¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, abril 30, 2010
 
ESPANHA RESSUSCITA BABEL


Lemos no Gênesis que toda a terra tinha uma só língua e um só idioma. Deslocando-se os homens para o oriente, acharam um vale na terra de Sinar, onde construíram uma cidade com uma torre cujo cume tocava no céu.

“Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam; e disse: Eis que o povo é um e todos têm uma só língua; e isto é o que começam a fazer; agora não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Eia, desçamos, e confundamos ali a sua linguagem, para que não entenda um a língua do outro. Assim o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade. Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e dali o Senhor os espalhou sobre a face de toda a terra”.

Verdade que, subterraneamente, corre uma outra versão. Que os homens falavam várias línguas e então o Senhor fez com que falassem uma só. Aí os homens se desentenderam. É uma hipótese. Em meus dias de universidade, tive uma namorada que, em função de uma traqueostomia, mal conseguia falar. Só emitia um fiozinho de voz difícil de ser ouvido. Obturada a traqueostomia, readquiriu o dom da palavra. Surgiu então em nosso convívio a discórdia. Foi o fim de um amor que prometia ser eterno.

Trocando os queijos de bolso, é o que está acontecendo na Espanha. Leio no El Mundo que o Partido Socialista no poder votou com os nacionalistas das comunidades autônomas para que todas as línguas oficiais – o castelhano, o catalão, o basco, o galego e o valenciano – sejam faladas na segunda câmara do Parlamento. O serviço de interpretação simultânea a ser posto em prática seria semelhante àquele das Nações Unidas ou do Parlamento europeu, ironiza o jornal.

Há três décadas, eu aplaudiria a idéia com entusiasmo. O que só demonstra que longa é a jornada até a sensatez. Na época, eu considerava que cada língua que morre empobrece a humanidade. Hoje, penso que língua só é língua se tem atrás de si um exército, uma marinha e uma força aérea. Se não os tiver, é dialeto. Os nacionalismos estão minando a Espanha. A começar pelo basco. Corre à boca pequena que, quando o bom Deus quis castigar o demônio, condenou-o a estudar basco sete anos.

Continuando com o catalão. Se o basco sempre foi a língua corrente nas vascongadas, o catalão era apenas uma língua a mais na Catalunha. Todo catalão falava espanhol. Com a morte de Franco, ocorreu na região um surto de afonsocelsismo – fenômeno que não é só brasileiro, mas universal – e a Generalitat decidiu que o catalão passava a ser a língua oficial da comunidade. Se entre espanhol e basco há uma distância intransponível, entre espanhol e catalão a distância é mais curta, mas mesmo assim difícil de ser transporta. Pessoalmente, se leio catalão, consigo entender. Quando eles falam, já não entendo mais nada.

A oficialização do catalão é uma exigência mais ou menos ditatorial da Generalitat, o sistema institucional em que se organiza politicamente o autogoverno da Catalunha. Se você for a Barcelona, verá que todo mundo falava espanhol. Já o catalão, é imposto no ensino e nas comunicações oficiais com o Estado. O que faz a fortuna dos tradutores. Um documento da Generalitat enviado a Madri tem de ser traduzido ao espanhol. Quando Madri responde, nova tradução ao catalão. No ensino, o espanhol tem as mesmas horas consagradas ao inglês. A escola está formando, na marra, novas gerações que já não conseguem falar com seus pais.

Dividir para reinar, esta parece ser a divisa dos socialistas espanhóis. Verdade que a Suíça tem quatro idiomas oficiais. Mas um suíço tem, desde o berço, uma educação pelo menos trilingüe. Todo suíço, em princípio, fala alemão, francês e italiano. Quanto ao romanche, é falado por cerca de 35 mil pessoas como língua materna, e por outras 40 mil como segunda língua. Considerada em risco de extinção, é falada por menos de 1% dos 7,4 milhões de habitantes da Suíça e superada por línguas não-oficiais como o servo-croata e o português.

Durante séculos, a Espanha se entendeu muito bem com o espanhol. Tornar oficiais mais quatro línguas – das quais duas pelo menos, o catalão e o basco, já gozam desse status – significa tornar mais complicada a vida de todo cidadão. O Partido Popular (PP) qualificou a medida como totalmente idiota e ridícula no cenário internacional, com “senadores que portarão aparelhos de tradução para se entenderem em uma câmara onde todo mundo fala a mesma língua”.

Socialismo é isso mesmo. Para que facilitar quando se pode complicar?

quinta-feira, abril 29, 2010
 
A GRANDE MISTIFICAÇÃO
DO SÉCULO PASSADO (IV)



Este debate sobre a psicanálise, para mim já estava resolvido há um bom meio século. Me espanta que seja hoje retomado na culta França. Ou supostamente culta. Retomar a discussão me soa como tentar saber se Ury Geller – alguém ainda lembra? – entortava ou não colheres. Há muito defendo a idéia de que os jornais deviam ter uma espécie de supervisor de uns 80 anos, com pelo menos meio século de redação, que conheça bastante bem a história de seu tempo, para que os redatores mais jovens não achem que é novidade o que em verdade é antigo. Volto ao livro dos Pinckney.

“Segundo o próprio Freud, ninguém tem o direito de criticar a psicanálise. Pelo simples fato de pôr em dúvida os métodos psicanalíticos, a opinião do céptico não merece confiança. Em Freud, lê-se: “Ao céptico se diz que a análise não requer fé; que ele pode ser tão crítico e desconfiado quanto queira; que, em absoluto, não se considera sua atitude como resultante de seu raciocínio, pois não tem condições de formar sobre o assunto apreciação digna de crédito...”

Dogma absoluto, no melhor estilo dos dogmas da Santa Madre. Quem não crê, não tem autoridade alguma para falar sobre o assunto.

“Paradoxalmente, e isto espelha a psicanálise em geral, não é indispensável ter sido analisado ou possuir raciocínio fidedigno para elogiar Freud e seu trabalho; homenagens à psicanálise são sempre aceitas, ainda que seus autores não tenham conhecimento, ou experiência do assunto. Com essa atitude farisaica, Freud e seus discípulos não dão lugar à investigação por métodos científicos, pois o cientista, por sua própria necessidade de testar a validade das teorias, revelar-se-ia suspeito e incapaz de julga com precisão”.

Não há chance alguma para quem discorda. Disse Dr.Freud: “... dando interpretações a um paciente, nós o tratamos sob a famosa fórmula de cara ou coroa. Isto é, se o paciente concorda conosco, a interpretação está certa. Mas se ele nos contradiz, isto é apenas sinal de sua resistência, o que novamente prova estarmos certos”.

Os Pinckney fazem uma distinção entre psiquiatria e psicanálise. Para os autores, a psiquiatria é um ramo da medicina dedicado à causa, diagnóstico e tratamento da doença mental. Esta abrange todas as formas de distúrbios do cérebro e sistema nervoso. O verdadeiro psiquiatra não exclui doenças orgânicas ou físicas, nem exclui a possibilidade de a doença mental resultar de etiologia física, química ou biológica. O psicanalista, pelo contrário, recusa-se a reconhecer qualquer desvio de saúde senão o que ele convenientemente rotula de neurose e, além disso, recusa-se a atender quem manifeste o mais remoto sintoma de doença verdadeira.

“Assim é que, há pouco mais de cinqüenta anos, um homem doente e solitário – um homem que não suportava que outros o fitassem; um homem que tinha sentimentos anormais em relação à própria mãe, a expensas da esposa; um homem que vicariamente se comprazia em sórdidas histórias sexuais – lançou uma doutrina para justificar suas próprias anormalidades”.

Michel Onfray não está dizendo nada de novo. Há muito a psicanálise foi desmistificada.

 
A GRANDE MISTIFICAÇÃO
DO SÉCULO PASSADO (III)



Muitos outros embates tive com esta raça de vigaristas. Ainda jovem, fiz um concurso para secretário de escola. Na hora do exame biométrico, entrei na fila errada, caí na dos concursados para delegados de polícia. Fui examinado por um psicanalista. Não por acaso, um dos que estavam no debate sobre Bergman. Sentado em uma cadeira solene, do outro lado da mesa me analisava com olhar percuciente. Eu, numa cadeirinha de réu. Comecei a rir.

- Por que o senhor está rindo?

- Estou rindo porque o senhor, do alto dessa curul, está me observando nesta humilde cadeirinha.

Não sei se ele entendeu a curul, mas senti que não gostou.

- O senhor está rindo de nervoso.

- Vai ver que é, Dr! O senhor é psicanalista. Eu, provavelmente um neurótico qualquer.

- O senhor tem algo contra a psicanálise? – perguntou-me.

Tinha e muito. Havia lido bastante na época sobre o assunto e fui debulhando meus argumentos. Ele não disse nada e dispensou-me. Algumas semanas depois recebi uma comunicação. Devia submeter-me a uma junta psiquiátrica. Se não aceitava a psicanálise, certamente era um perigoso meliante.

Compareci ao exame. Não consigo esquecer da cena. Três doutores, sentados sempre em cadeiras solenes, me olhavam do alto. Eu, numa cadeirinha de réu. Precisava do emprego, respondi como eles gostavam. Fiquei sem saber se fui condenado ou não pelos Torquemadas. Antes da sentença, consegui emprego em jornal e nem me preocupei com o laudo.

Mais adiante, novo confronto. Escrevi que ser psicanalista dispensava curso universitário. Mais ainda, dispensava qualquer curso. Qualquer analfabeto, se quisesse, podia colocar placa de psicanalista em uma sala e sair clinicando. Na época, em São Paulo, após o curso de cinco anos, ao preço de dez ou quinze mil cruzeiros por mês, pessoas sem o pré-requisito do curso de medicina podiam exercer a profissão de psicanalista. Enquanto 38 alunos faziam o curso, outros cem esperavam na fila. O que constituía uma espécie de subvigarice, já que lei alguma regulamentava a profissão.

A guilda reagiu com fúria. Um psiquiatra, lembro que chamado Ronaldo Moreira Brum, me acusou nos jornais de nada entender de medicina – como se psicanálise fosse medicina. Ok! Doutor. De medicina nada entendo. Mas entendo de Direito. E psicanalista não é profissão regulamentada. Portanto, qualquer um pode exercê-la. A propósito, tem muito engenheiro e economista desempregado no Brasil, que puseram plaquinha de psicanalista em seus escritórios para ganhar seu pão.

Uma psicóloga e jornalista, Ivete Brandalise, resolveu enfiar sua colher na sopa. Escreveu que devia existir uma lei que regulamentasse a profissão de psicanalista. Que ela, psicóloga, tinha uma lei que regulamentava a sua. Ora, a dita lei era um trenzinho da alegria, no qual embarcaram todos os licenciados em Filosofia. De filósofos, vaga e suspeita ocupação, viraram psicólogos. Ora, lei tem número e data. Desafiei a Brandalise, e também o Dr. Ronaldo, a me citar o número e a data da lei que regulamentava a profissão. Nunca tive resposta.

A cada semana, começava minha crônica: “Enquanto o Dr. Ronaldo não nos fornece o número e a data da famosa lei que regulamenta a profissão de psicanalista...” Nunca forneceu. Soube mais tarde que propôs, em uma reunião da Amrigs (Associação dos Médicos do Rio Grande do Sul), que a entidade me processasse por calúnia. Ou talvez difamação, já não lembro. Prudentemente, a Amrigs decidiu que não iria dar atenção a “um jornalista em busca de sensacionalismo”.

Se bem que, devo confessar, tive notícias de um psicanalista sensato. Em minhas andanças noturnas, conheci uma mulher esplendorosa. Algumas semanas depois, sem mais nem menos, ela bateu à porta de meu humilde tugúrio. Recém-acordado, perplexo e sem acreditar no que via, perguntei ao que vinha.

- Meu psicanalista me liberou para te visitar.

Entra. E passa meu endereço ao doutor. Que mande mais clientes. Profissional dos bons tava ali. Ou seja, mesmo no universo da psicanálise parece existir alguma lucidez. É a chispa da ferradura quando bate na calçada.

quarta-feira, abril 28, 2010
 
A GRANDE MISTIFICAÇÃO
DO SÉCULO PASSADO (II)



Tenho vários livros de Onfray em minha biblioteca, entre eles o Traité d'athéologie, edição de 2005, onde o autor faz sua apologia do ateísmo. Interessante, mas nada de novo. Mais importante é o menos conhecido é o Histoire de l’atheísme, de Georges Minois, publicado em 1998. Em suma, nesta sua nova obra, Le crépuscule d’une idole, Onfray ataca o ídolo em que teria se convertido Freud e a vigarice que constitui a psicanálise. Era o que eu dizia nos anos 70. Pena que era gaúcho e não galo.

