¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 30, 2008
 
DO PESSOA



Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

segunda-feira, abril 28, 2008
 
SOBRE NEUROCIÊNCIA


De Paris, recebo:

Prezado Janer,

Há alguns meses, sou leitor assíduo do seu blog, visitando-o sempre com muito prazer e atenção. Sua cultura caudalosa, seus argumentos precisos, sua escrita elegante e bem humorada muito me cativaram. Sem dúvida, seu blog é o meu preferido. Leio-o diariamente. Aprecio, em especial, seus textos sobre religião, nos quais você mostra todo seu conhecimento sobre a Bíblia e a história da ICAR.

Como você, tive rígida educação cristã, embora nas hostes da igreja protestante. Essa formação me saturou e me encheu de deformidades existenciais. Hoje, aos 31 anos, vou tentando me libertar do peso dessa tradição, o que me é tremendamente difícil, dado a muitas amarras, principalmente familiares. Mas isso é assunto para outra conversa...

Escrevo-lhe para conversar sobre um dos seus textos recentes, em que você criticou as neurociências, qualificando-as de “charlatanismo” e associando-as a alguém como “o parlapatão Lair Ribeiro, guru do Collor”. Esse seu texto muito me surpreendeu; confesso que não esperava uma opinião tão obtusa vinda de você. Assim, permito-me lhe escrever para lhe expor porque não concordo com sua posição.

Chamo-me Leonardo, sou médico neurologista e, há dois anos e meio, moro em uma cidade na qual você mesmo habitou durante um período de sua vida: Paris. Cá estou justamente para me aprofundar nessa área do conhecimento.

Criticar as neurociências por causa de Lair Ribeiro é tão razoável quanto depreciar toda a literatura universal por causa do Paulo Coelho. As neurociências são dos mais palpitantes domínios científicos atualmente. Trata-se de uma vasta área do conhecimento, sendo um espaço de convergência de diversos saberes: a neurofisiologia, a neurofarmacologia, a neuroradiologia, a psicologia cognitiva, a psicologia experimental, a neuropsicologia, a psiquiatria, entre outros. Os objetos de estudo e as aplicações práticas das neurociências, são, evidentemente, tão amplas quanto as ciências que as compõem. Há muitas frentes de trabalho; em uma vertente mais clínica, há os neurocientistas que se dedicam ao diagnóstico e tratamento de doenças neurológicas (como a doença de Alzheimer). Em uma outra linha, estão os que investigam os mecanismos neurobiológicos de diferentes processos cognitivos, envolvidos, por exemplo: na apreensão do meio que nos rodeia (processamento de estímulos visuais, por exemplo); na nossa vida relacional (o julgamento moral, o comportamento social); no fundamento da consciência (redes neurais de memória, em seus diversos tipos).

Por causa dessa última via de trabalho, as neurociências tangenciam questões filosóficas, o que foi abordado por neurocientistas de renome, como António Damásio, John Ledoux, Jean Pierre Changeux. No Brasil, o jornalista (bacharel em filosofia) Hélio Schwartsman, da Folha de São Paulo, freqüentemente usa descobertas neurocientíficas para debater questões filosóficas.

Na verdade, aproximei-me das neurociências justamente por me interessar por essa interface com as ciências humanas. A propósito, escrevi um artigo que foi publicado na revista “Arquivos de Neuropsiquiatria” (órgão da Academia Brasileira de Neurologia), em que discuto, à luz de alguns conceitos da neuropsiquiatria, alguns aspectos comportamentais do príncipe Míchkin, personagem de Dostoievski em “O Idiota”. Caso se interesse, envio-lhe o texto com o maior prazer.

Descobertas das neurociências têm lançado luz sobre o entendimento de comportamentos humanos extremamente complexos, como a religiosidade, a agressividade, as compulsões.

Não há nada de charlatanismo nisso. Há, sim, cientistas dedicados que trabalham honesta e duramente – como o brilhante brasileiro Miguel Nicolelis –, batendo-se por compreender determinadas questões, cujas respostas podem beneficiar milhões de pessoas que sofrem de distúrbios neuropsiquiátricos em todo o mundo.

Espero que esses modestos argumentos lhe sejam um estímulo para perceber as neurociências como um importante e precioso canteiro de obras da ciência moderna, e não como pretexto para gananciosos se locupletarem com um blá-blá-blá pseudo-científico.

Como vi no seu blog que, em breve, você viajará à Europa, teria o imenso prazer em convidá-lo a tomar um café em Paris, caso passe por aqui. Meu studio está bagunçado (acabei de me casar), mas, se precisar de um lugar para “pousar” (incluindo, é claro, sua pequena malinha de 20 quilos), estamos à disposição, é só avisar...

Um grande abraço, com apreço,

Leonardo de Souza


Meu caro Leonardo:

a história de uma bióloga especializada em neurociência citando Fernando Pessoa, em uma pretensa crítica a ateus, deixou-me irritado e me deixei levar pela hybris. Nada contra Pessoa. É meu poeta de cabeceira. Mas penso que não se pode misturar ciência com poesia. Ocorre que charlatães estão empunhando a neurociência com a mesma aisance com que outros empunham a física quântica, que hoje está virando uma espécie de auto-ajuda. Envie-me seu ensaio sobre o príncipe Michkin. Mais duas semanas, espero estarmos discutindo estas questões em torno a um bom Cahors em algum bistrô de Paris.

À propos: minha malinha não é de vinte quilos. Mas de oito. Estarei no Sully-Saint Germain, rue des Écoles. Celebraremos a bonne chère aux environs.

 
IMUNE A SISMOS



Soube, pelos jornais, que ontem teria ocorrido outro terremoto em São Paulo. Também não senti. É o segundo terremoto que perco. Pelo jeito, sou imune a sismos.

domingo, abril 27, 2008
 
O PARADOXO DE EASTERLIN




De repente, surgem teorias exóticas na imprensa. A última, a encontrei no Invertia, do portal Terra. É que dinheiro traz felicidade. Aparentemente, foram necessários alguns milênios para que os pensadores chegassem a esta brilhante descoberta. Segundo a notícia, depois da Segunda Guerra Mundial, a economia japonesa passou por uma das maiores expansões que o mundo já viu. Entre 1950 e 1970, a produção econômica per capita cresceu em mais de 700%. O Japão, em apenas algumas décadas, se transformou de nação devastada pela guerra em um dos mais ricos países do planeta. No entanto, estranhamente, os cidadãos japoneses não pareciam estar mais satisfeitos com as suas vidas. Uma pesquisa apontava que a porcentagem de pessoas que respondeu da maneira mais positiva possível quanto ao seu grau de satisfação pessoal caiu, no país, entre o final dos anos 50 e o começo dos 70. Os japoneses enriqueceram, mas aparentemente não se tornaram mais felizes.

Daí surgiu o chamado Paradoxo de Easterlin. Em 1974, Richard Easterlin, economista que então lecionava na Universidade da Pensilvânia, publicou um estudo no qual argumentava que o crescimento econômico não necessariamente propiciava mais satisfação. As pessoas de países pobres, e isso não deve causar surpresa, se tornavam mais felizes quando passavam a ser capazes de arcar com o custo dos produtos cotidianos. Mas ganhos adicionais pareciam simplesmente redefinir os parâmetros. Para expressar a questão em termos cotidianos, ter um iPod não torna uma pessoa mais feliz, porque, quando ela o tem, passa a desejar um iPod Touch. A renda relativa - os ganhos de uma pessoa em comparação com os de pessoas que a cercam - importa bem mais que a renda absoluta, escreveu Easterlin.

Este paradoxo apontava para um instinto quase espiritual dos seres humanos de acreditar que o dinheiro não pode comprar felicidade. Na semana passada, na Brookings Institution, em Washington, dois jovens economistas, Betsey Stevenson e Justin Wolfers, concluíram - ó gênio! - que dinheiro tende a trazer felicidade, mesmo que não a garanta. A renda faria diferença. Após pesquisas conduzidas em todo o mundo, o instituto Gallup descobriu que o índice de satisfação é mais elevado nos países mais ricos. Os residentes desses países parecem compreender que vivem bastante bem, mesmo que não tenham um iPod Touch.

Essa agora! Pesquisar no mundo todo para concluir que ter dinheiro é bom. Em meus dias de jovem, a última coisa que me preocupava em minha vida era dinheiro. Sem conhecer mundo, minhas necessidades eram poucas. Tendo o de comer e o de beber, mais o carinho de uma mulher, a vida estava plena. Nos anos de universidade, vivi em pequenas kitchenetes e entre aquelas estreitas quatro paredes fazia minha vida. Não me queixo. Foi bom.

Mas a vida avança e o mundo se mostra maior do que imaginamos. Se você quer ficar em sua aldeia, tudo bem. O dinheiro não faz muita falta. Começa a fazer falta quando você sai da aldeia e descobre como é bom sair da aldeia. Em minha primeira viagem, no início dos 70, fiz a Europa de sul a norte e de leste a oeste. Sempre me hospedando precariamente, comendo sanduíches, levando queijos, patês e vinho para o hotel. O que é muito bom. Daqueles dias também não me queixo. Mas cedo descobri que melhor ainda era comer melhor em um bom restaurante, beber um vinho de melhor qualidade, hospedar-se melhor. Não falo em cinco estrelas. Três já está bom.

Uma coisa é você comer um merguez numa tendinha de árabes em Paris. Não é ruim, e sempre que vou a Paris dedico um almoço ao merguez. Mas há um surplus em jantar no Procope ou no Julien. Comer tapas em Madri é muito bom. Mas bom mesmo é um cochinillo ou cordero lechal no Sobrino de Botín. E isso exige alguma grana. Não que seja necessário ser milionário para curtir tais venturas. Mas algo se há de ter.

Que o dinheiro em si não traz satisfação, de acordo. Conheço pessoas muito ricas que não ousam sair da aldeia. Talvez por medo do anecúmeno, suponho. Em minha cidadezinha, Dom Pedrito, tive como amigo um fazendeiro de grandes posses. Era pessoa generosa, houve vezes em que, só por sentir-se contente, me enfiava no bolso um pacote de dinheiro. Fazia isso com muita gente. Bastava fazer um bom negócio, saía a distribuir dinheiro na rua. “Que é isso, Davi, não estou precisando de dinheiro”. “Então repassa para tuas mulheres”. Bom, já que era para fazer obra social, eu aceitava.

Nunca saiu da aldeia. Convidei-o certa vez para ir a Paris. Vende uns trinta ou quarenta bois, Davi, e serei teu guia. Ora, ele tinha mais de mil bois. Mas não concebia vender bois para ver o mundo. Dom Pedrito lhe bastava. Não deixa de existir uma certa razão na afirmativa de que dinheiro não traz felicidade. Há milhares, senão milhões de pessoas, que não sabem bem utilizar seus patrimônios. Mas sem um certo mínimo – que não precisa ser muito – não é fácil ser feliz. Pelo menos para quem viu um dia o mundo e seus encantos e neles se viciou. Em meus dias de Estocolmo, contraí uma grave doença nórdica, que consta que não tem cura, a resfeber. Febre de viagens. Fiquei contaminado até a alma, e até hoje não consegui ficar parado por muito tempo.

Nasci na fronteira seca entre Brasil e Uruguai. Coincidia que o Uruguai começava justo no horizonte, onde ficava a Linha Divisória. Nesta linha, de três em três quilômetros há um marco de concreto. De seis em seis, há um marco maior. Em frente a nosso rancho, ficava o Marco Grande dos Moreiras. Meu pai me erguia até o topo do marco, me fazia virar para o nascente e dizia: “Fala para os homens do Uruguai, meu filho”. Depois, me virava para o poente: “Fala agora com os homens do Brasil”. Nasci entre dois países, sempre olhando para um e outro. Daí a querer ir mais adiante foi só um passo.

Quando jovem, sempre considerei dinheiro uma bobagem. Minhas necessidades eram mínimas. Certo dia, em um livro de Bernard Shaw, li uma frase que me chocou. Cito de memória, sem muita precisão: dinheiro é saúde, cultura, educação, requinte. Talvez não fosse exatamente esta a frase, mas seu sentido era este. Naqueles anos, eu era católico e a pobreza me encantava.

Sem ser rico, tenho hoje condições de viver e viajar com conforto. Adoraria ser rico. Faria como o Davi, sairia a distribuir dinheiro às gentes. Minha primeira providência seria oferecer viagens a amigas que nunca viajaram. Adoro apresentar cidades às pessoas que quero bem. Já sonhei em viajar com uma amiga, de olhos vendados, e largá-la direto nos canais de Amsterdã. Para chocar. Em verdade, já fiz isto, só que a moça foi sem olhos vendados. Daqui a duas semanas, vou fazer de novo.

Mas falava da brilhante tese dos jovens economistas. Só o que faltava fazer profundas pesquisas para provar que dinheiro é bom! Segundo Daniel Kahneman, psicólogo da Universidade de Princeton, laureado com o Nobel de Economia em 2002, "há um vasto e crescente volume de indícios de que o paradoxo de Easterlin talvez não exista". Só espero que não tenha recebido o Nobel por ter chegado a esta genial conclusão.

sábado, abril 26, 2008
 
NO BRASIL NADA SE PERDE,
ATÉ TERREMOTO DÁ LUCRO




Continuo minha pesquisa sobre o terremoto, junto a pessoas de meu dia a dia, garçons, garçonetes, taxistas, meu barbeiro, minha quitandeira. Ninguém o sentiu. Em meio a isso, recebo de Samuel Ieger Suss, leitor perspicaz, este alerta:

Olá Janer.

Em relação à sua última crônica, o pior é perceber que já se vislumbram possibilidades de transformar o tal terremoto - aqui em Curitiba também não conheço ninguém que o tenha sentido - em uma excelente oportunidade para abrir vagas de trabalho no setor público para acomodar algumas classes de profissionais, digamos, pouco requisitadas no mercado nacional.

Na Folha de São Paulo de ontem (24/04), o chefe do Observatório Sismológico da Universidade de Brasília, Lucas Vieira Barros, apresentou proposta para a construção de 40 novas estações para monitoramento de movimentos sísmicos em todo pais. Esse projeto já teria sido apresentado em reunião no Gabinete de Segurança Institucional, da Presidência da República, ao custo estimado de U$ 1 milhão. Segundo Barros, a Presidência foi receptiva (imagine se não seria).

sexta-feira, abril 25, 2008
 
ESSE EST PERCIPI:
OU DE COMO PERDI
UM TERREMOTO



Esse est percipi, pretendia o filósofo George Berkeley. Ser é ser percebido. O noticiário sobre a menina assassinada nesta semana só teve concorrente no terremoto que teria ocorrido na terça-feira passada, atingindo inclusive São Paulo. Digo teria ocorrido porque vivo aqui e não senti terremoto algum. Apesar de ter sido um terremoto de 5.2 na escala Richter, não percebi nada. Mas a televisão, ad nauseam, anunciava o sismo. Um certo orgulho cívico perpassou corações e mentes paulistanos: nós também terremotos. Tornados também já temos. Agora só faltam os tsunamis. A imprensa não se fez de rogada: chamou geólogos para examinar a hipótese de um tsunami.

