¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

segunda-feira, abril 30, 2007
 
EUROPA RECHAÇA CRISTIANISMO E TABAGISMO



A partir das 5 horas de hoje, segunda-feira, está proibido fumar em lugares públicos - bares, restaurantes e locais de trabalho - na Irlanda do Norte. Na Escócia, o fumo foi proibido nestes locais em março do ano passado e, no País de Gales, um mês depois. No próximo mês de julho, será a vez da Inglaterra proibir o cigarro. O governo britânico proibirá o fumo também em todas as embarcações que naveguem por águas territoriais do Reino Unido. A Irlanda - leio nos jornais - foi o primeiro país a vetar totalmente o tabaco em locais públicos, em março de 2004. O exemplo foi seguido pela Noruega, Espanha, Itália, Malta, Suécia, Escócia, Gales, Letônia e Lituânia. Mês passado, os 16 Estados da Federação Alemã aprovaram a proibição do fumo em restaurantes, com algumas exceções.

Os dias não são propícios para fumantes na Europa. Em fevereiro último, eu estava em Paris quando o fumo foi vetado em lugares públicos. Foi concedido um prazo adicional de onze meses para cafés, restaurantes (em ambientes separados), cassinos e discotecas. Dia 1º de janeiro do ano que vem, fim da tolerância. Nalgum jornal francês, li algo sobre um certo “cabinet suédois” que certos cafés estariam pensando em instalar. A reportagem não explicava em que consistia, mas pelo que entendi seria uma espécie de banheiro concebido exclusivamente para fumar. Porque nos banheiros propriamente ditos também não se poderá fumar. Curioso imaginar os clientes indo de vez em quando ao "cabinet", para exonerar-se de suas vis necessidades.

Os fumantes estão sendo tratados como leprosos na Europa atual. Em aviões, não se fuma mais. Em trens, se antes havia um vagão para fumantes, agora não há mais. Nas gares e aeroportos, também é proibido fumar. Alguns aeroportos reservam um pequeno espaço para os leprosos, que ficam como que engaiolados para a contemplação piedosa dos demais usuários. Eu, que defendo o sagrado direito de todo cidadão adulto chupar câncer, acho que a Europa exagera. Não vejo maiores inconvenientes de fumar em grandes espaços como aeroportos e gares. Mas os governos europeus deixam claro a seus súditos e demais visitantes que o continente já não tolera o tabagismo. O fato é que estas determinações complicam a vida até mesmo do não-fumante. Se você não fuma e seu companheiro ou companheira de viagem é fumante compulsivo, prepare-se para não poucas incomodações.

No fundo, têm razão. O cigarro está matando demais. Ainda em Paris, testemunhei um episódio que dá plenas razões aos adversários do fumo. Um senhor de uns 60 anos, que só conseguia respirar plugado a um tubo de oxigênio, carregado nesses porta-malas de rodinhas, entrou num tabac. São os quiosques onde se vende cigarro na França. Sei lá porque razões, seu símbolo é um acrílico em forma de carotte (cenoura). Se você quiser cigarro, busque a carotte nas ruas. Pois aquele velhote trôpego, que só conseguia respirar com um tubo de oxigênio, entrou no tabac e pediu dois Gauloises, o mata-ratos francês. Enfim, talvez tivesse também sua razão. Se estava para morrer, por que privar-se de seus prazeres?

O tabagismo, para quem não sabe, é o principal legado dos indígenas da América Latina ao mundo. Claro que nenhum rousseauniano defensor do bon sauvage gosta de ouvir isto. Jean Nicotin - daí nicotina - era embaixador francês em Portugal em meados do século XVI e levou uma folha da planta que receberia seu nome para a rainha Catarina de Médicis. O tabagismo, no fundo, é uma vingança póstuma do índio colonizado. Ao mesmo tempo em que a Europa tenta exorcizá-lo, uma outra droga está perdendo seu poder no velho continente, o cristianismo.

Nestes mesmos dias, os jornais trazem também outra notícia alvissareira da Europa. Em crise, as paróquias estão vendendo igrejas. A perda de clientela está levando padres e pastores europeus a comercializar prédios para fins residenciais. "Cada vez mais, o fenômeno da venda de igrejas vem ganhando força em vários países europeus diante da redução drástica de fiéis nos últimos dez anos nos templos". Se por um lado o maior número de vendas ocorre na Inglaterra, Escócia, Suíça e países escandinavos - redutos fundamentalmente protestantes ou luteranos - o fenômeno também se manifesta nas católicas Itália e Espanha.

Segundo o jornal The Times, mais de mil igrejas poderiam fechar ou ser vendidas nos próximos dez anos na Inglaterra. Sir Roy Strong, líder religioso de destaque, chegou a propor que pequenas igrejas dividam seus espaços com centros comunitários e mercados para agricultores. Em Kent, uma das igrejas da região já se transformou em um local de vendas de produtos naturais. Em Yorkshire Dale, a transformação de uma igreja em templo muçulmano gerou protestos, mas acabou sendo aprovada. Territórios sagrados estão passando a ser anunciados nos classificados de imóveis. Por outro lado, candidato é o que não falta para transformar um antigo templo em sua moradia. Há quem ache agradável morar em um local onde tantas pessoas viveram grandes momentos, como casamentos ou batizados.

Os fatos confirmam uma minha antiga tese, a de que a Europa está se libertando aos poucos de dois grandes males da humanidade, o cristianismo e o tabagismo. Ao que tudo indica, estas tendências estão contaminando o Brasil. Já não são poucas as restrições ao cigarro nas capitais do país. Quanto à religião, quem o afirma é uma fonte insuspeita, Don Odilo Scherer, novo arcebispo metropolitano de São Paulo. Nestes dias em que o maior traficante internacional de drogas está por chegar com toda pompa a São Paulo, o príncipe da Igreja, preocupado com o que chama de "fuga silenciosa de católicos", disse a respeito da atual migração religiosa: "É um fenômeno que atinge não somente a igreja católica. A migração religiosa afeta a todos. Estamos nos debruçando sobre a compreensão desse fenômeno, que nos incomoda". Continuou ainda o purpurado: "A oferta é muita. Vivemos no Brasil o efeito da modernidade. As pessoas se assumem como autônomas e livres do ponto de vista religioso".