Não tenho ainda o livro ainda em mãos. Vou então me ater a um resumo publicado pelo Estadão. Segundo o artigo, Onfray acusa o pai da psicanálise de ser mentiroso, fracassado e defensor de regimes totalitários. A psicanálise é comparável a uma religião e sua capacidade de curar as pessoas é semelhante a da homeopatia. Freud teria tranformado seus próprios "instintos e necessidades fisiológicas" em uma doutrina com pretensão de ser universal. Mas, para Onfray, a psicanálise seria "uma disciplina verdadeira e justa no que diz respeito a Freud e ninguém mais". Freud fracassou na cura de pacientes que ele mesmo atendeu, mas ocultou ou alterou suas histórias clínicas para dar a impressão de que o tratamento havia sido bem sucedido. Ele afirma, por exemplo, que Sergei Konstantinovitch, indicado por Freud como "o homem dos lobos", continuou fazendo psicanálise mais de meio século depois de ter sido supostamente curado por Freud. E diz que Bertha Pappenheim, conhecida como "Anna O." e apresentada por Freud como um caso em que o tratamento contra histeria e alucinações funcionou, continuou tendo recaídas.

"A psicanálise cura tanto quanto a homeopatia, o magnetismo, a radiestesia, a massagem do arco do pé ou o exorcismo feito por um sacerdote, quanto nenhuma oração diante da Gruta de Lourdes”, afirmou Onfray, em debate promovido pelo Nouvel Observateur. "Sabemos que o efeito do placebo constitui 30% da cura de um medicamento", acrescentou. "Por que a psicanálise escaparia desta lógica?"

Quem lê isto neste ano da graça de 2010, pode até pensar que Onfray descobriu a América. Não descobriu. Estas denúncias são antigas, datam de mais de 40 anos atrás. Em 1965, os cientistas americanos Edward e Cathey Pinckney publicaram The Fallacy of Freud and Psychoanalysis, traduzida em 1970 no Brasil como Psicanálise, a Mistificação do Século, pela Edigraf, que reduzia Freud à condição de vigarista. No Brasil, Silva Mello publicou, em 1967, um gordo ensaio de 536 páginas, intitulado Ilusões da Psicanálise, publicado pela Civilização Brasileira. Estes livros repercutiam denúncias anteriores da grande vigarice do século XX. Voltarei ao livro dos Pinckney. Antes disto, mais um pouco da síntese feita pelo Estadão sobre o ensaio de Onfray.

“Além de questionar o método de Freud, Onfray criticou sua personalidade e o apresenta como alguém que foi capaz de cobrar o equivalente ao que seriam hoje US$ 600 por uma sessão, e incapaz de tratar dos pobres. O filósofo francês diz que acredita que Freud tinha preconceito contra homossexuais e com um interesse especial em temas como abuso sexual, complexo de Édipo e incesto, e que dormia com a cunhada.

Em termos ideológicos, Onfray defende a tese de que Freud flertou com o fascismo e diz que em 1933, ele escreveu uma dedicatória elogiosa para Benito Mussolini: "Com as respeitosas saudações de um veterano que reconhece na pessoa do dirigente um herói da cultura." Ele afirma que o criador da psicanálise procurou se alinhar com o chanceler Engelbert Dollfuss, que instaurou o "austrofascismo" no país, e também às exigências do regime nazista”.

Claro que tais acusações gerariam ondas de ódio da parte dos escroques que vivem da psicanálise. A historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco afirmou em artigo no Nouvel Observateur que o novo texto de Onfray está cheio de erros e rumores. Roudinesco acusou Onfray de ter tirado as coisas do contexto e afirmou que Freud de maneira alguma apoiou o fascismo e nunca fez apologia dos regimes autoritários. "Quando sabemos que oito milhões de pessoas na França tratam-se com terapias derivadas da psicanálise, está claro que no livro e nas palavras do autor há uma vontade de causar danos", disse.

Quer dizer: se oito milhões de franceses garantem o bem-estar dos psicanalistas franceses, Freud deve ter razão. É um argumento curioso. Soa mais ou menos como: se um bilhão de pessoas acredita no Cristo, vai ver que deus existe. Se milhões de pessoas acreditaram no comunismo, vai ver que Stalin era um santo.

Kristeva, outra vendedora de vento que vive da boa-fé dos simples, defendeu a psicanálise como um mecanismo capaz de tratar de problemas como a histeria, o complexo de Édipo ou comportamento anoréxico ou bulímico, entre outros. "Onfray nos insulta quando diz que a psicanálise não cura", escreveu o psiquiatra e psicanalista Serge Hefez. “O que fazemos todos nós em nossos consultórios, centros de terapia familiar, conjugal, nossos hospitais (...) senão ajudar o sujeito a se converter em ator de sua própria história?"

Por este converter o sujeito em ator de sua própria história, os psicanalistas cobram uma fortuna. E não há prazo fixo para o sujeito se converter em ator. Desde que tenha como pagar, passa toda sua vida se convertendo em sujeito de sua própria história. A reação contra o livro de Onfray mostra o desagrado de uma guilda que vê ameaçados seus gordos lucros com a indigência mental da classe média. Porque quem faz psicanálise é a classe média. Pobre não pode pagar. E rico não tem maiores angústias. Continuo amanhã.

 
A GRANDE MISTIFICAÇÃO
DO SÉCULO PASSADO (I)



Desde meus verdes anos, considerei a psicanálise uma solene vigarice. E Freud, um talentoso vigarista. Mas de que vale um universitário gaúcho contestar uma sumidade vienense? De nada. Segundo dogma estabelecido por seu criador, quem contesta a psicanálise está precisando de psicanálise. Ou seja, estamos diante de uma religião tão dogmática quanto o catolicismo.

A psicanálise, mal surgiu, foi violentamente contestada. Em Gog, Papini via Freud como um médico fracassado com pendores literários. Incapaz para a medicina, Freud dedicou-se à ficção. Assim nasceu a psicanálise. Surgiu agora na França, obra de um ensaísta que confirma minha posição de 40 anos atrás. Trata-se de Le crépuscule d’une idole. L’affabulation freudienne, de Michel Onfray, que trata Freud como um impostor. Se um intelectual francês faz esta afirmação, é claro que tem muito mais autoridade que um gaúcho de Dom Pedrito. Mas Onfray, é bom antecipar, nada tem original. Antes de entrar na discussão, relato minhas retrições à psicanálise. Não, não li toda a obra de Freud. Li apenas O Futuro de uma Ilusão, quando o pensador dos bosques de Viena dá uma no prego, após dar 250 na ferradura. Minha desconfiança com a nova religião decorre de meus contatos com psicanalistas.

Ao chegar em Porto Alegre, tropecei com um fenômeno do qual jamais ouvira falar em Dom Pedrito, a psicanálise. Defendo a idéia de que há embustes que só conseguem enganar intelectuais, jamais enganam o homem simples. Em Porto Alegre, capital intelectualizada, com universidades e farta massa cinzenta, os psicanalistas tinham um excelente mercado para vender seus peixes podres.

Em meados dos anos 70, na Reitoria da UFRGS, tive a chance de xingar a raça. Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman, era analisado por um crítico de cinema e dois psicanalistas. Como eu estava voltando da Suécia, fui convidado por um terceiro psicanalista para o debate. Porto Alegre, naqueles idos, vivia uma circunstância peculiar: sem produzir filmes, tinha uma crítica de cinema ativíssima. Luis Carlos Merten, o crítico, abriu os debates, com voz empostada: "Dois são os instintos básicos da humanidade: sexo e fome. Como não existe fome na Suécia, os suecos fazem um cinema de sexo".

Sem discutir a veracidade histórica da afirmação (no final do século XIX, Estocolmo era uma das cidades mais pobres e sujas da Europa), considerei que no Brasil ninguém passava fome. Vivíamos em plena época das pornochanchadas e o cinema nacional girava em torno a sexo. Merten mudou de assunto e passou a falar de Bergman, o "cineasta da alma".

Discordei. A meu ver, Bergman era o cineasta das neuroses sexuais. Em sua filmografia, o relacionamento físico entre os personagens é sempre sofrido, doloroso, traumatizante. (Quem não lembra o episódio dos cacos de vidro introduzidos na vagina, em Gritos e Sussurros?). Não por acaso, o cineasta estava em seu quinto casamento. Homem que não se acerta com uma mulher - afirmei - não se acerta com cinco nem com vinte e cinco. Mal terminei a frase, fui interrompido por um dos psicanalistas: "Não podemos invadir a privacidade de Bergman, que está vivo. Falemos de sua mãe, que já morreu".

O debate continuou por outros rumos. Em uma das cenas, a personagem principal, interpretada por Liv Ullmann, após jantar com o marido, pergunta-lhe se quer café ou se vai dormir. Interpretação do segundo psicanalista: "Café ou cama. Temos uma manifestação típica de sexualidade oral". Observei aos participantes da mesa que pretendia convidá-los para um cafezinho após o debate. Como arriscava ser mal interpretado, desistia da idéia. O debate foi rico em pérolas do mesmo jaez. Registro mais uma.

Da platéia, alguém perguntou por que razões Liv Ullmann usava duas alianças no mesmo dedo. Interpretou um dos analistas: "Agressão instintiva ao marido, desejo de viuvez antecipada. Ou ainda, uma projeção homossexual na mãe. Ela vê na mãe os princípios masculino e feminino e usa os dois símbolos no dedo". Lavei a alma naquela noite: o douto analista ignorava que na Suécia as mulheres costumavam usar ambas as alianças, a própria e a do marido.

Se a história terminasse aqui, até que não seria grave. Ao sair da Reitoria, fui abordado pelo Sérgio Messias, o psicanalista que me convidara para o debate: "Por que aquela agressão pessoal ao Meneghini? Tens algo contra ele?" Referia-se àquele que insistia em falar da mãe do Bergman. Ora, não me parecia ter agredido ninguém. E muito menos o tal de Meneghini, que via pela primeira vez em minha vida. "Acontece que ele também está na quinta esposa. E como sempre as leva para morar com a mãe, parece que também não está dando certo". Atirei no que vi, acertei no que não vi. Poucas noites ri tanto em minha vida.

Naquele dia, adquiri a firme convicção de que psicanálise era vigarice. Voltarei a Onfray.

terça-feira, abril 27, 2010
 
VICE PACÓVIO CAI NO
CONTO DO SEQÜESTRO



Leio no portal Terra que o vice-presidente da República, José Alencar, foi vítima, no domingo passado, em seu apartamento no Rio, do golpe do falso seqüestro. Sem empregados em casa, em Ipanema, ele mesmo atendeu ao toque do telefone, aceitando a chamada a cobrar e ouvindo, do outro lado da linha, o choro forte de uma jovem, que ele julgou fosse uma de suas filhas. Ela apelava, desesperada: "Meu pai, meu pai, me pegaram, meu pai, estou amarrada, paga logo eles para eles me soltarem, meu pai!". Ato contínuo, um suposto sequestrador assumiu o telefone, anunciando que a moça estava em seu poder e exigindo R$ 50 mil de resgate.

Muito tenso, Alencar tentou argumentar, alegando não ter, àquela hora, tal soma. "Não sou do Rio, não tenho tudo isso aqui!". O criminoso, irredutível, também pediu jóias. Alencar explicou que sua mulher, muito religiosa, fizera promessa e não as tinha. Depois de negociar sob pressão emocional, ouvindo o choro da "filha" ao fundo, Alencar conseguiu baixar para R$ 20 mil e, em seguida, sem desligar, acionou o empresário Walter Moraes: "Preciso pegar R$ 20 mil com urgência no Banco do Brasil". O amigo se prontificou, ouvindo: "Então manda providenciar para mim, é uma emergência, é uma emergência".

E dizer que um pacóvio desses é vice-presidente da República. Sequer ocorreu a um homem que, por questões de ofício, é ou deveria ser responsável pela segurança do país, telefonar à filha para saber se estava seqüestrada ou não. Nas mãos de gente assim repousa a segurança da nação.

Só no ano passado, devo ter recebido pelo menos dez telefonemas desses. Um oficial da PM me anuncia com voz grave:

- Seu filho acaba de sofrer um acidente de trânsito.
- Ah é? Está sofrendo muito?
- A situação é grave. Corre risco de morrer.
- Que pena, tenente. Preferia que já tivesse morrido.

Ou então um marmanjo me chama com voz angustiada:

- Paiê, me ajuda paiê!

Sempre telefonemas a pagar. Pai amoroso, não hesito um segundo:

- Filhão, que aconteceu contigo?
- Fui seqüestrado, paiê!
- Estão te machucando, meu filho?
- Tão, paiê. Querem me cortar um dedo.
- Que horror, meu filho. Tá falando em celular?
- Tô, paiê!
- Então dobra e enfia, fedapê!

Marco a hora do telefonema e depois confiro na conta. Tenho todos os números anotados. As chamadas invariavelmente vêm de Recife, Rio e São Paulo. Nunca fiz comunicação nenhuma à polícia. São celulares roubados, de nada adiantaria. Que entram nas prisões com a cumplicidade da própria polícia. Este ano, curiosamente, não recebi até agora telefonema algum desses. Mas não perco por esperar. Virou rotina.

