¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV
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Janer Cristaldo escreve no Ebooks Brasil Arquivos outubro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 agosto 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 março 2007 abril 2007 maio 2007 junho 2007 julho 2007 agosto 2007 setembro 2007 outubro 2007 novembro 2007 dezembro 2007 janeiro 2008 fevereiro 2008 março 2008 abril 2008 maio 2008 junho 2008 julho 2008 agosto 2008 setembro 2008 outubro 2008 novembro 2008 dezembro 2008 janeiro 2009 fevereiro 2009 março 2009 abril 2009 maio 2009 junho 2009 julho 2009 agosto 2009 setembro 2009 outubro 2009 novembro 2009 dezembro 2009 janeiro 2010 fevereiro 2010 março 2010 abril 2010 maio 2010 junho 2010 julho 2010 agosto 2010 setembro 2010 outubro 2010 novembro 2010 dezembro 2010 janeiro 2011 fevereiro 2011 março 2011 abril 2011 maio 2011 junho 2011 julho 2011 agosto 2011 setembro 2011 outubro 2011 novembro 2011 dezembro 2011 janeiro 2012 fevereiro 2012 março 2012 abril 2012 maio 2012 junho 2012 julho 2012 agosto 2012 setembro 2012 outubro 2012 novembro 2012 dezembro 2012 janeiro 2013 fevereiro 2013 março 2013 abril 2013 maio 2013 junho 2013 julho 2013 agosto 2013 setembro 2013 outubro 2013 novembro 2013 dezembro 2013 janeiro 2014 fevereiro 2014 março 2014 abril 2014 maio 2014 junho 2014 julho 2014 agosto 2014 setembro 2014 novembro 2014 |
quinta-feira, agosto 31, 2006
O MÉDICO E AS FRITAS Desconheço algo mais irritante, em períodos pré-eleitorais, do que um candidato visitando lanchonetes ou restaurantes populares para ganhar votos. Em campanha, lanchonete. Uma vez no poder, Fasano, Massimo, Antiquarius. Demagogia das mais baratas, esta tentativa de bancar o popular é repulsiva. É até possível que renda votos, já que quase todos os candidatos têm seu dia de passar por homem simples. Na Folha de São Paulo de hoje, vemos o desastrado Geraldo Alckmin, sentado em um botequim da Cinelândia, no Rio, oferecendo um prato de batatas fritas a duas meninas que vendiam balas. No texto, lemos que pediu também dois refrigerantes para as duas. Pode-se conceber um médico oferecendo fritas e refrigerantes a quem quer que seja? Alckmin me lembra um amigo, que só dá duas coisas quando um mendigo lhe pede algo: cachaça ou cigarro. "É pra morrer mais depressa", justifica. Meu amigo, sem ser candidato a coisa alguma, é bastante popular. ESCOLHI A LIBERDADE Charles Pilger encontrou na Biblioteca da Unisinos um exemplar em português do livro de Kravchenko: http://biblioteca.unisinos.br/biblioteca/php/index.php?codAcervo=87577&acervoPrincipal=132068. Editora Noite, 1950. Roberto Venegeroles encontrou quatro exemplares em português e um em francês nas bibliotecas da USP: http://dedalus.usp.br:4500/ALEPH/por/USP/USP/DEDALUS/FIND-A?FIND=Todos&BASE=Todas+as+Bases&VALUE=Kravchenko Já o Gilles Gomes de Araújo Ferreira me comunica que a edição em inglês, I chose freedom, pode ser encontrada na Livraria Cultura: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=1417477&sid=0158981298831374316193618&k5=1596A879&uid. Da Finlândia, uma amiga me alerta sobre uma suíte que eu desconhecia, I Chose Justice, do mesmo autor. Pode ser encontrado na Amazon. quarta-feira, agosto 30, 2006
REMEMBER KRAVCHENKO Há personagens poucos conhecidos entre nós, e no entanto fundamentais para a compreensão do século passado. Um deles é Victor Andreïevitch Kravchenko. Pergunte a um universitário de nossos dias quem é Kravchenko. Só por milagre ele saberá de quem se trata. Há uns quatro ou cinco anos, escrevi sobre o homem. Alto funcionário soviético que havia trocado a URSS pelos Estados Unidos, relatou esta opção em Eu escolhi a liberdade, livro em que denunciava a miséria generalizada e os gulags do regime stalinista. O livro foi traduzido ao francês em 1947 e teve um sucesso fulminante. A revista Les Lettres Françaises publicou três artigos difamando Kravchenko, apresentando-o como um pequeno funcionário russo recrutado pelos serviços secretos americanos. Kravchenko processou a revista, no que foi considerado, na época, o julgamento do século. No banco dos réus estava nada menos que a Revolução Comunista. Em seu testemunho, Kravchenko trouxe ao tribunal Margaret Buber-Neumann, esposa do dirigente comunistas alemão Heinz Neumann, como também o ex-guerrilheiro antifranquista El Campesino, ambos aprisionados por Stalin em campos de concentração. Kravchenko, que perdeu toda sua fortuna produzindo provas no processo, teve ganho de causa. Recebeu da revista francesa, como indenização por danos e perdas ... um franco simbólico. A história de Kravchenko é fascinante, envolve diversos países, desde a finada União Soviética até Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, e até hoje não houve cineasta que ousasse transpor sua odisséia para as telas. Seu livro rendeu-lhe boa fortuna. Levado à falência com os custos do processo, foi morar no Peru, onde investiu em minas de ouro e de novo enriqueceu. Acabou suicidando-se em um hotel em Nova York. A partir de seu processo ninguém mais podia negar o universo concentracionário soviético. 1949 é a data limite para um homem que se pretenda honesto abandonar o marxismo. Estou lendo um belo regalo de um bom amigo, o Diogo Chiuso, L'Affaire Kravchenko, de Nina Berberova, escritora russa que estava em Paris durante o processo. É uma cobertura, dia a dia, dos depoimentos de Kravchenko, de seus opositores e de suas testemunhas. As mentiras dos comunistas franceses de então só encontram paralelo nas mentiras dos petistas de hoje. Edição Actes Sud, 1990. Outro relato excelente tem o mesmo título - L'Affaire Kravchenko - e é assinado por Guillaume Malaurie (Robert Laffont,1982). Quanto ao livro mesmo de Kravchenko, em sua edição francesa - J'ai choisi la liberté - só nalgum sebo parisiense, Éditions Self, 1947. Ouvi falar de uma edição brasileira, mas não tenho certeza de que exista. Se você lê inglês, pode comprar a versão original - I chose freedom - em http://www.antiqbook.com/boox/srd/21584.shtml. Com paciência, encontra até uma versão para download grátis. terça-feira, agosto 29, 2006
ARMADILHA PARA HOMOSSEXUAIS Não é fácil ser entendido quando se foge aos padrões do pensamento vigente. Há leitor que se confunde quando digo que sou, em princípio, contra as drogas, mas a favor da liberação das drogas. Sou contra o aborto, mas sou pela descriminalização do aborto. Não vai nisto nenhum atentado à lógica. Se sou pela liberação das drogas, é porque penso que tal liberação servirá para diminuir o consumo das mesmas. E, principalmente, para exterminar o tráfico e todos os crimes dele decorrentes. Que mais não seja, o cigarro vem matando milhões desde que se tornou símbolo do homem que sabe o que quer e até hoje seu comércio não é proibido. Verdade que, na última década, os antitabagistas conseguiram grandes avanços como vetar o fumo em restaurantes e lugares públicos. A propósito, hoje é o Dia Nacional de Combate ao Fumo. Mas o cigarro está longe ainda de ser proibido. Tampouco acho que deva sê-lo. Por um lado, tudo que é proibido sempre atrai. Pelo outro, as pessoas são suficientemente adultas para consumir ou não consumir o que as mata. Quem quiser chupar câncer, que o chupe e boa sorte. Sou contra o aborto. É absurdo abortar quando se tem ao alcance das mãos diversas alternativas anticoncepcionais. Há milhões de pessoas apelando ao aborto como anticoncepcional e isto é uma estupidez. Sou pela descriminalização do aborto porque ninguém deve ter um filho que não quis, concebido em um momento de descuido, embriaguez ou ignorância. Só é crime o que a lei define como crime. Se a lei não define aborto como crime, então não é crime. Há quem condene o aborto em nome de um tal de direito natural, como se direito fosse algo escrito em tábuas eternas pendendo em algum desvão da eternidade. Ora, direito é construção feita por homens e cada país a erige como bem entende. As atuais objeções ao aborto são quizílias de fundamentalistas, que até hoje não aceitaram a idéia de um Estado laico. Confundem preceito moral com preceito legal e querem impor, teocraticamente, sua visão de mundo a todos os cidadãos. Da mesma forma, sempre defendi o comportamento homossexual. Se uma pessoa se sente melhor mantendo relações com outra do mesmo sexo, ninguém tem nada a ver com isso. "Viver e deixar viver", esta era a divisa de Casanova. Faço-a minha também. A Bíblia condena? Que condene. Homossexualismo então é condenável para aqueles que têm a Bíblia como livro normativo. Judeus e cristãos devem abster-se do homossexualismo. A Igreja de Roma condena? Que condene. Isto significa que os católicos romanos também devem abster-se do homossexualismo. Mas nada lhes dá o direito de condenar o comportamento daqueles que não aceitam nem os princípios da Bíblia nem os preceitos de Roma. Não faltam crentes hoje em dia que resumem o Ocidente a um legado judaico-cristão. A equação está incompleta. O Ocidente é também greco-romano. Quando se fala em judaico-cristão, estamos falando de dogma e de religião. Quando se fala em greco-romano, estamos falando de direito e filosofia. Se em um universo teológico homossexualismo é pecado, em um universo jurídico ou filosófico não vige a noção de pecado. Homossexualismo fazia parte da alegria do mundo pagão. Não fosse a emergência do cristianismo, ainda hoje constituiria algo perfeitamente permissível nos costumes da urbe. O cristianismo criminalizou o homossexualismo. Se sempre defendi este tipo de comportamento, não consigo defender palhaçadas como paradas gays - especialmente quando organizadas às custas do contribuinte - ou essa nova armadilha chamada casamento homossexual. Carolyn Conrad e Kathlyn Peterson se divorciaram na semana passada. As duas foram o primeiro casal homossexual a unir-se civilmente nos Estados Unidos, após a promulgação da lei permitindo a união civil de homossexuais, em 01 de julho de 2000, no estado de Vermont. A cerimônia foi celebrada em todo o país como um marco na luta dos homossexuais para obter equiparação legal aos direitos adquiridos pelos casais heterossexuais no casamento. Em seu pedido de divórcio, Conrad afirmou que Peterson havia se tornado violenta, ao ponto de quebrar uma parede com um soco durante uma discussão, e havia ameaçado agredir uma de suas amigas. Peterson foi proibida pela Justiça de se aproximar de Conrad. As uniões homossexuais sacramentadas pelo Estado não passam de um engodo para aprisionar pessoas que antes eram livres. Se Carolyn e Kathlyn não tivessem se unido perante a lei, ao menor sinal de agressão uma teria se separado da outra e estamos conversados. Com a nova lei, precisam solicitar oficialmente ao Estado permissão para separar-se. Nesta