Deve ter sido em função da estrutura de meu prédio, imaginei. É uma construção sólida, de 1949, que já mereceu um prêmio internacional de arquitetura. Vai ver que resistiu, impertérrito, às vibrações. Perguntei então ao zelador se alguém mais havia percebido algo. Uns sentiram, disse o zelador. Outros não. O senhor sentiu? Não, eu não senti nada.

Estou voltando de minha médica, onde fui fazer uma revisão geral da carcaça, em função de uma viagem mês que vem. A secretária não sentiu nada. A médica, muito menos. Entraram mais duas clientes no consultório. Interroguei as moças. Não, não haviam sentido nada.

Falei com um chofer de táxi. Ele estava vendo televisão e não havia sentido nada. Mas sua mulher entrou na sala com as pernas bambas. Decididamente, foi um terremoto muito estranho.

Em Crônicas de Bustos Domecq, Jorge Luís Borges e Bioy Casares – que tive a honra de traduzir no Brasil - há um belo conto, intitulado justamente “Esse est percipi”. Segundo um dos personagens, no futebol já “não há score nem times nem partidas. Os estádios já são ruínas caindo aos pedaços. Hoje tudo se passa na televisão e no rádio. A falsa excitação dos locutores nunca o levou a suspeitar que tudo é patranha? A última partida de futebol nesta capital foi jogada dia 24 de junho de 37. Desde aquele exato momento, o futebol, do mesmo modo que a vasta gama de esportes, é um gênero dramático, a cargo de um só homem em uma cabine ou de atores com camisetas junto ao câmera”.

Borges e Casares antecipam, de certa forma, O Show de Truman, este genial filme de Peter Weir, no qual Truman, desde o berço, é personagem de uma novela, rodada em um estúdio colossal que determina toda sua vida e ele não sabe disso. Don Domecq quer saber quando tudo começou.

“- Ninguém sabe. Tanto valeria pesquisar a quem ocorreram primeiro as inaugurações de escolas e as visitas faustosas de testas coroadas. São coisas que não existem fora dos estúdios de gravação e das redações. Convença-se, Domecq, a publicidade maciça é a marca dos tempos modernos.
“- E a conquista do espaço? – gemi.
“- É um programa estrangeiro, uma co-produção ianque-soviética. Um louvável progresso, não o neguemos, do espetáculo cientificista.
“- Presidente, o senhor me mete medo – resmunguei, sem respeitar a via hierárquica. Então no mundo não acontece nada?
“- Muito pouco – respondeu com sua fleugma inglesa. O que não compreendo é seu medo. O gênero humano está em casa, atento ao vídeo ou ao locutor, quando não à imprensa marrom. Que mais quer, Domecq? É a marcha gigante dos séculos, o ritmo do progresso que se impõe”.

Sei não. Do jeito em que marcha a humanidade, não me surpreenderia que a rede Globo tenha decretado terremoto e os telespectadores tenham se imposto a obrigação de tê-lo sentido. Verdade que prédios racharam e o abastecimento de água foi afetado em alguns lugares. Mas estes efeitos, Christof, o diretor de TV no filme de Weir, produzia com facilidade em seu monumental estúdio. Chuva ou sol, raio ou tempestade, tudo era produzido com o simples toque de um botão.

Ou talvez eu – e boa parte dos paulistanos – sejamos insensíveis a movimentos sísmicos. Sei lá! Me reservo o direito à dúvida.

quinta-feira, abril 24, 2008
 
MÃO-DE-OBRA BARATA



De outro leitor, que prefere manter-se anônimo, recebo:

Olá, Janer:

bem, em pouco mais de um mês chego em Lyon, na França, onde começo o doutorado no INSA. Vou receber um salário, pago pela EDF (que financia o projeto que eu e meus orientadores vamos desenvolver pelos pŕoximos três anos), de 1600 euros. Pode parecer pouco, mas já vi que dá pra viver com isso em Lyon (fiz o mestrado lá também, na ENS, e ganhava o mesmo valor) e é bastante alto se comparado ao que normalmente recebe um doutorando e mesmo pós-doutorandos na área de ciências na Europa.

Moral da história: se, no Brasil, os mestrados e doutorados são vistos já como uma forma de burlar o desemprego, lá fora, é um modo de se ter mão-de-obra barata pra conduzir pesquisas. Você trabalha duro num laboratório, e salvo casos raros, recebe uma merreca no final do mês. Não por outro razão os centros de pesquisa europeus andam recrutando agressivamente pós-graduandos em países do Terceiro Mundo: os europeus mesmo não andam muito tentados com esse "emprego".

Bem, não sou hipócrita: vou atrás não só de ciência, mas de viagens e da cultura européia, que me fascinam. Por isso vale a pena.

[]s.

 
MESTRADOS, DOUTORADOS
E PORCARIAS AFINS



Nesta atividade diária da crônica, recebo tanto afagos como pauladas. Estas talvez sejam as mais. Mas não me desagradam. Vibro quando um leitor me insulta. É sinal que o deixei sem argumentos. Não nutro, bem entendido, “o amor da santa abjeção”, muito apreciado por são Sisoés, um dos santos anacoretas do deserto do século IV d.C., cuja maior aspiração era “ser desprezado por todos”. Meu grau de santidade não chega a tanto.

Se as pauladas não me desagradam, é com sumo prazer que recebo certas homenagens. Me agrada muito saber que esclareci melhor as dúvidas de um leitor, que o ajudei a tomar uma decisão, que fiz seu dia feliz. Esta é minha melhor paga. Nada gratifica tanto um cronista como tomar ciência de que o que escreve não caiu em terreno árido. Assim sendo, ontem foi um dia que me fez bem. É que recebi de uma leitora o mail infra. Este mal-estar com a pós-graduação não vem de hoje. Já aconselhei orientandos a abandonar mestrado, o que lhes foi muito saudável.

A pós-graduação, hoje, mais que uma opção acadêmica, é um paliativo ao desemprego. Que, conforme a área, acaba conduzindo a um futuro também sem emprego. Tenho uma amiga aqui em São Paulo, jovem, bonita, sensível, que está se arrancando os cabelos por ter feito um mestrado em Letras na USP. Não está vendo perspectiva alguma de emprego pela frente. Por inércia, entrou em regime de doutorado. Sabe que terá mais quatro ou cinco anos de purgatório pela frente e tem certeza que depois da purgação são será o céu que a espera.

O título que dei a esta postagem é o que foi dado pela leitora à sua mensagem.

Olá, Janer.

Apesar de acompanhar sua página há pouco tempo, devo dizer que você, involuntariamente, me ajudou a sair de uma enrascada tremenda: depois de um ano e meio de sofrimento sem sentido, finalmente abandonei meu mestrado. Discussões estéreis, excesso de marxismo, briga de egos entre professores, enfim, vi que estava perdendo minha preciosa juventude para escrever uma dissertação que:

1º - ninguém ia ler;
2º - não ia me auxiliar a conseguir um emprego melhor;
3º -só ia ajudar meu orientador a aumentar seu próprio Currículo Lattes.

Creio que você ainda não deve ter percebido como a situação piora a cada dia. Enquanto cursava o mestrado, vi doutorando atrasando a entrega de sua tese pois, quando finalmente a defendesse, perderia a bolsa e ficaria desempregado (aliás, creio que essa é a nova função do mestrado e do doutorado: absorver a mão-de-obra que o mercado de trabalho – muito mais racional, é claro – não absorve. Digo que o mercado de trabalho é mais racional porque nenhum empregador seria louco de pagar para alguém ficar escrevendo um calhamaço que carece de utilidade prática... só o generoso Estado faz isso, com dinheiro alheio, é claro).

Também cansei de ver doutores, já saídos do doutorado e, obviamente, desempregados, freqüentando cursinhos preparatórios para concursos públicos que exigem apenas o NÍVEL MÉDIO!!! Isso mesmo, doutores se preparando para vagas de 2º grau!! E mais: não sei se você já percebeu, mas, atualmente, nos concursos públicos, já existem provas de títulos (e não são só os concursos do magistério, concursos em geral!). Pois é, ter títulos garante ao candidato a vagas de 2º grau alguns pontinhos que farão aumentar sua nota de classificação!!! O Estado, percebendo que, mesmo depois de dar dinheiro para o esperto fazer mestrado e doutorado, não o ajudava a conseguir emprego, resolveu ele mesmo dar emprego aos calhordas.

Recebi essa semana, no local onde trabalho, uma carta de recomendação onde a ‘recomendante’ – orientadora de doutorado da ‘recomendada’ – implorava para que concedêssemos emprego a sua protegida, que passa por ‘muitas necessidades’. Ora, o que tem a empresa a ver com isso? Empresa privada virou sociedade filantrópica? Ela fez doutorado porque quis, numa área - humanas - que, sabidamente, gera desempregados (era doutoranda em literatura crítica. Desculpe minha ignorância: o que faz esse profissional?). Enfim, meu chefe nem chegou na metade da carta: mandou descartá-la, o profissional não tem o perfil da empresa...

Você, mesmo sem ser profeta, acertou sua previsão: dentro em pouco, teremos doutores dirigindo táxis, sendo porteiros de condomínios, caixas de supermercados...

Um abraço, Christianne.

quarta-feira, abril 23, 2008
 
O JUIZ POTIGUAR E A
TENTAÇÃO DA ORIGINALIDADE



Nunca falta, na história do Judiciário, juízes tentados a prolatar sentenças originais. Leio que no Rio Grande do Norte, Mário Jambo, juiz federal, condenou hackers a ler, a cada três meses, dois clássicos da literatura. Os acusados Paulo Henrique da Cunha Vieira, 22, Ruan Tales Silva de Oliveira, 23, e Raul Bezerra de Arruda Júnior, 30, foram liberados no dia 17, após nove meses presos por envolvimento na Operação Colossus, da Polícia Federal. A operação, deflagrada em agosto de 2007, investigava uma suposta quadrilha que roubava senhas bancárias pela internet. Os jovens terão de apresentar resumo das leituras à Justiça. Segundo o juiz, a Justiça precisa sair da "mesmice".

Até aí, uma sentença interessante. O problema é que o Meritíssimo está exigindo a leitura de clássicos das letras tupiniquins. Em vez de pedir a leitura de um clássico do século passado, libelo contundente contra todas as tiranias do mundo, como 1984, de Orwell, o juiz quer que os meninos leiam Vidas Secas, do stalinista Graciliano Ramos. Em vez de uma denúncia imortal da estupidez humana, como As Viagens de Gulliver, de Swift, exige a leitura de um autor abstruso como Guimarães Rosa. Pelo menos impôs a leitura de apenas um conto, “A hora e a vez de Augusto Matraga”. Menos mal.

Se a moda pega, não é de duvidar que os índices de criminalidade eletrônica diminuam no país. Imagine hackers tendo de ler Machado de Assis ou Clarice Lispector, Mário ou Oswald de Andrade, Lya Luft ou Lígia Fagundes Telles. Certamente pensarão duas vezes antes de tentar invadir um computador alheio.

A idéia de Mário Jambo não é de todo má. Em vez de uma punição que não levaria a nada, o juiz condena os jovens a educar-se. O problema reside, a meu ver, nesse eterno afonsocelsismo que permeia as mentes de Pindorama, de louvar o que é nosso só porque é nosso. Ora, se o Meritíssimo tivesse um olhar mais abrangente, buscaria os clássicos da literatura universal, como Platão, Cervantes, Dostoievski, Swift, Pessoa. Um pouco de cultura histórica também não faria mal: Arnold Toynbee, Ernest Renan, Jean Delumeau, Le Goff, Charles Lea. E mesmo a Bíblia, por que não? Na Bíblia, estão os mitos básicos do Ocidente. A Bíblia é certamente o livro que mais tenho relido nos últimos anos. E quem me acompanha não ignora que sou ateu.

Pela experiência que tenho dos cursos de Letras, obrigar jovens a ler autores nacionais é afastá-los definitivamente da literatura. Eu cometi esse crime, quando professor de Letras. Estava cingido a uma ementa e, como não queria fingir que ensinava enquanto meus pupilos fingiam que aprendiam, cobrei a leitura até mesmo de Clarice Lispector. Certa vez, em uma palestra na PUC de Porto Alegre, eu comentava a inutilidade de ler Lispector. Ao final da palestra, uma professora abordou-me, timidamente.

- Professor, o senhor me conforta.
- Comovido, professora. Posso saber por quê?
- É que sou obrigada a lecionar Clarice. Eu detesto a Clarice, meus alunos detestam a Clarice, mas o currículo exige a leitura de sua obra.

Fui tomado de uma extraordinária satisfação interior naquele instante. Eu enfiara o dedo em um dos tabus universitários e fizera uma professora feliz. Há um paradoxo na cultura do país. Quando se trata de vinhos, preferimos os estrangeiros. Uísque, idem. Carros, ibidem. Por que então só a literatura tem de ser nacional?

Mas o juiz potiguar vai mais longe. Quer os meninos afastados das lan houses. O que é uma bobagem, pois se alguém quer hackear não precisa ir a uma lan house. Mas o insólito mesmo reside em uma terceira determinação: proibiu-os de freqüentar casas de prostituição. A proibição, além de não ter relação alguma com o crime cometido pelos jovens, é flagrantemente inconstitucional. Bem ou mal, neste país, ainda vige o direito de ir e vir.

Sem falar que prostituição não é crime.

terça-feira, abril 22, 2008
 
SOBRE MALAS


Os Estados Unidos é um país ao qual certamente jamais vou voltar. Não que lhe faltem atrativos. Mas isso de tirar sapatos para entrar num país exclui definitivamente esse país de meus roteiros. Certa vez, no Cairo, deixei de visitar uma das mais deslumbrantes mesquitas do mundo islâmico, a Al Azhar, famosa por seus dois minaretes. Eu já ia entrando de pés descalços, como faço em qualquer mesquita, quando dois leões-de-chácara, postados no pórtico de entrada, quiseram requisitar meus sapatos. Olhei para a cara dos dois e senti que não os reveria se não pagasse bakshisha. Preferi dar meia volta e preservar meus sapatos.

Um outro fator me afasta dos Estados Unidos, a espera de visto. Me consta que, atualmente, é de 88 dias. Está mais difícil do que entrar na Rússia, que apesar do desmoronamento do comunismo, ainda conserva a antiga burocracia. Ora, eu não espero três meses por um visto. Ando com muita vontade de conhecer o México. Mas, pelo que li há pouco nos jornais, o México está fora de cogitação. Para conseguir-se o visto, é preciso fazer fila na véspera. Ora, isso fere minha dignidade. Não vou entrar numa fila na madrugada para conseguir senha no dia seguinte e esperar em pé mais quatro ou cinco horas para receber um carimbo no passaporte. Viajar está ficando complicado, pelo menos para certos países. O México, que adoraria conhecer, está ficando muito longe. Que fique! Sempre há Paris, Roma e Madri para me regalar.