Ouço histórias de senhoras velhinhas que caíram nesse golpe. São vovós ingênuas, já meio caducas, que acreditam tanto na novela das oito como em seqüestros fictícios. Me parece existir um certo narcisismo às avessas nisto, tipo "olha aí, eu também sou vítima da bandidagem nacional". O difícil é admitir que um vice-presidente da República, empresário bem sucedido e homem cercado de todo um aparelho de proteção, tenha caído nesse conto.

Vai mal a segurança nacional. O episódio é prova inconteste da torre de marfim em que vivem os poderosos de Brasília. Isolados do mundo dos demais mortais, sequer sabem como reagir a uma tentativa de extorsão que, de tão banal, se tornou ridícula.

Mais um pouco e Alencar cai no conto da herança da viúva nigeriana.

segunda-feira, abril 26, 2010
 
QUANDO CULINÁRIA É
SINÔNIMO DE VIGARICE



Quando vim pela primeira vez a São Paulo, nos anos 70, jornal algum falava de chefs. Falava-se no máximo em chefe de polícia. Tampouco havia suplementos de culinária na imprensa. Hoje, os chefs viraram personagens da crônica social e culinária tornou-se item de alto consumo. Há quem considere São Paulo uma metrópole cosmopolita. De fato, deve ser a capital brasileira em que mais tropeçamos com cosmopolitismo. Mas há também muito provincianismo. Para não dizer breguice.

Moro a uma quadra do Pátio Higienópolis. Ao lado do shopping, há um restaurante caríssimo e metido a besta, onde cometi a besteira de jantar lá certa noite. Queria saber como era. Devia ter desconfiado. É o único restaurante que conheço no mundo que pôs um cavalete na calçada anunciando o nome do chef. Metrópole não significa ausência de caipiras. O cavalete me lembrou uma lanchonete vagabunda cá do bairro que anunciava

FEIJOADA = 5 REAL
ENJOY IT


Chefs se tornaram distintivos de status. Você não vai encontrar jornal nenhum no mundo que dê tantas páginas a estes senhores como os jornais de São Paulo. Restaurante já não tem mais cozinheiro. Só tem chef. Mas você jamais encontrará chef alemão, sueco, holandês, grego ou português. Chef tem de ser francês. Ou espanhol. À la limite, italiano. Boliviano ou paraguaio, ni pensar. Há, é claro, os chefs tupiniquins. Na maioria, foram auxiliares de cozinha em algum restaurante em Paris ou Roma. Voltaram chefs.

Conheci uma destas sumidades. Era francês, mas dos DOM-TOMs. Mais precisamente, da Martinica. Foi – ou ainda é, não sei – chef de um dos mais prestigiosos hotéis da City, como pretendem alguns paulistanos. Falava um francês que exigia grande esforço para ser entendido. Certa vez, fui a uma festa onde ele queimava as panelas. Ofereceu um couscous aos comensais. Couscous árabe, não confundir com o baiano. Abominável, nada a ver com o legítimo. Perguntei-lhe onde havia aprendido a cozinhar. Foi sincero: na Legião Estrangeira. Ou seja, cozinheiro da escória militar da França na África, em São Paulo vira vedete.

Leitor me envia uma promoção gastronômica do restaurante Baby Beef Rubaiyat, que recebe os chefs espanhóis Xavier Pellicer e Carlos Valenti para um jantar exclusivo nesta quarta-feira, a partir das 21h. A quatro mãos, eles executarão um menu composto por tapas, três pratos principais e sobremesa. O jantar terá início com as tapas criadas por Carlos Valenti, chef do Baby Beef Rubaiyat de Madri e vencedor de um tal de Concurso Internacional de Tapas, de 2008. Preço da brincadeira, 280 reais por cabeça.

Aqui vão duas safadezas. Quando você ouve falar do Baby Beef Rubaiyat de Madri, se não conhece Madri pode até imaginar que se trata de um restaurante espanhol. Não é. É a filial brasileira do brasileiríssimo Baby Beef Rubaiyat de São Paulo. Para onde acorrem brasileiros deslumbrados, achando que estão freqüentando um restaurante espanhol. O Rubaiyat transforma em espanhóis os restauradores brasileiros para melhor vendê-los no Brasil.

Por outro lado, vai ver que foi o Rubaiyat tupiniquim que organizou o tal concurso internacional de tapas. Porque concurso internacional de tapas não faz sentido. Tapas são espanholas. Pelo que sei, a palavra deriva da época pós Guerra Civil, quando era proibido beber sem algo para comer. Ao cliente, era oferecido algo para tapar o copo. Que quiere Usted como tapas?

Culinária está virando vigarice.

Prato perfeito para caiçaras. Essa gentinha endinheirada e medíocre, que adora pagar caro porque acha que pagar caro significa status. Ano passado, escrevi sobre restaurantes soberbos nos quais comi em Madri. No solene Comedor d'El Rey, sala do Café Oriente onde Juan Carlos recebe de vez em quando os estadistas que o visitam, em uma cave do século XVI, com talheres e baixelas de prata e copos de cristal, almocei com a Primeira-Namorada. Dois pratos, um bom Penedès, mais dois Carlos III para finalizar os trabalhos. 84,20 euros. 42 por cabeça. 105 reais.

No Sobrino de Botín, tido como o mais antigo restaurante do mundo (fundado em 1725), comemos um cochinillo de uma tenrura extraordinária e um cordero lechal, mais um bom Rioja e um chinchón para rematar. Custo: 75,75 euros. No Salamanca, na Barceloneta, o mais reputado restaurante de frutos do mar de Barcelona, comemos os dois, com vinho mais aperitivos, por 72,26 euros. No Caracoles, outra casa centenária de Barcelona, comemos e bebemos a gosto por 61 euros. No belíssimo Méson de Cándido, em Segovia (dois séculos), junto aos arcos do aqueduto, pelo mesmo passadio, pagamos 89,76 euros. Este foi o almoço mais caro que paguei na Espanha. 226 reais para dois. 113 por cabeça.

É preciso ser muito brega para pagar 280 reais por cabeça, por um jantar em São Paulo. Se você pensar em um aperitivo e um vinho, por baixo a conta sobe para 400 reais. Mais a gorgeta, 440. Multiplique por dois, dá 880. 376 euros. Por esse preço, você faz três ou quatro excelentes refeições, a dois, em restaurantes centenários em Madri. Sem sequer saber nomes de chefs. Isso de chef é breguice tupiniquim.

Sem falar que tapas é cozinha de balcão. Nada que mereça um especialista. São aperitivos, para se ingerir enquanto limpamos a serpentina. Piscolabis, como dizem os espanhóis. Restaurante que se preze não serve tapas, vai direto ao que interessa. Os madrilenhos certamente achariam muito bizarro tapas assinadas por um chef.

Aqui, os caipiras as engolem a preço forte.

domingo, abril 25, 2010
 
ESCRITOR SUECO
ANTECIPA TWITTER



Partidos e candidatos estão disputando a tapas minutos de propaganda eleitoral na televisão. Em nome destes minutos, as mais espúrias alianças são permissíveis. Isto não me espanta. O que me espanta é que horários de propaganda política tenham alguma audiência. Entendo até mesmo os pobres de espírito que assistem às novelas e BBBs da vida. É gente que não vive a própria vida e se sente vivendo espiando a alheia. Mas ouvir mentiras de vigaristas? Não entendo. Tampouco entendo que essa exposição televisiva de cães famintos em busca do osso do poder possa influenciar uma eleição.

O Estadão de hoje traz entrevista com o sociólogo italiano Massimo di Felice. Doutor em Ciências da Comunicação, especialista em mídias digitais, ele leciona Teoria da Opinião Pública na Escola de Comunicação de Artes da USP. O entrevistado é de óbvia extração marxista. Primeiro porque leciona na ECA, e ninguém leciona na ECA se não beijar a mão de algum capo de esquerda. Segundo, por seu jargão. Ao falar sobre o conceito de opinião pública, afirma: “Ao longo da história ele foi contestado por uma porção de teorias, principalmente depois do surgimento da mídia de massa e do uso que o nazismo, o fascismo e regimes autoritários em geral fizeram dela”.

Vai por mim, leitor. Quem fala em nazismo e fascismo e omite o comunismo, é marxista na certa. Todo comunossauro morre pela boca. O repórter pergunta que significa o fato de as enquetes mostrarem que 60% dos eleitores não sabem dizer espontaneamente o nome de um pré-candidato à Presidência da República.

“Significa o afastamento da política do público. Não do público da política. A política partidária, feita por lobbies preocupados apenas em se manter no poder, não interessa, cansou. E não é por motivos ideológicos, já que no fundo as diferenças entre políticos e partidos são muito pequenas. É porque a humanidade se deu conta de que a classe política é um grande câncer, no mundo inteiro. A política tradicional é feita pelas pessoas menos qualificadas - reservadas as devidas exceções, obviamente. Só que do outro lado, na rede, há cidadãos ativos, conscientes, exercendo sua cidadania diariamente, que não entram nesse jogo antigo. Isso explica as altíssimas taxas de abstenção nas eleições na Europa, que beiram 50%. A população está cansada e, por meio da internet e das redes sociais, quer reformular isso”.

No final da entrevista, o sociólogo diz ao que vem. Faz um discreto aceno à terrorista que disputa a Presidência. Diz que a sociedade brasileira não aceita uma presidenta mulher – como se houvesse presidenta homem – por ser profundamente machista. Isto é, se a dona Dilma não vencer o pleito, não é por falta de virtudes. Mas porque o brasileiro é irremediavelmente machista.

Afirmar que a população está cansada de políticos é desconhecer o Brasil. Políticos notoriamente corruptos, denunciados e até mesmo presos por algumas horas ou dias, voltaram à liça e foram reeleitos. Um Sarney, um Jader Barbalho, um Roriz, sempre têm um farto eleitorado à mão. Coronelismo é sinônimo de favores e este povinho nosso adora favores. Não importa que sejam prometidos via televisão ou internet.

Por outro lado, o ilustre sociólogo, ao comentar “as altíssimas taxas de abstenção nas eleições na Europa, que beiram 50%”, omite que na Europa – exceção feita da Bélgica, Luxemburgo e Grécia - o voto não é obrigatório. Vota quem quer votar, como convém a uma democracia. Faz sol hoje? Então vou votar. Está chovendo? Fico em casa. Aqui, se você não vota, pode ter até o salário cortado.

O professor da ECA acena com uma transformação via Internet: “A população está cansada e, por meio da internet e das redes sociais, quer reformular isso”. Não é o que se vê. Temos um presidente que acoberta a corrupção de seus familiares e de seus aliados – em níveis nunca vistos em governos anteriores – e goza de uma aprovação popular próxima das antigas ditaduras do Leste europeu. A população não quer reformar coisa nenhuma. Quer bolsa-família, quer ganhar sem trabalhar. Pelo que sabemos, quer a perpetuação da corrupção. Já está em Martín Fierro, nos conselhos do malandro viejo Vizcacha:

Lo que más precisa el hombre
tener, según yo discurro,
es la memoria del burro,
que nunca olvida ande come.


Em meio a isso, os candidatos passaram a usar o twitter. Já é um avanço. Reduzir a 140 toques discursos quilométricos e demagógicos ajuda a diminuir a poluição verbal das campanhas eleitorais. Só há um problema. Os políticos estão twittando demais. Deviam de ser proibidos de twittar mais de uma vez por dia.

Em 1982, quando visitei a Suécia a convite do Ministério de Relações Exteriores, conheci em Estocolmo o escritor Tage Danielsson, que morreria três anos depois. Jovial e sempre irônico, me recebeu com fidalguia em sua casa. Danielsson foi um dos mais importantes escritores suecos do século passado, dividindo sua criatividade entre a literatura e o cinema. Crítico mordaz de sua própria sociedade, a Suécia cosmopolita e superdesenvolvida, seus contos continuando ecoando no mundo contemporâneo.

Para praticar meu sueco, traduzi alguns de seus contos. Entre eles, “O Grande Racionamento de Palavras”, que já publiquei há alguns anos. Como é muito oportuno nestes dias de campanha eleitoral e verborragias abomináveis, eu o republico abaixo. Está na coletânea Estórias para crianças de mais de 18 anos. A meu ver, Danielsson antecipa o twitter.

 
A HISTÓRIA DO GRANDE RACIONAMENTO DE PALAVRAS

Conto de Tage Danielsson
Tradução do sueco de Janer Cristaldo


Um dia disse Nosso Senhor à sua mulher:

- Ouve, Elvira, é algo absolutamente incrível o que os homens falam e falam sem parar. Acho que a situação piorou nos últimos tempos com tagarelices cada vez mais sem sentido. Para alguém como eu que tudo vê e tudo ouve, devo confessar que isso se torna um pouco irritante.

- Não seja idiota, Karl-Ragnar - disse a mulher de Nosso Senhor -. Uma conversinha de quando em quando, podes muito bem permitir aos pobres coitados.