matéria, a Espanha antecedeu os Estados Unidos. Em junho passado, dois homens iniciaram os trâmites legais de divórcio, quase um ano depois de entrar em vigor a lei que permitiu o casamento entre pessoas de mesmo sexo. Ambos viviam juntos desde 1993 e se casaram em outubro de 2005 na localidade madrilena de Rivas Vaciamadrid. Hoje, um dos parceiros reclama o direito de ficar com a casa, cuidar dos cachorros e uma pensão mensal de 7.000 euro. Alega que, durante anos, "se dedicou como uma dona-de-casa e teve de abandonar suas atividades profissionais". Bari Shamus, uma das fundadoras do Grupo Liberdade de Casamento em Vermont, disse que a separação do casal americano não deveria surpreender a população, pois "os casais homossexuais têm os mesmos problemas de relacionamento que os casais heterossexuais". Bingo, Bari! Os problemas são ainda mais agravados quando tais casais assinam um contrato sob chancela do Estado. Se antes uma separação não implicava partilha de bens nem demandas judiciais, hoje passou a implicar. Não estamos longe do dia em que, em função de um curto namorico, um dos parceiros pedirá indenização ao outro por ter gerado falsas expectativas. Tais processos já começam a pipocar em relações heteros. Daí a passarem para o campo das homossexuais é apenas um passo. Quem viver verá. Em função de idéias estúpidas como feminismo ou politicamente correto, os homossexuais estão renunciando aos poucos à liberdade que sempre usufruíram e caindo na armadilha do casamento sacramentado em cartório. O relacionamento homossexual, que um dia foi regido pelo desejo ou mesmo pelo sentimento de companheirismo, submete-se agora ao Direito de Família. É o que chamo de saudades dos grilhões. segunda-feira, agosto 28, 2006
IGREJA PREOCUPA-SE COM A ALMA DE MARCOLA Neste domingo passado, mais de três meses depois dos primeiros atentados (de maio) do PCC em São Paulo, a Igreja Católica decidiu, por mãos do cardeal d. Cláudio Hummes, rezar uma missa pela paz. Os pedidos por penas alternativas, segurança pública e justiça social - segundo os jornais - foram ouvidos não só na catedral da Sé como na maioria das 1980 paróquias do Estado. O que não se ouviu, em momento algum, nessas missas, foi um pedido de punição aos criminosos. Sempre que o crime ataca com violência uma cidade, nos dias seguintes surgem grupos de católicos, petistas e comunistas rezando "pela paz". Punição, jamais. Os católicos alegam que Santo Agostinho, antes de tornar-se o principal filósofo do Cristianismo, foi um pecador devasso. São Paulo era perseguidor de cristãos antes de converter-se. Ladrões, homicidas, seqüestradores e integrantes do PCC também podem salvar suas almas. Antes, precisam se arrepender de seus erros, pedir perdão e mudar de vida. Segundo o padre Silvio Andrei, pároco da igreja Rainha dos Apóstolos, até mesmo Marcos Camacho, o Marcola, líder do PCC, pode ser perdoado. A principal missão da Igreja é evangelizar e arrebanhar para a Igreja almas desviadas. "Não existe caso perdido. Caso queira mudar, será bem-vindo. É o milagre da misericórdia de Deus", disse o padre. Generosa, a Santa Madre Igreja Católica! Enquanto o Estado lida com conceitos como crime e punição, a Igreja lida com pecado e perdão. Para que o pecador seja perdoado, basta que se arrependa sinceramente de seus pecados. Arrependeu-se, estamos conversados. Está pronto para entrar no reino dos Céus e contemplar o senhor pela eternidade. Não me parece que tal perspectiva possa agradar a um homem de ação como Marcola. Provavelmente se entediaria eternidade afora. Seja como for, creio que ninguém tem nada contra a salvação da alma de Marcola. O que se pede é que seu corpo apodreça no cárcere. Que mais não seja, para preservação da efêmera vida de suas vítimas. Mas isto a Igreja não quer. Na missa de ontem, em que pediu a paz em São Paulo, o padre Silvio pegou no colo Rafaela, de 2 meses, para simbolizar a vida e a esperança em um futuro melhor - conta-nos o Estadão. Segundo ele, todos podem fazer parte desse futuro. Até mesmo Marcola e outros integrantes do PCC. Só não podem fazer parte deste futuro aqueles que Marcola e o PCC mataram. Para estes, nenhuma prece. domingo, agosto 27, 2006
sexta-feira, agosto 25, 2006
MP QUER AFASTAR PÚBLICO DOS CINEMAS Não bastasse as escolas e universidades enfiarem literatura brasileira goela abaixo nos estudantes, o Ministério Público Federal quer ressuscitar uma lei morta de 1975, que obriga os cinemas brasileiros a exibir um curta-metragem nacional, antes de cada sessão de um filme estrangeiro. Segundo recomendação do Ministério Público feita à Ancine (Agência Nacional do Cinema) neste mês, a agência tem 90 dias para regulamentar o artigo 13 da lei 6.281/75, que fixa a obrigatoriedade da projeção de curtas brasileiros e também de "jornal cinematográfico", antes dos longas estrangeiros. Depois cineastas e exibidores se queixam de que o público cinematográfico diminui dia-a-dia. Ora, a publicidade antes dos filmes já é um insulto ao espectador, este herói que ainda resiste a vários obstáculos para ver um filme: trânsito, estacionamento, flanelinhas, violência urbana. Com a exibição de curtas, o espectador será duplamente insultado. Antes do filme, terá de suportar por quinze ou mais minutos as masturbações esquerdófilas dos candidatos a cineasta. Mais um pouco e as autoridades proporão uma venda casada: a cada DVD estrangeiro que você compre ou alugue, terá de comprar ou alugar junto um nacional. A exigência obrigatória da leitura de autores nacionais nos currículos escolares já afastou boa parte da juventude da literatura. Pelo jeito, o Ministério Público quer afastar não só jovens mas também adultos do cinema. quarta-feira, agosto 23, 2006
BAIXO ASTRAL PARA ASTRÓLOGOS A União Astronômica Internacional (IAU) decide amanhã se os planetas do sistema solar são oito ou doze. Conforme a definição de planeta a ser adotada, ou Plutão perde o status de planeta, ou o sistema solar ganha mais três: Cedres, Caronte e Xena. Em verdade, o sistema solar está correndo o risco de virar uma bagunça como a União Européia. Conforme a generosidade das definições, poderá ter trinta ou mais planetas. Para o mundo científico, onde redefinir conceitos faz parte da rotina, nada de novo. A cada nova definição que surge, geralmente morre uma antiga. Curioso será ver como reagirão esses gigolôs das angústias humanas, os astrólogos. Se os signos eram regidos por nove planetas, como é que ficamos agora? Se Plutão for cassado, quem regerá Escorpião? Se Cedres, Caronte e Xena entrarem no baile planetário, regerão a quem? A clientela dos novos planetas será roubada de quais entre os antigos? Se os três novos planetas forem reconhecidos, serão revisados todos os mapas astrais até hoje desenhados? Ou seja: então os mapas até hoje feitos não valiam nada? Isso sem falar nas co-regências. Claro que os astrólogos encontrarão alguma saída ante as novas definições. Vigarice sempre rendeu bom dinheiro e não pode ser assim abandonada, sem mais nem menos. Ao perturbar um próspero mercado de trabalho, os senhores cientistas estão se revelando verdadeiros estraga-prazeres. Abaixo a ciência! Longa vida ao mercado! terça-feira, agosto 22, 2006
ESTRATÉGIA DE JERICO Geraldo Alckmin entrou com ação no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) solicitando a proibição da propaganda do candidato do PT ao governo de São Paulo, Aloizio Mercadante, no horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão, de veicular a expressão "Lula Presidente". O ministro Marcelo Ribeiro concedeu liminar com essa proibição, considerando que a propaganda de Mercadante foi usada indevidamente para promover Lula. Alckmin faria melhor se entrasse com ação pedindo a proibição de seus companheiros de PSDB usarem a imagem de Lula em seus programas. Foi o que fez o candidato à reeleição ao governo do Ceará, Lúcio Alcântara, que usou em sua propaganda eleitoral de ontem duas falas de Luiz Inácio Lula da Silva em que o presidente exaltou sua "lealdade". Os programas de Alcântara têm ignorado sistematicamente o candidato Alckmin. Vai mal a candidatura tucana. Alckmin tem tudo na mão para massacrar Lula: o assassinato de Celso Daniel, os assassinatos decorrentes do assassinato de Celso Daniel, as negociatas do filho de Lula, as compras de deputados no Congresso por ocasiões de votações que interessavam ao governo, o valerioduto, a leniência de Lula com o Caixa 2 (expressa numa entrevista forjada, em Paris), os mensaleiros, os sanguessugas. Material para desmontar as mentiras do Apedeuta é que não falta. E se falta, Lula se apressa em fornecê-lo: mente o tempo todo e a cada mentira desmente mentiras passadas. Nada disto é utilizado pelo pusilânime Alckmin. Do jeito como se desenvolvem as campanhas, não é de espantar que o Apedeuta vença no primeiro turno, para desgraça geral da nação. As esperanças de um segundo turno, Alckmin não as deposita em seu discurso, mas nas falas desengonçadas de uma comunista maluca oriunda do PT e assessorada por um terrorista italiano. Com temor de que o eleitorado nordestino não grave o nome Alckmin, o candidato tucano passou a usar o Geraldo. Isso há menos de três meses das eleições. Ou seja, aquele eleitor inculto que já sabia quem era Alckmin, deve estar agora se perguntando quem é o tal de Geraldo. A brilhante estratégia tucana é digna de um jerico. Ou seja... Se você pertence ao time dos que já não suportam a corrupção petista no poder e não quer decepcionar-se, melhor ir abandonando suas esperanças desde já. Me dói dizer isto, mas pior é chorar em outubro. domingo, agosto 20, 2006
