não fica nisto. Não se deve mais falar em médicos, palavra que deve ser deslocada por uma perífrase: as pessoas que exercem a medicina. A intolerável palavra homem deve ser a todo custo evitada e substituída por expressões não excludentes do sexo feminino, como as pessoas, a gente, os seres humanos ou a espécie humana. Nada de homem médio, mas pessoas comuns. Nem as crianças escapam do stalinismo lingüístico. Não se fala mais em “los derechos del niño” (em português diríamos criança), mas nos direitos da infância.

Aeromoças e pilotos se convertem em pessoal de vôo. As mulheres da limpeza são agora pessoal da limpeza. A palavra senhorita é eliminada, por sexismo em relação a senhor, palavra que não designa um estado civil. Senhorita deve então ser chamada de senhora. Assim, em um vôo, jamais diga “por favor, aeromoça, me traga um uísque”. O correto é: “por favor, pessoal de vôo”. Nem o inglês, língua que pouco se importa com o gênero, escapa. Como em fireman (bombeiro) consta a palavrinha maldita – man – deve-se agora dizer firefighter, o que luta contra o fogo.

É espantoso que nesta Europa agressivamente ameaçada pela islamização de suas próprias leis, pela invasão de migrantes famintos e, presentemente, por uma crise que está gerando desemprego em massa, o Parlamento Europeu se dedique a discutir o sexo dos anjos. Não tivesse Bibiana Aido se precipitado com sua trouvaille, hoje suas “miembras” não soariam tão ridículas.

Que viva la España, que ainda resiste.

quinta-feira, março 19, 2009
 
DIAS DE BROWNING


A síndrome de Down está virando gênero literário, escrevi outro dia. Pelo jeito, vai virar também filão cinematográfico. Estava previsto ser transmitido nesta quinta-feira, na Grã-Bretanha, pelo canal 3 da BBC, um documentário sobre Otto Baxter, 21 anos, portador da síndrome. Sua mãe, Lucy Baxter, está promovendo uma campanha para que Otto consiga ter todas as experiências que outros jovens de sua idade têm, inclusive sexo. Não vai ser fácil.

Raras vezes estive perto de um portador da síndrome. Nestas raras vezes, os vi como seres patéticos, comoventes, extremamente afetivos. Ou quem sabe faltos de afeto, que é a outra face da moeda. Em meu bairro, eles abundam. Quando os vejo na rua, inevitavelmente me salta a exclamação: e ainda há quem acredite em Deus! Imagino que seja um carga pesada para um pai e uma mãe descobrir o mal em um filho que nasce. Merecem nosso afeto? Muito mais que qualquer outro. Daí a encontrar pessoa normal que os aceite sexualmente vai uma longa distância.

A mãe de Otto está ajudando o filho a espalhar cartazes procurando companhia, e abriu uma página na internet para que o filho possa fazer contatos em busca de um relacionamento sexual. Ora, mesmo entre pessoas normais, não é normal espalhar cartazes buscando companhia. Não é assim que se faz e a moça devia ter consciência disto. Quanto a contatos na Internet, poderá conseguir até mesmo sexo virtual. Já é algo. Sexo de fato, jamais. Todo ser humano, mesmo os portadores de Down, deveria ter consciência de suas limitações. Quando não a têm, é normal que sofram mais do que já sofrem. Seria como pedir para um homem desprovido de pernas a mesma vida dos que têm duas. Há males irremediáveis no mundo e a melhor filosofia é aceitá-los com todas suas seqüelas. Ou partir. Também é uma hipótese.

A mãe de Otto, pelo jeito, quer os holofotes da mídia. Mas os holofotes não lhe trarão parceira alguma para o filho. Esta é uma das nobres funções da prostituição, proporcionar refrigério aos desvalidos. Lucy já pensou no assunto. É com certo tom de ameaça que anuncia estar disposta a pagar uma prostituta para que o filho possa experimentar sua primeira relação sexual. "Discutimos se ele deveria ir a Amsterdã (onde a prostituição é legalizada). Eu absolutamente consideraria essa possibilidade", diz. Se as desumanas jovens britânicas não aceitarem o filho como namorado, a mãe apelará ao horrível recurso do sexo venal.