Dito isto, leio notícia proveniente dos Estados Unidos que me soa simpática. Cinco das seis grandes linhas aéreas americanas pensam cobrar de seus clientes 25 dólares por uma segunda mala. Para a companhia de baixos custos, a AirTrain, a partir do 15 de maio, a tarifa por uma terceira maleta será de 50 dólares. Se por um lado isto aumenta os lucros das empresas, permite economizar em gastos de combustível. Lucros e combustível à parte, a idéia me agrada. Ninguém precisa viajar com duas malas. Uma é mais que suficiente. E digo mais: a mala há de ser pequena, para conforto do viajante.

Segundo o New York Times de hoje, esta medida se deve aos máximos históricos do preço do combustível. Há males que vêm para o bem. A brasileirada vai chiar. Quando vejo num aeroporto internacional um passageiro com um carrinho com quatro ou cinco malas enormes, intuo que é brasileiro. Me aproximo do caipira só pra conferir se ele fala brasileiro. Sempre fala. Esse viajante deveria ser proibido de embarcar. Para que quatro ou cinco malas em uma viagem? Que levam essas gentes nessas quatro ou cinco malas? Coleções de ternos, vestidos, sapatos? É preciso ser muito estúpido para viajar com quatro ou cinco malas.

Foi Erico Verissimo quem me alertou, há mais de quatro décadas: para uma viagem confortável, mala pequena e sapatos leves. A vida me ensinou algo mais. Os sapatos não devem ser comprados na véspera da viagem. Precisam ser sovados antes da partida. Uma viagem com sapatos desconfortáveis se torna uma tortura.

Para viagens de um mês, costumo viajar com uma maletinha de oito quilos. Pode ser que volte com uns quinze, ou até mais, livros sempre pesam. Mas parto com oito. Duas calças, quatro ou cinco camisas, meias, cuecas e... para que mais? Se for inverno, o casaco vai na mão. Isto torna a viagem mais ágil, nem é preciso perder tempo na esteira de bagagens. Sem falar que você fica a salvo de um acidente nada agradável em uma viagem, o extravio de bagagem.

A Iberia, por sua vez, aumentou de 20 para 23 quilos o mínimo permissível de bagagem sem custos extras. Vá lá. Mas acho excessivo. Essas montanhas de malas são herança de uma época em que havia carregadores nos aeroportos da Europa. Hoje, eles não existem mais. Você que se vire. Devo confessar que levo sempre uma segunda maletinha. É uma sacola de ombro, que comporta uns três quilos. Serve para minhas viagens interiores na Europa. Nada melhor que entrar em um trem com uma sacolinha de ombro.

É o que farei daqui a uns vinte dias.

segunda-feira, abril 21, 2008
 
BRASIL, NAÇÃO DE EXCOMUNGADOS



Brasileira que aborta é católica, casada, trabalha e tem filho – diz em manchete o Estadão deste domingo passado. Este perfil foi traçado por pesquisas da Universidade de Brasília e pela Universidade Estadual do Rio (UERJ, com apoio do Ministério da Saúde e Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). O dado a meu ver mais importante do estudo é que 46,4 % das mulheres que abortam são católicas. Isto constitui um alerta significativo para uma igreja que se opõe de unhas e dentes à prática do aborto.

A Igreja gabava-se de ter um rebanho de mais de um bilhão de crentes no mundo todo. Mas que significa ser católico hoje? Em crônica de inícios do ano passado, eu comentava uma pesquisa publicada pelo Le Monde des Religions, suplemento do jornal francês Le Monde, segundo a qual, entre os franceses, só um entre dois católicos crê em deus. Segundo o estudo, se a imagem da Igreja e do papa continuam boas, a esmagadora maioria dos fiéis toma distância em relação ao dogma e permanece aberta ao diálogo com outras religiões. Que significa ser católico? -, perguntava-se o jornal. Ir à missa? Ser batizado? Levar os filhos ao catecismo? A estas definições institucionais, os pesquisadores preferiram uma definição sociológica: é católico todo aquele que se declara como tal.

Mais ou menos algo como pertencer a um clube de futebol. As pessoas estufam o peito ao se definiram como corintianos ou gremistas, mas isto pouco ou nada afeta suas vidas. Comentei na ocasião que católicos são crentes que há muito não se confessam nem comungam, muito menos vão a missas. Comparecem à igreja em ocasiões especiais, tipo batismo ou casamento, eventualmente uma missa do galo. Tampouco lêem a Bíblia. Se lhes perguntarmos o que significa a palavra “católico”, não sabem responder. Crêem vagamente num deus que, teoricamente, premia os justos e castiga os maus, embora o dia-a-dia mostre justamente o contrário. Se o papa condena o aborto, são contra o aborto. Pelo menos enquanto a filha adolescente não engravidar de um marginal. Se o papa condena o homossexualismo, eles também condenarão o homossexualismo. Desde que não tenham um filho ou filha homossexual, é claro. Se interrogados sobre sua religião, dirão sem hesitar: “sou católico”. Mas não têm idéia alguma do deus no qual dizem crer, muito menos dos dogmas da igreja que seguem. Católico é palavra que serve para responder formulários por default. Declaram-se católicos, apenas isto.

Estas mães brasileiras que abortam certamente ignoram que estão, ipso facto, incursas na pena de excomunhão. Esta punição canônica, de modo geral, se aplica geralmente a questões de fé, tais como apostasia, heresia, cisma, profanação das espécies consagradas, violência física contra o Romano Pontífice, absolvição do cúmplice, consagração episcopal sem mandato pontifício, violação do sigilo sacramental, tentativa de celebração da Eucaristia ou de absolvição sacramental e violação do sigilo sacramental. Mas um cânon especial, o 1398, é dedicado ao aborto: Qui abortum procurat, effectu secuto, in excommnicationem latae sententiae incurrit.

Ou seja, quem provoca o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae. O Código Canônico vai mais longe. Segundo o comentário ao cânon 1398, nenhuma exceção é feita quanto aos motivos do aborto. A excomunhão atinge, portanto, também os que realizam o aborto no caso de estupro da mulher, de deformidades do feto ou de perigo de vida da mãe. E atinge por igual a todos os que, a ciência e consciência, intervêm no processo abortivo, quer com a cooperação material (médicos, enfermeiras, parteiras, etc), quer com a cooperação moral verdadeiramente eficaz, como o marido, o amante ou o pai que ameaçam a mulher, obrigando-a submeter-se ao procedimento abortivo.

Ou seja, segundo o Código Canônico, uma boa metade dos católicos brasileiros está excomungada. Seria oportuno que a Santa Madre revisasse suas cifras quando calcula o número das ovelhas de seu redil em terras brasílicas.

Mas não se preocupem os excomungados. Seus nomes não irão para a Serasa, não serão privados de direitos de cidadão e, salvo raríssimas exceções, dificilmente irão para o cárcere. As penas que atingem o excomungado são de outra natureza. A excomunhão é uma censura pela qual se exclui a alguém da comunhão dos fiéis e não pode consistir mais que na privação dos bens de que dispõe a Igreja, isto é, os bens espirituais ou anexos aos espirituais, mediante os quais a Igreja ajuda os fiéis, em nome de Deus, a conseguir a salvação. Por isso, a exclusão da comunhão dos fiéis representa um significado eminentemente canônico, isto é, a privação de todos os meios de que dispõe a Igreja e a comunidade dos fiéis para a salvação. A excomunhão proíbe receber os sacramentos, exceto a penitência e a unção dos enfermos, e celebrar ou administrar os sacramentos e sacramentais.

Quer dizer, nada que tire o sono de uma mulher que praticou o aborto, de um marido que o recomendou ou dos médicos e enfermeiras que dele participaram. A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana vai encarar esta realidade?

Eu diria que não.

domingo, abril 20, 2008
 
LE FOND DE L'AIR EST ROUGE



Quando sou convidado para falar em alguma universidade, costumo iniciar com uma pergunta: que aconteceu no dia 09 de novembro de 1989? Professores ou alunos, ninguém sabe responder. Em minha última palestra, em Guarapuava, no Paraná, um professor soube. Ele era italiano. Brasileiros nem têm idéia do que aconteceu nessa dia, certamente a mais importante do século passado.

No Estadão de hoje, Gaudêncio Torquato confirma minha observação: "Muitos dos 2,5 milhões de professores de educação básica, lecionando nas 200 mil escolas públicas do País, ainda não tomaram conhecimento de que o Muro de Berlim desmoronou".

O articulista se refere a professores de educação básica. Mas se observasse o que ocorre no mundo acadêmico, constataria que a miséria é a mesma. Dos anos 60 para cá, sempre houve uma predominância do pensamento comunista na imprensa e na universidade brasileiras. Enquanto a Europa festejava o 09 de novembro como a segunda revolução do século, no Brasil as viúvas do Kremlin carpiam a derrubada daquele símbolo da ignomínia de um século marxista.

Le fond de l'air est rouge, diziam os meninos burgueses que vandalizaram Paris em 1968. Isto é, o fundo do ar é vermelho. Quatro décadas depois de Maio 68, duas décadas depois da queda do Muro, no Brasil o fundo do ar continua sendo vermelho.

sábado, abril 19, 2008
 
A IGREJA E A CONIVÊNCIA
COM PRÁTICAS PEDÓFILAS




Leio no noticiário on line que a Igreja Católica está estudando introduzir mudanças nas leis canônicas aplicadas aos sacerdotes que cometem abusos sexuais contra crianças. O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal William Levada, mencionou essa possibilidade de reforma do código canônico durante um almoço em Nova York com os editores da revista Times.

Ora, o Código Canônico já prevê punições para este tipo de crime e se a Igreja não as aplicou é porque não houve determinação de aplicá-las. Verdade que não são sanções graves, privativas de liberdade, mas de qualquer forma prevêem a demissão do estado clerical. Diga-se de passagem, para a Igreja até mesmo o matrimônio constitui delito. No título V do livro VI do Código Canônico, que trata dos Delitos contra Deveres Especiais, lemos:

Cân. 1394 - § 1. Salva a prescrição do cân. 194 § 1 nº 3, o clérigo que tenta matrimônio, mesmo só civilmente, incorre em suspensão latae sententiae; e, se, admoestado, não se recuperare persistir em dar escândalo, pode ser gradativamente punido com privações ou até mesmo com a demissão do estado clerical.

§ 2. O religioso de votos perpétuos, não-clérigo, que tenta matrimônio, mesmo só civilmente, incorre em interdito latae sententiae, salva a prescrição do cân. 694.

Cân. 1395 - § 1. O clérigo concubinário, exceto o caso mencionado no cân. 1394, e o clérigo que persiste no escândalo em outro pecado externo contra o sexto mandamento do Decálogo sejam punidos com suspensão. Se persiste o delito depois de advertências, podem-se acrescentar gradativamente outras penas, até a demissão do estado clerical.

§ 2. O clérigo que de outro modo tenha cometido delito contra o sexto mandamento do Decálogo, se o delito foi praticado com violência, ou com ameaças, ou publicamente, ou com menor abaixo de dezesseis anos, seja punido com justas penas, não excluída, se for o caso, a demissão do estado clerical.


O Código Canônico prevê punições para os crimes sexuais dos sacerdotes, e particularmente para os casos de sexo com menores. Mas não temos notícias de que alguma autoridade eclesiástica tenha privado os milhares de padres pedófilos de seus estados clericais. O máximo que se vê são transferências de paróquia, o que permite inclusive ao padre relapso encontrar carne nova para satisfação de sua lascívia. Ou seja, a Igreja sempre foi conivente com a pedofilia, já que instrumentos para combatê-la não lhe faltam.

Ainda hoje, em Nova York, na homilia proferida na catedral de Saint Patrick, Bento XVI arengou para 30 mil jovens, aconselhando-os a afastar-se das armadilhas da droga e do materialismo e buscar a verdade sobre a vida. Melhor faria se os aconselhasse a afastar-se dos sacerdotes católicos.

sexta-feira, abril 18, 2008
 
EÇA DE QUEIROZ E O GENERAL HELENO



Comentei semana passada, a palestra do general Augusto Heleno proferida no Clube Militar, no Rio, sobre os conflitos de Roraima, uma das raras vozes sensatas a pronunciar-se sobre o assunto. O Supremo Apedeuta não gostou e está cobrando explicações do general. Em encontro realizado ontem com o presidente e outros colegas de arma, o general insistiu:

"Pela primeira vez estamos escutando coisas que nunca escutamos na história do Brasil. Negócio de índio e não-índio? No bairro da Liberdade, em São Paulo, vai ter japonês e não-japonês? Só entra quem é japonês? Como um brasileiro não pode entrar numa terra porque é terra indígena?", disse.

Desde há muito brasileiros não podem entrar em territórios indígenas. O mapa do Brasil está virando uma espécie de mapa de Israel, todo salpicado de bolhas árabes e hostis. Quando alguém mostra que o rei está nu, a corte toda se escandaliza.

Estamos caminhando a passos céleres rumo à desintegração territorial do país. Em meu ensaio sobre a questão indígena, Ianoblefe, citei Eça de Queiroz, que já em 1890 previa o fim disto que se chama Brasil.

Com o império, segundo todas as probabilidades, acaba também o Brasil.

Este nome de Brasil, que começava a ter grandeza, e para nós portugueses representava um tão glorioso esforço, passa a ser um antigo nome da velha Geografia Política. Daqui a pouco, o que foi o Império, estará fraccionado em Repúblicas independentes, de maior ou menor importância. Impelem a este resultado a divisão histórica das províncias, as rivalidades que entre elas existem, a diversidade do clima, do caracter e dos interesses, e a força das ambições locais. Já mais de uma vez as províncias têm feito enérgicas tentativas de separação: e o separatismo tornara-se, nestes derradeiros tempos, um dos mais poderosos factores da Política.

O Brasil, além disso, não está forçado a conservar-se unido pelo receio de ataques ou represálias duma metrópole forte, de que acabasse de se emancipar, nem tem possibilidades algumas de aspirar, como os Estados Unidos, a uma supremacia política ou econômica de que a unidade seria a inevitável condição. Nenhuma das razões que impuseram a união aos Americanos do Norte, se dão no Brasil. Por outro lado, há absoluta impossibilidade que de que S. Paulo, a Baía, o Pará, queiram ficar sob a autoridade do general fulano ou do bacharel sicrano, Presidente, com uma corte presidencial no Rio de Janeiro. Para que isso se realizasse, mesmo por alguns meses, seria necessário que surgisse um homem (que não há) de popularidade universal, incontestada e irresistível em todo o Império, como a de um Washington. Os Deodoros da Fonseca vão-se reproduzir por todas as províncias. Já decerto em Mato Grosso há um Deodoro que afivela a espada. Ora, a condição de popularidade, para estes ambiciosos, será proclamar o exclusivismo dos interesses provinciais; e já disto mostra sintomas o presidente do Pará, querendo fechar a navegação do Amazonas.

Os Estados, uma vez separados, não poderão manter paz entre si, sendo abundantes os motivos de conflitos - as delimitações de fronteiras, as questões hidrográficas e as alfândegas com que todos, naturalmente, se hão-de querer criar rendimentos. Cada Estado, abandonado a si, desenvolverá uma história própria, sob uma bandeira própria, segundo o seu clima, a especialidade da sua zona agrícola, os seus interesses, os seus homens, a sua educação e a sua imigração. Uns prosperarão, outros deperecerão. Haverá talvez Chiles ricos e haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum grande Império!