AZALÉIAS DE AGOSTO Era agosto. Elas se abriam em meu jardim com essa obscenidade com que sempre se abrem as flores, cumprindo sua missão natural de flores. Quanto mais floresciam, mais fenecias. Todos as manhãs eu atravessava aquele festival orgíaco de vermelho, rosa, branco e roxo, rumo ao amarelo ictérico que começava a envelopar tua pele, essa pele que por tantas décadas acarinhei. "Onde estiver, vou sentir tua falta" - me disseste, com voz que jamais senti tão grave. Querendo afagar-me, suspeitando que pela última vez, te enganavas. Não estarás em parte alguma. Partiste para o grande nada, onde nada existe e ninguém sente falta de ninguém. Quem vai sentir tua falta, todos os dias até o último deles, é este que fica e que em algum lugar sempre estará. Pelo menos até o dia em que não mais estiver. Quem parte descansa. Sofre quem fica. O que até me consola um pouco. Quem está sofrendo, pelo menos não és tu. De novo é agosto e elas retomaram seu ritual exibicionista. Paranóicas, escondem-se nas primaveras e agora torturam meus invernos. Não apenas os meus, mas os de tantos outros cujos seres amados escolheram agosto para partir. Certa noite de setembro, eu conversava com jovens já contaminados pela resfeber, enfermidade nórdica que significa febre de viagens. Sedentos de vida, perguntaram a este ser tantas vezes acometido pela doença: qual é a mulher mais linda do mundo? Em que geografias pode ser encontrada? Caí em prantos. A mulher mais linda do mundo, eu a conheci. E a tive. E agora não mais a tinha. Não a encontrara em distantes longitudes nem em países exóticos. Encontrei-a a meu lado, neste prosaico país, e nunca mais a abandonei. Quis a vida - ou talvez tenha quisto eu - que tivesse centenas de mulheres, algumas muitas queridas, outras nem tanto mas também desejadas, mais uma multidão de rostos mais ou menos anônimos, corpos sempre lembrados. Mentira da vida, mentira minha. Em verdade, tive só uma. Tu, que partiste no auge das azaléias. "Eu não tenho medo da morte" - me disseste ainda, um pouco antes da passagem rumo ao nada. Mesmo desbotada pelo palor da vida que foge, estavas linda como nunca estiveste. Em tuas quase seis décadas, conservavas ainda aquele eterno rostinho de criança, que a passagem dos anos jamais conseguiu te roubar. Sedada, já no torpor da morte, chamaste tuas últimas energias, te ergueste no leito. Levantando o dedinho, didática qual professora falando a seus pupilos, sussurraste com o que te restava de voz: "E se fizéssemos assim: eu assino um documento: eu, TKM, em pleno uso de minhas faculdades mentais, declaro que quero ter meus restos cremados no cemitério da Vila Alpina". Reuni minhas forças e consegui balbuciar: não te preocupa, Baixinha adorada, isto há muito está combinado, verme algum sentirá o gosto de tuas carnes. Tuas cinzas, vou jogá-las de alguma ponte em Paris, uma daquelas pontes que tanto amaste, para que saias navegando mares afora. Passada a mensagem, te reclinaste em paz. Mas descumpri o trato. Não as joguei em Paris. Ficarias muito longe de mim, navegarias talvez por mares gelados e hostis, encalharias em geleiras e te perderias em fiordes, longe de meu calor. Com carinho, te plantei entre os rododendros e todas as manhãs passo entre ti e murmuro: adorada. É bom te cumprimentar. Mas como dói. A vida nos foi pródiga, e isso é talvez o que mais machuque. Nestes últimos meses, tenho sentido uma secreta inveja de homens que casam com megeras horrendas. Quando elas partem, começa a felicidade. Se morrer feliz é o almejo de todo homem, esta graça não mais está reservada a quem um dia foi feliz. É duro conjugar certos verbos no passado. Dizia Pessoa: Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... Bobagens de poeta, que tanto influenciaram meus dias de jovem. Verdade que sem ti correrá tudo sem ti. Mas isto vale para as azaléias - seres insensíveis que sequer perceberam a ausência de quem as adorava tanto - e para o resto da humanidade. Para quem perdeu o ser mais lindo da vida, é mero jogo de palavras. As azaléias em breve irão perdendo seu sorriso orgíaco, suas cores fenecerão e agosto que vem estarão de novo florescendo, despudoradas. Tuas cores feneceram agosto passado e pelo resto de meus agostos não mais te verei florir. (in memoriam 20 de agosto de 2003) sábado, agosto 19, 2006
VIAJAR - NO ASSEKREM As três grandes religiões contemporâneas nasceram no deserto. Michel Onfray vai mais longe: o monoteísmo surge da areia. Ateu, cheguei a imaginar que deus, se existisse, deveria estar pairando em meio à nudez e ao silêncio daquelas paragens do Saara. Que o deserto inspira os místicos, sobre isto não há dúvidas, e não foram poucos os anacoretas que o buscaram. Terá sido este sentimento talvez que levou o padre Charles de Foucauld a buscar a solidão no Assekrem, um dos picos de El Hoggar. Beatificado em novembro passado por Bento XVI, exilou-se no Hoggar e estudou hábitos e a língua dos tuaregues, tendo organizado a primeira gramática tamahaq. Filho de família nobre e visconde de Pontbriand, Foucauld teria se convertido ao catolicismo aos 28 anos. Uma de suas virtudes propaladas seria a humildade. Não é o que penso. Difícil entender como humilde um homem que instala sua choupana em meio ao deserto, no cume de uma montanha de 2780 metros de altura. Com o sol se pondo, todas as tardes, do outro lado do Tridente, três picos soberbos fazendo face ao Assekrem. Acampamos junto à ermida, já em ruínas, de père Le Foucauld. Sem pretender usar de oxímoros, o silêncio é estridente. Um forte zumbido, emanando talvez de nosso próprio cérebro, tão pouco habituado à ausência absoluta de sons, fere os ouvidos. Em meio à noite gelada, nos reuníamos junto à fogueira com os tuaregues. Solenes, hieráticos, num francês escasso, eles narravam histórias do deserto. Em um ritmo coerente com o tempo daquelas imensidões. Uma ou duas palavras a cada dois ou três minutos. Assim devem ter nascido as lendas e a própria literatura. Me senti de volta à infância no Ponche Verde, quando em meio ao fogo de galpão, meu pai me recitava os versos de Fierro, antes de apojar as vacas. No fundo, o ser humano é o mesmo em todos os azimutes. E onde houver dois ou três homens em torno ao fogo haverá histórias a contar. Momentos mágicos, hoje distantes deste ser urbano que vos escreve, que me provocaram uma estranha vontade de chorar. Não me espantaria que um dia as agências de turismo programassem excursões rumo ao silêncio. Corre-se o risco de que os turistas matem o silêncio, é verdade, mas sempre sobrará algum espaço para gozá-lo. Em uma viagem pela Terra do Fogo, lá pelas tantas, passeávamos ante um glaciar. O guia reuniu o pequeno grupo e pediu que todos permanecessem alguns minutos em silêncio. Sem as vozes, ante aquela massa de gelo que há cinco mil anos ali estava, podia-se sentir como era o mundo em suas origens, antes que a humana algaravia o conspurcasse. Foi outro grande momento de minha vida e de novo me acometeu um nó na garganta. Mas isto já é outra história. Foram doze dias no deserto, comendo areia e alho, sem banho. Para o tuaregue ou harratine, é o dia-a-dia. Para seres urbanos, de início incomoda. No primeiro dia a areia arranha o corpo. No segundo, arranha menos. No terceiro, nem a sentimos. Na volta a Zeralda, enchi a banheira e deitei. A água foi ficando preta, preta que nem petróleo. Troquei-a e deitei de novo. Melhorou, ficou marrom. Na terceira imersão, voltei definitivamente a meu universo urbano. sexta-feira, agosto 18, 2006
MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM PRECISA Os mais de duzentos atentados cometidos pelo PCC na semana passada tiveram duas motivações. Primeiro, a tentativa do Ministério Público Estadual de proibir o indulto do Dia dos Pais. Segundo, a possibilidade de transferir as lideranças do PCC para o presídio federal de Catanduvas. Quanto ao primeiro item, coube à Justiça ceder, garantindo a libertação temporária dos presidiários no domingo passado. Mais de 700 não voltaram. Está garantida, qual direito adquirido, a cota de fugas em datas comemorativas. O PCC, penhorado, agradece. Quanto ao segundo item, coube ao governador de São Paulo, Cláudio Lembo, anunciar hoje a boa nova aos mais perigosos criminosos do país. Segundo o governador, a transferência poderia prejudicar a fonte primária de informações das autoridades estaduais, criando novas barreiras na hora de interrogatórios. "Temos um problema. Vale a pena retirar (os presos) de São Paulo e perder a fonte de informação imediata?", questionou Lembo, acrescentando que, para novos interrogatórios, seriam necessários mais burocracias e deslocamentos. Marcola manda, Lembo obedece. Quanto ao cidadão, este assiste impotente a um Estado que se torna cúmplice da criminalidade. quinta-feira, agosto 17, 2006
AINDA A CULTURA DAS NAÇÕES Do leitor Gilles Gomes de Araújo Ferreira, recebo esta mensagem: Caro Janer, envio-lhe os links de matérias de um jornal português - Diário de Notícias - sobre um estudo da Faculdade de Economia da Universidade do Porto que vincula a corrupção às colas acadêmicas. Os países onde a fraude é menor (Suécia, Dinamarca, Grã-Bretanha, Nova Zelândia são menos corruptos, ao passo que nos países onde a prática é mais comum (Polônia, Romênia, Brasil, Espanha, Eslovênia, França) o índice de corrupção é maior. Alunos copiam mais nos países mais corruptos http://dn.sapo.pt/2006/06/18/tema/alunos_copiam_mais_paises_mais_corru.html Europa do Leste no topo da cópia, nórdicos exemplares http://dn.sapo.pt/2006/06/18/tema/europa_leste_topo_copia_nordicos_exe.html Felicidades. MADALENA TARDIA ALEMÃ Günter Grass evocou hoje à noite, em entrevista à TV alemã, sua "cegueira" na época da juventude, diante do regime nazista e de Adolf Hitler. Disse ainda que não participou de qualquer crime por ter feito parte da Waffen SS, corpo de elite militar dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Se não participou de nenhum crime, por que só fazer esta confissão aos 78 anos? Por que tantas décadas de silêncio? Seriam também cegos os seus contemporâneos, que nunca viram o jovem Grass ostentar um flamante uniforme das SS? Os intelectuais da Svenska Kungsliga Akademie já estão pondo as barbas de molhos por ter concedido o Nobel a um nazista. Em verdade, não precisam ter tais pruridos. Afinal, já premiaram stalinistas como Sholokov e Neruda e nunca pensaram em desculpar-se por isso. quarta-feira, agosto 16, 2006