- Besteiras aqui, besteiras lá, besteiras por todo lado - disse Nosso Senhor - mas agora vou terminar com este eterno blá-blá-bá. Acho que vou racionar um pouco as palavras.

- Então faz o favor de te limitar aos teus homens - atalhou a mulher de Nosso Senhor -. Não te mete com minhas colegas, lembra-te bem disto.

- Não vamos brigar por uma coisinha destas - disse Nosso Senhor, conciliante -. Se todos os homens se tornam um pouco mais silenciosos, a coisa já melhora.

Nosso Senhor sentou-se e pensou: "Não será agora que vou ser parcimonioso, mas, pelo contrário, fartamente generoso. Vou dar-lhes dez mil palavras por dia, isto certamente lhes será suficiente. Vejamos... isto dá três milhões e seiscentas e cinqüenta mil palavras ao ano... acho que posso deixar de lado um acréscimo extra para os anos bissextos, este dia eles podem muito bem calar a boca em nome da paz... e assim em 78 anos teremos... bem, se ofereço a cada um cem milhões de palavras, contadas desde o nascimento, eles têm em todo caso uma boa margem para conversa fiada".

Nosso Senhor expediu uma circular com este conteúdo a todos os seres humanos do sexo masculino. Comunicava ainda que cada ocasião que alguém ultrapassasse a cifra exata de um milhão de palavras, soaria uma pequena campainha no ouvido do próprio. E quando a provisão de palavras estivesse quase esgotada e restassem apenas dez palavras, a campainha emitiria sinais curtos durante um minuto.

Nosso Senhor calculara certo, como sempre. A consciência de que a provisão de palavras era racionada fez com que muitos dos mais loquazes senhores na terra se pusessem a pensar um pouco mais cada vez que soava a campainha. Talvez eu tenha falado demais, pensavam. Talvez eu deva pensar um pouco mais e falar um pouco menos. E assim pensavam um pouco antes de continuar a falar. Para suas alegrias, observaram que suas conversas dali por diante se tornaram mais coerentes e interessantes de serem ouvidas, e tiveram grande sucesso na vida graças à sábia decisão de Nosso Senhor. Até aqui, apenas três pessoas deram cabo de suas cem milhões de palavras.

O primeiro foi um sacerdote que durante muitos anos de serviço desfiava as escrituras em tão longas prédicas que a campainha lhe tilintava freqüentemente no ouvido. Ele no entanto não se preocupava muito com aqueles avisos da campainha, pois achava que na condição de servidor de Nosso Senhor, certamente teria direito a uma reserva extra de palavras caso sua quota chegasse ao fim.

Um dia, justo quando havia começado sua prédica dominical, ouviu os curtos e insistentes sinais que significavam que agora ele tinha apenas dez palavras. Mas nem ligou para isso. "O chefe certamente me fornecerá um acréscimo extra, bom como ele é", pensou despreocupadamente.

Encontrava-se em meio a um raciocínio que começara com a caminhada de Jesus sobre as águas e continuava com uma comparação entre o passeio divino e o comportamento ímpio que dão prova muitos escravos do pecado em nossos tempos dissolutos ao banharem-se embriagados e nus, à noite, nos chafarizes em frente a nossos museus e instituições de cultura. E continuou como se nada tivesse acontecido em seus ouvidos:

- Objetará então o pecador: não é pecado gozar a vida.

Um silêncio divino inundou a igreja. Os paroquianos despertaram surpresos de suas semi-sonolências. Terminaria a prédica com estas palavras? Sim, pelo jeito, pois o pastor mantinha o rosto entre as mãos e nada mais dizia. Após alguns instantes, um órgão perplexo começou a soar.

Naquele dia todos chegaram alegres da missa em bom tempo para escutar programas da velha guarda, fortalecidos na alma pelas palavras finais do pastor que diziam não ser pecado gozar a vida.

- Foi uma prédica extraordinariamente linda - diziam os paroquianos um para o outro, e ninguém entendeu porque depois daquele domingo o pastor foi conduzido para um silencioso serviço na secretaria da paróquia.

O segundo pela ordem a ser atingido pelo racionamento de palavras foi um relações-públicas do ramo de detergentes. Sua profissão consistia em ser excepcionalmente gentil, da manhã à noite, e em especial durante o almoço e a janta, com todas as pessoas que sua firma entrava em contato. Então vocês podem imaginar que o relações-públicas conhecia todas as histórias engraçadas sobre detergentes que existiam e mais algumas ainda, e além disso dominava a arte de sorrir todo o tempo com seus dentes alvíssimos enquanto falava, de forma que as pessoas ficavam loucas por ele e por seus detergentes.

- Cada vez que eu abro a boca, um par de meias é jogado em nosso detergente em alguma parte do mundo - costumava dizer com seu sorriso irresistível e, como isto havia sido calculado pelo departamento de estatística de sua firma, era indubitavelmente verdade.

Para um tal relações-públicas, a campainha evidentemente soava com freqüência. Após cada sinal ele ficava algo pensativo e naquele dia não tomava nenhum Dry Martini, pois Dry Martini lhe soltava de tal modo a língua que lindas palavras e lindos slogans lhe fluíam da boca sorridente como um lindo rio onde as associações de donas-de-casa e revendedores se afogavam prazerosamente.

Quando soaram os últimos e repetidos sinais curtos em seus ouvidos ele estava almoçando, por custa de sua firma, com uma delegação do Instituto de Pesquisas Domésticas. Já havia tomado seu Dry Martini aquele dia, e antes de perceber exatamente que soara o último sinal, deixou escapar:

- Apanhem o detergente que quiserem e comparem-no ao nosso.

Então controlou-se. Por Deus, a campainha das dez palavras. E nove já haviam sido ditas! Uma única palavra, pensou ele, uma única!

Enfiou a mão no elegante bolso de seu casaco e apanhou um pacotinho com o detergente de sua firma, que sempre carregava consigo. Despejou uma dose mortal do detergente em sua taça de vinho, ergueu com seu sorriso alvíssimo a taça ante os encantados delegados do Instituto de Pesquisas Domésticas e disse:

- Delicioso.

Bebeu e caiu, elegantemente morto. Pois um relações-públicas não pode viver sem a possibilidade de dizer sem cessar coisas lindas.

Naturalmente agora vocês se perguntam quem foi o terceiro homem a dar cabo de suas cem milhões de palavras. Pois bem, vou dizer-lhes, foi um político. Ele desenrolava textos e conversava fiado e lançava acusações e sofismava e esbravejava tanto que antes mesmo de ter chegado aos cinqüenta a campainha já havia soado em seus ouvidos noventa e nove vezes. E agora se aproximavam as eleições e nosso político sentou-se em uma mesa em companhia de seus adversários e de um apresentador, para um debate na TV.

O político do qual falo olhava fixamente para a câmara e disse no seu minuciosamente ocupado espaço onze mil quinhentas e sessenta e três palavras, entre as quais podemos escolher, ao azar: segurança, todos, aposentadoria, vocês mentem, padrão de vida, conspiração, eleitores querem saber, aposentadoria, besteiras, 1956, orçamento, homens do povo, grupos de baixo salário, confiança e aposentadoria.

Ao chegar ao apelo final soaram os pequenos sinais curtos nos ouvidos daquele político. Ficou tão estupefato que disse espontaneamente a todo mundo:

- Já disse tantas bobagens que agora eu calo a boca.

Graças a este apelo final aquele político foi escolhido para ministro e governou por muitos anos. Como não podia mais dedicar-se a cacetear os eleitores com conversa fiada, dispunha então do dia inteiro para pensar um pouco e executar uma série de medidas, de modo que se tornou um dos melhores ministro de Estado que este país teve, como consta nos Anais do Partido. E se não estivesse morto, estaria governando ainda.

Enquanto vocês lêem isto, Nosso Senhor fez um levantamento para sua mulher do resultado de seu grande racionamento de palavras.

- Podes notar que tudo ficou significativamente mais silencioso agora, Elvira - disse ele -. Seria agora o caso de pensarmos em estender as determinações de racionamento inclusive ao campo das mulheres, não achas? Hás de convir, tu que falas a todo instante de emancipação e dessa papagaiada toda. (Lá no fundo, Nosso Senhor pensou que seria melhor se inclusive sua mulher fosse submetida ao racionamento, mas evidentemente nem tocou no assunto).

- Emancipação aqui, emancipação acolá - disse a mulher de Nosso Senhor -. Mas um racionamento desses para mulheres tu só vais estabelecer em cima de meu cadáver, Karl-Ragnar.

O fato é que a mulher de Nosso Senhor nunca morre. Esta é a sorte de vocês, adoráveis tagarelas.

sábado, abril 24, 2010
 
MESQUINHARIA NO AR
COBRA CENTÍMETROS



Seria de supor-se que voar seja hoje mais confortável que há cinqüenta anos. Deveria ser. Mas não é. Hoje, o mais detestável de qualquer viagem mais longa é o vôo. Começa pelo gigantismo dos aeroportos. Heathrow, sem ir mais longe, espero nunca mais ver em minha vida. Barajas também já está desconfortável. Mesmo Orly. Já saí às seis da manhã de um hotel para chegar às dez no portão de embarque, sem tempo de tomar café.

Fora o desconforto dos vôos. Espaços cada vez mais estreitos entre uma poltrona e outra. Cardápios cada vez mais pobres. Isso sem falar nos vôos em que você tem de pagar o que come. Se ao menos pagasse por algo decente, vá lá. Nada disso. Você paga caro, em moeda forte, por uma gororoba abominável.

A classe média e classes mais abaixo estão descobrindo os prazeres das viagens, financiadas a perder de vista. Em regime capitalista honesto, uma procura maior significaria preços menores. Quanto mais clientes, mais baratos os serviços, esta seria a lógica. Não é o que está acontecendo. As empresas estão começando a cobrar por gramas e centímetros. Há aéreas hoje em que você paga caro para transportar além de vinte quilos.

Até aí, nada contra. Vinte quilos me parece bagagem bem mais do que sensata para uma viagem. Quem vos fala viaja com seis, sete ou oito quilos no máximo. Duas calças na mala, quatro ou cinco camisas, cuecas e meias e estamos conversados. O casaco vai no corpo. Sapatos também. Concedo às damas mais um ou dois quilos, cosméticos pesam. Quando vejo, em aeroportos, passageiros com três ou quatro malas de cerca de vinte quilos, aposto e dificilmente erro: são brasileiros. Brasileiro, de modo geral, ainda não aprendeu a viajar. Claro que caipiras existem em todos os quadrantes. Mas no Brasil são mais. Quem viaja com 50 ou 60 quilos de bagagem, que me desculpe: é sacoleiro. Estou falando de turistas, bem entendido. Não de pessoas que estão trocando de país.

Já tive medo de aviões e vivi longas horas de terror enquanto voava. Sem conseguir dormir. Consegui exorcizar meus medos. Minhas horas hoje são de tédio e desconforto. As empresas oferecem alternativas de lazer, filmes, joguinhos de computador e música variada, inclusive óperas e erudita. Filme de bordo é mediocridade na certa. Jogos, nunca me interessaram. E ouvir uma ópera com aquele ruidozinho do vôo ao fundo não é opção para quem gosta de música. A única coisa que curto em um vôo é aquela progressão do avião na geografia. Mas isso acaba cansando. Me encerro então em soníferos. Me apago e acordo na chegada.

A mesquinharia está invadindo os ares. Houve época em que, sabendo os números das poltronas mais confortáveis, você podia reservá-las, desde que com alguma antecedência. Adquiri até alguma erudição em matéria de aviões, para saber quais eram os assentos com mais espaço para as pernas em cada aeronave. O problema dos vôos são as pernas. Uma perna encolhida vira tortura que sequer o deixa dormir. Se você é pequeno, tudo bem. Se for um pouco grandinho, a viagem será muito desconfortável.

Esta chance de escapar do desconforto, pelo jeito está acabando. A menos que você pague a mais por centímetros. A TAM acaba de anunciar que passou a cobrar uma taxa de US$ 50 para o passageiro disposto a ocupar a primeira fila ou as poltronas localizadas nas saídas de emergência em vôos para os EUA. Na prática, quem quer mais espaço precisa pagar uma taxa extra. A empresa não informa quantos centímetros a mais você ganha.

A medida faz parte de um projeto-piloto da companhia e foi implementada há dois meses. O pagamento da taxa é feito durante o check-in. Não bastasse o absurdo que você paga no Brasil pela taxa de embarque – uma das mais caras do planetinha –, agora terá de pagar mais 50 verdinhas por um conforto que antes você tinha de graça.

Leio ainda que, em vôos domésticos, a Azul está cobrando uma taxa de R$ 20 para o passageiro que pretende ocupar uma das cinco primeiras fileiras. A distância entre as poltronas no avião é de 79 cm. Nas cinco primeiras fileiras, aumenta para 86 cm. Por sete centímetros, que em pouco diminuem seu desconforto, você marcha com mais vinte reais.