 
MEUS EBOOKS



Meus livros em versão eletrônica podem agora ser baixados de http://www.scribd.com. Basta entrar com Cristaldo na ferramenta de busca. Se entrar com ebooksbrasil, encontrará todas as publicações da ebooks. Lá você vai encontrar

Laputa

Ponche Verde

Como ler jornais

A vitória dos intelectuais

Flechas contra o tempo

A indústria textil

Crônicas da Guerra Fria

Engenheiros de almas

Ressentidos de todo mundo, uni-vos

Qorpo Santo de corpo inteiro

Elecrônicas

Ianoblefe


E também um de meus últimos ensaios, Nosso jardim em Toledo, que saiu publicado no nº 15 dos Cahiers Octave Mirbeau, Angers, França.

quinta-feira, abril 17, 2008
 
MAGNÍFICOS NA BERLINDA



"Eu me equivoquei. Achava que era como uma diária, um dinheiro que você bota no bolso e não tem de explicar. Errei por falta de informação”. Esta foi a esfarrapada justificativa dada aos jornais pelo reitor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Ulysses Fagundes Neto, 62, que usou R$ 12 mil do cartão corporativo em compras pessoais no exterior.

Segundo a Folha de São Paulo, de 2006 até janeiro de 2008, ele gastou R$ 84,8 mil do cartão. Durante a Copa do Mundo de 2006, foram R$ 2.473 em lojas da Nike e da Adidas na Alemanha. Na Espanha, comprou R$ 1.411 em cerâmicas. Nos EUA, mais R$ 5.084 em produtos eletrônicos. E na China, outros R$ 2.035 em malas.

O reitor faz uma importante correção ao sórdido noticiário que a imprensa vem veiculando. "Falam que comprei malas nos Estados Unidos. Não foi. Foi na China. E comprei porque as minhas arrebentaram em Hong Kong. E esse [R$ 2.035] é o preço da Samsonite."

As denúncias de corrupção estão invadindo o Santo dos Santos, comentei outro dia. Desde há décadas, a imprensa tem denunciado corrupção no Congresso, no Executivo e no Judiciário, nos governos de Estado, nas prefeituras, no sistema bancário, em cooperativas. Só a universidade pública permanecia incólume. O piparote inicial começou com Timothy Mulholland, reitor da Universidade de Brasília, que gastou R$ 470 mil para mobiliar seu apartamento funcional e mais R$ 70 mil em um carro de luxo. Isso sem falar em um singelo saca-rolhas de 849 reais e três modestas cestinhas de lixo a mil reais cada. Ora, direis, um Magnífico Reitor deveria ter direito a magníficos saca-rolhas e magníficas cestinhas de lixo.

Neste nosso país incrível, quando se descobre um resquício de corrupção, basta cavoucar um pouco mais para se descobrir que a prática é generalizada. Ingênuo é quem acha que apenas dois reitores se julgaram no direito de embolsar dinheiro público para financiar luxos pessoais. “Não é que eu me arrependa – diz Fagundes Neto – é que eu não fiz por má-fé. As regras não eram claras, principalmente em 2006. O ano foi muito confuso".

Se não fez por má-fé, então tudo bem. Para Fagundes Neto, este fator o absolve. Diz ter devolvido os 84,8 mil reais aos cofres públicos e estamos conversados. O Magnífico não vê sentido nenhum em punição, afinal já está sofrendo uma punição moral. E parece estar pretendendo criar uma nova figura jurídica, o roubo sem má-fé.

Fagundes Neto está profundamente magoado. Teve de dar explicações até para a mamãe. “Isso está maculando minha vida pessoal, não a minha vida acadêmica. O que tem acontecido é que, em minhas relações, tenho de dar satisfações. As pessoas me cobram, às vezes, até de forma irônica. E tive de falar para a minha mãe, uma coisa difícil".

De fato, não deve ser fácil explicar a uma pobre mãe o gasto de 84,8 mil reais em vilegiaturas pela Alemanha, Espanha, Estados Unidos e China.

Em meus dias de Paris, cansei de ver esta farra. Reitores e vice-reitores comendo e bebendo à tripa forra, às custas do contribuinte. Sim, sempre havia um vago pretexto acadêmico, a visita a uma universidade, o acordo com alguma instituição de pesquisa, a participação em algum congresso. Isso sem falar nas centenas de professores que vão a Paris ou Londres para estudar a obra de Machado de Assis ou Nelson Rodrigues. Por quatro ou mais anos, permanecem às margens do Sena ou do Tamisa redigindo calhamaços que ninguém vai ler, nem mesmo a banca que os avaliza. Li há algum que já há um problema de espaço físico para o armazenamento dessas teses no Brasil. A meu ver, deveriam ser exportadas para a Holanda. Para a construção de diques.

Muitos destes professores são acadêmicos em idade já provecta que, uma vez obtido o título de doutor – quando o obtêm – rumarão direto à aposentadoria. O doutorado deixa então de ser um instrumento de aprendizado e ensino, para constituir uma espécie de prêmio a um geronte.

A corrupção no mundo acadêmico é muito mais generalizada do que nossa vã filosofia imagina. Os dois reitores pegos em flagrante são apenas um tiquinho da ponta do iceberg. Os jornalistas, sempre tão árdegos em denunciar políticos, bem que podiam assestar suas penas contra as universidades.

Enfim, antes pouco do que nada. Dois Magníficos na berlinda já é notícia estimulante. Basta agora seguir a trilha. Afinal, ninguém é suficientemente crédulo para imaginar que os milhares de Magníficos do país usem seus cartões corporativos apenas para gastos inerentes ao ofício.

terça-feira, abril 15, 2008
 
SUA SANTIDADE INSISTE
EM PROFERIR BOBAGENS



Durante sua viagem aos Estados Unidos, ainda no avião que o transportava, sua santidade Bento XVI disse estar “profundamente envergonhado” pelos casos de pederastia da Igreja Católica nos Estados Unidos. Estou usando a palavra pederastia porque colhi a notícia no jornal madrilenho El País. É como os espanhóis chamam a pedofilia. Esta palavra é evitada na Espanha, pois teria uma conotação completamente diferente e exótica.

Tarde piou o papa. Quando cardeal, foi notório o seu empenho no acobertamento dos padres pedófilos. Tampouco não temos notícia de qualquer punição de um tribunal eclesiástico. As punições, se assim podem ser chamadas, não passaram de transferir o padre devasso para uma outra paróquia. A mesma leniência não tiveram os tribunais americanos, que condenaram as dioceses ao pagamento de milhões de dólares.

No ano passado, a Corte Superior de Los Angeles ratificou o maior acordo já pago por uma diocese católica nos Estados Unidos a 508 pessoas que sofreram abusos sexuais por parte de sacerdotes: 660 milhões de dólares em indenizações. Para poder desembolsar tais cifras, a Igreja teve de vender várias propriedades. Vários padres foram condenados e cinco bispos e arcebispos declararam falência ante a impossibilidade de indenizar em dinheiro os danos.

O escândalo veio à tona em 2002, em Boston (Massachusetts), onde mais de 500 supostas vítimas de abusos apresentaram queixas. O caso acabou com a entrega de 85 milhões de dólares aos querelantes. Em dezembro do mesmo ano, a arquidiocese aceitou desembolsar 60 milhões de dólares para chegar a um acordo com 45 supostas vítimas de padres pedófilos. Em 2004, a diocese de Orange (Califórnia) pagou 100 milhões de dólares para encerrar 90 processos e, em 2005, a também californiana Oakland entregou 56 milhões a suas 56 vítimas. Em 2006, a diocese de Convington (Kentucky) pagou 84 milhões de dólares a 350 vítimas de abusos.

“Excluiremos absolutamente a pedofilia – ou pederastia, como preferem os espanhóis - do Ministério sagrado”, disse o Pontífice aos jornalistas que viajavam no interior do avião. “Estamos profundamente envergonhados e faremos todo o possível para que isto não ocorra no futuro”.

É um propósito prudente, ou o Vaticano arrisca ir à falência. Seja como for, o “faremos todo o possível” do papa soa como palavras vãs. Bento XVI é radicalmente contra a abolição do celibato clerical. E enquanto os sacerdotes se mantiverem célibes, vai sobrar para os coroinhas e crianças próximas.

segunda-feira, abril 14, 2008
 
CLASSE MÉDIA SE PROTEGE



Comentando a affaire Isabella, sábado passado eu afirmava que pais matando filho é algo bastante normal. Principalmente entre índios, onde até mesmo a Funai considera que se trata de uma condição cultural e é portanto perfeitamente admissível. Os bugrinhos podem ser afogados, enforcados ou enterrados vivos. O que não se admite é que uma menina branca, bonitinha e sorridente, seja assassinada por dois pais de classe média. Isto mexe com medos interiores.

Bom, no Estadão de ontem, leio oportuna reportagem sobre outros casos de crianças mortas que seguem sem solução. Outros pais que perderam os filhos se queixam da lentidão nas investigações, falta de laudos e descaso da polícia. Estes pais não se conformam. Enquanto o caso Isabella mobiliza a polícia de São Paulo há 15 dias, mães de outras crianças assassinadas reclamam que os crimes cometidos contra seus filhos não têm o mesmo tratamento, ou seja, que os policiais trabalham com lentidão. Afirmam ainda que a perícia foi feita no máximo uma vez - no caso de Isabella já foram sete - e que os laudos científicos se arrastam por meses até ficarem prontos. Para os pais, o motivo da diferença é que a família de Isabella é de classe média.

Foi o que afirmei na crônica anterior. Além de serem os pais de classe média, o crime ocorreu em São Paulo. São Paulo é um grande tambor. Ocorresse o crime em Cacimbinhas ou Tucunduva, é claro que não comoveria ninguém. Como não comove ninguém o assassinato sistemático de crianças índias indesejadas pelos pais.

Por falar em Tucunduva, a delegada Cintia Tucunduva, do Grupo Especial de Crimes contra Crianças e Adolescentes, diz que não é bem assim. A delegada nega tratamento diferenciado nas investigações por causa do poder aquisitivo. “Tanto é que a maioria das pessoas que atendemos é humilde”, justifica. Neste ano, a delegacia investigou 38 casos. Em 16 deles, os culpados foram presos.

Ou seja, 22 casos permaneceram sem solução. Uma mãe reclama que o assassinato de sua filha, ocorrido há sete anos, continua sem solução. “Se minha filha tivesse outra posição social, a morte teria sido esclarecida. Tenho certeza disso porque sempre fui maltratada quando busquei respostas na polícia”, diz Francisca Rosemeire Gomes, de 42 anos, mãe de Priscila, assassinada aos 15.

Francisca tem em parte razão. Mas apenas em parte. O que está em jogo não é apenas sua condição social. Mas o fato de a imprensa privilegiar certos crimes. Menina linda, charmosa e bonitinha comove mais a opinião pública do que uma outra menina sem tais atributos. Os jornais se acirram na divulgação do crime. A opinião pública se excita. A polícia sente-se obrigada a dar uma resposta à opinião pública.

O assassinato de Isabella será logo esclarecido. É crime de fácil solução. O espantoso é ver-se, cá e lá, pessoas tomando posições em defesa dos óbvios assassinos. E tem mais: uma vez esclarecido o crime, se verá que há mais pessoas implicadas além dos dois criminosos. Uma conspiração foi montada para acobertar dois celerados.

A classe média é unida e se protege.

domingo, abril 13, 2008
 
LIBERDADE E SUAS COMPLICAÇÕES



Um amigo gaúcho, mais avançado em idade do que eu, diz ter lido entrevista de uma bióloga especializada em neurociência, na qual ela cita uma frase de Fernando Pessoa: "Não ter Deus, é um Deus também". Continua o gaúcho:

“Como estou num estágio de minha vida com dúvidas a propósito da existência de Deus (estou com quatro livros sobre ateísmo, lendo-os aos poucos e simultaneamente, e acompanhando e apreciando teus escritos sobre o assunto, bem como trocando idéias com um estudante de psicologia ateu convicto), confesso que a citação de Pessoa me deixou preocupado, para dizer o mínimo... Tomei a liberdade de expor-te a questão, buscando orientação e/ou conselho... (de antemão desculpando-me pela talvez impropriedade do proposto). Agradecendo pela atenção, apreciaria teu comentário”.

Bom, para começar eu nunca entendi muito bem o que seja neurociência. A palavra me lembra Lair Ribeiro, um parlapatão que foi guru do Collor de Mello. Ou seja, não vejo muita distância entre neurociência e charlatanismo. Em segundo lugar, é muito estranho que uma bióloga chame um poeta para justificar seus raciocínios. Biologia é ciência. Poesia é delírio. Com todo o apreço que tenho pelo Pessoa: não se pode tomar como verdades as afirmações de um poeta.

Por outro lado, penso que há uma idade para se duvidar da existência de Deus. Isto deve ser resolvido na juventude. Descrer já em idade provecta nos leva à conclusão que nossa vida toda foi uma grande perda de tempo. Há algumas décadas, eu conversava com um padre de 60 anos, que havia descoberto que a idéia de deus não passava de um grande embuste. Ele pegou minhas mãos, encostou o rosto sobre elas e balbuciou: “roubaram minha vida”. Chorava. Que podia eu dizer àquele coitado? A Igreja lhe roubara o gozo dos prazeres da vida e agora já era tarde para recomeçar. Era homem que não conhecera mulheres. Conhecer uma mulher aos sessenta? Até pode ser. Mas é tarde demais.

Não acho que não ter Deus é um Deus também. Eu não tenho deus nenhum. Nem esse outro deus ao qual se referia o poeta. Mas considero o ateu militante como uma contradição ambulante. Se Deus não existe, por que lutar contra ele? Não tenho nenhuma simpatia por esse tipo de gente. Acho que eles estão doidinhos para crer num outro deus.

A este internético amigo, não tenho orientação ou conselho algum. Questões de fé são questões particulares que cada um deve resolver, no silêncio de sua consciência. Quanto mais cedo, melhor. Só posso dizer que o tal de deus não me faz falta nenhuma. Só serviu para perturbar minha vida quando jovem. Quando me desvencilhei dele, senti uma extraordinária sensação de liberdade. Nasci ateu, como nascemos todos. Este é o estado natural do ser humano. A educação é que nos torna crentes.

Minha libertação ocorreu lá pelos 16 ou 17 anos. Deixei de acreditar em Deus ao ler atentamente a Bíblia. Aqueles vários deuses dos quais o Livro fala – pois eles não são um só – só podia ser construção humana. Isso sem falar nos massacres, guerras e genocídios que Jeová ordena. Esse vídeo que escandaliza os muçulmanos na Europa – Fitna – é fichinha diante das atrocidades ordenadas pelo deus judaico-cristã. Confesso desconhecer livro que transpire tanto sangue e ódio como a bíblia cristã.