MES COMPLIMENTS O leitor Francisco Araújo da Costa faz uma observação a respeito do artigo sobre as multas de diplomatas em Nova York: Achei que você gostaria de saber que os diplomatas da Pindorama ficaram em 29º lugar (de 146 países) no quesito "mais multas por diplomata", com 29,9 multas não pagas por itamaratiense em NY. Os dados podem ser conferidos na página 22 do arquivo abaixo, que é o estudo original de Fisman e Miguel: http://www.cid.harvard.edu/bread/papers/working/122.pdf Mes compliments, Monsieur. Mesmo assim, trinta multas por diplomata não é coisa de país civilizado. VIAJAR - EM EL HOGGAR No inicío da viagem, ficamos duas noites em Zeralda, cidade satélite de Argel, uma espécie de ilha concebida para ocidentais, onde viviam muitos técnicos da Petrobras. Destas noites, retenho um episódio. A camareira era uma bérbere adorável de olhos verdes, mignonne e provocante em uma generosa minissaia. Na segunda noite, eu voltava da casbá quando cruzei por uma mulher pequena e embuçada, pequena mas cheia de curvas, dois olhos verdes me queimando pela abertura do véu. Era ela, a camareira mignonne. Terminado seu trabalho na ilhota ocidental, onde exibia com gosto seus encantos, se embuçava e voltava a mergulhar em seu universo muçulmano. A viagem começou mesmo em Tamanrasset, capital de el Hoggar, cidade erigida em barro vermelho, célebre por uma frase de De Gaulle que, durante o conflito franco-argelino, falava de uma "France de Dunkerque à Tamanrasset". A wilaya - como se diz por lá - hoje tem perto de 200 mil habitantes. Quando lá estive, tinha apenas 20 mil. Este violento acréscimo populacional resultou de migrações do Mali e do Níger, como também da chegada das populações do norte do país em busca de emprego, vindos como funcionários, técnicos, quadros da administração ou do Partido. Naqueles dias, a wilaya era habitada predominantemente por tuaregues e harratines. Os primeiros pertencem a uma tribo nômade do deserto, que por muito tempo viveu do comércio, particularmente o do sal. Os harratines, de cor parda, são sedentários e tratam da agricultura. Por muito tempo viveram em um regime de semi-escravidão. O tuaregue trazia sal, sementes e conhecimentos de agricultura. O harratine plantava. Quando os tuaregues voltavam, cobravam seu tributo em víveres. Com o advento do socialismo na Argélia, esta simbiose perfeita foi proibida pelos burocratas de Argel. Como burocrata não vai ao deserto para assistir as populações, tuaregues e harratinnes estavam sendo condenados à miséria. O incipiente turismo daquela época era visto como uma esperança de recuperação econômica da região. Eu deambulava pelo mercado de camelos - que é como os turistas chamam os dromedários - quando um embuçado alto e silencioso, com um turbante imponente e enrolado nuns panos azuis, me estendeu a mão sem mais nem menos. Não a recusei, mas logo dele tomei distância. Infeliz gesto o meu. Era o guia de nossa excursão a El Hoggar e não foi fácil reconquistá-lo. Éramos 28, na maioria franceses e alemães, e partimos em cinco ou seis Land Rovers sacolejantes equipados com rádio. Certos trechos eram feitos em dromedários. Não que fossem necessários, mas quem vai ao Saara quer montar um dromedário, ora bolas. Dormíamos em tendas ou em alguma aldeia, quando algum morador nos abria sua casa. Como não chove no deserto, as casas não têm teto. Se algum leitor está esperando relatos de temperaturas sufocantes, vou decepcioná-lo. Era inverno e estávamos nas montanhas do maciço de el Hoggar. Dez graus no máximo durante o dia e -15º durante a noite. Nas raras poças de água dos oásis, havia uma grossa camada de gelo na superfície. Sair da tenda ou da casa durante a noite para urinar era algo que exigia um certo estoicismo. Melhor esperar o raiar do sol. Há quem imagine que o Saara é uma região escaldante. Nada disso. É uma geografia gelada que aquece durante o dia. Por falar em água, melhor levar junto. Os tuaregues e harratines a bebiam em cantis de pele de dromedário, uma água marrom como papel de embrulho que, aparentemente, não matava ninguém. Mas não seria nada salutar para seres urbanos habituados à água da torneira. Bem entendido, perca a esperança de qualquer banho enquanto estiver no deserto. Para evitar comer areia, pode-se comprar alguns metros de tecido em Tamanrasset para fazer turbantes. Não adianta muito. Já no primeiro dia, você sente a areia rangendo nos dentes. Com o tempo, você já nem liga mais. O máximo de higiene permissível é lavar o rosto e escovar os dentes. A dieta tem muitas tâmaras e sardinhas, mas basicamente consiste em alho. Se você nunca experimentou passar dois ou três dias sem escovar os dentes, experimente. Verá como é rápida a passagem da civilização ao primitivismo. O deserto é soberbo, mas... no deserto não há latrinas. Nem moitas. Assim, no momento da desoneração, mulheres para um lado do Land Rover, homens para o outro e boa sorte. Como nossas vis necessidades são mais imperiosas que nossos vãos pudores de civilizados, em pouco tempo o turista se adapta às novas circunstâncias. Com alguma sorte, sempre se encontra a proteção de algum rochedo. Aparentemente não há água nem vegetação nas montanhas de el Hoggar. Mas só aparentemente. Olhando com mais vagar, descobrimos fiapos de grama, um grita outro não ouve. Gazelas vivem dessa ralíssima vegetação. Comem o que conseguem e bebem o orvalho da grama. Os oásis são chamados de jardins. Três ou quatro palmeiras e temos um jardim, onde se reúnem pequenos núcleos de harratines. Em geral, não têm idéia de quantos são. Se perguntamos, a resposta é uma só: beaucoup. Em função do turismo e da própria colonização, os nativos falam um francês rudimentar. Em aldeias minúsculas, de dez ou doze casas, mais a daïra (sub-prefeitura) e uma escola, o sinal indefectível da burocracia de Argel. Na rua principal e única - em verdade, uma estrada poeirenta - por onde talvez passem cinco ou seis carros por semana, um semáforo: pare, olhe, escute. Templos não existem. Templo é o lugar onde o crente reza. Onde se reunirem crentes para rezar, ali é o templo. Percorremos longos vales pontilhados de verde. São os oueds, rios subterrâneos que podem de repente vir à tona, afogando quem neles instalou sua tenda. Toda vida em El Hoggar reside nesses oueds. Aqui, as casas tomam uma configuração distinta das casas das aldeias. São tendas cônicas de capim, semi-enterradas na areia para proteção do calor diurno. Viajávamos no inverno, mas no verão a temperatura chega facilmente a 50 ou mais graus. As portas destas habitações, também de capim, são simbolicamente protegidas por um cadeado e uma grossa corrente metálica. Verdade que São Paulo, hoje, não fica muito a dever a El Hoggar. Você pode estar trafegando ou passeando tranquilamente em uma avenida e ver-se de repente cercado pelas águas. Já houve caso de um motorista que se salvou porque sabia nadar. Mas os oueds têm mais charme, é claro. A CULTURA DAS NAÇÕES Sob este título, David Brooks, do The New York Times, faz uma pertinente reflexão sobre as multas de estacionamento dos diplomatas residentes em Nova York. Os diplomatas de países que ocupam as primeiras posições no índice de corrupção da Transparência Internacional acumulam o maior número dessas multas não pagas, enquanto diplomatas de países situados mais abaixo nesse mesmo ranking raramente cometem tais irregularidades. Entre 1997 e 2002, a missão do Kuwait nas Nações Unidas totalizou 246 infrações de estacionamento para cada um de seus membros do corpo diplomático. Diplomatas do Egito, do Chade, do Sudão, de Moçambique, do Paquistão, da Etiópia e da Síria também cometeram grande número de infrações. Enquanto isso, não foi registrada nenhuma infração dessas por qualquer diplomata sueco. Tampouco por algum diplomata da Dinamarca, do Japão, de Israel, da Noruega ou do Canadá. O motivo de tão amplas variações nessa questão das multas de trânsito é que os seres humanos não são meros produtos da economia. Graças à imunidade diplomática, os diplomatas não pagaram absolutamente nada por estacionarem ilegalmente. Mas os seres humanos também são moldados por normas culturais e morais. Se você é sueco e, eventualmente, tem a chance de parar diante de um hidrante, simplesmente não o faz. Só porque você é sueco. Isso é quem você é. Pena que o jornalista não tenha fornecido dados sobre os diplomatas de Pindorama. Se bem conheço os bois com que lavro, estamos mais para Sudão ou Chade do que para Suécia ou Dinamarca. E não tenho esperança alguma de que este comportamento - ou nossa posição no índice de corrupção - possa mudar nos próximos séculos. terça-feira, agosto 15, 2006
VIAJAR - RUMO AO SAARA Sim, Estocolmo foi bom, Paris foi bom, Madri foi bom. Foram cidades em que vivi. Viajar é um pouco diferente. Se quiser falar das viagens que mais me fascinaram, não é fácil dizer qual fascinou mais. Hesito entre el Hoggar, no Saara argeliano, a navegação rumo ao Ártico pela costa da Noruega e a travessia de Punta Arenas a Ushuaia, pelos canais de Magalhães e Beagle, na Tierra del Fuego. Por uma questão de cronologia, começo pela Argélia. São estranhos os fatores que nos levam para lá ou para cá. Meus desejos de deserto começam perto do Círculo Polar Ártico. Em Estocolmo, em um exercício de vocabulário de uma aula de sueco, soube que tinha como colega uma författarina. Isto é, uma escritora. Era suíça, elegante e charmosa, e chamava-se Federica de Cesco. Quantos livros havia escrito? Ah - me respondeu com certo enfado - mais de cinqüenta. Fiquei com um pé atrás. Era bastante jovem, mais de cinqüenta livros me pareciam um exagero. Nunca havia visto uma författarina de perto, muito menos uma que tivesse escrito meia centena de livros. Passei no apartamento dela. Em uns dois metros de estante, ela tinha algumas das traduções de alguns de seus cinqüenta livros. Meu ceticismo caiu por terra. Perguntei qual considerava o mais importante deles. - Ah! Só escrevo best-sellers. Nada de importante. Mas gosto muito deste aqui. Passou-me um livro sobre el Hoggar, o país dos homens azuis. Falava da geografia dos tuaregues e harratines que habitam o extremo sul da Argélia. Havia na obra um certo deslumbramento de europeu em visita ao Terceiro Mundo. Mesmo assim, o livro incitava à viagem. O que me espantou naquele momento foi encontrar alguém que vivia de escrever, escrevia muito e não dava importância alguma ao que escrevia. Estava em Estocolmo paga por sua editora, para criar uma novela ambientada em aeroportos internacionais. Federica me deixava pasmo. A ela devo minha opção pela escritura. Se esta moça - pensei com meus botões - escreveu mais de cinqüenta livros e acha que só escreve bobagens, vou escrever pelo menos um, que não considero bobagem. Assim surgiu O Paraíso Sexual Democrata. Paris, dezembro de 74. Estou lá com minha Baixinha adorada. Estamos em férias, com grana no bolso e uma pergunta na cabeça: daqui, para onde vamos? Lembrei-me da Cesco e respondi sem hesitar: para o Saara. Não costumo viajar em excursões, mas esse tipo de viagem não se faz sozinho. Passamos numa agência, compramos o pacote e fomos ao consulado argelino tratar dos vistos. Pepino: eu era jornalista e a Argélia socialista. Naquela época, constava do passaporte brasileiro a profissão do portador. Eu tinha umas três ou quatro a escolher, mas sempre me pareceu que a um jornalista todas as portas estariam abertas. Assim, já no formulário para vistos, fui tascando: jornalista. O funcionário leu o formulário, examinou o passaporte, me tirou da fila e me conduziu a uma porta. Exultei. A profissão realmente abria portas. Me mostrou um arquivo de aço, abriu uma gaveta cheia de pastas. - Olhe aqui. São mais de 400 pedidos de entrada no país de jornalistas. Estão à espera de visto há mais de seis meses. Gelei. Já havia pagado o pacote e pagado caro. Senti meus dólares voando em meio a oásis e tempestades de areia. Meus sonhos de deserto se revelavam miragens. Com uma sensação de secura na boca, apostei tudo num blefe só. - É que esse passaporte é antigo, Monsieur. Eu era jornalista. Não sou mais jornalista. Vivo atualmente como tradutor. Milagre dos milagres, colou. O mundo, subitamente, readquiriu sentido e esperança