A mesquinharia das empresas nacionais é tamanha que agora você não compra apenas um vôo, mas também centímetros durante o vôo. Quando a Varig – para o bem do país – morreu, era de supor-se que tais práticas de monopólio também morressem. Não morreram.

sexta-feira, abril 23, 2010
 
OS ANOS INÚTEIS
DE MINHA VIDA



“Direito se inclui na área das humanas a qual você se referiu na sua última entrada do blogue?” – pergunta Bruno Bolson Lauda. “É que é absolutamente surpreendente o número de profissionais atuantes, experientes, que ficam a tentar obter uma vaga em bons cursos de mestrado e de doutorado, inclusive puxando o saco dos professores para que lhes concedam, em tempo, a almejada vaga. Acredito que deve ter alguma importância para além do âmbito da academia na área jurídica, do contrário tantos não procurariam um pós reconhecido. Compreendo que, em Letras e em Sociologia, o pós seja somente uma procrastinação (se bem que, quais outras opções tem um bacharel nessas áreas? Servem para alguma coisa que não esteja ligada à academia?), mas, no Direito, passa por pelo menos uma boa medalha".

Meu caro Lauda: para começar, normalmente os cursos de Direito são vistos como pertencentes à área de humanidades. Com uma diferença: ao contrário dos cursos de Letras ou Sociologia, formam profissionais necessários à sociedade. Em As Viagens de Gulliver, Swift faz uma crítica corrosiva a juízes e advogados. Mas na hora de um aperto legal, o recurso a um advogado é tão crucial quanto uma visita a um médico.

Mas, cá entre nós, não sei muito para que serve um curso de Direito. Minha mulher – a que partiu – era auditora fiscal e trabalhou toda sua vida com direito tributário. Tinha curso de Filosofia. Na época em que fez concurso, exigia-se apenas curso superior. Qualquer um. Podia ser até de Educação Física. Eu, que também fiz o concurso, tinha o curso de Direito, mas não exercia a profissão. Na época, já trabalhava em jornal. Dei algumas aulas para ela, pelo menos para introduzi-la no jargão jurídico. Resumindo: ela passou no concurso. Eu não.

Passou boa parte de sua vida elaborando pareceres jurídicos. Uma vez aposentada, passou a trabalhar no Conselho de Contribuintes em Brasília, última instância de julgamento de processos fiscais. Seus pareceres passaram a constituir jurisprudência. Passou também a assessorar uma importante banca de advocacia em São Paulo, na qual coordenava o setor tributário.

Já entrada nos 50, achou que precisava fazer um curso de Direito, para poder assinar petições. Alertei-a: não vais agüentar cinco anos. Ela insistiu em seu propósito e fez vestibular na prestigiosa Mackenzie. Não agüentou três dias.

Na primeira aula de Direito Constitucional, um decrépito professor perguntava a seus alunos:

- O direito é uma emanação da so.. da so...?
Ninguém conseguia terminar a frase.
- Da socie... da socie...?
Os alunos, demonstrando invulgar inteligência, responderam em coro:
- Da sociedade!!!
- Muito bem - disse o professor, com um sorriso beatífico. - Ao direito dos costumes, costumamos chamar de Direito con... Direito con...?
Silêncio total.
- Direito consue...? Consue...?
Silêncio ainda mais espesso.
- Consuetu...? Consuetu...?
Nada feito.
- Consuetudi...? Consuetudi...?
Muito menos. O brilhante professor exclamou então com um sorriso sapiente na face, sorriso de quem detém o saber:
- Consuetudináááááário!!!

Foi seu terceiro e último dia de curso. Preferiu continuar elaborando pareceres e dando consultoria sem diploma algum. Como ela, milhares de outros auditores fiscais e fiscais trabalham com Direito na Receita Federal, embora oriundos de profissões que com Direito nada tem a ver. Uma de minhas dentistas, eu a perdi para o Ministério da Fazenda. Insatisfeita com sua profissão, fez concurso para auditor e hoje lida com leis.

Há despachantes por aí afora que entendem mais de Direito que muito bacharel. Continua o Lauda:

“De qualquer forma, realmente não nego que, mesmo na área jurídica, a bolsa pode ser uma armadilha. Um amigo meu alertou-me dela já há algum tempo (e é por isso que atualmente, mesmo recebendo-a, com um ano de mestrado e aos vinte e quatro anos, procuro emprego). E talvez até mesmo em outras áreas. Conheço mestrandos em Farmácia, Agronomia e Medicina que mal vêem a hora de largar a dita cuja e arranjar um emprego em uma boa multinacional ou em um bom hospital. Como com certeza não devo ser o único a se manifestar acerca dessa sua última entrada, então não direi mais nada”.

Raciocinando um pouco mais adiante. Imaginemos que alguém se forme hoje em Direito e opte por um mestrado e doutorado. Não terá exercido a profissão e, se pensar em voltar ao ramo depois da pós-graduação, as leis já serão outras. Particularmente neste país em que os responsáveis pelo ordenamento jurídico são acometidos de uma especial fúria legiferante. Mestrados e doutorados na área humanística, eu os vejo de modo geral como masturbação acadêmica. Só afastam o profissional do mercado de trabalho.

Ora, me perguntará o leitor: por que então fiz doutorado? Simples. Fiz por diletantismo. Queria viajar, queria Paris, queria seus vinhos e queixos, suas mulheres e suas artes. Nem apanhei meu diploma. Havia toda uma burocracia para apanhá-lo e eu não tinha disposição alguma de enfrentá-la só pra pegar um papelucho.

Mas não posso dizer que minha pós-graduação foi inútil. Indiretamente, para algo o doutorado serviu. Conheci por dentro uma sociedade desenvolvida, conheci melhor a Europa, aperfeiçoei mais um idioma, enviei crônica diária de Paris para meu jornal em Porto Alegre, divulguei a obra de Ernesto Sábato na França e passei a traduzir seus livros. (Meu orientador, que não sabia se Sábato era açougueiro ou alfaiate, acabou escrevendo um livro sobre sua obra e divulgou sua literatura em todo o continente. Fui bom professor). Para um jornalista, isto constitui uma excelente ferramenta de trabalho. Mas nada tinha a ver com o curso em si.

Uma vez doutor, descobri – para minha surpresa – que doutorado servia para lecionar. Lecionei literatura brasileira e comparada durante quatro anos. Foram os anos mais inúteis de minha vida.

quinta-feira, abril 22, 2010
 
LÁGRIMAS DE PAPA


Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.

Álvaro de Campos


Que as religiões são mentiras, disto sabemos. Que deus é a mentira suprema, disto também sabemos. Que os dogmas são absurdos sem correspondência alguma com a realidade, isto não ignoramos. Que o papa e seus ministros e seguidores tenham de assumir estas mentiras, com isto já nos acostumamos. Faz parte da vida. São mentiras socialmente aceitas e que jornal algum irá contestar.

Mais complicado é ver um papa mentir descaradamente em relação a fatos. Como fez ontem Bento XVI, ao afirmar que a Igreja Católica "atua" em relação aos casos de pedofilia no clero. Ora, está mais que comprovado que a Igreja foi tolerante com seus padres pedófilos, que jamais os denunciou à autoridade civil. Sua única atuação foi transferi-los de um país a outro, para outras paróquias. Questão de dar um tempo ao tempo. Mudar de uma geografia para outra, onde o pedófilo não era conhecido como pedófilo. E, cá entre nós, também de mudar de cardápio. Em vez de um menino europeu, ofereça-se ao santo ministro um indiozinho dos trópicos.

Disse ainda Sua Santidade, em Malta, que se emocionou no encontro com vítimas de pedofilia. Jornais mais generosos dizem que o papa até chorou. Chorar agora, depois de décadas de conivência com a ignomínia? Sua Santidade está cunhando uma expressão nova. Se antes falávamos de lágrimas de crocodilo, agora já se pode falar de lágrimas de papa.

A Igreja reconhece que pecou. Mas quem está interessado em pecado? Pecado é categoria que só à Igreja diz respeito. O que houve foi crime. Neste sentido, a Santa Sé adotou o mesmo recurso do PT e das esquerdas em geral. Não houve crime algum do stalinismo. O que houve foram erros. Desvios. No caso, pecados.

"Compartilhei seu sofrimento, com emoção. Orei com eles, assegurando que a Igreja atua" para remediar esses crimes, disse o pontífice, lembrando o encontro neste fim de semana. Por que não orou quando era cardeal e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, quando lhe chegavam às mãos as denúncias dos crimes de seus ministros? Bento compartilha sofrimento só quando a imprensa o denuncia como cúmplice de pedófilos.

Bento está mais sujo que senador de Brasília. Na Espanha, a Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII pediu sua demissão, em manifesto no qual afirma que o papa não tem a idade nem a mentalidade para enfrentar os desafios colocados à Igreja. "Nos parece que o pontificado de Bento XVI está esgotado. Pedimos para que ele, com o devido respeito à pessoa do papa, apresente a demissão de seu cargo", diz a associação.

Bento irá demitir-se? Claro que não. Se nem senador brasileiro corrupto renuncia ao cargo, não se pode esperar que um vice-deus se demita. O que constitui sumo gáudio para os inimigos de sua igreja. Quanto mais Bento permanecer no leme da nau de Pedro, mais se desmoraliza a Santa Sé.

Amém?

quarta-feira, abril 21, 2010
 
OUTRAS ARMADILHAS


Falava eu outro dia dos “mammoni”, os filhos que vivem pendurados nos pais, na Itália. A geração marsupial, que não consegue sair do ventre materno. Os anos vão passando – dizia - e, quando você decide olhar para trás... a vida já passou. Esta não é a única armadilha que a vida oferece. Há outras, e mais perversas.

Uma delas é a bolsa universitária. Você termina a graduação e não vê emprego pela frente. Mas tem algo bem mais a seu alcance, uma bolsa de mestrado. É um salarinho que não lhe exige horários rígidos, nem ponto batido e garante sua subsistência por mais uns quatro anos. Sem falar que você continua gozando daquela alegre vida de campus, onde tudo é eterna juventude e nada tem hora pra acabar. Por mais quatro anos, sua vida está resolvida.

Digamos que você tenha feito um mestrado em Letras, Filosofia, Sociologia, enfim, algo na área “das Humana”, como se dizia em Santa Catarina. Concluída e aprovada a dissertação, você continua na mesma, não vê emprego pela frente. Seu orientador, que vê em você uma pessoa de talento, lhe faz nova proposta. Que tal um doutorado?

Ou seja, mais quatro anos com alguma remuneração, sem horários rígidos, sem ponto batido, mais o gozo da irresponsável – mas divertida – vida de campus. Você embarca. Digamos que tenha levado a bom termo sua tese de doutorado. Uma vez defendida, de novo o vazio pela frente. Você está com trinta e picos de anos, jamais teve carteira profissional assinada, jamais soube o que é receber um salário no fim do mês e já está um pouco fora da idade de entrar no mercado de trabalho.

Conheci não poucas gentes nestas condições em minhas universidades. Uma bolsa aqui, outra acolá, a vida vai passando e quando você olha para trás, não tem vida profissional nenhuma. A França levou esta condição ao extremo com o tal de Doctorat de État. Havia, nos dias que andei por lá, um Doctorat de Troisième Cycle, o doutorado normal, que se cumpria em quatro, no máximo cinco anos. Talvez por ser um país onde você jogava uma pedra em um cachorro e quando errava acertava um doutor, os franceses decidiram qualificar melhor seus universitários. Criaram o Doctorat de État. Qual a diferença entre um e outro?

No de Troisième Cycle, você pesquisava quatro ou cinco anos e redigia uma tese de umas 400 ou 500 páginas. No de État, você pesquisava dez anos e redigia quatro volumes. Quatro volumes que nem a banca lia. Cada jurado lia um volume e olhe lá. O doutorando d’État talvez se sentisse muito honrado com seu status. Até descobrir que, lá pelos 40 anos, permanecera sempre afastado do mercado de trabalho.

A USP, para proteger os seus, nunca aceitou o Doctorat de Troisième Cycle como doutorado. Só aceitava o d’État, que exigia uns dez anos do candidato. Sempre considerei este doutorado como uma perversão universitária, que só servia para afastar acadêmicos do trabalho. Bom, o Mitterrand acabou com o Doctorat d’État. Agora há um único doutorado, tout court.

Tive em minhas mãos uma dessas teses na biblioteca da Sorbonne. Era de uma brasileira, não lembro agora o nome. Quatro volumes sobre a obra de Fernando Pessoa. Ora, por mais genial que seja Pessoa, não é fácil ler quatro volumes do poeta. Imagine então quatro volumes sobre sua obra. Duvido que algum membro do júri tenha lido os quatro. São amontoados de papéis que ninguém lê e ficarão entregue às traças nas bibliotecas da universidade. Teriam mais utilidade para fortalecer diques na Holanda.

A universidade é uma corporação que se sustenta de alunos. Estes não têm garantia alguma de emprego ao sair da academia, particularmente se fizeram cursos de Letras, Filosofia ou cursos do gênero. Mas os professores têm seus bons salários e aposentadoria garantidos.