Em minha adolescência, fui submetido a uma religião de sexto e nono mandamentos. O grande pecado era o sexo. Este foi outro fator que me afastou do tal de deus. Não podia entender como algo tão prazeroso pudesse ser condenável. Primeira providência ao tornar-me ateu: parti em busca frenética de sexo, para recuperar o tempo perdido.

De lá para cá, tenho vivido muito bem meus dias. Más vale un gusto do que cien pesos – dizem os platinos. Eu diria que mais vale um prazer que uma religião. As religiões todas, sem exceção, são exercícios de poder sobre os indivíduos. Servem como uma luva a quem não gosta de liberdade. E estes são legião. Liberdade é algo muito complicado. As pessoas têm de tomar decisões. Há muita gente que não gosta disso. Melhor portar um jugo.

sábado, abril 12, 2008
 
EXORCIZANDO TEMORES


Ontem foi um dia agitado em meu bairro. Durante boa parte da tarde, dois helicópteros torraram a paciência de quem mora aqui. Ocorre que, numa delegacia das proximidades, foi libertado por habeas corpus Alexandre Narboni, um dos suspeitos do assassinato de sua filha, a menina Isabella. Sua mulher, a madrasta, também foi libertada, mas no Morumbi. Suponho que por lá o escândalo tenha sido igual. Mero exibicionismo da polícia. Para acompanhar a libertação de suspeitos de um crime comum, exibem um aparato que só teria sentido com um capo mafioso. O mesmo aconteceu há uns dez anos, com o juiz Lalau, acusado de corrupção na construção de um prédio da Justiça do Trabalho. Para prender um velhote debilitado pela idade, a polícia encheu a cidade de helicópteros.

Esta vaidade policialesca, até que entendo. Policiais adoram mostrar à imprensa que estão trabalhando. O que é difícil entender são as centenas de pessoas que se aglomeram nas portas de delegacia para gritar por justiça e chamar o casal de assassinos. Assassinos? Certamente. Pelo jeito, um matou e outro tentou acobertar o crime. Pelo que se sabe a partir das reportagens, houve mais envolvidos nesta história sórdida. Ao que tudo indica, a irmã de Narboni teve conhecimento do crime e também seus pais. Se não denunciaram o crime, são cúmplices.

O que não entendo é esta gente que vai às portas de delegacias pedir justiça. Certo, o crime é revoltante. Mas jamais me ocorreria abandonar o conforto de minha casa para ir até uma delegacia com o intuito de xingar dois criminosos. Crimes ocorrem aos montes, todos os dias, em São Paulo. Ninguém sai de suas casas para insultar criminosos. Que está acontecendo nesta affaire Isabella?

Em primeiro lugar, o fator criancinha. Criancinha sempre comove. Ainda mais quando é branca, linda e fotogênica. Se a vítima fosse uma negrinha desdentada de favela, certamente não provocaria comoção nacional. Em segundo lugar, os pais são de classe média paulistana. Fossem uns pobres diabos interioranos, tampouco provocariam comoção nacional. Esta reação da opinião pública parece evocar um certo medo interior: seria eu capaz de matar um filho?

Reportagem da Folha de São Paulo de amanhã mancheteia:

CRIANÇA DEVE SER POUPADA DO NOTICIÁRIO DE VIOLÊNCIA

Diz a linha fina:

Psicólogos e educadores aconselham pais a não exporem filhos a casos como o de Isabella

O que querem dizer estes senhores? Que o noticiário é prejudicial a infantes. Que estes devem ser poupados do que acontece em torno a eles. “Tenho pedido aos pais – diz a diretora de uma escola – que não deixem as crianças verem as notícias do caso. Quando os alunos falam sobre isso, tento desconversar e falar de outro assunto”.

Política de avestruz. Educadores não querem que seus educandos saibam que pais podem matar filhos. Ocorre que pais matando filho é algo bastante normal. Principalmente entre índios, onde até mesmo a Funai considera que se trata de uma condição cultural e é portanto perfeitamente admissível. Os bugrinhos podem ser afogados, enforcados ou enterrados vivos. O que não se admite é que uma menina branca, bonitinha e sorridente, seja assassinada por dois pais de classe média. Isto mexe com medos interiores.

Daí este monte de gente se aglomerando em frente a delegacias para exorcizar seus próprios temores.

sexta-feira, abril 11, 2008
 
AVENTURAS DE UMA NOITE DE VERÃO


Um amigo me escreve: “Eu sou um seguidor do Cristaldo. A filosofia dele é: não uso nada, só bebo vinho e cerveja. E eu também!” Em verdade, tenho tomado distância até mesmo da cerveja. Claro que uma Leffe sempre vem bem. Posso até encontrá-las em São Paulo. Mas sub especie garrafa. A meu ver, a Leffe tem de ser sur pression. É o que vou degustar mês que vem, nos cafés de Paris e Bruxelas.

Diria que sou um dos raros espécimes de minha geração a não ter apelado às drogas. Sempre fui muito individualista e a primeira coisa que não me agradava nos usuários das drogas era seu jeitão de rebanho. De modo geral, só se drogavam em grupo. Parecia mais culto que gosto. É possível que hoje as coisas sejam diferentes, mas na época – anos 70 – droga era prática grupal.

Para não dizer que nunca bebi desta água, em 71, talvez 72, em Estocolmo, dei duas tragadas de haxixe. Brasileiros me convidaram para uma festinha, num apartamento ao lado do meu. Meio a contragosto - o que eu menos queria encontrar na Suécia era brasileiros - fui até lá. Os patrícios eram dezoito.

Todos siderados, consideravam a suprema manifestação de liberdade puxar fumo Livremente. Havia mais três suequinhas, lá pelos seus 15 ou 16 anos. Todos sentados no chão, todos fumando. Ninguém falava. Me passaram a bagana. Para não bancar o estraga-prazeres, dei uma tragada. Não gostei. O cachimbo passou de novo, dei uma segunda tragada. Prazer nenhum.

Ora, eu era naquele grupo o único a falar sueco. Uma das meninas me interpelou:

- Vocês, brasileiros, são todos assim?
- Como assim?
- Não conversam, só fumam e falam com o próprio umbigo.

Comecei esclarecendo que não era exatamente brasileiro, mas gaúcho. O que era um pouco diferente. E que preferia falar com seres humanos a falar com meu umbigo. Apesar do alto preço do vinho, eu sempre tinha algumas botellitas em meu apartamento. Se a maconha era livre em Estocolmo, o álcool sempre constituía pecado. Convidei as meninas para pecar chez moi.

Elas adoraram a idéia. Começaram a despedir-se dos panacas. Um carioca, achando que me fazia uma gentileza, me alertou: "olha, elas estão saindo, vai em cima". Ora, eu já fora. Saí abraçado com as meninas e - já ia dizer - bebemos até o amanhecer. Não, não bebemos até o amanhecer.

Porque no verão sueco não amanhece nunca, é sempre dia.

quinta-feira, abril 10, 2008
 
BALCANIZAÇÃO DO BRASIL



Lá de vez em quando surge uma voz sensata na imprensa a anunciar o óbvio. Leio no Estadão que o comandante do Exército na Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, advertiu ontem que o Brasil está caminhando para perder parte de Roraima, por causa da demarcação de terras indígenas. “Roraima está acabando, porque o território indígena é maior que o do Estado”, disse o general, depois de criticar a política indigenista brasileira que, em sua avaliação, “está na contramão da sociedade, conduzida à luz de pessoas e ONGs estrangeiras”.

Hoje, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram, por unanimidade, manter a suspensão da ação da Polícia Federal na reserva indígena Raposa do Sol, em Roraima, rejeitando o recurso da Advocacia-Geral da União (AGU) que solicitava a revogação. Na sustentação oral do recurso, o advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli, argumentou que a suspensão da ação policial determinada ontem pelo STF "pode causar situação de clamor". Segundo ele, "há informações dos próprios índios relatando situação de conflito que pode se tornar iminente".

O relator da ação cautelar, Carlos Ayres Britto, manteve o mesmo argumento de ontem, de que a área em conflito representa apenas 1% do território da reserva indígena, enfatizando que cabe à Polícia Federal evitar o confronto entre índios e não-índios.

Tarde piaram os ministros, tarde piou o general. O Brasil, graças à ação de ONGs ianques e britânicas, caminha a largos passos para sua desintegração territorial. O problema é anterior ao conflito em Raposa Serra do Sol. Em 1992, Collor de Mello entregou uma área contínua de 9.419.108 hectares – três Bélgicas – a um grupo de dez mil índios segundo a Funai, três mil segundo fontes militares. Leio na imprensa on line declaração do coronel do Exército Gélio Fregapani:

“A nação Ianomâmi é absolutamente forjada. São quatro grupos distintos, lingüisticamente, etnicamente e, por vezes, hostis entre eles. A criação dos ianomâmis foi uma manobra muito bem conduzida pela WWF (Worldwide Fund for Nature) com a criação do Parque Ianomâmi para, certamente, criar uma nação que se separe do Brasil. O Parque Ianomâmi é uma região do tamanho de Portugal, ou de Santa Catarina, onde, segundo afirmação da Funai, há 10 mil índios. A Força Aérea, que andou levando o pessoal para vacinação, viu que os índios não passam de 3 mil. Ainda que fossem 10 mil, há motivo para se deixar a área mais rica do país virtualmente interditada ao Brasil? O esforço deveria ser no sentido de integrá-los na comunidade nacional. Nenhuma epidemia vai deixar de atingir índios isolados. A única salvação, nesse caso, é a ciência médica.”

Ora, esta denúncia eu a fiz há mais de década, em meu ensaio intitulado Ianoblefe. Mas a denúncia original é anterior, e está em A Farsa Ianomâmi, do coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, (Rio, Biblioteca do Exército Editora, 1995). A tribo ianomâmi é criação de uma fotógrafa, Cláudia Andujar, que ora se diz romena, ora se diz suíça. Em função de seu ofício, o militar gaúcho trabalhou em Roraima desde 1969, onde teve estreito contato com a população da região e jamais ouviu falar em ianomâmis, palavra que invade a imprensa brasileira e internacional somente a partir de 1973.

Segundo Menna Barreto, Manoel da Gama Lobo D’Almada, Alexandre Rodrigues Ferreira, os irmãos Richard e Robert Schomburgk, Philip von Martius, Alexander von Humboldt, João Barbosa Rodrigues, Henri Coudreau, Jahn Chaffanjon, Francisco Xavier de Araújo, Walter Brett, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Jacques Ourique, Cândido Rondon e milhares de exploradores anônimos que cruzaram, antes disso, os vales do Uraricoera e do Orenoco, jamais identificaram quaisquer índios com esse nome”.

Tampouco o leitor que hoje tenha 40 ou 50 anos jamais terá ouvido falar, em seus bancos escolares, da tal de tribo, que recebeu um território equivalente a três Bélgicas, como sendo suas “terras imemoriais”. Imemoriais desde quando? Desde há duas décadas?

Para o coronel Menna Barreto, nada melhor que o idioma para definir a linhagem e contar a história dos grupos humanos. Em suas primeiras missões na região, encontrou os maiongongues - classificados no grupo Caribe - e os xirianás, uaicás e macus, falando línguas isoladas. Como os primeiros exploradores e cientistas estrangeiros, jamais ouviu falar de ianomâmis.

“É preciso ficar claro antes de tudo que os índios supostamente encontrados por Claudia Andujar são os mesmos de quando estive lá, em 1969, 1970 e 1971. Pode ser que, seduzidos com promessas, tenham concordado em renegar o próprio nome, deixando de ser os valentes que sempre foram, para se prestarem agora a esse triste papel. Ou, quem sabe, podem ter sido convencidos a vestir o apelido de “ianomâmis” por cima dos antigos nomes, numa forma de fantasia menos nociva aos valores e tradições indígenas... Entretanto, não é de se duvidar que, para cúmulo do desprezo pelos antropólogos nacionais, nada tenha sido feito para disfarçar a mentira e que, com exceção dos mais sabidos, eles continuem a ser os xirianás, os uaicás, os macus e os maiongongues de sempre, ficando essa história de “ianomâmis” só para brasileiros e venezuelanos”.

“Mas os índios tidos como ianomâmis são os mesmos que lá estavam de 1969 a 1971. Tenho certeza porque voltei à região em 1985, 1986, 1987 e 1988, como Secretário de Segurança, e vi as malocas nos mesmos lugares e os índios com as mesmas caras de antes. E, muito embora essa afirmação possa parecer temerária, pela dificuldade de distinguir-se um índio do outro na mesma tribo, é fácil de ver que, se nesses vinte anos não se registrou nenhuma ampliação de malocas, nem há notícia da ocorrência de epidemias ou guerras entre eles, os atuais habitantes são os mesmos visitados por mim, quando Comandante da Fronteira ou, então, são descendentes deles”.

Para este gaúcho que conheceu de perto - e de longa data - as tribos de Roraima, não é permissível enquadrar grupos tão distintos em uma única nação, “apagando-lhes as diferenças e variações culturais, quando a Antropologia tem como objetivo, ao contrário, salientá-las”. Segundo Menna Barreto, as diferentes tribos hoje designadas genericamente pelo gentílico ianomâmi, são bem definidas e distintas entre si.

O que houve, para Menna Barreto, foi a ianomamização de uma babel de tribos que pouco ou nada tinham a ver entre si. A ficção tomou força na imprensa internacional e os “ianomâmis” passaram a “existir”. Quando Brasília se deu conta de que o reconhecimento de grupos indígenas requeria capacitação em Antropologia, o mal já estava feito: a fotógrafa havia criado uma nação. Cabe lembrar que a profissão de antropólogo, como a de prostituta ou psicanalista, não estão regulamentadas por lei no Brasil.

Diz o coronel Fregapani, autor de autor de A grande cobiça internacional: “A área ianomâmi é imensa e riquíssima, está na fronteira e há outra área ianomâmi, similar, no lado da Venezuela. Então, está tudo pronto para a criação de uma nação. Um desses pretensos líderes, orientado naturalmente pelos falsos missionários americanos, Davi Ianomâmi, já andou pedindo na ONU uma nação, e a ONU andou fazendo uma declaração de que os índios podem ter a nação que quiserem. No discurso de Davi, ele teria dito que querem proteção contra os colonos brasileiros, que os querem exterminar”.

Agora é tarde. A ONU já publicou um livro com os 46 artigos da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada por 144 países, em 13 de setembro do ano passado. O documento é o resultado de 27 anos de discussões entre representantes de cinco mil povos indígenas espalhados por 70 países, que somam hoje 370 milhões de pessoas. Nas próximas décadas, assistiremos, impotentes, a uma balcanização do Brasil.