E depois ainda há quem diga que os jornais só trazem notícias ruins.

domingo, abril 29, 2007
 
HOY ES FIESTA!



Já que falei em Espanha... Quem me acompanha, sabe de minha paixão pelo país e particularmente por Madri. Camilo José Cela dizia ser a Espanha o país mais lindo do mundo. Assino embaixo e acrescento: e Madri é a cidade mais linda da Espanha.

Não falo do aspecto físico, arquitetônico, da cidade. Neste sentido, se ficarmos só nas capitais, eu diria que Paris e Roma batem Madri de longe. Até mesmo a modernosa Estocolmo, espalhada pelo continente e por mais quatorze ilhas, a meu ver tem mais charme que Madri. Já nem falo de Amsterdã, milagre do engenho humano. Nem mesmo de Praga, vista por alguns como a Paris do Leste. Nem de Viena, imperial e solene. Em minhas primeiras viagens, eu imaginava que os mais belos cafés do mundo eram os de Paris e Madri. Ledo engano de viajante imaturo. São os de Viena. Se você quiser fazer uma viagem de sonho, vá até lá e passe duas ou três semanas apenas visitando os cafés. Vale a viagem.

Mas falava de Madri. Se você conhecê-la por fora, a cidade não impressiona muito. Pelo menos para quem já conhece as demais capitais européias. É preciso conhecê-la por dentro. Seu encanto reside nos madrilenhos e na vida callejera. Se você sair para a rua às nove da noite, pode até pensar que a vida noturna já morreu. Nada disso. É que eles ainda não saíram de casa. Nem pense em almoçar ao meio-dia, os restaurantes estão desertos. Eles começam a pensar no assunto a las dos del medio día. Neste intervalo, o comércio fecha as portas. Para abrir lá pelas quatro e meia ou cinco, que ninguém é de ferro. Afinal, temos ainda a siesta, ritual único na Europa, recuperação para enfrentar a noite. Há horas a Comunidade Européia tenta regularizar o horário de comércio e bancos na Espanha e abolir a siesta. Mas Madri resiste: No pasarán!

Já vivi madrugadas esplêndidas em Madri, a temperatura a menos de zero grau e os madrilenhos fervilhando pelo casco viejo da cidade. Nada de automóveis. Homens e mulheres, velhos e crianças, todos a pé. O que costumo chamar de geografia etílica é um quadrilátero relativamente pequeno, que se estende da Plaza Mayor até Paseo de Recoletos - passando por Plaza del Angel e Lavapiés - voltando por Fuencarral e fechando na Plaza de Oriente, frente ao Palácio Real. Dentro deste quadrilátero você tem o melhor de Madri. Fora dele até pode ter coisas interessantes. Mas não interessam muito.

A estratégia é ir de tasca em tasca, umas tapas aqui, outras lá adiante, até finalmente sentar para jantar. A pequena distância entre um e outro bar estimula os vecinos - os habitantes da cidade - a caminhar. Há uma certa histeria nas noites madrilenhas. Uma das coisas que mais me fascina é ver a velharada em massa nas ruas e bares. A impressão que me fica é que ninguém senta diante de uma televisão naquelas bandas. Nota-se também um certo narcisismo na hora da bona-xira. Os espanhóis parecem ter elegido a cidade como uma espécie de espaço teatral e gostam de mostrar à platéia como comem bem.

Um amigo me contou um daqueles episódios que marcam a vida de um viajante. Estava em um cabaré de luxo e uma senhora já idosa e finésima o abordou e entregou-lhe um cartão:

- En su casa, Usted tiene la mujer de su vida. En nuestra casa, tenemos la mujer de sus sueños.

Elegância que não vamos encontrar em qualquer cidade do mundo. Quando se vive algum tempo numa cidade, sempre fica um episódio que nos marca fundo. Minha marca foi outra. Já vivia em Madri há uns bons seis meses, quando um amigo de Paris veio visitar-me. Pensei brindá-lo com algo típico. Em Maravillas, meu bairro, havia um pequeno restaurante muito ligado às lides taurinas, que servia um excelente rabo de toro. Lá por las nueve de la tarde, como dizem os madrilenhos, rumamos à tasca. Mal entramos, um venenciador nos recebeu com dois finos em punho.

Venenciador é um profissional que se especializa em servir jerez. Veste-se com uma espécie de traje de luces, aquelas vestes de toureiro. O fino é um copinho fino - daí o nome - onde se serve o jerez. Com uma haste de mais ou menos um metro, com outro copinho fino na ponta, ele apanha o jerez em uma barrica, e o despeja de uma altura de mais de metro no fino propriamente dito. Sem derrubar uma gota. É uma arte fascinante, mais ou menos perdida na Espanha atual.

O bar estava tomado por bailaoras y cantaores, que cantavam sevillanas. Fomos recebidos por uma saraivada de palmas y taconeos. Mal nosso jerez evaporava, o venenciador mergulhava o copinho no tonel e repunha a dose. Tudo isso, tendo como pano de fundo o alarido infernal das sevillanas.

Mas meu propósito era comer. Chamei o garçom. Temos rabo de toro?

- Hoy no se come. Hoy es fiesta.

Muy bien. Vamos então continuar a fiesta. Entre um fino e outro, hipnotizados, contemplávamos os meneios das bailaoras e os piropos dos cantaores. Acontecera que um toureiro amigo da casa havia matado cinco ou seis touros naquela tarde. A festa era em sua homenagem. Lá pela meia-noite, preocupado com o estômago, pedi a conta.

- Hoy no se paga. Hoy es fiesta.

Como não morrer de amores por uma cidade que acolhe o estrangeiro em suas festas íntimas, o recebe com a finesse de um venenciador, oferece-lhe seus melhores vinhos e suas mais lindas canções e mulheres, sem cobrar nada por isso?