Quando você entra em um curso de doutorado, lembre-se: você não está necessariamente garantindo seu futuro. Mas o de seu professor.

terça-feira, abril 20, 2010
 
TODO LOUVOR À
MOÇA DA CAIXA



Nem tudo está perdido, me escreve um leitor. Ao passar em um hipermercado, viu um livro junto à esteira da mesa de uma caixa. Era O Idiota, do Dostoievski.

- Logo que o vi, pensei em seus artigos. Então eu perguntei à operadora: "Este livro é seu? É que é raro alguém hoje em dia ler tal livro. A maioria só lê Harry Potter... e afins." Ela falou que procura livros em sebos. É jovem de uns 25 a 30 anos, diria. Não me disse se estava fazendo algum trabalho universitário. Uma pessoa normal demais para você achar que goste de ler. Fiquei admirado. Tão admirado que te escrevo estas linhas”.

Não há idade nem classe social nem condição econômica específicas para se ler boa literatura, meu caro Thomas. Livro é um objeto relativamente barato. Não vivemos mais nos dias de Beccadelli Panormita, que vendeu uma porção de terra para adquirir, por 120 escudos de ouro, as obras de Tito Lívio. Nem na época da condessa d’Anjou, que comprou as Homilias de Aimon d’Halberstadt por duzentas ovelhas, três moios de tribo e boa quantidade de peles de marta. A propósito, estas informações eu as colho em Guerra sem Testemunhas, de Osman Lins, um dos bons escritores nacionais, cujas obras hoje só encontramos em sebos.

Em meus dias de universitário, ainda em Porto Alegre, tive uma experiência extraordinária. Precisava mudar de apartamento e contratei uma camionete para transportar meus poucos trastes. O chofer, retaco e parrudo, mal pôs os olhos em meus livros, comentou:

-Você tem uma bela biblioteca.

Comentei que nem considerava aquilo uma biblioteca. Seriam apenas um trezentos ou quatrocentos livros. Não mereciam tal dignidade.

- Não estou falando da quantidade – me disse –. Me refiro à qualidade.

Bom, o diálogo mudava de figura. Perguntei se era chegado a leituras.

- Sou. Mas só leio os clássicos.

E passou a discorrer sobre Dostoievski, Tolstoi, Gogol. Me falou inclusive de um excelente e pouco conhecido autor, Kuprin, do qual eu tinha um exemplar de Yama, uma curta e densa novela sobre a vida nos prostíbulos. Claro que não era um brasileirinho comum. Chamava-se Ivan, era russo branco e ganhava seu pão fazendo fretes.

Vivi apertado em meus dias de universidade. Mas, por poucos cruzeiros, eu tinha acesso ao pensamento de Nietzsche, aos poemas de Pessoa, às viagens imaginárias de Swift. Por caro que fosse um livro, eu não o considerava caro, já que me trazia o pensamento de homens de outras culturas e outra épocas. Não, não me espanta que um caixa de supermercado leia Dostoievski. Me espantaria, isto sim, ver um bem situado empresário lendo O Idiota.

"O rico não lê" – me disse certa vez um editor português -. "Está muito ocupado com seu iate, suas ações, seu scotch. Nós apostamos na classe média para baixo". Cá entre nós, a leitura é um dos lazeres de melhor relação custo/benefício. Por poucos reais, você pode embarcar em viagens fascinantes.

Não tenho dados, mas é de supor-se que nos dias de Balzac, Stendhal ou Dostoievski se lesse bem mais que hoje. Não existiam os derivativos da cultura visual, o cinema e a televisão. Dostoievski publicava seus romances em folhetins nos jornais e tinha grande público. Isto responde inclusive a uma questão, porque escrevia livros tão extensos. É que recebia por página e precisava pagar suas dívidas de jogo. Bendito vício que nos rendeu as longas digressões dos Karamazov, de Myskhin e Rogozhin, de Stravogin, Verchenskij e Kirilov.

Você pode embarcar em viagens fascinantes, dizia. Ou pode também ir à Disneylândia. É o que faz o leitor de bestsellers, literatura barata produzida para vender aos milhões e satisfazer os baixos instintos de certo tipo de leitor. Quando vejo alguém lendo em público, sempre espicho o olhar para ver o que está lendo. Ultimamente, só tenho visto os Harrys Potters, Dans Browns, Danielles Steels e Paulos Coelhos da vida. Certa vez, vi uma moça num ônibus lendo Orwell. E só.

Um outro leitor me fala de uma executiva da Editora Record, que dizia ser necessário publicar o bestseller para que outros tipos de livros, de melhor qualidade, sejam publicados a preços mais acessíveis. A má literatura seria adubo da boa. De fato, um editor não vive da publicação de livros sublimes. Mas o argumento é safado. Porque editora de bestsellers dificilmente publica livro que preste.

A verdade é que o bom livro exige campo fértil para ser semeado. Ensaios de peso como os de Le Goff, Delumeau, Eliade encontram grande público em países como Alemanha, França, Espanha, Portugal. Aqui, ficam numa primeira edição. Há algum tempo, ouvi observação que me deixou pasmo. Eu lia em meu boteco um livro publicado nos anos 30, páginas amarelecidas pelo tempo. Um parceiro eventual de mesa - não confundir com amigo - manifestou surpresa: “tu lês livros antigos”? Ora, leio preferentemente livros antigos. Pelo jeito, ler livros antigos virou algo démodé.

Todo louvor à moça do caixa. Ela sabe onde está a boa literatura. Nos sebos. Sim, também há boa literatura nas livrarias. Mas é prudente tomar distância dessas que alugam suas vitrines para bestsellers.

segunda-feira, abril 19, 2010
 
QUANDO VOCÊ VÊ,
A VIDA JÁ PASSOU



Estou recebendo não poucos mails sobre o fenômeno dos adolescentes senis. Entre eles, este de Filipe Liepkan Maranhão:

Olá Janer,

assumo pela pertinência de seu artigo, mas observo ainda a perpetuação da adolescência em diversas facetas que não submetidas à questão profissional. Ora, promotor de Justiça aos 40 anos vivendo com os pais? Há. Que não se diga de juízes que andam de BMW e dormem ao lado do manto paternal, sugando-o como carrapato e levando suas namoradas à mesma residência, que deveria ser aconchego ao idoso já aposentado. De certo que tais indivíduos, que têm se alastrado no meio jurídico, são ridicularizados dentre os falatórios diários, porém exercem o labor da intelectualidade jurisprudencial corroborando um meio de vida que destoa do aceitável.

Ainda, a retórica do apoio da prole aos pais nas questões financeiras, tal como na saúde, tem se mostrado uma desculpeba das mais intrigantes, vez que a princípio apresenta total pertinência social. Passa-se de caridoso e pietista aquele que já concretizou na mente que sair de casa é impensável, senão "anti-familiar"; e o melhor, assume essa circunstância como virtude e exige a respeitabilidade correspondente ao fato.

Creio que estamos na era da adolescência dos profissionais resolvidos, já abastados em suas perspectivas de trabalho mas ainda carentes de comer do pão que faz a mãe. É deplorável, mas já se tornou um "modus vivendi" que, amanhã, trará as conseqüências inevitáveis da infantilização em massa do indivíduo brasileiro.


Desconhecia que o fenômeno tivesse se alastrado no meio jurídico, Felipe. Deve ser extraordinária a capacidade de decisão e julgamento de um juiz que ainda não conseguiu viver longe do útero familiar. Não consigo entender isso. Gostei de ver como se resolve este assunto na Suécia. Ao entrar na universidade, o jovem já recebe subsídios para moradia e vai morar em residências estudantis. E depois não volta mais para casa. Dado o desejo de privacidade dos suecos, se o filho quer visitar os pais é bom que telefone antes.

Não consigo ver como adulto um quarentão que ainda não conseguiu se libertar dos pais. Há três anos, a Folha Online noticiava uma ocorrência espantosa na Itália, a de uma mãe que cortou a mesada do filho de 61 anos e chamou a polícia para retirá-lo de sua casa. Aconteceu na cidade de Caltagirone, comuna italiana da região da Sicília, província de Catania.

Se bem que não foi exatamente por isso que a “mamma” chamou a polícia. Chamou porque o filhinho chegava tarde em casa e não dizia onde ia à noite. A polícia acabou convencendo a mãe e menino a fazer as pazes. "A história pode parecer irônica, mas isto não impediu que tratássemos o caso com todo respeito, ainda mais diante do desespero dessa mãe. Acreditamos que agora a situação tenha voltado ao normal e que a briga terminou", afirmou o delegado que tratou do caso. Tudo como dantes no quartel de Abrantes.

O filho, por sua vez, teria se lamentado da mesada, que definiu como sendo muito baixa para um homem da sua idade. De fato, uma mesada curta aos sessenta anos é um desastre. Além disso, reclamou da comida, acusando a mãe de cozinhar muito mal. O caso tornou-se noticia nacional na Itália, onde foi apresentado como exemplo extremo de um clichê. O país é considerado como terra dos "mammoni", isto é, jovens que moram na casa dos pais até muito além da maioridade, usufruindo das mordomias que a "mamma" italiana oferece: comida, roupa lavada e passada, casa limpa.

Ora, para que tais fenômenos ocorram, é necessária a cumplicidade paterna. Ou materna. O caso é caricatural, é verdade. Mas dá o que pensar. Que tipo de ser humano é este que, aos 61 anos, ainda vive de mesadas da mãe? É pessoa incapaz para a vida. Pior ainda, definitivamente incapaz. Não se recomeça uma vida aos sessenta anos.

Dizia ainda a notícia que, de acordo com as pesquisas fornecidas pelo Istat - Instituto Nacional de Estatísticas - 60% dos jovens italianos entre 18 e 34 anos, ou sete milhões de pessoas, ainda viviam com os pais. Mais da metade de uma geração! Em 1993 o percentual era de 55%. Este fenômeno se deveria à dificuldade que os jovens encontravam para arrumar trabalho e se registrava principalmente no sul da Itália, onde o índice de desemprego é maior.

Sete milhões de barbados vivendo sob a asa dos pais é muito chupim para um país só. Na ocasião, uma psicóloga, Silvia Vegetti Finzi, declarou que a história dos "mammoni" italianos é somente um clichê. "Os jovens não podem ir embora de casa porque o salário inicial não é suficiente nem para pagar um aluguel, portanto, concordando com os pais, eles decidem continuar a morar com a família para investir em sua preparação profissional e conseguir um trabalho mais qualificado e um salário maior".

Ora, convenhamos que 60% da juventude de um país é bem mais que um clichê. Um salário inicial sempre é escasso. Salvo nascidos em berço de ouro, ninguém recebe grandes salários no começo da vida profissional. Em meus dias, nos juntávamos a outros para poder morar e tratávamos de um segundo emprego para enfrentar a situação. O morar só, só vem com o tempo.

Durante a universidade, tive de ganhar meu pão, já que meus pais não tinham como sustentar-me. Trabalhei como vendedor de livros. É o emprego ideal para quem está prestes a morrer de fome. Não se faz exigência nenhuma ao candidato. O que se pede é que se vire e venda livros. O que move o vendedor de livros é a necessidade de comer. A editora para a qual trabalhei vendia enciclopédias medíocres. Bom de lábia, vendi não poucas. Até hoje sinto lástima de quem as comprou. Muitos as compraram creio que por piedade. Abordava os clientes potenciais ainda pintado de bicho. Alguns compravam – acho – porque se comoviam com meus esforços para estudar.

Concluída a universidade, senti que um vácuo se abria à minha frente. Fiz dois cursos errados, Direito e Filosofia. Entrei em pânico. Não conseguia me ver trabalhando nessas áreas. Escondi meus diplomas e tratei de ganhar meu pão. Trabalhei como pesquisador de campo para a Sidney Ross. Isto é, tinha de ir a farmácias e supermercados e contar sabonetes e pastas de dentes para ver a saída dos produtos da empresa. Tinha dois cursos superiores em meu currículo e fazia trabalho de peão. Para prover meu sustento. Até que se abriu uma brecha no jornalismo. Por salário menor do que eu ganhava na Sidney Ross. Não hesitei um segundo. Hoje, cá estou.

A geração dos filhos cangurus, ao que tudo indica, quer começar a vida com salários de altos executivos. Se assim não for, melhor ficar em casa, sustentados pelos pais. Os anos vão passando e, quando você decide olhar para trás... a vida já passou.

domingo, abril 18, 2010
 
ADOLESCENTES SENIS, NOVA
PERVERSÃO DA CLASSE MÉDIA



Estão se tornando cada vez mais recorrentes as reportagens sobre os barbados que não conseguem abandonar o lar paterno. Na edição de hoje, o Estadão nos fala dos "mammoni" na Itália, que já representam mais de 50% dos jovens entre 18 e 34 anos. Um ministro propôs uma mesada estatal para estimulá-los a sair de casa. Ou seja: o marmanjo continua a depender de um pai.