No que a mim diz respeito, tanto faz como tanto fez. Não deposito esperança alguma nesta grife Brasil. Se os bugres quiserem tomar conta de metade do país, que o façam. Mas enganam-se se pensam que serão os donos do pedaço. Os donos do pedaço serão potências como Estados Unidos ou Reino Unido, cujo interesse não está na preservação da vida indígena, mas na riqueza do subsolo sobre o qual vivem essas tribos.

quarta-feira, abril 09, 2008
 
ECOCHATOS VERSUS CORTIÇA



Beber vinho não é apenas beber um álcool. Há uma série de envolvimentos organolépticos e estéticos na degustação de um bom vinho. Entre esses envolvimentos eu coloco desde o desenho da garrafa até a taça com que se bebe e mesmo a toalha de mesa. Houve época em que esteve em moda no Brasil consumir-se um Liebfraumilch em garrafas azuis. Aquilo me horrorizava. Quando eu via alguém comprando as tais de garrafas azuis, eu já o bania para o rebotalho da humanidade. Da mesma forma, a taça há de ser clara e transparente, para que se veja a cor do vinho. E não consigo tomar vinho em restaurante com mesas sem toalhas. Me parece uma ofensa ao vinho. Posso até aceitar um chope ou mesmo uma caipirinha em uma mesa sem toalha. Mas não um vinho.

Influi também o ambiente em que se bebe. Vinhos, gosto de bebê-los em restaurantes com muito mármore, muitos espelhos, candelabros e muita madeira. Claro que se fosse insistir nisto, não teria muitas chances de degustar vinhos em São Paulo. Mas quando viajo não abro mão desses templos. Mês que vem, saio de novo a bater pernas pelo planetinha. Para variar, Paris e Madri, com Barcelona pelo meio. Acho que já faz uma década que não consigo escapar desse roteiro. Penso em outras cidades no mundo, mas Paris e Madri – ou Roma ou Barcelona – acabam me chamando imperiosamente. Bom, darei um pulo a Bruxelas. Com um único objetivo: passar uma noite em um café que adoro, o Metropole. Grand Place? Pode ser. Mas o objetivo é o Metropole. Ali, mesmo um vinho modesto adquire um sentido maior. Ou uma Leffe. Blonde, triple ou radieuses.

Algo que está me incomodando na atual produção de vinhos não são as tais de garrafas azuis, mas as tampas de borracha, silicone e outros materiais sintéticos. Antes de ir adiante, soube que já existem vinhos embalados em caixinhas tetrapaks com torneirinha. Quem os consome merece ser queimado em fogo lento por séculos no purgatório. Volto às tampas. Leio artigo de Guilherme Rodrigues na revista Gula de janeiro passado:

"Nada mais elementar que empunhar o saca-rolhas e abrir um vinho. Mas nem sempre foi assim. A garrafa de vidro, fechada com rolha de cortiça, surgiu por volta do século XVII. Foi uma das maiores revoluções tecnológicas, senão a maior, da saga dos brancos e tintos. Sem ela não haveria o champagne, por exemplo. Antes disso, armazenava-se a bebida em ânforas de barro, barris de madeira, vasilhames de couro e outros utensílios. Daí, vertida para jarras, era levada às mesas para o serviço. A rolha virou uma tampa tão comum que um extraterrestre, chegado de repente, poderia pensar que o vinho sai assim da videira... Exageros à parte, fico com a impressão de que a garrafa de vidro e a tampa de cortiça sempre fizeram parte dos vinhos, tão natural e espontânea a associação.

"Nos últimos tempos, porém, há quem pregue a extinção de ambas. As garrafas estão menos ameaçadas, apesar do avanço das embalagens bag in box no segmento dos vinhos correntes. Em compensação, a rolha de cortiça enfrenta a forte concorrência das tampas de borracha, silicone e outros materiais sintéticos, assim como do screw cap (as de rosca, que se abrem torcendo). Eu passo. Não vejo graça nenhuma em usar o saca-rolhas para extrair um tubo de plástico. Destrói a liturgia, a mística e a emoção da abertura da garrafa. E tanto faz se o episódio envolver o clássico Château Pétrus, um soberbo Montrachet ou um vinho mais simples".

Assino embaixo. Fui hoje a uma degustação de vinhos, onde me deliciei com quatro vinhos bastante exóticos, os chilenos Encierra e William Cole Alto Vuelo, além de um Barbera Doc, de Castell’Arquato, Itália, mais um Lorca Ópalo Syrah argentino. Este último tem uma característica curiosa: seu produtor corta todos os cachos da vinha, preservando apenas um. Recomendo vivamente. Mas volto à cortiça. Houve apresentação dos vinhos por um sommelier e lancei no debate a questão.

Claro que ele condenou o abandono da cortiça como uma decadência da enologia. Mas o que eu não sabia – e que ele me informou – é que por trás da guerra contra as rolhas de cortiça estão os ecochatos e sua defesa das florestas de sobreiros de Espanha e Portugal.

Ô raça infame! Esses estraga-prazeres, inimigos de tudo o que é bom na vida, deveriam torrar pela eternidade no inferno, sem direito sequer a um copo d’água. Comentei há pouco a localização geográfica do purgatório e do inferno. Sem sabermos onde ficam, sabemos que estão próximos um do outro. Está em Lucas, 16:19:

“Ora, havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo, e todos os dias se regalava esplendidamente. 20 Ao seu portão fora deitado um mendigo, chamado Lázaro, todo coberto de úlceras; 21 o qual desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as úlceras. 22 Veio a morrer o mendigo, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico, e foi sepultado. 23 No Hades, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe a Abraão, e a Lázaro no seu seio. 24 E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e envia-me Lázaro, para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. 25 Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que em tua vida recebeste os teus bens, e Lázaro de igual modo os males; agora, porém, ele aqui é consolado, e tu atormentado. 26 E além disso, entre nós e vós está posto um grande abismo, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem os de lá passar para nós”.

Nada tenho contra os ricos. Mas quanto aos defensores das rolhas sintéticas, concordo com Abraão. Não merecem sequer a ponta do dedo molhada de água para refrescar a língua.

terça-feira, abril 08, 2008
 
EM REPÚDIO À IMORALIDADE
DE DOIS JORNALISTAS




Millôr Fernandes à parte, jamais tive maior apreço pelo Pasquim e seus redatores. O jornal pode até ter tido um certo papel na contestação à ditadura. Mas desde há muito estou ciente de que contestar ditaduras não é suficiente diploma de honestidade. Há quem as conteste por idealismo. Como também os que as contestam por interesses pessoais. No que ao Pasquim diz respeito, sempre nutri asco por dois de seus cartunistas, o Ziraldo e o Jaguar. Jamais os considerei pessoas honestas. Hoje, ambos dizem ao que vieram.

De um amigo, recebi o texto infra. Não vejo bem a que pode levar, já que é dirigido a um dos chefes da quadrilha. Mesmo assim, o repasso.


REPÚDIO ÀS IMORAIS INDENIZAÇÕES DE ZIRALDO E JAGUAR


“Então eles não estavam fazendo uma
rebelião, mas um investimento."
(Millôr Fernandes)


Exmo. Sr.
Tarso Genro
Ministro da Justiça
Brasília – DF


Excelência,

Repudiamos a decisão imoral da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que - de forma afrontosa, absurda e injustificável - premiou os cartunistas Ziraldo Alves Pinto e Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o “Jaguar”, fundadores de “O Pasquim”, com acintosas e indecentes “indenizações”.

Sem desconhecer ou negar os méritos do extinto jornal e sua corajosa participação na luta contra o regime implantado pelo golpe de 1964, não se pode, de forma alguma, aceitar esse equívoco lamentável do Ministério da Justiça, que nos custará a bagatela de R$ 1.253.000,24 (hum milhão duzentos e cinqüenta e sete mil reais e vinte e quatro centavos) para Ziraldo, e outros R$ 1.027.383,29 (hum milhão vinte e sete mil trezentos e oitenta e três reais e vinte e nove centavos) para Jaguar, além de polpudas pensões mensais e vitalícias. Isso tudo à custa de nosso trabalho, raspado de nossos bolsos, em decisão que enxovalha o Estado de Direito e a seriedade no trato dos dinheiros públicos.

Há que se registrar a cupidez vergonhosa de dois jornalistas do nível de Ziraldo e Jaguar, que encerram suas vidas profissionais desenhando em tinta marrom a charge da desmoralização de suas lutas e da degradação moral de suas biografias. Transformaram em negócio o que pensávamos ter sido feito por dignidade pessoal e bravura cívica. Receberam, por décadas, o nosso aplauso sincero. Agora, por dinheiro, escarnecem de toda a cidadania, chocada e atônita com a revelação de suas verdadeiras personalidades e intenções.

Com a ditadura sofreram todos os brasileiros. Por isso não encaramos como negócio lucrativo, prebendário e vergonhoso o que se fez por idealismo, honradez e dever. A ditadura não só não provocou danos terríveis a Ziraldo e Jaguar, como agora os enriquece e os torna milionários à custa de um país de miseráveis e doentes.

Aplaudimos os demais jornalistas que fizeram o saudoso semanário pela decisão de não acompanharem Ziraldo e Jaguar nessa pilhagem, roubando dos brasileiros o dinheiro que deveria (e poderia) estar sendo utilizado na construção de hospitais, num país de doentes; de escolas, num país de analfabetos; na geração de empregos, num país de desempregados.

Que se degradem, que se desmoralizem, que se mostrem publicamente de uma forma que jamais poderíamos esperar. Mas não à custa de nossos bolsos, surrupiando o dinheiro suado de milhões de brasileiros que sofreram com o regime de exceção, mas nem por isso se acham no direito de “ganhar na loteria”.

Exigimos mais critério, seriedade e parcimônia na concessão de tais indenizações pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Para que se evitem espetáculos bisonhos como o que assistimos.


Clique aquí e assine também: http://www.petitiononline.com/zj171/petition.html

domingo, abril 06, 2008
 
MINHAS ESCUSAS AO VIRIATO GOMES



Em crônica passada comentei dois episódios ocorridos com um bom amigo dos dias de Porto alegre, o Viriato Gomes. Fui traído pela memória. Viriato me telefona. Diz que não havia nada de mitomania em reconhecer o cadáver do Che. Ok! Concordo com o Viriato. Ele foi aos dicionários e viu na palavra mitomania o ”hábito de mentir”. Não foi essa minha intenção. Naquele momento, eu o via apenas como alguém que cultuava um mito, o Che. Minhas escusas. Ele apenas reconhecia que o cadáver era do Che.

Quanto ao Chaplin, o episódio na agência da Varig realmente ocorreu. Já quanto ao episódio da Oona chorosa, e quanto ao "se fosse velho amigo de seu marido", devo admitir que exagerei. Ficam aqui minhas sinceras escusas ao Viriato. Minha intenção era relembrar um reencontro memorável, jamais enxovalhar a memória de um bom amigo.

Viriato foi um de meus bons amigos nos dias de Porto Alegre e até hoje o respeito por sua integridade moral. Só posso penitenciar-me pelas afirmações indevidas que fiz a seu respeito. A intenção era completamente outra, evocar um bom momento de nossas vidas. As referências a seu respeito foram todas deletadas de meus blogs.

 
ÍNDIO PODE MATAR



Colunistas, jornalistas e opinião pública em geral estão chocados com a morte da menina de cinco anos, que teria sido jogada do 6º andar de um edifício, presumivelmente por seu pai ou sua madrasta. A revista Veja chega até a incursionar em reflexões teológico-filosóficas sobre o problema do mal.

Desde os primórdios da humanidade essas situações-limite, insuportáveis, lançaram a razão humana em tortuosos exercícios mentais. "É desígnio dos deuses, e a única coisa a fazer é resignar-se" – foi essa desde sempre a saída mais humana para evitar a loucura da dor insuperável provocada pelo mal do mundo. O filósofo grego Xenófanes de Cólofon (560-478 a.C.) foi talvez o primeiro a se insurgir contra os deuses e suas maquinações. Xenófanes concluiu simplesmente que o mal perpassa todo o universo e da sua força nem os deuses escapam. Pelos séculos afora teólogos e filósofos tentaram ajudar a humanidade a conviver com o mal. Mais recentemente as explicações desceram do plano metafísico para se tornar objeto de estudo da sociologia, da psicologia e das ciências biológicas. Nenhuma teoria, porém, é capaz de abarcá-lo, de amainar o choque que ele provoca no corpo e na alma ou a destruição que causa no seio das famílias e no julgamento que fazemos de nós mesmos ao deparar com seres humanos agindo como bestas. Talvez a única certeza sobre o mal seja esta: ele é incontornável.

Ora, não se trata de problema filosófico ou teológico algum. Apenas a irresponsabilidade de dois criminosos, que certamente espancaram a menina até a morte e depois tentaram forjar uma explicação para o crime. Ocorre que improvisar um crime é algo complicado. Nos próximos dias, teremos certamente a confissão dos dois celerados.

No entanto... Se o crime choca a opinião pública, parece não causar comoção alguma o assassinato de crianças sistematicamente praticados por tribos indígenas no país. Em crônica passada, comentei a atitude da Igreja Católica, que luta contra o aborto por considerá-lo um assassinato, enquanto os indígenas brasileiros se reservam o direito de matar filhos de mães solteiras, os recém-nascidos portadores de deficiências físicas ou mentais. Gêmeos também podem ser sacrificados. Algumas etnias acreditam que um representa o bem e o outro o mal e, assim, por não saber quem é quem, eliminam os dois. Outras crêem que só os bichos podem ter mais de um filho de uma só vez. Há motivos mais fúteis, como casos de índios que mataram os que nasceram com simples manchas na pele – essas crianças, segundo eles, podem trazer maldição à tribo. Os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou enforcar os bebês. Geralmente é a própria mãe quem deve executar a criança, embora haja casos em que pode ser auxiliada pelo pajé. É o que nos contava recente reportagem da Istoé.

A Folha de São Paulo de hoje volta ao assunto. Nos fala de Mayutá, índio de quase dois anos de idade, que deveria estar morto por conta da tradição de sua etnia kamaiurá. Na lei de sua tribo, gêmeos devem ser mortos ao nascer porque são sinônimo de maldição. Paltu Kamaiurá, 37, enviou seu pai, pajé, às pressas para a casa da família de sua mulher, Yakuiap, ao saber que ela havia dado à luz a gêmeos. Mas um deles já tinha sido morto pela família da mãe.

Vou repetir o que já escrevi. Segundo a Istoé, a prática do infanticídio já foi detectada em pelo menos 13 etnias, como os ianomâmis, os tapirapés e os madihas. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os kamaiurás matam entre 20 e 30 por ano. Mas entre os sacerdotes que vociferam contra o aborto, você não encontra um só que denuncie estes assassinatos. E tudo isto sob os olhares complacentes da Funai, que considera que os brancos não devem interferir nas culturas indígenas.

A menina morta por dois brancos produz revolta e comoção social. As centenas de criancinhas índias mortas por seus pais não produzem revolta nem comoção alguma.

Índio pode matar à vontade. Faz parte de suas tradições culturais.

sábado, abril 05, 2008
 
DESASTRES PAULISTANOS



Vivo há quase duas décadas nesta cidade. Não vi, até hoje, prefeito que prestasse. Cheguei aqui, se bem me lembro, nos dias de Paulo Maluf. Entre os muitos crimes que cometeu contra a cidade, está a horrenda via expressa elevada chamada Costa e Silva, mais conhecida como Minhocão. Em cidade onde houvesse qualquer resquício de cidadania, tal monstrengo há muito teria sido demolido. Antes de Maluf, tivemos a Luísa Erundina, que transformou a cidade numa espécie de bazar árabe. Sem falar que, ao liberar as carrocinhas para coleta de lixo, em pleno século XX, fez São Paulo retornar à era da tração animal.