Hoy es fiesta. Quando evoco Madri, esta é a primeira imagem que me vem à mente. Em verdade, lá é festa todo dia.

sábado, abril 28, 2007
 
TRISTES NOTÍCIAS DA ESPANHA



Nestes dias cheios de ameaça, em que o Islã ameaça a Europa, Bush ameaça bombardear o Irã e Putin ameaça ressuscitar a Guerra Fria, um leitor me envia uma notícia deveras preocupante. Parece que as caixas de vinho estão ameaçando a Espanha. Escreve Rodrigo Jovani:

Acabei de ler o texto sobre vinho em tetrapak e devo dizer que concordo com tudo o que foi exposto. O ritual é parte fundamental dos bons momentos da vida. Sem ele, caímos na banalização do fast-food, da culinária de Shoping Center e seus talheres de plástico. Entretanto, devo comentar que isso não é moda só aqui em Pindorama. No tempo em que vivi em Madri (ah... que saudades), o tradicional "vino de la casa", servido em taças nos restaurantes e bares, já era do tipo encaixotado. Acredito que o mesmo ocorra na França. Tive um choque ao descobrir. Senti que estava sendo enganado, mas é uma daquelas tendências aparentemente inevitáveis da modernidade, assim como a tal rolha de plástico... A partir de então passei a pedir sempre vinho em garrafa. É bem verdade que algumas vezes tenho que beber uma garrafa inteira sozinho, mas é um sacrifício que estou disposto a fazer pela causa!

Bem, Rodrigo, deves ter morado mais recentemente em Madri. Morei lá em 87 e nunca vi essas barbaridades. Se visse, abandonaria na hora o restaurante. Diga-se de passagem, de lá para cá tenho visitado Madri quase todos os anos, e também não vi as famigeradas caixas. Verdade que sempre procuro restaurantes com mais de um século de existência, e estes resistem à vulgaridade contemporânea. (Se a cidade me oferece dezenas de restaurantes seculares, não vejo porque freqüentar ambientes com apenas meio século). Em casas como El Sobrino de Botín (de 1725), Gijón, El Espejo, ou naquele magnífico restaurante numa cave do Oriente, não vais encontrar tais heresias.

Quanto às garrafas inteiras, de fato são um problema em Madri. Em meus dias de estudante, morei em Maravillas, bairro nada turístico, cheio de restaurantes singelos, ótimos e a bom preço. Lembro que costumava almoçar por algo entre quatro e seis dólares. A fórmula era interessante: duas ou três opções de entrada e outras tantas de prato principal e sobremesa. Mais media botella de vino, e sempre vinho dos mais palatáveis. Ocorre que o garçom sempre me trazia uma garrafa inteira. Nas primeiras vezes, reclamei:

- Pero no es media botella?
- Beba lo que quiera, caballero.

Que fazer senão aceitar a simpática oferta do garçom? Suponho que em nenhum outro país do mundo um restaurador oferecerá uma garrafa de vinho pelo preço de meia. Desisti de reclamar. Em São Paulo, improvisei uma fórmula interessante. Como sempre almoço fora, tomo meia garrafa e deixo metade para outro dia. Em pelo menos três restaurantes, sempre tem alguma media botellita me esperando. Sem falar que isso me dá a sensação de que o segundo almoço sai sempre mais barato.

Triste receber tal notícia da Espanha. Grosserias destes dias de fastfood. A verdade é que os otários são legião. Certa vez, uma colega de magistério ia para Madri. Passei a ela uma lista dos melhores restaurantes da cidade. Na volta, cobrei: como é que é? Gostou? Me respondeu que não fora a nenhum deles, só freqüentara McDonalds.

Cortei relações com a moça. Por mais tolerante que seja, não posso admitir em meu pequeno círculo uma pessoa que tem oportunidade de degustar a soberba culinária espanhola e opta por sanduíches gordurosos. A tais inimigos da bona-xira deveria ser proibido conceder passaporte.

 
NO REINO DOS BRUTAMONTES



No Irã, a polícia de costumes andou recentemente proibindo as mulheres de usar roupas coloridas ou deixar os cabelos expostos sob o chador. A cada verão, a polícia se incumbe de uma missão vital para a preservação dos bons costumes e do Estado teocrático persa: além de coibir cabelos à mostra e roupas coloridas, proíbe também casacos justos que mostrem as formas do corpo e calças que deixem os tornozelos à mostra. É lá deste Irã estúpido que nos chega a última aiatolice dos aiatolás. Em virtude de lei que entrou em vigor na semana passada, mesmo os manequins de lojas terão os seios cortados. Decididamente, os discípulos de Maomé não gostam de curvas. O que vale dizer: não gostam de mulheres. Pois se algo há essencialmente feminino são as curvas.

Me ocorre citar esta ode às mulheres, de um obscuro e genial cronista gaúcho, morto nos anos 70, Ney Messias. Que não achava graça alguma no corpo anguloso dos machos. Falando sobre a hipótese de um regime de matriarcado nos primórdios da história, escrevia o Ney:

Só a mulher era a fecundidade, aquela fecundidade que a terra, eterna virgem e eterna parturiente, prodigalizava em frutos e flores. Além disso, o homem anguloso, desarmônico e brutal, destoava do universo que é todo curva: lua redonda, sol redondo, marcha curva dos planetas, pedra jogada na horizontal mas sujeita à parábola da queda que é sempre uma expressão curva, curvos os frutos, harmônicas curvas as pétalas. O universo é essencialmente curvo, não só na sua curvatura visível como na invisível e doce curva do espaço descoberta por Einstein. Só mesmo um ente que é um cacho de curvas, como a mulher, poderia comandar as primeiras sociedades humanas. Depois veio o patriarcado, etapa da economia mais complexa da caça e da vegetação dominada, que se chamaria agricultura: só um brutamontes poderia dominar o mundo, e dominou mesmo. Mas dominou nominalmente, porque a mulher continuou sendo o centro de tudo: objeto de disputa, conteúdo da arte, fonte, como os astros, de contemplação. A mulher nua ou vestida era o grande templo em que oravam os olhos de quem contemplava. Os homens saíam rua em fora para olhar as mulheres, e as mulheres para serem olhadas, nunca para olhar.