e o homem do passaporte sorriu, como diria Pessoa. E meus dólares recuperaram seu valor. Mais tarde, tive outros problemas do gênero na Iugoslávia, até que finalmente o Brasil decidiu não mais registrar a profissão no passaporte. Paris, Argel e de Argel voamos para Tamanrasset. Estávamos para aterrissar em Gardahia, o piloto pediu para atar cintos, o avião descia e eu não via nem cidade, nem aeroporto, nem pista alguma. Estaríamos a uns cinco metros do solo e eu só avistava areia. Apertei a mão da Baixinha e, serenamente, me preparei para o fim. É hoje - pensei. Não era. Aeroporto no deserto é assim mesmo. Só areia, areia, areia e uma pista. Que surgiu, gloriosa, alguns segundos depois. Eram os dias da Aid-al-Kabir, celebração religiosa em que os muçulmanos lembram o sacrifício de Isaac por Abraão, degolando cordeiros. No aeroporto, um pequeno prédio ao final da pista, os peregrinos que voltavam de Meca eram esperados por Land Rovers, camelos e uma multidão de mulheres que faziam um alarido infernal, uivando com as mãos batendo na boca. Elas saudavam os peregrinos. Este vôo me rendeu quatro anos de pânico ante a perspectiva de voar. Fui tomado por um medo irracional, como em geral são todos os medos. Se tinha de voar, três meses antes já não conseguia dormir bem. De pouco adiantava me avançarem estatísticas, que avião é meio de transporte seguro, muito mais seguro que automóvel. O que mais nos atemoriza é a impotência ante qualquer perspectiva de desastre. No automóvel, posso tentar reagir, tentar salvar-me talvez. Que mais não seja, estou na velha e boa terra. No avião, estou dez quilômetros longe dela. Passei quatro anos panicado ante a idéia de voar, dizia. Cheguei até a perder algumas viagens. Se decididamente tinha de voar, derrubava uma garrafa de uísque antes de embarcar. Quando recebi uma bolsa em Paris, em 77, o governo francês me pagava duas passagens de avião. Agradeci e fui de navio, pagando de meu bolso. (O que não deixou de ter seus fascínios). Psicólogos oferecem cursos para perder o medo a voar, mas nunca depositei muita fé em psicólogos. Ou resolvia o problema por mim ou nunca mais voava. Medo de voar, os psicólogos que me desculpem, não é nada mais nada menos que o ancestral medo da morte. O que precisa ser enfrentado não é o medo de voar, mas o de morrer. Este medo é típico de jovens, que temem partir antes de dar seu recado ao mundo. Com o tempo concluí que, se não desse meu recado ao mundo, tanto faz como tanto fez. El mundo sigue andando - como diz um tango - e dispensa recados. Ao aceitar a idéia de morte, passei a voar com prazer. Tínhamos até um sonho, a Baixinha e eu, morrermos juntos em um desastre aéreo. O que um dia foi fator de medo passou a ser algo desejável. Mas nem sempre se come pão quente. Ela partiu e eu cá estou, evocando nossos dias no deserto. ENFIM, UMA UNIVERSIDADE DE CORAGEM Leio na Agência Folha: Depois de discussões que tiveram início em dezembro de 2004, a Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) decidiu que não vai adotar cotas para negros e alunos de escolas públicas nem criar vagas para indígenas e portadores de necessidades especiais. A decisão foi tomada na segunda-feira (14) pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Ufes, após análise de proposta feita pela Câmara de Graduação da própria universidade. Nestes dias em que impera no Brasil a ditadura do politicamente correto, louve-se a postura independente da universidade capixaba. Porque as demais já se renderam à política de oficializar o racismo no país. segunda-feira, agosto 14, 2006
PCC E PT, MESMO COMBATE Meus temores se confirmaram. O domingo foi calmo em São Paulo. Nenhum ônibus queimado, nada de molotovs em bancos ou prédios públicos, nenhum atentado a policiais. Não imagine o leitor que estou desejando domingos sangrentos para a cidade. Nada disso. Ocorre que, nesta situação de falência do Estado, o pior que poderia ter acontecido era um domingo sem violência. Isto significa que o pacto entre Estado e criminosos foi consagrado. Quando o Ministério Público Estadual pediu à Justiça a não-liberação dos apenados no Dia dos Pais, mais de cem atentados perturbaram a cidade. A Justiça entendeu corretamente a mensagem: liberou todo mundo. O MPE tentou ainda impedir pelo menos a liberação dos criminosos ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital). A Justiça foi além em sua benevolência. Chegou a oferecer tratamento privilegiado em São José do Rio Preto a cinco membros da guerrilha, transportando-os em viaturas policiais e com escolta até o aeroporto. Os cinco clientes VIP do sistema penitenciário sequer se preocuparam em comprar passagens de volta. O PCC agora já sabe como obter boas respostas às suas reivindicações. Basta incendiar algumas dezenas de ônibus, jogar algumas bombas cá e lá e sentar-se à espera dos resultados. Antes do Dia dos Pais, o governador Cláudio Lembro pediu bom senso aos criminosos, como se tal virtude pudesse existir entre traficantes, assassinos e seqüestradores. "Estou convicto de que eles terão bom senso de se portarem de acordo com a data e de acordo com o momento". Disse ainda esperar que os detentos pertencentes ao PCC tivessem compreensão com a sociedade e preservassem a integridade de cada um. "Acredito no ser humano. Se não acreditasse, eu estaria mal. Como acredito no ser humano, acredito ser possível que essas pessoas compreendam que há uma sociedade a ser preservada. E que há uma dignidade individual e integridade física de cada um de nós. O respeito à pessoa deve ser também observado por eles". A resposta do PCC a tão nobre crença no ser humano foi imediata. No sábado seqüestrou um jornalista e um técnico da rede Globo, para exigir a transmissão de um vídeo. O manifesto brande um discurso de esquerda, faz críticas ao sistema penitenciário, pede um mutirão para revisão de penas, melhores condições carcerárias e se posiciona contra o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Parte do texto é uma cópia ipsis litteris de um parecer do governo, assinado pelo criminalista Mariz de Oliveira. PCC e PT, mesmo combate. Quem o transcreveu deve ser um rábula de quinta categoria, pois troca iluminismo por ilusionismo. No final, o manifesto assume um estilo mais coerente com a bandidagem. "Não queremos e não podemos sermos (sic!) massacrados". Ou seja, os presidiários se arrogam o direito de estabelecer seu próprio sistema carcerário. Mais um pouco e exigirão ser julgados por seus pares. Visando preservar a vida de seus funcionários, a Globo aceitou retransmitir o vídeo. O PCC agora já sabe como fazer relações públicas. Basta seqüestrar jornalistas e ameaçar matá-los caso suas reivindicações não sejam transmitidas urbi et orbi. Ao seqüestrar pessoas para forçar a difusão de uma mensagem, o PCC nada mais fez senão seguir a escola das esquerdas, cujos líderes, hoje aboletados no poder, auto-intitulam-se salvadores da nação e gozam de aposentadorias milionárias como recompensa a seus passados criminosos. Talvez ninguém mais lembre, mas Fernando Gabeira, que hoje se destaca como herói sem jaça em meio ao lodaçal do Congresso, foi um dos precursores desta eficiente estratégia. Como reconhecimento de seus notáveis feitos, foi eleito deputado. Não seria de espantar que, em futuro próximo, o erudito Marcola, o homem que teria lido mais de três mil livros, se apresente para disputar junto ao eleitorado o mesmo reconhecimento da nação. Mal se estabeleceu a relação entre os métodos das esquerdas dos anos 70 e os do PCC, Gabeira foi logo pondo as barbas de molho. "Nós não éramos bandidos" - diz o ex-guerrilheiro, hoje deputado, em entrevista ao Estadão. Ninguém gosta de ser diminuído. Gabeira era um celerado com uma ideologia na cabeça, que alimentava o grandioso projeto de transformar o país numa republiqueta socialista. O PCC nunca sonhou tão alto. Quer apenas alguns privilégios para os seus. Antes do seqüestro, o Jornal da Tarde havia recebido um e-mail no qual os novos defensores dos direitos humanos protestam contra "a injustiça, abuso de poder, maus tratos, espancamentos e violência há anos às classes pobres nesse País. (...) Buscamos entre nós o máximo de respeito e solidariedade e nos apoiamos entre si dividindo um pouco de tudo que temos entre materiais e carinho humano com projetos sociais, e nossa verdadeira luta é pela dignidade humana sem discriminação, não visamos nenhum tipo de lucro material dessa luta, e por ela nos sacrificamos sem medir as forças". Para quem chega no meio da conversa, o texto transmite a idéia de uma carta de intenções de alguma entidade beneficente, quem sabe o regimento interno de uma cartuxa. Em sua sede de justiça social, os assassinos e traficantes do PCC já não se contentam em advogar em causa própria. Exigem a redenção dos pobres e oprimidos da nação. Não é de hoje que os comunicados da guerrilha se assemelham aos chavões da Igreja Católica e do PT. Em um comunicado anterior, o Grito dos Oprimidos Encarcerados, proclamavam: "Somos presos oprimidos pagando por algum tipo de erro cometido perante a sociedade, alguns nem mesmo erraram, mas sofrem as injustiças do ser humano". A linguagem é a mesma de Lula e do PT. Em momento algum fala-se de crimes, apenas de erros. O que sempre me lembra os pruridos de Tarso Genro quando fala de desvios do stalinismo. Stalin não cometeu crimes. Apenas ligeiros desvios. Neste caldo cultural em que crime não é crime, mas erro, em que seqüestradores não são seqüestradores mas heróis nacionais, e por isso recompensados com gordas aposentadorias e cadeiras no Congresso, nada de espantar que o PCC fizesse sua fezinha. Dando um sentido político aos crimes, quem sabe dentro em breve não se consegue uma anistia, seguida de gordas aposentadorias e indenizações pelos anos injustamente passados no cárcere. Se pegar, pegou. Se não pegar, tentar não custa. Bem entendido, não vai pegar. Falta souche de esquerda aos integrantes do PCC. Coisa que não falta a Oscar Niemeyer, por exemplo. Os jornais todos hoje vociferam contra a audácia do crime organizado. Em página nobre da Folha de São Paulo, nesta segunda-feira, o arquiteto stalinista chora a morte dos dois maiores criminosos da América Latina, Fidel Castro e Che Guevara. O que falta a Marcola é carteirinha do Partido. Imprensa que dá página nobre à louvação de grandes assassinos, não tem moral algum para condenar os menores. domingo, agosto 13, 2006