Houve depois Celso Pitta, o criador desse elefante branco chamado Fura-Fila. Sua gestão foi marcada pela corrupção. Depois surgiu Marta Suplicy, que desorganizou completamente o tráfego urbano, com um novo e idiota desenho da malha viária. Mais tarde, José Serra, esta espécie de zumbi sonâmbulo que jamais disse ao que veio. Mas o campeão em incompetência será certamente o atual prefeito, esse tanso chamado Gilberto Kassab.

Um dia cria um corredor para motos. Duas semanas depois, descobre que o corredor para motos é uma péssima idéia e o desmonta. Meses depois, proíbe o tráfego de caminhões na cidade, inclusive os de mudança. Mudanças só poderiam ser feitas aos sábados e domingos. Uma vez ciente da estupidez desta idéia, libera o tráfego dos caminhões de mudança. E assim governa. Para Kassab, São Paulo é um laboratório para experimentação de projetos absurdos.

Passei hoje em meu boteco. Técnicos da prefeitura mediam as dimensões do toldo. Ora, semana passada, vi toldos sendo serrados nos botecos de meu bairro. Pergunto ao Eugênio, meu garçom dileto, o que estava sendo preparado. Mais uma estupidez: todos os toldos de São Paulo devem ser desmontados. Ora, um toldo é algo que não atrapalha ninguém, além de nos proteger da chuva e do sol. Todas as dezenas de milhares de bares da cidade terão de desmontar seus toldos e substituí-los por um outro, retrátil.

Quanto aos mendigos que tomaram posses das ruas, nenhuma providência. Quanto aos flanelinhas que chantageiam nas esquinas os proprietários de carro, muito menos. O mesmo se diga quanto à segurança das ruas. Os moradores que protejam seus prédios, às custas de milhares de empregados, ou que se submetam à sanha dos assaltantes. Quanto aos viciados em crack que infestam o centro da cidade, o prefeito solenemente os ignora e diz que não existem. Os jornais vão até a Cracolândia e os fotografam, fumando suas pedrinhas à luz do dia. Kassab, olímpico, declara à imprensa que nada disso é verdade.

Em compensação, declara guerra aos toldos de bares. A quem aproveita o crime? A meu ver, só aos fabricantes de toldos retráteis. É espantoso ver como os habitantes de uma cidade dinâmica como São Paulo não ofereça resistência aos delírios de uma boneca deslumbrada por seu poder administrativo.

sexta-feira, abril 04, 2008
 
VACA SAGRADA CELEBRA
40 ANOS DE SUA MORTE




Os Estados Unidos lembram nesta sexta-feira, dia 4 de abril, os 40 anos do assassinato de Martin Luther King, primeiro candidato negro viável ao principal cargo da Casa Branca que lutava pelo "sonho" de ver implantados amplos direitos civis. É o que dizem os jornais.

O que os jornais parecem ter esquecido e não mais dizem é que Luther King foi um reles plagiador de trabalhos alheios. Nem que investiu em prostitutas o dinheiro arrecadado de suas campanhas pelos direitos civis. Os jornais deste ano da graça parecem ter esquecido estes detalhes do currículo do prêmio Nobel vigarista.

quinta-feira, abril 03, 2008
 
NOSSO JARDIM EM TOLEDO

(artigo publicado nos Cahiers Octave Mirbeau nº 15, Angers, França)


Leitores vadios e sem método, encontramos às vezes autores insólitos na História da Literatura, que fogem não só a todas as regras de construção de uma obra literária, como também àquele comportamento cordato que se espera de um humanista. Swift terá sido um destes. Octave Mirbeau é outro. (Villiers de L’Isle-Adam tampouco poderia ser deixado de lado). Se Swift, homem do século XVII, tem hoje considerável fortuna literária, o mesmo não ocorre com Mirbeau, que morreu nos albores do século passado. Politicamente incorreto avant la lettre, este escritor singular caiu em um purgatório de oblívio, de onde vem sendo recentemente resgatado, graças ao trabalho persistente de leitores devotados. Entre estes, cabe salientar o trabalho notável do professor Pierre Michel. Caçador implacável de toda e qualquer referência ao autor, este professor de Angers e fundador da Société Octave Mirbeau, operou o milagre de encontrar, em um esquecido romance de minha autoria, referências ao autor de O Jardim dos Suplícios.

Através de Buñuel, mais precisamente de Journal d’une femme de chambre, alguma notícia eu já tinha de Mirbeau. Ali já temos a marca registrada do autor, onde, em meio a uma atmosfera decadente, uma criada de quarto se submete aos fetiches de um patrão e acaba casando com um criado pedófilo e assassino, ingredientes bem ao gosto do cineasta espanhol. Mas a leitura que me causou marca profunda foi a de O Jardim dos Suplícios. De suas páginas, escrevi na época, evola um odor lúgubre de flores podres.

O personagem central da obra é sem dúvida alguma Miss Clara, cidadã inglesa herdeira de uma fortuna deixada por seu pai, mercador de ópio em Cantão. Clara só encontra prazer na contemplação da tortura e da morte. O autor nos conduz a um presídio em Cantão, onde um carrasco louva a antiga arte chinesa da tortura e deplora a decadência do Ocidente, que perdeu este requinte:

- A arte, milady, consiste em saber matar segundo ritos de beleza que nós, chineses, somos os únicos a conhecer o segredo divino. Saber matar! Nada é mais raro, e tudo reside nisso. Saber matar! Significa trabalhar a carne humana como um escultor a argila ou um bocado de marfim... Obter o máximo, todas as capacidades de sofrimento que ela encerra no fundo de suas trevas e mistérios... É preciso ciência, variedade, elegância, imaginação... Enfim, gênio!

O suplício do rato: um rato faminto que era posto em um vaso com um pequeno orifício, fixado às nádegas de um condenado. Com um ferro em brasa assustava-se o rato para que buscasse uma saída e o animal acaba por encontrá-la, abrindo passagem com unhas e dentes. O suplício do sino: em meio a um jardim paradisíaco, ornado de pavões, faisões, galos da Malásia, um sino imenso sob o qual era atado um homem, até morrer com suas vibrações.

O verdugo-esteta concluía que o esnobismo ocidental, com seus couraçados, canhões de tiro rápido e explosivos tornavam a morte coletiva, administrativa, burocrática... Enfim, todas as sujeiras do vosso progresso destroem, pouco a pouco, as nossas belas tradições do passado”. Ao passear pelo jardim dos suplícios, Clara manifesta a seu interlocutor seu fascínio pelo Oriente.

- Vês, meu amor, como os chineses são artistas maravilhosos e como eles sabem tornar a natureza cúmplice dos seus requintes de crueldade!... Na nossa sinistra Europa, que há tanto ignora o que é a beleza, tortura-se secretamente no fundo das prisões, ou nas praças públicas, entre uma multidão de ébrios ignóbeis... Aqui é no meio das flores que se erguem os instrumentos de tortura e morte... os cadafalsos, as forcas e as cruzes... Vais já vê-las, tão intimamente ligadas aos esplendores desta orgia floral, às harmonias desta natureza única e mágica, que parecem fazer parte dela, ser as flores miraculosas desta terra e desta luz...

É intrigante ouvir esta declaração, ainda que pela boca de um personagem, na obra de um escritor tão vigorosamente anticlerical – vide L’Abbé Jules – como Mirbeau. Pois esta hipocrisia nem sempre existiu na Europa, onde a Igreja, durante séculos, nunca escondeu que torturava. Neste sentido, a Inquisição foi de uma honestidade a toda prova. O jardim dos suplícios, Mirbeau não precisava buscá-lo no Oriente. Saber fazer sofrer é arte também nossa.

Em 1376, o inquisidor dominicano Nicolau Eymerich elaborou o Directorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores), um verdadeiro tratado de regulamentação da tortura, complementado mais tarde – 1585 – por outro dominicano, o canonista espanhol Francisco de la Peña. Deste trabalho conjunto resultou uma obra minuciosa, com 744 páginas de texto e mais 240 outras de apêndices. A obra é insólita no sentido em que nenhuma nação no mundo ousou assumir a tortura como prática legal e perfeitamente justificável. A Inquisição ousou. Durante vários séculos, a partir do XIV, a tortura foi um instrumento legítimo de investigação.

A tortura era aplicada quando o crime, apesar das provas, era considerado provável, mas não certo. Mesmo as testemunhas podiam ser torturadas, caso se contradissessem. Podiam ser torturadas tanto meninas de 13 anos como mulheres de 80. Como a tortura somente podia ser infligida uma vez, os inquisidores – criteriosos cumpridores do rigor da lei – criaram o subterfúgio do “adiamento” da sessão, para que a tortura pudesse ter prosseguimento posterior. A privação de herança se prolongava até a terceira geração do condenado. E se o acusado escapava pela fuga à Inquisição, ou morria antes de ser julgado, era executado em efígie, isto é, tinha sua imagem queimada. Ou seja, nem a morte salvava o infeliz da fogueira.

Vamos às fontes, ou seja, ao Directorium Inquisitorum:

TORTURA-SE o Acusado, com o fim de o fazer confessar seus próprios crimes. Eis as regras que devem ser seguidas para poder ordenar-se a tortura. Manda-se para a tortura:

1. Um acusado que varia as suas respostas, negando o fato principal.
2. Aquele que, tendo tido reputação de herege, e estando já provada a difamação, tenha contra si uma testemunha (mesmo que seja a única) a afirmar que o viu dizer ou fazer algo contra a fé; com efeito, a partir daí, um testemunho somado à anterior má reputação do Acusado são já meia-prova e índice bastante para ordenar a tortura.
3. Se não se apresentar qualquer Testemunha, mas se à difamação se juntarem outros fortes indícios ou mesmo um só, deverá proceder-se também à tortura.
4. Se não houver difamação de heresia, mas se houver uma Testemunha que diga ter visto ou ouvido fazer ou dizer algo contra a Fé, ou se aparecerem quaisquer fortes indícios, um ou vários, é o bastante para se proceder à tortura.
Segue-se a fórmula da sentença de tortura: “Nós, F… Inquisidor, etc, considerando com atenção o processo contra ti instruído, vendo que varias as tuas respostas e que há contra ti provas suficientes, com o fim de tirar da tua boca toda a verdade, e para que não canses mais os ouvidos dos teus juízes, julgamos, declaramos e decidimos que no dia tal… à hora tal… sejas submetido à tortura.”


Longas são as digressões de Eymerich sobre a tortura. Me permito mais algumas:

Lida a sentença da Tortura, e enquanto os Carrascos se preparam para a execução, convém que o Inquisidor e outras pessoas de bem façam novas tentativas para levarem o acusado a confessar a verdade. Os Verdugos procederão ao despimento do criminoso com certa turbação, precipitação e tristeza para que assim ele se atemorize; já depois de estar despido, leve-se de parte e seja exortado novamente a confessar. Prometa-se-lhe a vida, sob essa condição, a menos que ele seja relapso, pois neste caso não se pode prometer-lha.

Se tudo isso for inútil conduzir-se-á à tortura, durante a qual será submetido a interrogatório, em primeiro lugar referente aos artigos menos graves em que seja suspeito, pois que ele confessará as faltas leves de preferência às mais graves. No caso de ele se obstinar sempre a negar, pôr-se-lhe-ão frente aos olhos instrumentos de outros suplícios e dir-se-lhe-á que vai passar por todos eles, a não ser que confesse toda a verdade.

Se enfim o Acusado nada confessar, pode continuar-se a tortura um segundo dia e um terceiro, mas com a condição de seguir os tormentos por ordem e nunca repetir os já praticados, não podendo ser repetidos enquanto não sobrevierem novas provas, embora não seja proibido neste caso o continuar por ordem.

Se o Acusado tiver suportado a tortura sem nada confessar, deve o Inquisidor pô-lo em liberdade mediante sentença na qual constará que após um cuidadoso exame do seu processo, nada se encontrou de legitimamente provado contra ele, no respeitante ao crime de que havia sido acusado.


Ou seja, se o coitado nada confessou ou não tinha mesmo o que confessar e nada havia contra ele, é solto e fica tudo por isso mesmo. Segundo o inquisidor Bernard de Gui, “o Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação das almas e pela extirpação das heresias”. Em 1634, em Loudun, os inquisidores torturaram com diligência – e até mesmo com amor – Urban Grandier, antes de jogá-lo à fogueira. O exorcista jesuíta Jean-Joseph Surin muito sofreu por não ter extraído de Grandier um “Abjuro”, o que pelo menos teria salvado sua alma. Porque o corpo, este estava mesmo condenado às chamas. A diligência e o fervor dos Inquisidores foi tanta, que mandaram inclusive uma virgem de 19 anos para fogueira, em 1431, em Rouen, França. Chamava-se Joana d’Arc e hoje é santa da mesma Igreja que a queimou.

Nem sempre – como pretende Clara – torturou-se secretamente no fundo das prisões. Em verdade, Mirbeau não necessitaria transportar seus personagens para o Oriente para fazer a louvação da tortura. Tive esta percepção nos anos 80, quando visitei em Toledo uma exposição itinerante, intitulada “Instrumentos de Tortura desde la Edad Media a la Época Industrial”. O acervo do museu nada ficava a dever ao jardim de Mirbeau.

Percorrendo as vielas da antiga capital espanhola, perguntei a uma transeunte onde ficava o dito museu das torturas. A boa senhora hesitou inicialmente em informar-me. “Nós temos uma catedral imponente, por que o senhor não vai visitá-la?” A catedral de Toledo, de fato, é imponente e eu já a visitara. Queria saber agora como fora construída. As informações que seguem são extraídas da publicação-guia da exposição.

Já na entrada, reinava, soberana, a Donzela de Ferro. Para quem já viu antigos filmes de terror, nada de novo. A donzela é uma espécie de sarcófago com duas portas, no interior das quais estão fixados pregos que penetram o corpo da vítima quando o aparelho é fechado. Foi muito utilizada a partir do século XVI e tem seus requintes: os pregos estão fixados em posições que não atinjam órgãos vitais, que isso de a vítima morrer mal se fecha o sarcófago, decididamente não tem graça. Diz a crônica da época, a respeito de um falsificador de moeda submetido ao amplexo da donzela: “as pontas afiadíssimas lhe penetravam os braços, as pernas, em vários lugares, e a barriga e o peito, e a bexiga e a raiz do membro, e os olhos e os ombros e as nádegas, mas não a ponto de matá-lo; e assim permaneceu fazendo grande gritaria e lamentações durante dois dias, depois dos quais morreu”. Nos filmes de terror de nossa adolescência, o herói sempre dava um jeito de escapar do abraço da donzela. O mesmo não acontecia na Idade Média.