Se os brutamontes um dia dominaram o mundo, no Ocidente pelo menos foram forçados a dar espaço às mulheres e suas curvas. Ocidentais, vivemos em meio a um universo curvilíneo e ninguém, em são juízo, vai afirmar que as curvas atrapalham a vida social, o comércio, a educação ou a paz. Mas o patriarcado árabe permaneceu enclausurado na época dos brutamontes. Em todo o universo islâmico, a mulher é forçada a esconder suas formas. No Irã, desde 1979, quando Khomeiny entrou em Teerã a ferro e fogo, com seus pasdarans metralhando bares e boates, as leis do país exigem que as mulheres cubram os cabelos com véus e usem roupas que escondam os contornos do corpo. O chador, que muito ocidentais confundem com outros véus islâmicos, cobre todo o corpo, deixando apenas o rosto à vista. Mas não os cabelos.

Sobre estes, escrevia o genial Ney Messias:

Entre os povos orientais o cabelo é sacrificado em mechas aos rios sagrados, assim como os primeiros cabelos dos recém-nascidos são ofertados aos deuses. É porque, de certo, dos ônus corporais, dessa imensa carga de miséria que é o corpo humano, o cabelo aparece quase como espírito, porque é multiforme como a chama ao vento, como a água revolta das ondas, como o ar que se respira.

A polícia de costumes dos aiatolás, além de ser avessa às curvas, tampouco tem apreço por esta chama quase espírito. Desde há muito defendo a tese de que o mundo islâmico é profundamente homossexual. Nada contra o homossexualismo. Mas este homossexualismo islâmico é doentio. É preciso ser muito doente para proibir as mulheres de exibirem seus encantos aos demais homens e mulheres. Segundo os jornais, mulheres estão sendo abordadas nas ruas pela polícia e, caso não aceitem mudar seu modo de vestir, são levadas à delegacia, sendo liberadas apenas após parentes ou amigos terem fornecido roupas consideradas "respeitáveis" para vestirem.

Seria interessante resgatar alguns desses manequins de seios cortados, para exibição em algum museu que se propusesse denunciar os horrores do século XXI. Que os muçulmanos são useiros e vezeiros em cortar clitóris, disto há muito sabemos. Mas cortar seios de manequins exige uma brutalidade muito maior. Não se corta a coisa, mas o símbolo dela.

Audace, messieurs les perses, toujours de l’audace. Que tal ir logo ao âmago da questão e cortar os seios das iranianas? Assim, as roupas justas perderiam pelo menos parte de seu caráter pecaminoso. A mulher sempre foi mesmo um ser obsceno. Suas curvas atrapalham o bom funcionamento do Estado. Melhor falquejar seus corpos, para que não perturbem a mente sadia dos bravos machos iranianos.

sexta-feira, abril 27, 2007
 
CONGRESSO INSTAURA NOVO TRIBUNAL



O Congresso Nacional, talvez sensível à atual desmoralização do Poder Judiciário, parece ter criado uma nova instância jurídica, as urnas. Leio nos jornais que o Conselho de Ética da Câmara livrou ontem três deputados acusados de envolvimento nos escândalos do mensalão e dos sanguessugas na legislatura passada da abertura de processos de cassação de mandato por falta de decoro parlamentar. Nove conselheiros, todos governistas, aprovaram o relatório de Dagoberto Nogueira (PDT-MS), com adendo do petista José Eduardo Martins Cardozo (SP). Apenas quatro deputados votaram contra. Para os governistas, a abertura de investigação agora seria uma afronta à vontade dos eleitores que votaram nos três parlamentares e os reconduziram à Câmara, apesar das denúncias.

Você tem uma irrefreável vocação para a corrupção e roubo dos cofres públicos? Se não quiser ser punido, eleja-se imediatamente deputado. O generoso tribunal das urnas o absolverá de qualquer crime.

 
MAIS RESPEITO COM O SANGUE DE CRISTO



O cristianismo tem seus bons legados e um deles é o vinho. Onipresente na Bíblia, em uma leitura rápida encontrei 195 referências a este fruto do sol e da terra. Em muitos casos, é descrito como causador de sofrimento e proibido por Jeová. Mas os homens são incorrigíveis. No Eclesiastes, lemos: "Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe o teu vinho com coração contente; pois há muito que Deus se agrada das tuas obras". No Cântico dos Cânticos, Sulamita pede a Salomão: "Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho". Amor pode ser melhor. Mas o elemento comparativo é o vinho.

Já no Gênesis, o vinho é pretexto para Ló, sobrinho de Abraão e único homem justo de Sodoma, dormir com Moabe e Ben-Ami, de quem viriam os moabitas e os amonitas. Como o bom Jeová nada objetou a este conúbio, podemos inferir que não comete pecado todo pai que, embebido de vinho, leva suas filhas para a cama. Mas é no Novo Testamento que o vinho se torna um elemento fundamental do cristianismo, quando Cristo institui a Eucaristia. O vinho, uma vez consagrado pelo sacerdote, torna-se literalmente seu sangue.

Não há cristianismo sem vinho. Já os brutos que cultuam o Corão o proíbem. Nada de espantar. Os desertos árabes não são propícios a vinhedos e o vinho jamais poderia ter um papel econômico nas regiões onde o islamismo nasceu. Se não dá lucro, pode ser perfeitamente dispensado.

Cultor deste bom legado cristão, não consigo curtir o vinho sem um certo ritual. Claro que o que mais importa é o sabor. Mas as virtudes organolépticas são apenas seu pressuposto básico. Outros elementos hão de envolvê-lo, ou então beber vinho não tem graça. Para começar, a cor. As garrafas devem mostrá-la e os copos, em princípio, terão de ser claros e transparentes. Nos tempos bíblicos os vinhos eram armazenados em odres. Jeroboão, o primeiro rei de Israel, afogou-se em um deles, bebendo hidromel. Mas o mundo mudou de lá para cá e as garrafas não oferecem tais riscos. Naqueles tempos - como costumam dizer os autores dos Evangelhos - não havia vidro.