Na Espanha, cerca de metade dos jovens até 34 anos continuam na casa dos pais e muitos afirmam não ter um projeto de vida definido. O fenômeno ganhou o nome de geração Ni-Ni - "ni estudian ni trabajan" - e virou reality show. No Reino Unido, eles atendem por “kidults”. Seriam hoje 25% dos homens e 13% das mulheres entre 25 e 29 anos.

A Veja abordou o tema em abril do ano passado. Falava sobre os chamados filhos cangurus, assim chamados por andar de carona na bolsa abdominal da mãe. O fenômeno estava chegando ao Brasil. No sul da Europa – e particularmente na Itália – existe há várias décadas. Na Itália, li há alguns anos notícia sobre um barbado de mais de 40 anos, que exigiu dos pais uma pensão alimentar, pois ainda não havia encontrado profissão que satisfizesse seus ideais. Se bem me lembro, um juiz compreensivo em relação aos “jovens” concedeu-lhe o benefício.

“O natural é que os jovens – dizia a revista – assim que começam a trabalhar e a ganhar o próprio dinheiro, sonhem em deixar a casa dos pais. Conquistar a independência, ter o seu canto, receber os amigos e namorados na hora que quiser – tudo isso faz parte do rito de passagem para a fase da vida em que a noção de responsabilidade adquire um significado mais amplo. Essa ordem natural das coisas vem sendo desafiada por muitos adultos jovens. Embora já trabalhem, eles preferem permanecer na casa da família – e nem sequer têm planos de morar sozinhos. (...) Segundo o instituto de pesquisas LatinPanel, de São Paulo, há hoje no Brasil 3,3 milhões de famílias das classes média e alta com filhos cangurus. Isso equivale a 7% das famílias do país. A maioria deles se encontra na faixa dos 25 a 30 anos, mas, entre os já quase quarentões, 15% ainda moram com os pais”.

Comentei na época: pelo jeito, o Brasil está virando país rico. Até bem pouco, isto era luxo de europeu. Em condições econômicas adversas, os jovens têm de entrar logo no mercado de trabalho, seja para desonerar os pais, seja para contribuir com a renda familiar.

Para mim, não é fácil entender o fenômeno. Saí de casa aos onze anos. Não que meus pais me tivessem jogado do ninho para aprender a voar. Nada disso. Vivia no campo. Feito o primário, estavam esgotadas minhas possibilidades de educação. Meus pais não podiam, pelo menos naquele momento, mudar-se para o “povoado”. Só me restava uma solução, ir sozinho. Vivi em quartos alugados e desde novinho lavava cuecas e cerzia meias – naqueles dias a gente aproveitava um carpim até seu último alento – , pregava botões e passava camisas. Mais importante que tudo, aprendi a gerir minha vida. Tinha de administrar minha escassa mesada, para que agüentasse até o fim do mês. Essa era a parte mais dura do aprendizado.

Nada melhor que isto para se chegar à adultez. Meus pais foram mais tarde para Dom Pedrito. Mas aí eu já era autônomo. Aos dezessete, abandonei de novo o ninho e fui continuar meus estudos em Santa Maria. Vivi sozinho até os trinta, quando passei a morar com minha Baixinha, em Paris. Assim, quando ouço falar de gente que até os trinta ou quarenta ainda não saiu de casa, só posso deplorar suas vidas.

Perversões da classe média. Quem é pobre não pode dar-se a estes luxos. Que sabe da vida quem nunca trouxe seu pão para casa, nem dispõe de um espaço privado para receber amigos ou amadas? Adolescente, minha primeira prioridade era ter quatro paredes, só minhas, para receber namoradas. Foi o que me fez viver só por mais de década. Quando casei - para levar a Baixinha comigo a Paris – viver com alguém sob o mesmo teto era para mim experiência estranha. Mas Paris compensava sobejamente a nova condição. Depois, acostumei.

Considero criminosa a atitude de pais que abrigam seus filhos até trinta ou quarenta anos. Não há personalidade que se desenvolva em quem vive eternamente debaixo da asa. São pessoas que não provêem seu sustento, que desconhecem a dureza da vida na selva, que ainda não sabem o que é viver. Como vai gerir uma empresa quem nunca soube gerir a própria vida? E se você não aprendeu como viver até os quarenta, daí pra frente este aprendizado não será fácil.

A condição de pobre não deixa de ter algumas vantagens. Ensina o quanto a vida é dura. Nascer em berço de ouro é muito bom. Mas nem sempre. Há pássaros que jogam os filhotes do ninho, para que aprendam a voar. Temos muito a aprender com estes pássaros.

O que está acontecendo hoje é um prolongamento artificial da adolescência, nas classes mais abastadas, até os 25, 30 e mais anos. Os novos hábitos tornam obsoletos os antigos conceitos dos dicionários. Com a crise, nos países desenvolvidos, muitos jovens estão voltando à casa paterna. Mas só volta quem já saiu e soube enfrentar a vida sem muletas. É o que nos Estados Unidos se chama de filhos bumerangue. Vão morar nos campi durante o período universitário. Findo o curso, se o mar não está para peixe, voltam para casa.

Estamos assistindo a um fenômeno novo, os adolescentes senis.

 
CRISTO RECOMENDA JOGAR
PAPA NO FUNDO DO MAR



Juan Arias, correspondente do El País no Brasil, lembra hoje um versículo que está em Mateus, 18:5 e é repetido em Marcos, 9:42 e Lucas, 9:46. Falando de crianças, o Cristo pronuncia uma sentença de morte: "Quem quer que faça mal a um desses pequeninos merece que lhe pendurem no pescoço uma pedra de moinho e o afundem nas profundezas do mar".

Pelo jeito, o Bento fez gazeta nestas aulas sobre o Evangelho.

sábado, abril 17, 2010
 
VATICANO AFUNDA
CADA VEZ MAIS



Quem dá explicação já perdeu a discussão, dizem as gentes. A reação das autoridades vaticanas às acusações de que Sua Santidade, cardeais e bispos acobertaram casos de pedofilia está ficando cada vez mais divertida. O secretário de Estado do Vaticano, cardeal Tarcisio Bertone – aquele que em fevereiro passado dizia ser necessário que os padres pedófilos reconhecessem suas culpas, “já que das provas pode chegar a renovação interior" – apresentou outra pérola à imprensa na segunda-feira passada, em entrevista coletiva durante visita a Santiago. Que a homossexualidade, e não o celibato, é a causa da pedofilia apontada por estudiosos.

"Muitos psicólogos e muitos psiquiatras demonstraram que não há relação entre o celibato e a pedofilia, mas muitos outros demonstraram que há relação entre a homossexualidade e a pedofilia", disse o desastrado cardeal, que não imaginava em que vespeiro metia a mão. Bertone – que quis dar uma aura de ciência à sua defesa do celibato – não cita quais psicólogos e psiquiatras fizeram tais afirmações. Reação indignada de todos homossexuais de todos os cantos do Ocidente. E até mesmo de Estados. Já na quarta-feira, a França condenava as declarações do cardeal, através de seu Ministério dos Negócios Estrangeiros francês.

"Trata-se de uma confusão inaceitável, que nós condenamos" – disse Bernard Valero, porta-voz do ministério, durante uma conferência de imprensa –. "A França recorda o seu compromisso firme na luta contra as discriminações e os preconceitos associados à orientação sexual e à identidade de sexo".

Recuo do Vaticano. Na mesma quarta-feira, o porta-voz da Santa Sé, Federico Lombardi, disse que as declarações de Bertone se referiam ao problema dos abusos por parte dos sacerdotes na Igreja “e não à população em geral”. Fez ainda outra declaração insólita para uma autoridade vaticana, da qual já deve estar arrependido: "As autoridades eclesiásticas não se consideram competentes para fazer afirmações gerais de caráter psicológico ou médico, que cabem aos especialistas".

Ou seja: quando se trata de aborto, eutanásia, células-tronco, anticoncepção – assuntos da alçada de especialistas – a Igreja se considera competentíssima para fazer afirmações de caráter psicológico ou médico. Já na associação de homossexualismo com pedofilia, optou por recuar, data a grita geral provocada pelas declarações do cardeal Bertone. O Vaticano, na tentativa de explicar-se, afunda ainda mais em suas contradições.

Não bastassem estas idas e vindas no esforço de salvar a pele de Sua Santidade, ontem ainda a Associated Press fez um levantamento em 21 países, que revelou 30 casos de padres que, depois de sofrerem denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes, foram para outros países. Se isto não é acobertamento oficial de crimes, por parte do Vaticano, não sei como possa ser chamado.

Dois dos padres pedófilos sobraram para nós. Um deles, o padre xaveriano Mario Pezzotti, foi acusado nos Estados Unidos de abuso e de estupro, em 1993, em Massachusetts. O caso acabou num acordo indenizatório de US$ 175 mil. Para curar-se, o padre foi enviado ao Brasil, para trabalhar com ... crianças da tribo caiapó, no Pará. A raposa foi incumbida pela Igreja de cuidar do galinheiro.

O outro é o padre jesuíta Clodoveo Piazza, acusado pela Promotoria Pública de abuso e exploração sexual, em Salvador. Hoje vive serenamente em uma residência jesuíta em Maputo, Moçambique. Entre outros casos revelados pela AP, há um padre que confessou abuso em Los Angeles e foi transferido para as Filipinas, onde vive financiado pela igreja. Um padre condenado no Canadá foi transferido para a França, onde voltou a cometer abusos.

Enquanto isso, cândidas alminhas acham que ateus e comunistas estão conduzindo uma campanha insidiosa contra a Igreja e o papa, para solapar os valores do Ocidente. Ora, não consta do que quer que se possa chamar de valores do Ocidente o abuso e estupro de crianças. Isto é prática generalizada dos padres da Igreja de Roma.

Tanto que o Vaticano os protege e sustenta.

sexta-feira, abril 16, 2010
 
TODO LOUVOR AO LEITOR
DO LIVRO DESCONHECIDO



Falava de leituras, outro dia. Seguido vejo pessoas lendo grossos calhamaços de Danielle Steel ou Dan Brown. Mas que jamais leriam um livrinho denso e profundo como Being There, do Jerzy Kozinski, de menos de cem páginas. Ou Escuta, Zé Ninguém, do Reich. Deste livro, tive um depoimento curioso. Uma mulher que vivia entre livros – era mulher de um livreiro e atendia na livraria – me disse algo que definiu bem o ensaio de Reich: “entendi tudo mas não compreendi nada”. Definição perfeita. Reich escreve em um estilo simples, ao alcance de qualquer alfabetizado. Mas só pode ser entendido por quem conhece o nazismo. Ou A Arte de Amar, de Ovidio. Escrito nos dias de Cristo, quando a peste cristã ainda não empestara o mundo, tem dois mil anos e conserva um frescor extraordinário. Quem conhece hoje estes livrinhos, pequenos e fundamentais? Muito poucos.

Ou, digamos, Kalocaína, de Karin Boye. Não por acaso falo deste livro. É uma das mais belas obras da literatura universal. Foi publicada no Brasil e morreu. Eu o recebi de presente de uma amiga, ao despedir-me de Estocolmo. Ela nem imaginava que com aquele regalo estava criando um tradutor. Uma vez de volta, para praticar o sueco, decidi traduzi-lo. Terminado o trabalho, eu o propus a uma editora no Rio. A autora era totalmente desconhecida no Brasil. Para meu espanto, o livro foi publicado. A tradução, que fiz por diletantismo, acabou se revelando decisiva para minha atividade como tradutor. Mas não era disto que queria falar.

O livro é uma distopia, que antecede 1984, e duvido que Orwell não tenha bebido daquela fonte. É obra que honra qualquer literatura e passou completamente despercebido no Brasil. Despercebido pelo grande público, mas não pelo leitor exigente. Seguidamente recebo mails me pedindo notícias do livro. Ainda ontem, um leitor de Portugal queria saber onde encontrá-lo. Deve ser um dos livros mais procurados em sebos. Mas está esgotado e editor algum sonharia em republicá-lo.

Já comentei, há alguns anos, que editores estão pagando – e pagando caro – para expor bestsellers nas vitrines de livrarias. Há livrarias aqui em São Paulo, particularmente as dos shoppings, que só exibem lixo em suas prateleiras. Outro dia, em algum jornal estrangeiro, li que o bestseller já era. Estamos entrando na era do megaseller, isto é, aquele livro que é publicado em vários países ao mesmo tempo e que vende não centenas de milhares, mas milhões de exemplares.

Sou leitor que sempre buscou o livro que quase não vende. Quando saio em busca de um título, tenho de pesquisar várias livrarias. Quando não países. Minha biblioteca virou sebo. Sem ser um bibliófilo, conheço a biografia de cada um de meus livros. Onde o comprei, por onde o busquei e até mesmo onde os li. Assim sendo, foi com prazer que li este texto da Economist, enviado por um amigo:

“Muitas pessoas que lêem bestsellers, por exemplo, não lêem outra ficção. Por outro lado, a audiência de um obscuro romance é amplamente constituída por pessoas que lêem muito. Isto significa que os livros menos populares são julgados por pessoas que têm o mais alto nível, enquanto os mais populares são julgados por pessoas que literalmente não conhecem algo melhor. Um americano que tenha lido apenas um livro este ano tem grandes chances de ter lido The Lost Symbol, do Dan Brown. Ele certamente gostará deste livro”.