MADALENAS TARDIAS Escreveu neste domingo, na Folha de São Paulo, Ferreira Gullar: A falta de escrúpulos sempre foi uma característica do PT e de Lula, que, ao longo dos anos, acusaram Deus e o mundo, não importando se as acusações tinham ou não fundamento. Só que o faziam no papel de defensores dos interesses públicos e atribuindo a si mesmos o título de detentores exclusivos da ética na política. Foi essa falta de escrúpulos que levou Leonel Brizola a apelidar Lula de "sapo barbudo" que, para atingir seus objetivos, "era capaz de pisar no pescoço da própria mãe". Naquela época, muita gente achou que essa afirmação era exagerada, mas o tempo mostrou que o líder pedetista tinha razão, já que o desempenho de Lula na Presidência da República só veio reforçar aquele diagnóstico; diria mesmo que o superou. Tarde piou o velho stalinista. Escrevesse isto há vinte anos, seria um homem de coragem. Escrevendo hoje, não passa de um oportunista pegando carona na corrupção do PT. sábado, agosto 12, 2006
VIAJAR Em Dom Pedrito, anos depois de ter deixado a cidade, conheci o Dr. Davi, como era chamado. Não era doutor nem judeu, mas um fazendeiro nordestino que resolvera montar seu campinho naquelas plagas. Por campinho, entende-se lá na fronteira uma propriedade de várias quadras de sesmaria. Tinha bom rebanho de gado, suponho que 500 ou 600 cabeças, isso sem falar nos ovinos. Era homem extremamente generoso. Quando fazia bons negócios, costumava distribuir dinheiro a quem encontrava na rua. Certa vez, em Porto Alegre, no Chalé da Praça XV, enfiou-me no bolso um pacote de dinheiro. - Que é isso, Davi? A troco de quê? - Ganhei um monte de dinheiro hoje. Fica com ele. - Mas Davi, não estou precisando de dinheiro... - Então repassa às tuas mulheres. Estou contente e quero fazer pessoas contentes. Bom, se era para assistência social... Não reclamei e passei a redistribuí-lo a minhas amigas da noite. O Dr. Davi me invejava. "Olhem esse menino. Ele vive batendo perna pelo mundo. Deve ser muito rico". Mal imaginava o generoso nordestino que eu vivia mais de susto que de dinheiro. Viajei muito, é verdade. Mas quase sempre na condição de estudante ou de jornalista de país de moeda fraca. Boa parte de minhas viagens eu as devo ao jornalismo. Outro tanto a bolsas. Isto é, não me custaram nada. Mas rico nunca fui. Eu tentava chamar o Davi à aventura. - Vende uma dúzia de teus bois, Davi. Serei teu guia na Europa. Nada feito. Pelo que me consta, o Dr. Davi nunca ousou nem mesmo ir a Montevidéu, ali do outro lado da Fronteira. Não era que fosse um mão-fechada, tanto que gostava de distribuir dinheiro. Acho que tinha medo do anecúmeno. Confesso não entender estas pessoas que, nadando no dinheiro, jamais cruzaram uma fronteira. Considero ser a viagem o supremo prazer do espírito e se hoje não tenho grandes posses é porque torrei meus salários viajando. Verdade que parte deles dediquei à assistência às moças da noite, outro prazer não menos supremo. Mas isto já é outro assunto. Minha primeira viagem foi de Upamaruty a Dom Pedrito, de bicicleta, dez léguas por uma estrada de barro e areia. Tinha onze anos e não sabia muito bem como chegar lá. Segui o conselho de meu pai: "segue o caminho real, guri". Já na várzea do Santa Maria, comecei a ver estranhas silhuetas no horizonte. A cada pedalada, as silhuetas tomavam contornos mais precisos. Excitado, eu pedalava cada vez com maior vigor. Não conhecia cidade e Dom Pedrito me decepcionou. Em meu imaginário, brilhavam as cidades douradas dos contos de fadas, cheias de arcos, cúpulas, abóbadas e minaretes. Dom Pedrito nada tinha de dourada. Era cinza e muito sem graça. A bem da verdade, tinha uma mísera cúpula, das mais mixurucas, a da Igreja Matriz. Fora isso, um amontoado de casas retangulares e cheias de retas. Estudei geografias e li um pouco sobre o planetinha. Nos dias de universidade, fiz um projeto: quero viver em Estocolmo. Dizem que o paraíso fica lá. Então é para lá que eu vou. Fui para Estocolmo. Fui e voltei. Não era o paraíso. Mais tarde concluí que o paraíso não existe. Mas para chegar a esta brilhante conclusão, é preciso sair de casa. Na volta, novo projeto: quero viver em Paris. Fui para Paris. Mais uma vez voltei. Meu outro projeto era morar em Barcelona. Não deu certo. Mas conquistei Madri e não me arrependo. Barcelona é linda, mas Madri tem mais charme. Nestas viagens, sempre me acompanhou a imagem do Davi. Rico e generoso, mas sem jamais ter ousado atravessar um mar que fosse. Há leitores que vibram quando falo de viagens. Em próximas postagens, fugirei um pouco a nosso deplorável, triste e infame cotidiano e falarei de algumas viagens, episódios de viagens, encontros inusitados. Não propriamente de Estocolmo, Paris ou Madri. Sobre estas cidades, falo o tempo todo. Penso falar de viagens mais deslumbrantes. Não das cidades em que vivi, mas de paragens pelas quais passei. El Hoggar, Tromsø, Trolfjorden, Mljet, Cuenca, Tierra del Fuego. Minha intenção, leitor, é te arrancar desse sofá e te incitar ao vôo. sexta-feira, agosto 11, 2006
A SENADORA QUE LADRA Se você tem algum contato com algum petista, conhece seus métodos de discussão. Um deles é o já folclórico argumento brandido por José Genoíno, quando flagrado por sua participação do caso dos dólares nas cuecas: "uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra". É argumento de validade universal e serve para rebater qualquer comparação. Os petistas acusam Geraldo Alckmin e José Serra de terem abandonado seus cargos para disputar eleições. Digamos que você objete que Palocci também abandonou a prefeitura para ser ministro. E lá vem o argumento universal: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Não quer dizer nada. Mas soa como resposta para pessoas não habituadas a pensar - e estas são a maioria. Como se, para responder a alguém, bastasse juntar algumas palavras e jogá-las com veemência na cara do interlocutor. Os arrazoados não precisam ter sentido algum. O que importa é o ar indignado do petista. Outro recurso bastante comum é ganhar no grito. Ou seja, bombardear o interlocutor com uma lista infindável de argumentos que vão se encadeando uns aos outros e, ao final da resposta, situam-se a milhas de distância da questão inicial. Este recurso tem ainda a vantagem de não dar ao interlocutor oportunidade de revidar. E, se revidar fosse, o cerne da discussão há muito saiu de foco. Se você não convive com petistas, teve a chance de assistir a uma destas perfomances no debate de terça-feira passada, no Jornal Nacional, com a senadora Heloísa Helena, do PSOL, candidata-cacareco à Presidência da República. Oriunda do PT, a senadora perdeu a sigla mas não os cacoetes. Eludia as perguntas e delas se distanciava. E - o mais tipicamente petista - falava pelos cotovelos, não dando aos entrevistadores a menor chance de objeção. Verdade que William Bonner e Fátima Bernardes poderiam também ter elevado a voz. Mas não a elevaram e fizeram o papel de dois marionetes servindo de contraponto à candidata comunista. Se você acha que isto é malandragem tupiniquim, engana-se rotundamente. É velha técnica dos comunistas, em todos os cantos do planeta. Em Oriana Fallaci intervista sé stessa - que jamais será traduzido no Brasil -, a autora se queixa desta estratégia: "Para começar, como é possível que nos debates televisivos os comunistas não deixem falar o adversário? (...) Mal o adversário abre a boca, o interrompem. E se apesar de tudo o silenciado continua falando e reivindica o direito a dizer o que pensa, elevam sua própria voz como cachorros que ladram. 'Perdão, é a minha vez. Eu não te interrompi, portanto deixa-me responder'. Mas o outro continua ladrando inexoravelmente. Sem que o moderador o impeça, posto que noventa por cento dos apresentadores televisivos jogam no time dos calções e camisetas vermelhas. Todos. Inclusive os dos canais que pertencem a Berlusconi". quinta-feira, agosto 10, 2006
A PIOR HIPÓTESE PARA DOMINGO Sem conseguir impedir a libertação de 11 mil presidiários durante o Dia dos Pais, o Ministério Público Estadual está tentando proibir pelo menos a saída de 113 deles, pertencentes ao PCC. Se vai conseguir, ainda não sabemos. Há uma apreensão generalizada em São Paulo pela ação da guerrilha no próximo domingo. Como boato puxa boato, fala-se até em um apagão, provocado pela explosão de alguma barragem. O pior que poderia acontecer aos paulistanos, a meu ver, seria um domingo sem violência alguma. Isto significaria que o PCC está plenamente satisfeito com ter dobrado o Estado. Que sua cota de fuga em cada data comemorativa - cerca de 800 apenados - foi respeitada pelas autoridades. Que no próximo Natal pode libertar mais um milhar dos seus. O Estado, julgando satisfatória a trégua, proporá novos acordos ao menor sinal de levante. E a bandidagem tomará consciência definitivamente que tem mais poder que o próprio Estado. Se houver violência, é porque o Estado não cedeu a todas as exigências do PCC. Assim fosse. Não gosto de ser pessimista, mas pressinto que a pior hipótese será a premiada. Mais um pouco e o direito à fuga vira direito adquirido. quarta-feira, agosto 09, 2006
JÁ RAIOU A LIBERDADE, JÁ RAIOU A LIBERDADE... Por decisão da Justiça, na próxima segunda-feira teremos mais algumas centenas de presidiários livres como passarinhos nas ruas da Capital e do Estado. Quantos não voltarão à prisão? Quinhentos? Oitocentos? Saberemos a cifra na terça-feira. Sendo assim, não havendo até este momento provas de que os ataques sejam praticados por intermédio de todos os presos do regime semi-aberto e provas de que a saída temporária já se converteu em oportunidade de intimidação social, o beneficio para o dia dos pais em agosto de 2006 será deferido por este juízo da Capital de São Paulo, mediante avaliação individualizada de cada preso e desde que preenchidos os requisitos legais estabelecidos. Com cópia desta comunique-se à Egrégia Presidência do Tribunal de Justiça, à Egrégia Corregedoria Geral de Justiça, à Secretaria de Segurança Pública, à Secretaria de Administração Penitenciária, à Defensoria Pública, à Ordem dos Advogados do Brasil local e aos estabelecimentos penais sujeitos a esta Corregedoria dos Presídios. Tornem estes autos ao Ministério Público para ciência. Ao término da saída temporária certifique-se sobre a conduta dos presos beneficiados e conclusos. São Paulo, 09 de agosto de 2006. Isaura Cristina Barreira Juíza de Direito Já podeis da Pátria filhos, Ver contente o pai gentil Já raiou a liberdade No horizonte do Brasil Já raiou a liberdade Já raiou a liberdade No horizonte do Brasil ESTADO SE CURVA E OBEDECE O direito de deixar as prisões em datas comemorativas é garantido por lei e pode ser requerido pela defesa do preso à Justiça. Em 2005, no Dia dos Pais, 11.087 detentos ganharam as ruas. Destes, 808 não retornaram às celas. Em maio último, no Dia das Mães, 12.645 presos estavam fora das celas durante a primeira série de ataques do ano. 965 não voltaram. O percentual dos foragidos é de mais de 7 %. É o que nos dizem os jornais. Cerca de mil presidiários fugindo a cada data comemorativa é, a meu ver, razão mais que suficiente para acabar de vez com o benefício. Se tal direito ainda existe, o Estado é cúmplice das fugas. Ao saber que o Ministério Público Estadual pretendia proibir a saída de prisioneiros neste Dia dos Pais, o PCC cometeu mais de cem atentados a repartições públicas, bancos, postos de gasolina, ônibus e carros policiais. A estratégia surtiu bom efeito. Os jornais estão anunciando cerca de 11 mil presidiários livres como passarinhos no próximo fim-de-semana. Se as estatísticas se repetem, cerca de mil deles permanecerão livres para matar, roubar, estuprar, seqüestrar. 8.852 detentos já conseguiram o benefício. O Primeiro Comando Central já demonstrou sobejamente quem manda em São Paulo. O Segundo Comando - papel ao qual foi reduzido o Estado - se curva e obedece. terça-feira, agosto 08, 2006