Mudou para pior ou para melhor? Se em épocas passadas havia um culto ao requinte, as presentes estão se revelando vulgares. No que tange ao vinho, levei um choque ao ver as tais de garrafas azuis, que algum produtor vagabundo tentou introduzir no mercado. Creio que as vi, pela primeira vez, em um supermercado em Paris. Mais tarde chegaram ao Brasil. Você não tem uma idéia precisa do que seja um bruto? Observe o fácies lombrosiano de quem compra vinho em garrafas azuis.

Mais recentemente, alguns vinhos trocaram as rolhas de cortiça por rolhas de plástico e silicone. Ora, a cortiça tem suas razões de ser. Teria sido introduzida por um emérito conhecedor de vinhos, o monge beneditino Dom Pierre Pérignon - segundo a lenda, o descobridor do champagne - e aqui vai mais uma contribuição do cristianismo à arte do bem beber. A humanidade fez várias experiências para fechar garrafas, desde tampas de cristal até tampas de madeira. Nenhuma se revelou tão eficaz quanto a cortiça. Cheirando a rolha de cortiça, você não vai definir uma cepa, mas pelo menos pode saber se o vinho está deteriorado ou não. Assim, quando um garçom me oferece uma rolha de plástico, fico completamente sem graça e com vontade de trocar de restaurante.

Vinho exige ritual, dizia. Você não vai tomar um bom vinho em um boteco de mesas de plástico e televisão ao fundo. O bom vinho, diria, exige boa companhia, talvez uma boa música ao fundo. De preferência, em surdina. Taças adequadas e toalhas lindas. É pecado que clama aos céus beber vinho ouvindo futebol. Por favor, mais respeito ao sangue de Cristo. É claro que um restaurante com um décor solene e ambiente silencioso confere a qualquer vinho um alto valor agregado.

Não imagine o leitor que tenho dons de sommelier. Nada disso. Minha memória olfativa e palatal é curta. Posso tomar hoje um excelente vinho, daqui a dois ou três meses não saberia reconhecê-lo. Aliás, assim como não creio em Deus, tampouco creio em sommeliers. Não há memória humana que guarde os milhares de bouquets que eles pretendem guardar. Sommelier é um pouco como astrólogo, um vigarista.

Não tenho maior apreço por vinhos brasileiros. Talvez um pouco em função desta psicologia patrioteira de certos compatriotas, que acham que todo brasileiro deve consumir produtos nacionais. Em verdade, nem tenho autoridade para falar dos nacionais, pois há mais de trinta anos não os degusto. Não se mexe em time que está ganhando. Aqui no continente, sou muito gratificado pelos vinhos da Cordilheira, particularmente os Malbec e Carmenère, e não vejo porque fazer aventuras.

Especialmente quando leio que as adegas brasileiras estão lançando vinhos de uvas finas em bag-in-box. Que a meu ver devem ser as tetrapak suecas, um grande achado quando se trata de leite ou sucos. Em suma, caixas de papelão. Pior ainda, com torneirinhas. Pobres uvas finas. A gaúcha Valduga teria sido pioneira nesta embalagem rastaqüera. Agora, a Miolo a acompanha nesta barbárie. Se desde que me conheci por gente não vi motivos para tomar vinhos tupiniquins, agora mesmo é que deles só quero distância.

Vinhos de uvas finas em caixas de papelão com torneirinhas! Só o que faltava. Se algum dia, em algum restaurante, um garçom me oferecer esse insulto, levanto incontinenti da mesa e ainda entro com ação contra a casa, pedindo indenização por danos morais.

quinta-feira, abril 26, 2007
 
MENTIRA COMPLETA 70 ANOS



Leio na Folha on line:

A população de Guernica, na Espanha, relembrou nesta quinta-feira, 26, o 70º aniversário dos bombardeios que destruíram a cidade durante a Guerra Civil espanhola (1936-39) com a nomeação de capital mundial da paz. O massacre, ocorrido em 1937, foi a inspiração de uma das obras primas do pintor Pablo Picasso, batizada com o nome da cidade.

Que a cidade de Guernica relembre os setenta anos do bombardeio, entende-se. O que não se entende é que o redator acrescente a informação de que o bombardeio inspirou "uma das obras primas do pintor Pablo Picasso". Esta mentira, criada por Picasso, se repete há décadas. Como a mentira se repete, vou também repetir-me.

Ora, os fatos são bem outros. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do malaguenho, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi.

Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, até hoje multidões hipnotizadas pela propaganda vêem em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. Busque o quadro na rede e examine-o. Você não vai encontrar um único elemento que lembre um bombardeio.

Esta lenda até hoje é repetida, tanto por professores e jornalistas como por escritores de renome. De um só golpe de pincel, o pintor malaguenho traiu a memória do amigo e mentiu para a História.

 
CERTEZAS FANÁTICAS



Em seu blog, escreve Júlio Lemos:

Percebi uma tonalidade recorrente nos artigos do Sr. Janer Cristaldo que me faz lembrar a de um velho aposentado que perdeu a virilidade e agora fica a atacar a Igreja, os padres, os protestantes, o cacete a quatro, pois não consegue encontrar mais consolo na sua subjetividade diminuída. Não falo da pessoa do eminente articulista, mas daquilo que os seus escritos evocam – a título de "salvaguarda moral do autor", que não merece ser ridicularizado e muito menos difamado.

Sem falar "da pessoa do eminente articulista"... mas falando, é claro. Meus artigos lembram então um velho aposentado que perdeu a virilidade e por isso fala mal da Igreja e dos padres. É isso? Um outro cronista, astrólogo e sedizente filósofo, me chamou de farrapo humano "que se aproveitava de seu estado de viuvez" para falar mal da Igreja. Para um, se falo mal da Igreja é porque sou viúvo. Para outro, é porque sou velho e impotente. Ou seja, no fundo não se admite que um adulto, gozando de juventude e em pleno domínio de suas faculdades mentais, possa criticar a Santa Madre Igreja Católica.