Há quem diga que ler é sempre bom, mesmo que se leia porcaria. Discordo. Se é para ler Dan Brown ou Paulo Coelho, penso que analfabetismo pode ser até saudável. De que adianta saber ler em Cuba? Para receber propaganda oficial na veia? Ler é prática que deve vir junto com liberdade de expressão, bom acervo literário, grande produção editorial.

Enquanto isso, busco os autores que ninguém busca. Não que queira defender minha causa. Mas todo louvor ao leitor do livro obscuro.

quinta-feira, abril 15, 2010
 
TRISTES NOVAS
DA CATALUNHA



Barcelona é uma das capitais européias que mais me fascina. Sem falar que tenho pela cidade um afeto especial. Foi a primeira que conheci na Europa e isto é algo que marca. Em verdade, antes de Barcelona estivera em Lisboa, mas minha estada entre os lusos não passou de um passeio de seis horas. Eu viajava no Eugenio C, desarmado em 1980, e vestia um casaco de pele de porco dos mais vistosos. E tinha 24 anos, o que faz alguma diferença entre ontem e hoje. Ao descer do barco, uma catalã linda como ela só me jogou um piropo:

- Que guapo!

No entrevero da aduana e liberação de bagagens perdi a chavala. Ora, não é todos os dias que alguém chega em um país e é assim saudado por uma de suas mais belas cidadãs. Depois da beleza da guapa, o charme da cidade: o colorido das Ramblas, as ruelas medievais do barrio Barrio Gotico, Montjuich, Gaudi, flamenco, sardana, cochinillos y lechales. Para quem saia de Porto Alegre, era todo um universo a desbravar. Naquele dia, prometi a mim mesmo: ainda vou viver aqui. Não consegui. Mas vivi em Madri, cujos encantos nada ficam a dever à capital catalã.

Isso foi em 71. O Barrio Gotico não tinha a sofisticação que hoje ostenta. O casario estava meio que caindo aos pedaços e o Carrer Avignyó era infestado por prostitutas. (As personagens retratadas por Picasso em Demoiselles d’Avignon são em verdade as moças da Avignyó). Me consta que as autoridades deixaram que o bairro se deteriorasse definitivamente, para depois reformar seus prédios. Hoje seus quarteirões estão estalando de novos, mas foram preservadas as formas da antiga arquitetura. Não há mais profissionais no Carrer Avignyó. As prostitutas migraram para a região da Boqueria. Ano passado, El País trazia fotos das moças, exercendo o ofício em plena luz do dia, escoradas nas pilastras que ficam atrás do mercado.

O Barrio Gotico era decadente, assim como também a Barceloneta, antigo bairro de pescadores que se tornou esplendorosa com as reformas para as Olímpiadas de 1992. Se nos anos 70 Barcelona tinha seu charme, tinha também um certo ar de deterioração. Mas você podia flanar tranqüilamente por suas madrugadas, sem medo algum de assalto ou violência. Hoje Barcelona é uma metrópole moderna e sofisticada. Mas algo mudou em suas ruas.

Leio hoje no UOL que os roubos na área das Ramblas e Bairro Gótico são tão comuns que já existem duas comunidades no site de relacionamentos Facebook com alusões diretas ao problema: I know someone who got robbed in Barcelona e I’ve been robbed in Barcelona. A cidade tem hoje uma média de 120 mil queixas policiais por ano e média de um roubo a cada cinco minutos, de acordo com estatísticas do Ministério do Interior.

Isso sem contar um roubo em anos passados (uma máquina fotográfica) e duas tentativas na última viagem - uma comigo e outra com minha filha – que não registramos na polícia. Mais os milhares de casos que alguém que está viajando não vai registrar. Primeiro, porque não terá de volta o que lhe foi roubado. Segundo, porque ninguém viaja para tomar chá de banco em delegacia. O registro só se torna necessário quando há roubo de passaporte ou cartão de crédito. Dica para quem viaja: não ande com passaporte nas ruas. Quanto a cartões, leve-os em bolsos internos das calças.

Não há violência. Alguém se aproxima de você tentando abraçá-lo. Enquanto isso, um grupo o cerca e revista seus bolsos. No Carrer de Ferrán, onde sempre me hospedo, em pleno Barrio Gotico, a las cinco en punto de la tarde, fui abordado por um desses marginais, inclusive com certa agressividade. Só consegui desembaraçar-me do vagabundo com alguns empurrões. Não me pareceu que algum transeunte se espantasse com aquela tentativa de assalto. O ladrão saiu caminhando tranqüilamente pela rua, em busca de outra vítima.

Segundo o Código Civil da Espanha – diz o UOL – qualquer roubo que não supere os 400 euros (aproximadamente R$ 1 mil) está livre de punição judicial. O ladrão é levado para a delegacia, fichado e liberado em seguida. A polícia diz que pouco pode fazer. Com legislação assim permissiva, não pode fazer nada mesmo. Ora, 400 euros por dia – ou a cada assalto – não é quantia de se jogar fora. Com o singelo esforço de um assalto por dia, tem-se no mês a simpática quantia de 12 mil euros. Isto é salário de altos executivos. Que pode ser ganho, sem risco algum, por qualquer desqualificado que decida optar por este meio de vida.

Um assalto a cada cinco minutos, em uma capital turística, é coisa que afasta muito turista. Doze mil queixas por ano significa dez mil queixas por mês. Mais de 330 por dia. A Barcelona que um dia amei – e ainda amo – está se tornando cada vez mais hostil para com seus amantes. O mesmo está acontecendo nas demais capitais européias. Quem são os ladrões? É claro que um nacional não vai se arriscar a interpelações policiais e mesmo eventualmente a prisão pelos trocados que um turista carrega no bolso.

Já sofri outros roubos e tentativas de roubo em outras viagens. Quem eram eles? Em Estocolmo, foi um paquistanês. Em Bolonha, ciganas. Em Madri, los moros – como dizem os madrilenhos. Desta última vez, não consegui identificar a origem do ladrão. Pelo modo de falar, não me pareceu espanhol.

O velho continente está se entregando de mãos atadas à violência dos imigrantes. Volto a meu bordão: se você ainda não conhece a Europa, viaje logo. Antes que a Europa acabe.

quarta-feira, abril 14, 2010
 
JORNALISTA RECEBE JABÁ E MOSTRA
UMA NORUEGA PARA PANACA VER



Os jornais brasileiros são pródigos em denúncias de corrupção de políticos e empresários. Mas completamente cegos às práticas corruptas de seus jornalistas. O jabá corre escancarado nas redações, especialmente nas páginas de cinema e turismo. Produtoras de filmes, empresas aéreas e agências de turismo brindam com viagens de luxo e hotéis cinco estrelas os profissionais da área para venderem seus peixes. As editorias toleram esta prática obscena como se fosse algo absolutamente normal no exercício do jornalismo. Daí resulta que repórteres ineptos e venais produzem péssimas reportagens, que pouco ou nada dizem sobre a realidade que pretendem mostrar. Quem perde é o leitor.

É o caso de uma série de artigos sobre a Noruega, publicados ontem no suplemento de turismo do Estadão. Um certo Roberto Almeida viajou a Oslo, com jabá da Visit Norway e da KLM. Como paga de suas mordomias, escreveu três páginas que nada dizem do que mais caracteriza o país. Y a las pruebas me remito.

O repórter dedica um artigo a Oslo e outro a Bergen. Tudo bem. Dedica uma sub ao Flamsbana, uma ferrovia na montanha que vai de Myrdal a Flam. Ok! É um percurso espeluznante, como diriam os espanhóis. De arrepiar. Mas o filé da Noruega está mais adiante, na rota dos fjordes. Bergen é apenas a porta de entrada destes braços de mar que cortam as montanhas. As emoções mesmo começam quando se sobe rumo ao norte. Sem falar que não diz uma única palavrinha sobre os dois fenômenos mais fascinantes do país, o sol da meia-noite e as auroras boreais.

Pior ainda, não disse água sobre a Hurtigruten, a espinha dorsal da Noruega, o meio de transporte mais confortável, charmoso e barato para se fazer a costa norueguesa. Ir à Noruega e não navegar pela Hurtigruten é como ir a Roma e não ver o Santo Patrono dos Pedófilos. A Hurtigruten – Rota Expressa, em bom português – tem 14 navios que fazem o litoral norueguês de sul a norte, de Bergen até Kirkenes, na fronteira com a Rússia. Outros barcos da companhia fazem trajetos pela Antártica, Spitsbergen, Groenlândia e Europa.

Embora anunciados como navios de cruzeiro por certas agências, são basicamente uma linha costeira, que acaba sendo o meio mais prático de transporte no país. Mas se você quiser encará-los como cruzeiros, nada obsta. É certamente a viagem mais linda do mundo. Você vai entrando e saindo dos fjordes e atracando naqueles portos adoráveis do litoral norueguês, com seus casarios coloridos encarapitados na montanha. Os navios sobem ao norte fazendo escala em determinadas cidades. E voltam ao sul atracando em outras. Você pode pegar um barco em um porto e descer no seguinte. Ou onde quiser.

Em onze dias, o tempo de ir de Bergen até Kirkenes e voltar a Bergen, você conhece praticamente o país todo, já que a maior parte de suas cidades está no litoral. Pode também, se quiser, sair do navio, continuar a viagem pelas montanhas – o que dá uma outra visão dos fjordes – e pegar de novo o navio em um porto mais adiante.

A beleza mesmo da Noruega reside lá. Nos portos de Ålesund, Trondheim, Rørvik, Bodø, Svolvær, Harstad, Tromsø. No arquipélago de Lofoten e nos pequenos fjordes mais ao norte. Um deles, de apenas dois quilômetros de extensão, o Trollfjorden, entre Svolvær e Stokmarknes, na região de Lofoten, é certamente o mais imponente de todos os fjordes. Uma sopa quente de mariscos à meia-noite, em uma temperatura abaixo de zero grau do verão austral, sob aquele sol irreal, foi um dos grandes momentos de minha vida. Vi turistas quase em delírio, não conseguiam decidir para onde assestar as objetivas.

Minha primeira passagem pelo Trollfjorden – troll quer dizer duende – foi no ano 2.000. Eu lia tranqüilamente em um dos salões, quando a Baixinha desceu como que em pânico. “Sobe logo, lá fora está acontecendo algo inimaginável”. Estava mesmo. Nesses momentos, não consigo controlar o que me corre dos olhos.

Oslo é certamente a capital mais anódina da Escandinávia. Não tem o charme de Estocolmo e seu arquipélago, nem a vida borbulhante de Copenhague, muito menos a beleza de Helsinki. Tem o Akker Brygge, um cais e marina de vida esfuziante, é verdade, que lembram a alegria orgíaca de Barcelona ou Dubrovnik. Sim, o repórter nos fala do Akker Brygge. Mas quem vai a Oslo não viu o país. Noruega é muito mais. Ao lado do Chile, eu a considero um dos dois países mais lindos do mundo, do ponto de vista geográfico.

Este muito mais o repórter subsidiado pela Visit Norway e KLM não mostrou. Que deixasse de lado o sol da meia-noite e as auroras boreais até que passa, são fenômenos por demais óbvios. Mas a Hurtigruten não podia ser ignorada. É um grande momento na vida de quem gosta de viajar. Sem falar que é uma das instituições da qual mais se orgulham os noruegueses.

Como não deve ter puxado a carteira para pagar sequer uma cerveja, o repórter deixou de informar ao leitor um dado dos mais importantes para quem vai àqueles nortes. Se fala dos altos preços da bebida, esqueceu – ou talvez nem tenha visto – um detalhe de assustar qualquer turista, os 25% de gorjeta. Um quarto do valor do que se consome à mesa. Dói no bolso. Os Olafs que me desculpem. Mas fiquei nos 10% cá dos trópicos. Nenhum garçom me olhou de cara feia.

Quem gosta de viajar sempre espicha o olho ante um suplemento de viagens. Mas os suplementos nacionais são abomináveis. Os jornalistas propõem um turismo de pacote e geralmente não dão dicas para quem gosta de viajar fora do rebanho. Seguem a política de quem lhes paga as mordomias. Se isto não é corrupção, não sei como se pode chamar.

Se você quer ler um suplemento inteligente sobre viagens, busque El Viajero, o guia de viagens do jornal espanhol El País. Seus articulistas não recebem jabá. Viajam pelo jornal. Oferecem sempre viagens por geografias insólitas, não pelo feijão-com-arroz das agências turísticas. Dão um apanhado geral da história e geografia do país e sugerem roteiros inteligentes.

Já nosso jornalismo de viagens é, antes de tudo, medíocre e venal.