Deveria ter considerado a idéia há muito tempo, em vez de nutrir no filho falsas esperanças, que só tornarão mais amarga sua vida. Não seria difícil encontrar uma profissional sensível que tratasse do Otto discretamente, longe da mídia. Mas Lucy Baxter queria que seu filho levasse uma vida comum, "que ele fizesse as mesmas coisas que qualquer outra pessoa, por isso fiz questão que ele fosse para uma escola comum", disse ela em entrevista à BBC. Ora, Otto não é comum. É incomum. É claro que estaria melhor servido em uma escola especial. A mãe insiste: "Tive trabalho com as autoridades, que queriam que ele fosse a uma escola especial, mas acredito que ele tem direito a ter as mesmas oportunidades que qualquer outra pessoa".

Acontece que não tem. Nem pode ter. Ter as mesmas oportunidades seria poder ser médico, professor, político e mesmo – por que não? – deputado ou primeiro-ministro. Claro que isto não é dado a um Down. O coitado do Otto já está até acreditando na hipótese: "Eu realmente quero. Estou numa missão para encontrar uma namorada. O motivo é que eu quero ter sexo. Estou procurando namoradas em todo lugar".

Mais realista seria ir a Amsterdã. Se bem que na Grã-Bretanha não faltarão profissionais que realizem seu sonho.

A mídia parece ter exaurido o exibicionismo erótico e está apelando a um outro tipo de exibicionismo, o do sofrimento alheio. Há pessoas exibindo a própria morte nas telas. Aconteceu também na Grã-Bretanha. Em fevereiro passado, Jade Goody, uma ex-participante do Big Brother britânico – em país culto também tem baixaria – acometida de câncer terminal na coluna cervical, já calva em função da quimioterapia, casou-se em frente às câmeras. O evento foi oferecido à emissora que pagasse mais pela exibição.

O objetivo de Goody seria nobre, destinar o dinheiro à educação de seus filhos. Mas não se pode deixar de ver um mórbido exibicionismo no espetáculo. Goody quer agora morrer ao vivo, com perdão pelo paradoxo. Se antes o grande público se satisfazia com pornografia – que, bem ou mal, é uma celebração da vida – temos agora voyeurs para um outro tipo de shows, o show da morte. Que deve ocorrer nas próximas semanas. Cultores da morte, estejam a postos ante suas TVs.

Tudo isto me lembra um dos filmes mais marcantes que já vi em meus dias de Estocolmo: Freaks, do cineasta americano Tod Browning. Talvez mais sinistro que Uma arma para Johnny, de Dalton Trumbo. O filme é de 1935 e só poderia ser realizado nessa época, quando as pessoas disformes eram aproveitadas para exibição em circos. E é em um circo que transcorre a ação do filme. Assistimos a um desfile de monstros que vivem harmoniosamente entre si. Um humor sinistro percorre o filme o tempo todo. Há o homem-tronco, que não tem pés nem braços, “caminha” com movimentos peristálticos da barriga e acende um cigarro com a boca. Uma mulher sem braços que toma vinho segurando a taça com o pé. O mais patético é talvez um par de siamesas, unidas pelos quadris. Ocorre que uma delas casa e a outra – como só poderia ser – tem de acompanhá-la em seus enlevos com o marido. Mais trágico ainda: uma é alcoólatra. Quando bebe, a outra também se embriaga.

Na época, Browning não agradou. Como o público não estava preparado para tal choque, o cineasta recebeu críticas negativas e foi boicotado nos cinemas. O filme foi banido em vários países do mundo e hoje só pode ser encontrado em cinematecas.

Pelo clima que observo em nossos dias, está na hora de ressuscitar a obra de Tod Browning. Tem tudo para fascinar multidões. O distinto público já está preparado.

quarta-feira, março 18, 2009
 
PAPA AUTISTA LEVA MENSAGEM DE
MORTE AO CONTINENTE AFRICANO



Há quem julgue que minhas repetidas críticas à Igreja Católica decorrem de algum trauma de minha adolescência, quando era católico. Nada disso. É claro que tive noites de pânico com as ameaças de inferno e purgatório e sofri o que hoje considero um atentado aos direitos humanos, a humilhação da confissão. Mas tudo isso passou e não deixou nem mossa em meu espírito.