Esta certeza fanática em nada difere daquela certeza dos velhos comunistas, que olhavam com desdém e piedade para quem não partilhasse de suas crenças, como se não ser comunista fosse um atestado de debilidade mental. Pois saibam estes senhores que minhas críticas à Igreja datam de quando sequer era núbil. Meu primeiro artigo publicado, saiu no Ponche Verde, pequeno jornal de Dom Pedrito, e intitulava-se "Esses padres..." Assim mesmo, com reticências. Pelo título já se pode ver que não era nenhum louvor às virtudes da Santa Madre. Eu tinha então 14 ou 15 anos. Ou seja, mal pus um pé na imprensa, já malhava os católicos.

Na época, fui chamado de arrogante. Um padre da diocese de Bagé foi chamado para acalmar-me. Discutimos um dia inteiro, esvaziando várias jarras de água. O franzino Torquemada apelou para o argumento da autoridade: quem você pensa que é para negar o que ilustres sábios da Igreja já decidiram? Eu era o Janer, ué! Um jovem de quinze anos, mas que já havia lido Voltaire e Descartes. Eu não me apoiava em nenhum Tomás de Aquino ou Santo Agostinho para entender o mundo. Apoiava-me em minha razão. Devo confessar que hoje, aos sessenta, tenho um profundo respeito por aquele menino imberbe, que enfrentou com hybris uma velha raposa da Igreja.

Publiquei mais de três mil artigos em jornais e revistas ao longo de minha vida e certamente uma boa centena deles - senão mais - são de críticas ao catolicismo. Escrevi outros tantos criticando os marxistas e petistas em geral. Considero o catolicismo uma doutrina muito mais perversa que o marxismo. O marxismo mal conseguiu emplacar sete décadas no poder. O catolicismo existe há dois milênios. O marxismo não dispensa o aparato de Estado para oprimir os cidadãos. A Igreja instala uma maquininha de tortura na consciência de cada crente, e a este delega o poder de acioná-la. Ou seja, meu caro, não é a idade - e muito menos a viuvez - que me impele a escrever o que penso dos católicos.

Segundo Lemos, o sexo, para mim,

parece ser simplesmente uma coisa, um fato fisiológico cuja repressão é um tabu e ponto final - salvo a sua intenção recorrendo às exceções: as perversidades socialmente incorretas, como a pedofilia, a necrofilia, etc. Se para ele não há critério racional para o agir sexual, restam apenas a fisiologia, na vida privada, e as convenções que estiverem de pé na data em que o artigo for escrito.

Mas que sabe este senhor sobre minha visão de sexo? Baseado em quê insinua que defendo a pedofilia e necrofilia? Jamais reduzi sexo à fisiologia. Aliás, considero que sexo é, antes de tudo, mental. Tentei ser casto nos dias em que estava preso ao leito de Procusto católico. Não deu. A carne falou mais alto. Por outro lado, porque ser casto? Só porque Roma queria? Mas que tenho a ver com Roma? Tão logo me libertei da ética vaticana - e isso aconteceu lá pelos 16 ou 17 anos - quis recuperar o tempo perdido. Me entreguei com gosto e com gula aos ditos prazeres da carne. Que, em verdade, são prazeres do espírito. Enchi meus dias de mulheres. Como o Jeová do Gênesis, olhei para minha obra e vi que era boa. Se há algo que hoje embala meus dias, além das viagens que fiz e dos livros que li, são as amigas que tive e que ainda tenho.

O articulista me acusa de nada entender em sexo. E brande os bizantinos conceitos de ágape e eros:

O que o típico velhão não consegue pegar no ar, possivelmente por falta de formação e critério, é que os impulsos sexuais não são os únicos componentes da sexualidade. Há o eros propriamente dito, e há o ágape, formas de sexualidade superiores que as civilizações mais avançadas não só conheciam como encorajavam vivamente: os gregos, os romanos, os hindus, as gentes da velha cristandade (veja os vitrais, as ordens de cavalaria, o amor cortês, etc). É uma pena que a civilização moderna tenha - após sucessivas baixas na guerra entre a cultura do homem equilibrado e a do arrasta-pé ostrogodo - descartado primeiro o ágape, com o romantismo, e depois o eros, com o ethos pós-moderno do "pansexualismo", uma espécie de ditadura da physis que obnubila as sensibilidades.

O que Lemos não diz - talvez por pudor - é que os conceitos de eros e ágape são a mais recente trouvaille de Ratzinger para justificar sua misoginia e a misoginia de seus ministros. Estão em sua primeira encíclica, Deus é amor. Como se o Deus genocida e cruel da Bíblia pudesse ser identificado com amor. Mas isto já é outro assunto.

Entende de mulher quem as conhece. Entende de sexualidade quem a vive. Que pode entender de sexo Ratzinger, que em função de seu sacerdócio está submetido a um voto de castidade? Que autoridade tem para falar em sexo quem optou, por vocação, por ser eunuco? Sexo sempre me aguçou a sensibilidade. Entendo que obnubile a dos católicos. São crentes de uma crença que cultua a dor e o sofrimento, tanto que o símbolo maior do cristianismo é um instrumento de tortura. Quanto a mim, prefiro o prazer. Melhor cultuar Príapo que o velho Deus castrado do Antigo Testamento.

Católico não sendo, não tenho razão alguma para aceitar conceitos do magistério da Igreja. É como se a encíclica de Ratzinger contivesse verdades universais, às quais todos os homens devem submeter-se. Nisto reside o espírito totalitarista de católicos e marxistas: "eu tenho a verdade e tu tens de aceitá-la". Em todo caso, se por hipótese visse alguma pertinência nas bizantinas distinções de Ratzinger, eu diria que vivi eros e ágape com plenitude. Y algunas cositas más.

"O que esses tipos não percebem - continua o cronista papista - é que há todo um universo a ser explorado na cultura ocidental no campo da sexualidade; vias perdidas e novas frentes".