O MEDO DO POETA-MINISTRO Coerente com sua vocação para perfeito idiota latino-americano, Lula andou propondo uma Constituinte. A proposição caiu mal. Tão mal que não encontrou apoio algum entre autoridades ou instituições nacionais. Após o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ter rejeitado a idéia defendida pelo Supremo Apedeuta, Tarso Genro saiu a campo explicando que a proposta está sepultada, pois nem foi apresentada. O Explicador-Geral da República - ou ministro das Relações Institucionais, como prefere ser chamado - inclusive negou que o governo tenha sido autor da idéia, embora a proposta tenha sido levantada pelo Supremo Apedeuta em uma reunião com juristas, na semana passada. Para Tarso, os fatos não contam. O que importa é a versão. "Tratou-se de uma discussão que surgiu no meio da reunião e o presidente viu com simpatia a proposta". Ó que saudades do extremado senso de autocrítica do ministro quando jovem poeta! Nunca foi tão lúcido quando escreveu este poema profundo, em sua opera magna, Vento Norte: consideração eu nunca quis me encontrar, porque tenho mêdo... de me jogar fora. Coragem, ministro! Não tema enfrentar os medos da juventude. segunda-feira, agosto 07, 2006
O AUTOR ESQUECIDO Gostaria de acreditar na existência de um abismo verde no ser humano, um mar de seiva intacta, que funde todos os restos mortos em seu colossal reservatório e os purifica e recria eternamente... Mas eu não o vi. O que sei é que pais doentes e professores doentes educam crianças ainda mais doentes, até que a doença se torna norma e a saúde um pesadelo. De seres solitários nascem outros mais solitários ainda, de temerosos outros mais temerosos... Onde poderia um último resquício de saúde ter-se escondido ainda para crescer e perfurar a carapaça? Aqueles pobres homens, que chamamos loucos, brincam com seus símbolos. Algo deve ter existido... Kalocaína, de Karin Boye domingo, agosto 06, 2006
O BODE ELETRÔNICO Um certo fatalismo parece dominar as mentes do homem contemporâneo, a ponto de fazê-lo sentir-se indefeso às tentações da publicidade, qual um Ulisses com medo ao canto das sereias. "Como posso não ser consumista" - perguntava-me uma leitora - "se este mundo capitalista me chama toda hora a consumir?" Cantiga para ninar pardais, como dizem os lusos. A sociedade capitalista tem suas bases no consumo e chama os cidadãos ao consumo. Mas não obriga ninguém a consumir. Tenho uma amiga no Sul que hesita em visitar-me porque vivo ao lado de um shopping. Ulisses do século XXI, ela teme entrar no shopping e sair no vermelho. Cabe lembrar que este foi o primeiro shopping em que entrei em minha vida. Foi inaugurado no ano 2000. Entrei porque estava ali, a meu lado. Seria até preconceito não dar uma espiadela. Ou seja, só fui conhecer um shopping aos 53 anos de idade. Hoje, quando "tá sol", como dizem os paulistanos, ou quando chove, eu o uso para atravessar a rua. Confesso que até me agrada olhar algumas vitrines, particularmente as de eletrônicos e delikatessen. No entanto, nestes últimos seis anos, nele comprei apenas um notebook, dois pares de lençóis e dois ou três pares de sapatos, coisas que necessito para viver. Se o leitor me acompanha, desde há muito deve saber que nunca tive carro e não sei sequer dirigir. Certa vez, perguntava-me um interlocutor: mas como consegues viver em São Paulo sem um carro? Ora, vivo como os milhões de paulistanos que não têm carro. Se são milhões os motorizados, nós, os sem-carro, também somos milhões. Minha ignorância em matéria de carros é assustadora. Só reconheço a Kombi e o Fusca. Aí termina minha erudição automobilística. Depois destes, para mim todos os demais são a mesma coisa. Vivo na mesma sociedade capitalista que minha amiga acusava. Sou submetido ao mesmo bombardeio publicitário que tanto a incomodava. No entanto, sou completamente cego ao que o mercado das futilidades oferece. Fora o comer, beber e vestir - coisas inerentes ao viver - meus gastos são em livros e música, pão para o espírito. Quando me interesso por um livro, preciso buscá-lo em uma dezena de livrarias, pois geralmente está fora de mercado. Eu, que sempre curti o que Mário Quintana chamava de "a ronda das lombadas", hoje já quase não entro em livrarias. Nas superfícies mais expostas ao público, só encontro best-sellers, novelas idiotas americanas e livros de auto-ajuda. Nunca precisei tapar com cera os ouvidos para não ouvir o chamado das sereias. Com os anos, adquiri um olhar seletivo que me protege de toda e qualquer publicidade. Se uma dessas maravilhas do universo do consumo for anunciada em página inteira em jornal, não a enxergo. "Propaganda para mim é preto" - disse certa vez à minha mulher, em um restaurante. Ela olhou em torno assustada, para ver se eu não ofendera algum negro. Mas não era a eles que me referia. Falava da fase do paste up nos jornais, quando os redatores recebem uma prova de página com os textos, títulos, fotos e ilustrações da edição a ser impressa, para uma última revisão. Todo o espaço reservado à publicidade fica em preto. Era deste preto que eu falava. Semana passada, comentei a pretensão das autoridades do Butão de eliminar a televisão do país, pois o aparelhinho estaria empanando o novo indicador de bem-estar proposto por Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck, a FIB, ou Felicidade Interna Bruta. O leitor Paulo Naparstek me escreve: No seu último artigo fiquei um pouco confuso com a forma com a qual você traz sua opinião, afinal a própria pesquisa trazida fala que se por um lado dinheiro não traz felicidade, por outro ver seus filhos passando fome, também não ajuda. Aparentemente o ponto a ser destacado era que a excessiva busca material acaba por não trazer a felicidade pois a pessoa nunca se vê satisfeita, afinal sempre há algo novo a se buscar! É nesse conceito que entra a crítica à televisão, pois ela é certamente um veículo que traz ao espectador uma maciça quantidade de bens materiais que não podem ser alcançados pela maioria das pessoas! Não digo que a ignorância desses bens seja a solução, mas as pessoas serem bombardeadas todos os dias com a falsa sensação de necessidade desses bens com certeza não me parece ajudar! O leitor não deixa de ter razão. O bombardeio é impiedoso. Mas não é exclusividade da televisão. Basta um ser vivente sair na rua e as tentações do consumo o assaltam por todos os lados. Não só em outdoors e capas de revista, mas também em vitrines e restaurantes, shopping centers e supermercados. Até mesmo o tráfego é uma vasta exposição de carros - de luxo ou nem tanto - eternamente aberta ao público. Nas ruas mais elegantes das cidades, o vestuário dos transeuntes já incita ao gasto com roupas de grife. Numa sociedade capitalista, da exposição à publicidade ninguém escapa. Assim, não vejo muito porque responsabilizar exclusivamente a telinha pelo consumo desbragado daqueles que se deixam iludir pelas miragens que o comércio oferece. Pouco assisto televisão, mas sempre vejo algo. Nunca comprei absolutamente nada do que a propaganda televisiva oferece. Em minha casa não há um objeto sequer que seja imposição da publicidade. Se as pessoas são pobres de espírito a ponto de achar que tal tênis ou celular, tal Ipod ou tal automóvel vai torná-las mais felizes, a culpa não é exatamente da televisão. Além do mais, o controle remoto é um meio eficaz de fugir à propaganda. Os publicitários devem odiá-lo. Seguidamente saem pesquisas culpando o cinema pelo tabagismo. Ora, me criei vendo seriados em que o mocinho fumava tanto ou mais do que o bandido. Todos os homens de meu clã fumavam. Isto é, me criei entre fumantes. No entanto, jamais pus um cigarro na boca. Estudiosos da mídia falam em propaganda subliminar, mensagens enviadas em fotogramas rapidíssimos imperceptíveis à visão, mas que influiriam poderosamente no inconsciente do espectador. Podem amarrar-me frente a uma tela de cinema ou televisão, emitindo toneladas da tal de propaganda subliminar, 24 horas por dia, que jamais sentirei o mais vago desejo de fumar. Há uma tendência generalizada na sociedade de nossos dias a absolver todo crime ou comportamento nocivo, afinal os seres humanos - coitadinhos! - são produtos do meio em que vivem. Ninguém tem a menor culpa se esfaquear alguém para comprar um par de tênis, afinal a televisão martela incessantemente que ninguém pode ser feliz se não estiver usando aqueles tênis. Não consigo participar desta mentalidade. Sou dos tempos antigos, quando se acreditava que todo homem é responsável pelo que faz ou deixa de fazer. Não consigo ver a televisão como o bode eletrônico de nossa época, que deve ser enviado ao deserto para expiar as culpas do ser humano. Confesso que o nível cultural da programação deixa muito a desejar. Mas todas as ditaduras, desde as comunistas às islâmicas, censuram a televisão. As democracias a controlam rigidamente. Então, algo de bom deve ter. Que mais não seja, tem dois botões, on e off. sábado, agosto 05, 2006
MAIS EUFEMISMOS AO SUL O Rio Grande do Sul se revelou mais ágil que São Paulo em matéria de dourar a pílula. Erny Jr., um de meus interlocutores gaúchos, me conta que lá a Febem passou a chamar-se Fase. Em breve não teremos mais febenzinhos no país. Teremos casinhas, fasinhas. Até que a nova nomenclatura se desmoralize. Aí, em vez de mandar os criminosos juvenis para prisão firme, troca-se de novo o nome da instituição. sexta-feira, agosto 04, 2006
ÓDIO AMBULANTE Tarde da noite. Eu descia a Angélica. À minha frente, vinha um desses menores egressos da Febem. Ao passar por um estacionamento com três carros, deu uma cuspida em cada um. Se o febenzinho odeia tanto assim um carro, me pergunto quanto odiará quem está dentro do carro. São todos menores, muitas vezes frágeis e desmilingüidos. Mas todo transeunte procura tomar deles tomar distância nas ruas. Têm carteirinha de 007, com direito a matar. Febem tornou-se palavra sinônima de crime e ao mesmo tempo impunidade. Para fugir ao desgaste do nome, que já tem trinta anos, o governador Cláudio Lembo pretende trocar o nome para Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). Como se mudando a mosca, mudasse a realidade sobre a qual ela paira. quinta-feira, agosto 03, 2006