Concentro as críticas na Igreja Católica, porque é a Igreja que está no poder. Não foram evangélicos nem judeus nem espíritas que criaram a Inquisição. Foi a Igreja Romana. Não foram evangélicos nem judeus nem espíritas que criaram o PT, que apóiam e sustentam a guerrilha dos sem-terra. É a Igreja Católica. Não são evangélicos nem judeus nem espíritas que estão caindo como abutres sobre a menina de Alagoinha, sua família e os médicos que a salvaram. É a hierarquia da Santa Madre.

Isso sem falar em Sua Santidade. Há horas quero esquecer o pastor alemão, mas ele não me dá esse prazer. Alguns papas já passaram por minha vida e confesso jamais ter visto padre tão inábil, déspota e mesmo ignorante dos artigos da fé que devia conhecer a fundo. Os leitores que me perdoem, mas não posso deixar passar de mão beijada a última sandice do Sumo Fazedor de Pontes. O que mais tem feito, em verdade, são muralhas que cada vez afastam mais a barca de Pedro de nossa era.

Segundo o Bento, o problema da Aids não pode ser resolvido pela distribuição de preservativos e o uso destes só serve para agravar o problema. Disse isto no vôo que o levava a Iaundé, capital do Cameroun – que a imprensa brasileira insiste em traduzir por República dos Camarões – justo um dos países africanos mais devastados pela peste. Há dois anos, os infectados somavam 510 mil, contra 43 mil em 2004. Não por acaso, o Cameroun é um país de forte influência católica, onde esta religião é professada por 40% de seus nacionais.

Dos 39,5 milhões de acometidos pela doença no mundo, 25 milhões estão na África subsaariana. (Estes dados são de 2006). Desde há muito se sabe que a propagação da Aids no continente negro se deve em boa parte à influência da Igreja, que proíbe a seus fiéis o uso de preservativos. O cachimbo entorta a boca. Habituado a professar dogmas e convicções na base do credo quia absurdum, não soa estranho a Bento um absurdo a mais ou um absurdo a menos.

Desta vez, exagerou. Se o fato de desexcomungar um negacionista – que tinha sido excomungado não por ser negacionista, diga-se de passagem - provocou celeuma no mundo todo, com esta declaração o papa chegou perto da unanimidade. É muito fácil afirmar que Deus é três em um ou que Maria é virgem. Não há como fazer perícia. Já afirmar que preservativos só servem para agravar o problema da Aids é bem mais complicado. Sua Santidade desafia a medicina e o bom senso. Fora a Cúria Romana e alguns gerontes da hierarquia vaticana, que por dever de ofício devem apoiar o papa, ninguém endossa esta grossa potoca do Bento.

Em reportagem do Libération, os protestos se acumulam. Para Béatrice Luminet, responsável pela Médecins du Monde, esta palavras são “gravíssimas quando se vê o impacto que este tipo de mensagem pode ter na África, onde vivem dois terços dos soropositivos do mundo. Elas terão evidentemente um impacto em termos de perturbação das mensagens de prevenção, particularmente sobre o continente africano onde o catolicismo é mais influente. Pregar a abstinência é fora da realidade”.

Os comunistas há décadas andam de namoro com o Vaticano, mas o secretário nacional do Partido Comunista Francês (PCF) foi mais longe: “as palavras pronunciadas pelo papa para inaugurar sua primeira viagem ao continente africano podem ser qualificadas de irresponsáveis e criminosas”. Para Jean-Luc Romero, presidente de uma associação francesa contra a Aids, se trata de “uma mensagem de morte endereçada aos africanos”. Já Alain Juppé, ex-primeiro-ministro francês e católico praticante, considera que “este papa começa a ser um verdadeiro problema, pois vive em uma situação de autismo total”.

Em verdade, a culpa não é exatamente do Bento, mas da ojeriza secular ao corpo e ao prazer nutrida pela Igreja Católica. João Paulo II preconizava o mesmo. Desde há muito defendo, para espanto de muitos leitores, a denúncia da política vaticana ao Tribunal Penal Internacional ou à Corte de Haia. Porque o que a Igreja de Roma está promovendo, em bom português, chama-se genocídio.

Impávido, isolado na torre de marfim vaticana, Bento XVI só vê a abstinência e a fidelidade conjugal como solução à Aids. Aposta numa inexistente condição angelical do ser humano e quer conduzir os sofridos africanos a uma morte atroz.