Não, não perdi nenhuma via nem nenhuma nova frente. Algo contra? Ou pretenderá o articulista ditar meu comportamento na cama?

quarta-feira, abril 25, 2007
 
MADALENA DE HARVARD SE RETRATARÁ



Leio nos jornais de hoje que o catedrático carreirista Roberto Mangabeira Unger prepara um discurso de desculpas a Lula. Que será pronunciado na próxima quarta-feira, dia de sua posse como ministro da Secretaria de Ações a Longo Prazo. Será muito divertido. A Madalena de Harvard vai negar precisamente um de seus raros momentos de lucidez. O poder assim exige.

Desconfio profundamente de articulistas que surgiram nos últimos anos, preocupados em desancar histericamente o governo Lula. Críticas ao governo e ao presidente, sim. Mas toda histeria é suspeita. Em verdade, estão expondo a alma no mercado das ambições políticas para ver quando pagam por ela. Mangabeira que o diga.

 
HARVARD DESMORALIZADA
POR UM RELES VIRA-CASACA



Reproduzi, segunda-feira passada, o vibrante artigo em que o professor Mangabeira Unger acusa o governo Lula de corrupção e pede o impeachment de Lula. Agora que foi convidado para uma secretaria com status de ministério, o professor retirou o artigo de sua página pessoal. O gesto, além de covarde, é inútil. O artigo permanece nos arquivos da Folha de São Paulo e agora consta de milhares de blogs. A justificativa para este comportamento safado veio através do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), aquele santo pastor evangélico que, não contente de extorquir os centavos de seus crentes, quer agora extorquir dinheiro de todos os contribuintes, exigindo para seus templos os benefícios da famigerada lei Rouanet. Mangabeira Unger está em boa companhia.

"Mangabeira, como grande parcela da população brasileira, mudou de idéia e concluiu que o presidente não teve nada a ver com a crise", disse o pastor e senador. Questionado se não haveria nenhum constrangimento o senador e pastor disse que "o constrangimento é de quem não sabe voltar atrás. As pessoas têm opinião e podem mudá-la".

Isso é verdade. Albert Camus temia o homem incapaz de mudar de idéias. Ocorre que mudar de idéia não significa simplesmente negar hoje o que se escreveu ontem. Mudar de idéia exige uma reflexão sobre o que se pensava ontem e outra sobre o que se pensa hoje. Não é coisa que dependa da oferta de uma prebenda. Se Mangabeira ainda ontem considerava o governo Lula corrupto, supõe-se que tenha feito profundas reflexões para chegar à conclusão de que não é. Pois a esta conclusão deve ter chegado o professor, para aceitar participar de um governo que antes considerava corrupto.

Não tivemos oportunidade de ouvir os arrazoados do scholar de Harvard que justificariam sua nova postura. Mudou de idéia e fim de papo. Mesmo ocupando um espaço prestigioso na Folha de São Paulo, onde publicou - há menos de dois anos - seu indignado artigo contra o governo Lula, o professor deve achar que não deve satisfação alguma a nenhum leitor sobre sua brusca mudança de Weltanschaaung.

Conheço não poucos escritores que em sua juventude foram marxistas. Ao tomarem consciência de que apoiavam uma doutrina totalitária, fizeram marcha a ré e reformularam seu pensamento. Mas isto não se fez sem uma reflexão profunda sobre o que antes pensavam e uma admissão pública do erro em que haviam incorrido. Para muitos, foi uma operação dolorosa, algo como perder uma fé que lhes servia de rumo na vida. Sem falar que tiveram de enfrentar uma espécie de morte civil, condenados que foram por um século que via no marxismo a suprema verdade.

Tenho visto chusmas de comunistas que nem querem mais ouvir falar desta palavrinha. Hoje são socialistas. Ou sociais-democratas. Ou democratas, simplesmente. Em momento algum ouvi a confissão: "eu fui uma solene besta". Mudam de idéia como quem muda de roupa, sem o compromisso de dar explicação alguma. Mas idéias não são coisas que se troquem como se troca roupa. Que mais não seja, o professor Mangabeira Unger deve no mínimo um pedido público de desculpas ao presidente.

Esse pedido não ouvimos. A confissão de que era uma solene besta - o que não era o caso, mas se imporia em função de sua virada de casaca - muito menos. O ilustre acadêmico agiu com a irresponsabilidade de um moleque que num dia insulta um colega de classe e no dia seguinte está brincando com ele, como se nada houvesse acontecido. Seu gesto compromete inclusive a prestigiosa Universidade Harvard, que abriga em seus quadros acadêmicos flores que não são de cheirar-se. É indigno de qualquer acadêmico que se preze renunciar às suas convicções em troca de um aceno do poder. Nada contra a intelligentsia - ou melhor, burritzia - brasileira. Mas foi preciso que um brasileiro chegasse a Harvard, para desmoralizar a instituição.

Comentando estas e outras com um amigo, ele me dizia que Lula conhece o coração dos homens. De fato, conhece. O Supremo Apedeuta, que muda de idéia conforme as conveniências, sabe muito bem quem são seus pares. Sabe também o preço de cada um.

terça-feira, abril 24, 2007
 
SOBRE O SENHOR JESUIS



A respeito do artigo "Senhor Jesuis quer sua grana", recebi o seguinte mail, assinado por um certo Afonso:

O artigo é totalmente desrespeitoso à liberdade de culto e crença. É criminoso. É preconceituoso e discriminatório acerca dos evangélicos. Um artigo sujo como esse deveria sofrer represálias das mais diversas, pois à medida em que é livre a manifestação do pensamento, existe um ordenamento legal, no mínimo de ética acerca de comentários vexatórios à índole de pessoas ou grupos. Se o colunista Cristaldo não é um criminoso, pelo menos é um desrespeitador antiético leviano. Os evangélicos deveriam menosprezar pessoas e artigos desse tipo. Entregá-lo à concupiscência dos seus próprios pensamentos e soberba é a melhor represália que um cidadão como esse pode receber.