FOLHA ESPALHA TERROR Higienópolis, onde moro, não é exatamente um bairro. É mais um estado de espírito, eu diria. Administrativamente, o bairro não existe. O que existe é Santa Cecília. Ocorre que os paulistanos têm um acurado senso de grife. Quando um bairro decai, sua parte nobre adota novo nome. O mesmo ocorreu com Itaquera. Com a decadência do bairro, a parte nobre passou a chamar-se Anália Franco. Você não encontra Anália Franco nos mapas administrativos da cidade. Mas está nos anúncios de todos os grandes empreendimentos imobiliários. Para se ter uma idéia do que está em jogo: se você se interessa por um apartamento em Santa Cecília, o vendedor ou locador invariavelmente o anunciará como estando situado em Higienópolis. Valoriza mais. Tentando pechinchar, você insistirá que o apartamento está em Santa Cecília. Quando chegar a sua vez de vendê-lo, você jurará de pés juntos que fica em Higienópolis. A Folha de São Paulo mancheteou hoje: PM prende acusado de esfaquear pedestres em Higienópolis Foi preso na madrugada desta quinta-feira Afonso Benedito Severiano Jr., de 19 anos, acusado de esfaquear pelo menos três e matar uma pessoa com uma faca de cozinha em Higienópolis, centro de São Paulo. Três dos crimes aconteceram no último fim de semana de julho. Em seu depoimento, Afonso confessa ter esfaqueado aproximadamente 20 pessoas. O caso mais grave envolveu uma jovem que levou várias facadas no abdome no dia 28 de julho, na Avenida Higienópolis, e morreu antes de entrar na sala de cirurgia do Hospital Santa Izabel. As outras estão internadas - uma delas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Afonso foi preso com uma faca de cozinha manchada de sangue em um dos bolsos da calça. Uma testemunha que teria visto Afonso atacando um homem no dia 27 de julho acionou a Polícia Militar. A polícia acredita que ele seja o maníaco que vinha atacando homens e mulheres no bairro de Higienópolis. Ora, um dos ataques ocorreu na Avenida Higienópolis, que percorre tanto Santa Cecília como o que se convencionou chamar de Higienópolis. Mas nas proximidades da universidade Mackenzie, que fica em Santa Cecília. Os demais ataques ocorreram nas ruas Cesário Mota Júnior e Dona Veridiana, ambas em Santa Cecília. Mas o jornal insiste, no título, que os pedestres eram esfaqueados em Higienópolis. A quem serve a desinformação? Aos alarmistas que pretendem que São Paulo está em chamas. Se até em Higienópolis, bairro nobre, há assassinos à solta nas ruas, a cidade está totalmente entregue à violência. Ora, não é bem assim. Higienópolis é um bairro fundamentalmente judeu. (Há quem fale em Hidischienópolis). Em função disto, as ruas estão repletas de seguranças. Não é bairro propício ao crime. Já Santa Cecília - e particularmente a zona onde o criminoso atuava - é zona limítrofe à prostituição e aos redutos de travestis. A Cesário Mota Júnior, onde ocorreu um dos esfaqueamentos, é certamente a rua que reúne o maior número de travestis em São Paulo, a ponto de provocar congestionamentos de carros à noite, cujos ocupantes querem dar uma olhadela nas deusas do pedaço. Bem entendido, São Paulo não é nenhuma ilha de paz e tranqüilidade. Mas está longe ainda de Bagdá. Apesar de um certo jornalismo tentar situá-la no Oriente Médio. A MORTE DE CASTRO ME ENTRISTECE Os editores de Internacional dos jornais do mundo todo já devem estar alisando o caderno especial desde há muito preparado sobre Fidel Castro. Não sei se o leitor sabe, mas todo jornal que se preze tem necrológios prontinhos de todos os homens ilustres do planetinha. Há pessoas em vários países - e especialmente em Miami - fazendo festa ante a perspectiva da morte do ditador. Sem falar que me parece cedo para celebrar, confesso que não participo dessa alegria. Segundo os teólogos, os santos quando morriam exalavam um doce perfume. Daí a expressão "morrer em odor de santidade". Se morrer no hospital, Castro morrerá cheirando a santo. Como ocorre quando uma personalidade morre, todos seus crimes lhe serão perdoados e os jornalistas tentarão fazer do criminoso um herói. De minha parte, preferiria que, antes desta humana contingência, fosse submetido a um Tribunal Penal Internacional. Depois, que morresse quando bem entendesse. Antes disso, a morte de Castro me entristece. quarta-feira, agosto 02, 2006
NUESTRO PERFECTO IDIOTA No Manual del perfecto idiota latinoamericano, Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner e Alvaro Vargas Llosa traçam o perfil do personagem-título: A los cincuenta años, después de haber sido senador y talvez ministro, nuestro perfecto idiota empezará a pensar en sus opciones como candidato presidencial. Tiene a su lado, además, nobles constitucionalistas de su mismo signo, profesores, tratadistas ilustres, perfectamente convencidos de que para resolver los problemas del país (inseguridad, pobreza, caos administrativo, violencia o narcotráfico), lo que se necesita es una profunda reforma constitucional. O una nueva Constitución que consagre al fin nuevos y nobles derechos: el derecho a la vida, a la vivienda digna, al trabajo bien remunerado, a la lactancia, a la intimidad, a la inocencia, a la vejez tranquila, a la dicha eterna. Cuatrocientos o quinientos artículos con un nuevo ordenamiento jurídico u territorial, e el país quedará como nuevo. Nuestro perfecto idiota es también un soñador. Claro que o Supremo Apedeuta não seria exceção à regra. Leio hoje no jornalismo on line: O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse nesta quarta-feira (2/8) que pode enviar ao Congresso, depois das eleições, proposta de emenda constitucional (PEC) propondo a convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva, com a finalidade específica de votar a reforma política. Exceto o fato de que já é presidente, o Supremo segue à risca a bula dos autores. A Constituição Cidadã, em prosa e verso cantada, arrisca não durar duas décadas. O pior é que, da forma como está redigida, é melhor que não dure mesmo. Pensando bem, poderíamos ir mais longe: convoque-se uma Assembléia Constituinte Permanente, para revisar a Carta Magna a cada ano. Uma vez a cada doze meses, nossos perfeitos idiotas poderiam editar seus sonhos, idiotices e utopias. terça-feira, agosto 01, 2006
IN MEMORIAM Meados dos anos 60. Eu estava chegando a Porto Alegre, onde fiz a mais importante de minhas universidades. Não, não foi a UFRGS. O curso de Filosofia não me trouxe maiores luzes. Me refiro ao que chamávamos de a República Popular e Democrática da Praça da Alfândega. Em resumo, a Praça da Alfândega, situada entre a livraria Globo e o prédio da Caldas Júnior. Numa das esquinas da praça, a banca do Martins, nosso assessor cultural, que nos nutria com jornais. À frente, a livraria Coletânea, do Arnaldo e do Brutus. Lá, sempre encontrávamos os últimos lançamentos da Argentina. Era um pequeno corredor, forrado de livros, que nos nutria a alma e aquecia o corpo, nas gélidas noites da Rua da Praia. Naqueles dias em que se podia perambular à noite na Rua da Praia, sem risco de vida ou de assaltos, fazíamos plantão muitas vezes até às seis ou sete da matina. Discutíamos os destinos do mundo, ideologias, filosofia e religião, Platão e Tomás de Aquino. Last but not least, discutíamos esse ser tão semelhante e tão estranho, a mulher. Foi lá naquela ágora e não na universidade que tomei conhecimento dos melhores autores, da história do planetinha e do país e mesmo do marxismo. Na noite de sexta para sábado, lá pelas cinco estávamos ante a gráfica da Caldas, esperando os primeiros exemplares do Correião, ainda quentinhos da rotativa e com cheiro de álcool, para ler os debates do Caderno de Sábado. Foi lá que conheci aquele esquivo lobo da estepe, sempre silente e absorto em si mesmo, olhando para o mundo com um ligeiro dar-de-ombros, o Mário Quintana. Flanava pela Praça como um fantasma mudo, sentava-se sozinho em um banco ou junto aos demais. Se interpelado, falava. Se não, continuava mudo. Se falava, era quase por monossílabos. Não era pessoa de diálogo fácil. Muitas vezes subi e desci a rua da Praia com o poeta, sem ter muito o quê dizer-lhe, apenas gozando de sua companhia. De dez em dez minutos, mais ou menos, largava uma frase, apenas a parte emersa do iceberg que portava dentro. Nestes dias dos cem anos de seu nascimento, Quintana está na moda. Os jornais, que em sua vida foram avaros em dedicar-lhe uma linha que fosse, hoje concedem-lhe páginas inteiras. Nada como a morte para enaltecer um poeta. Quintana viveu quase toda sua vida em quase indigência. Em seus anos finais, recebeu hospedagem gratuita em um hotel do jogador de futebol Falcão e uma magra pensão do governo do Estado. Hoje, os editores forram as burras com sua obra. Os quintanares, saudados por Bandeira, tornaram-se mercadoria de boa vendagem e não passa dia sem que a rede Globo nos exiba imagens da vida do poeta. Não vendem tanto quando as novelas, mas a elas já foram equiparados. Mais que poemas, Quintana tem momentos memoráveis. Quando quiseram erguer-lhe um busto em Alegrete, aceitou. Com a condição de que acrescentassem ao busto: "um engano em bronze é um engano eterno". É frase para permanecer ao longo das eras. Uma outra, de atroz misoginia: "pior que a mulher amada, é a volta da mulher amada". Precisou morrer para ser respeitado. Pessoa também. Diga-se de passagem, o poeta gaúcho teve mais sorte que o luso. Conseguiu editar vários livros em vida, enquanto o português editou apenas um. Mas Pessoa já contava com isso. "A publicação é uma violação do gênio", escreveu. Tornou-se leitura obrigatória nos currículos gaúchos. Mais um pouco, e será leitura também obrigatória nos nacionais. Acadêmicos receberão bolsas generosas para encontrar paralelos à sua obra em Roma, Paris ou Londres. Teses surgirão analisando a importância - ou desimportância - do pronome relativo na obra de Quintana. Já começa-se a discutir a gauchidade do poeta e mais dia menos dia os intelectuais do eixo Rio/São Paulo dirão que, apesar de gaúcho, Quintana era um bom poeta. À força de ser empurrado goela abaixo aos jovens, o poeta sutil se tornará tão enjoativo como óleo de rícino. Ninguém pode obrigar ninguém a ler poesia. Ou dela nos aproximamos por necessidade interior, ou não nos aproximamos. Quando a universidade adota um poeta, está na hora de procurarmos outro. |
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