Ainda na mesma sala, estavam o machado e a espada de decapitar, instrumentos que animaram grandes festas públicas na Europa central e nórdica há uns 150 anos, e ainda hoje a televisão ou os jornais nos mostram algumas práticas da antiga arte nos países orientais. Se o verdugo era hábil, sorte da vítima. Caso contrário, teria de sofrer na carne as várias tentativas do aprendiz de carrasco.

Adelante! Ainda na entrada do museu, solene, sinistra, está a guilhotina, que durante a Revolução Francesa foi considerada um instrumento de humanização da pena de morte, tanto que mereceu o apodo de l’amie du peuple. Luis XVI e Maria Antonieta, no 21 de janeiro de 1793, mereceram sua homenagem, após o que a máquina passou a chamar-se de la Louisiette. Seu inventor, o médico francês Joseph-Ignace Guillotin, teria sido mais tarde submetido a seu próprio invento, o que não é historicamente verdadeiro, pois morreu pacificamente em 1821. O que é verdadeiro, isto sim, é que a guilhotina só foi abolida na França durante o governo Mitterrand. Nada a ver com a Idade Média, é verdade, mas nem por isso menos sinistra.

Villiers de L’Isle-Adam, um dos desconhecidos precursores do modernismo em literatura, há cerca de duzentos anos preocupava-se com o novo instrumento de execução. Em um de seus Contos cruéis, um médico, imbuído do espírito de investigação do Iluminismo, tenta convencer, um condenado à morte a prestar uma última colaboração à pesquisa neurológica: no momento da execução, ele, o médico, estaria do outro lado da guilhotina, junto ao cesto que recolhe a cabeça do condenado. Não poderia este, em nome da ciência, é claro, responder com um ligeiro piscar de olhos, após a descida da lâmina, para confirmar a continuidade da consciência após a separação da cabeça do corpo? O condenado aceita a proposição, mas seu gesto é tão vago que não permite ao pesquisador conclusão alguma. Hoje se sabe que uma cabeça cortada por machado ou guilhotina continua consciente enquanto roda ou cai no cesto. O que deve ser uma percepção no mínimo desagradável.

Logo após vem a roda. Todos já teremos visto, em pinturas ou xilogravuras medievais, ou mesmo em filmes alusivos à época, intermináveis seqüências de corpos agonizantes, atados a uma espécie de roda de aranha erguida sobre um alto poste. Muitas vezes em minha vida vi a reprodução de tais cenas e sempre imaginei que lá estariam os cadáveres dos condenados, para exemplo e edificação da plebe. Pois não é nada disso, feliz do condenado se assim fosse. A roda para despedaçar – que assim era chamada – constituiu o instrumento de execução mais comum depois da forca na Europa germânica, desde a baixa Idade Média até o século XVIII. E seu emprego é um pouco mais sofisticado do que eu imaginava.

A vítima, nua, era espichada, com a boca para cima, no chão ou no patíbulo, com os membros distendidos e atados a estacas ou argolas de ferro. Sob os punhos, cotovelos, joelhos e quadris eram colocados, atravessados, pedaços de madeira. O verdugo, assestando violentos golpes com a roda, ia quebrando osso após osso, articulação após articulação, incluindo os ombros e quadris, sempre procurando não assestar golpes fatais. Segundo uma crônica anônima do século XVII, a vítima transformava-se então em “uma espécie de grande títere gemente retorcendo-se, como um polvo gigante de quatro tentáculos, entre rios de sangue, carne crua, viscosa e amorfa misturada com lascas de ossos quebrados”.

Mas tudo seria muito simples se a tortura terminasse neste ponto. Após o despedaçamento, a vítima era desatada e introduzida entre os raios da grande roda horizontal, no extremo de um poste que era então erguido. Logo entravam os corvos em ação, arrancando tiras de carne e vazando os olhos até a chegada da morte, constituindo talvez o suplício da roda a mais longa e atroz agonia que o poder era capaz de infligir.

Junto à fogueira e o esquartejamento – diz o catálogo de horrores que apanhei no museu – este era um dos espetáculos mais populares entre os muitos outros semelhantes que tinham lugar diariamente nas praças européias. Multidões de nobres e plebeus deleitavam-se com um bom despedaçamento, de preferência quando a ele eram submetidas várias mulheres em fila.

Há também a gaiola, este bem mais simples. Pendura-se a vítima a uma gaiola de madeira ou de ferro, até que morra de frio, fome ou devorado pelos corvos. Uma versão mais simples e prática desta modalidade é simplesmente pendurar o condenado pelos pés em uma vara horizontal, na qual também são pendurados, um cada lado, dois lobos famintos.

Depois vem a serra, muito usada no século XVIII, criação espanhola. A não ser pelos dentes mais espaçados, em nada difere de uma prosaica serra de madeira. Pela xilogravura que explica a utilização do instrumento, pareceu-me que naquele século faltou imaginação ao verdugo: pendurava-se a vítima pelos pés em uma vara, e dois homens passavam a serrá-la, a partir do cóccix. Tortura idiota, pensei, o homem deve morrer já no início do suplício. Santa ingenuidade minha! Devido à posição invertida do corpo, que garante suficiente oxigenação ao cérebro e impede a perda geral de sangue, a vítima só perdia a consciência quando a serra alcançava o umbigo e, às vezes, o peito.

Embora se associe este suplício à Espanha, sua origem vem de época em que nem se pensava em Espanha. Os leitores atentos de versões antigas da Bíblia devem lembrar que o sábio rei Davi (II Samuel 12:31) exterminou os habitantes de Rabbah e de todas as outras cidades amonitas submetendo homens, mulheres e crianças ao suplício da serra e sofisticações outras da época. Era aplicada preferentemente a homossexuais de ambos sexos. (Nas versões modernas da Bíblia, esta referência foi atenuada. Menciona-se a serra como instrumento de trabalho). Na Espanha foi utilizada como método de execução militar, na Alemanha luterana era destinada aos líderes camponeses rebeldes e, na França, fazia justiça às mulheres emprenhadas por Satanás.

Mais adiante, encontramos a “cunha de Judas”, uma pirâmide pontiaguda de madeira sustentada por um tripé. Sua finalidade não exige maiores esforços de imaginação. A vítima, nua, é içada por cordas, de forma que todo seu peso repouse sobre o ponto situado no ânus ou na vagina. O carrasco, conforme determinação dos interrogadores, pode variar a pressão do peso do corpo e inclusive sacudi-lo repetidamente sobre a cunha.

Em meio a estes instrumentos mais brutais, o museu exibia outros aparentemente anódinos, mas que não deixam de ter sua eficácia. Por exemplo, os látegos com correntes. Na ponta, uma bola de ferro com pontas agudas. Sua utilização não requer maior prática ou habilidade. Mas há um outro látego, de aparência bem mais inocente, porém de atroz eficácia, é o látego para esfolar. É um chicote de couro, com dezenas de cordas, aparentemente inofensivas. Na extremidade de cada cordel há uma ponta de ferro afiadíssima. Os cordéis eram empapados em uma solução de sal e enxofre dissolvidos em água, de forma que a vítima, ao ser fustigada, tinha sua carne reduzida a uma polpa e ao final do suplício ficava com pulmões, rins, fígado e intestinos expostos. Durante este procedimento, a zona afetada ia sendo umedecida com a solução quase em estado de ebulição.

Ou algo ainda mais prosaico, que imaginação para fazer seu próximo sofrer é o que não falta ao ser humano: um funil e alguns baldes de água. A vítima é inclinada com os pés para baixo e obrigada a engolir quantidades imensas de água através do funil, enquanto o nariz é tapado, o que a força a tragar todo o conteúdo do funil antes de poder respirar um hausto de ar. Sem falar no terror da asfixia, a todo instante repetido, quando o estômago se distende e incha de maneira grotesca, inclina-se o supliciado de cabeça para baixo. A pressão contra o diafragma e o coração ocasiona sofrimentos inimagináveis, que o verdugo intensifica golpeando o abdômen. Esta prática é bastante utilizada ainda nos dias atuais, por ser fácil de administrar e não deixar marcas delatoras.

Que mais? Pois afinal mal entramos no museu. Continuando, há as aranhas espanholas, também chamadas de aranhas de bruxas. O instrumento é de uma estrutura elementar: garras metálicas com quatro pontas em forma de tenazes, usadas tanto frias como em brasa, para içar a vítima pelas nádegas, pelos seios ou pelo ventre, ou ainda pela cabeça, em geral com duas pontas nos olhos e as outras duas nos ouvidos.

Este passeio está ainda longe de seu fim, e isso que estou resumindo. Há por exemplo a cegonha, também chamada de “a filha do lixeiro”. É constituída por quatro hastes metálicas que prendem, ao mesmo tempo, o pescoço, as mãos e as pernas do supliciado. À primeira vista, é apenas um método a mais de imobilização, mas em poucos minutos a vítima é acometida de fortes cãibras que afetam primeiro os músculos abdominais e retais e, depois, os peitorais, cervicais e as extremidades. Com o passar das horas, a cegonha produz uma agonia contínua e atroz, que pode ser intensificada, ao prazer do verdugo, com chutes, golpes e mutilações.

As maneias de ferro, para pulsos e tornozelos, as deixo de lado. Paremos alguns segundos ante um instrumentozinho de concepção elementar, mas efeitos abomináveis. É o esmaga-cabeças, patente italiana, contribuição veneziana às artes do medievo, consta que muito em uso nos dias atuais. É uma espécie de torno munido de um capacete, que comprime a cabeça do condenado contra uma barra metálica. Comentários supérfluos: primeiro são destroçados os alvéolos dentários, depois as mandíbulas, até que o cérebro escorra pelas cavidade dos olhos e por entre os fragmentos do crânio.

Com a mesma finalidade, há outras versões mais simples do mesmo instrumento, tipo um arco metálico que se cerrando em torno à cabeça, com pregos internos que vão perfurando a calota craniana. Há técnicas que parecem ter sido concebidas por um deficiente mental, de elementares que são. A tartaruga, por exemplo: põe-se a vítima estendida no solo e, sobre ela, uma superfície quadrada de madeira, sobre a qual vai-se empilhando vários quintais de peso. Para aumentar o sofrimento, pode-se acrescentar, sob o dorso do supliciado, um calço transversal de forma triangular chamado de báscula. Ou a forquilha do herege, este um verdadeiro achado, prático, baratinho e eficacíssimo. Imagine o leitor uma espécie de garfo, com duas pontas em cada extremidade. Duas destas pontas são cravadas profundamente sob o queixo, enquanto que as pontas da outra extremidade são apoiadas sobre o externo. Uma pulseira de couro fixa a forquilha contra o pescoço. A forquilha, ao ir penetrando nas carnes, impedia qualquer movimento de cabeça, mas permitia que o acusado de heresia, com voz apagada, pudesse dizer abiuro, palavra que estava gravada em um dos lados do instrumento.

Ou a mordaça, também chamada de babeiro de ferro, uma espécie de colar de ferro, com um tipo de funil achatado na parte interna do aro, que era enfiado na boca do torturado, enquanto o colar era preso na nuca. Tinha por função evitar que os berros da vítima atrapalhassem a conversa dos torturadores. Um pequeno buraco permitia a passagem de ar, o que também permitia que o carrasco sufocasse sua presa, com o simples gesto de obstruir o buraco com um dedo. Giordano Bruno, uma das inteligências mais brilhantes de sua época – e nisto constituía seu crime – foi queimado pela Inquisição em 1600 e submetido a uma destas mordaças provistas de duas longas puas, uma das quais perfurava a língua e saía pela parte inferior do queixo enquanto a outra perfurava o palato.

Em outra sala do museu, tão solene quanto a donzela de ferro, está a cadeira de interrogatórios, uma espécie de poltrona metálica, toda forrada de pregos agudíssimos, desde o espaldar até o assento e inclusive na parte inferior, que fica junto à barriga da perna e sob os pés. O suplício podia ser aumentado mediante pancadas nos membros ou com um fogareiro aceso sob o assento. Versões modernas deste instrumento são muito apreciadas pelas polícias de todos os países e no Brasil – todos devem ainda estar lembrados – tivemos a cadeira do dragão.

A fogueira, todos conhecemos, que mais não seja das festas juninas. Só que na saudosa Idade Média não era utilizada exatamente para assar pinhões, inclusive a Igreja deu-se ao luxo de fazer churrasco de uma santa. Quem quiser maiores detalhes sobre o assunto, pode ler Gilles & Jeanne, de Michel Tournier, romance que me coube a honra de traduzir no Brasil. Mas a fogueira em si pouca ou nenhuma arte exige naquela época em que, como sabemos, as artes se desenvolveram extraordinariamente. Verdugos mais criativos bolaram uma versão bastante engenhosa: a vítima era atada a uma escada, que por sua vez era inclinada sobre as chamas, no melhor estilo de um autêntico churrasco gaúcho. Em algumas execuções, atava-se um saco cheio de pólvora junto ao peito.

Havia também o touro, método este já bem mais sofisticado. Era simplesmente um touro de metal, dentro do qual se metia o condenado. Depois, acendia-se uma fogueira embaixo. O touro logo começava a mugir, para deleite do público. Consta que em versões orientais deste instrumento, um complexo sistema de tubos transformava em uma espécie de música os berros do coitado.

Já o potro é de origem italiana, e todos já o teremos visto até mesmo em revistas em quadrinhos, pois tornou-se um dos instrumentos mais simbólicos dos porões da Inquisição. É uma mesa onde o condenado é atado de pés e mãos e um cabrestante passa a espichar os seus membros. Antigos testemunhos narram casos em que se obteve até trinta centímetros a mais em um ser humano, pelo deslocamento de articulações de braços e pernas, pelo desmembramento da coluna vertebral e rompimento dos músculos de extremidades, tórax e abdômen, isso evidentemente antes que o homem morresse.

As mulheres, por sua vez, mereciam atenções e instrumentos específicos, todos mutilando as partes sexuais. Tenazes incandescentes para esmagar mamilos, garras para rasgar seios ou nádegas, etc. Um achado digno de menção é a pêra, um objeto de madeira em forma da dita fruta, que é introduzido na vagina das pecadoras ou no ânus dos homossexuais. Depois, por meio de um parafuso, a pêra abria-se em quatro partes, até sua distensão máxima.

O desfile de horrores de nosso jardim já vai longe, não os compilei todos e creio que nem os próprios organizadores do museu de Toledo conseguirão um dia catalogar todos os métodos que o homem criou para fazer seu próximo sofrer. Mas antes de concluir, permito-me arrolar esta maravilha para comprovar-se se uma mulher era ou não bruxa: atava-se a acusada pelas mãos e pés e se a jogava em um rio. A comprovação era imediata e de clareza meridiana. Sendo a água um elemento puro e inocente, no caso da acusada ser bruxa, a água a recusaria e a faria flutuar, com o que a mulher seria conduzida à fogueira e queimada. Se, ao contrário, a água a aceitava e a mulher se afogava, sua inocência estava comprovada.

Mirbeau preferiu situar seu jardim em Cantão. No entanto, ocidentais, nada ficamos devendo ao Oriente quando se trata das artes de torturar ou matar. Faisões e flores à parte, o jardim também é nosso.