De outra leitora, recebi este:

Janer,

Cá estou novamente. Bem abrangente sua coluna. Nunca ninguém teve coragem de abordar a IURD. Se me permite comentar, é o caso do mecânico do meu carro. Ele tem sua oficina mecânica que o pai dele passou para ele, se casou, tiveram um filho hoje com 22 anos e pasme. A esposa dele, gananciosa, começou a freqüentar essa IURD e olha, acabou o casamento do mecânico. O filho trabalha para pagar o tal de dízimo, toda noite dita mulher vai ao culto e leva o produto do trabalho da oficina. Inclusive eu caí no conto. Não sabia que a mulher estava nessa e me lesou em R$500,00 o consertinho do meu carro. Pasme (seta da direção). O mecânico, com raiva de ter me lesado me pediu para somente procurar por ele. Pois eu não iria pagar o tal de dízimo. O casal está separado. Acho muito triste isso. Essa IURD faz lavagem cerebral na cabeça das pessoas, principalmente com as mulheres. Ficam loucas. Só fala nessa igreja e nesse congresso. Estou quase trocando a oficina. O casal esta brigando muito tudo por causa da dita IURD. Destrói tudo da pessoa e não percebem.

 
SENTENÇAS, UM PRÓSPERO MERCADO



Uma das coisas que choca neste meu país é a nonchalance com que se transgride a lei. As drogas são proibidas? São distribuídas em qualquer esquina das grandes cidades. Aqui em meu bairro, por muito tempo uma máfia nigeriana controlou o mercado das drogas. Tinha sua sede em um restaurante chamado... Máfia Nigeriana. A polícia precisou de uma década para descobrir o centro de distribuição de drogas.

Jogo do bicho é proibido? Uma banquinha de anotadores está sempre à vista de qualquer cidadão nos botecos. Os bingos, proibidos por lei, são verdadeiros templos de fachadas vistosas, instalados nas grandes avenidas da cidade. Caça-níqueis constituem crime? Tem até em padaria. Em um primeiro momento, não é fácil entender porque constituem crime. Em não poucos países do mundo, os caça-níqueis são perfeitamente legais e ninguém tem maiores preocupações com isso. Só neste Brasil incrível os caça-níqueis parecem constituir uma ameaça à nação. A impressão que fica é que os legisladores criam dificuldades para vender facilidades.

Isto ficou evidente com a operação Hurricane, da Polícia Federal, que revelou à imprensa um próspero mercado de sentenças favoráveis à contravenção, vendidas por valores que variavam entre 300 mil e um milhão de reais. Descobriu-se inclusive, à semelhança do Legislativo, um mensalinho oferecido aos magistrados da nação, algo entre 20 e 30 mil reais por mês. A PF não hesitou em mandar para o cárcere ilustres togados, entre eles dois desembargadores do Tribunal Regional Federal do Rio, um juiz do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas e um procurador regional da República no Rio. Isso sem falar em dois delegados federais e o advogado Virgílio de Oliveira Medina, irmão do ministro Paulo Medina, do Superior Tribunal de Justiça e mais um punhado de bicheiros.

Nesta operação, foram presas 25 pessoas. Verdade que os togados já estão livres como passarinhos. Mas terão de responder processo e a prisão, ainda que provisória, já serviu para destruir suas carreiras. O desembargador federal José Eduardo Carreira Alvim, por exemplo, é autor de vários tratados de Direito, de citação obrigatória em cursos de Direito e na sustentação de defesas. Qual advogado hoje, conseguiria citar, sem constranger-se, o ilustre mestre das letras jurídicas?

A operação Hurricane era dirigida à corrupção no Rio de Janeiro. Na ocasião, perguntei-me: mas e esta São Paulo, infestada de bingos, caça-níqueis e pontos de bicho? Todos funcionando a pleno vapor, à luz do dia. A Polícia Federal acionou a operação Têmis. Pediu a prisão de outros togados e seus cúmplices não-togados. O ministro do Superior Tribunal de Justiça, Félix Fischer, parece ter achado o puchero muito gordo. Negou o pedido de prisão, concedendo apenas mandados de busca e apreensão.

A PF desfechou suas operações visando a venda de sentenças para a contravenção. Mas algumas perguntas restam. Se juízes e desembargadores vendem sentenças para a contravenção, porque não as venderiam para outros clientes? Para empresas em débito com o fisco, por exemplo? Ou para o próprio governo federal?

Se há juízes do Supremo Tribunal de Justiça vendendo sentenças, que nos faz supor que os juízes do Supremo Tribunal Federal também não participem deste lucrativo mercado? Muito melhor vender sentenças para o governo do que para a contravenção. O governo é sempre mais discreto em suas negociações. Obviamente, paga melhor.

Em 2004, um dos ministros do STF, recém empossado, votou a favor da contribuição dos inativos. Causa muito mais gorda que a dos bingueiros e assemelhados. Um alívio para Lula, que o nomeou ministro. Lula, contando com o voto de seu protegido, não viu obstáculo algum em enfiar a mão no bolso de inativos que já não têm poder de barganha. Antes de ser ministro do STF, o então advogado cobrou 35 mil reais de uma associação de professores, por parecer em que se pronunciava contra a contribuição dos inativos. Uma vez ministro, votou a favor.

Segundo o jornalista Jânio de Freitas, o ministro estaria recebendo por mês, em agosto de 2004, a metade de seu preço de parecerista. "Eros Grau ficou, de fato, muito mais barato", escreveu Freitas. Na ocasião, discordei. 35 mil reais foi o preço de um parecer avulso. Outra coisa é receber metade disto pelo fim de sua vida para assinar o que o Executivo quiser e exigir.

segunda-feira, abril 23, 2007
 
EPITÁFIO PARA UM CATEDRÁTICO CARREIRISTA



Sexta-feira passada, Roberto Mangabeira Unger, professor titular de Direito da universidade Harvard, aceitou convite de Lula para assumir um cargo com status de ministro no governo. É o que dizem os jornais. Mangabeira foi convidado para dirigir a futura Secretaria de Ações de Longo Prazo, que deve incorporar o atual Núcleo de Assuntos Estratégicos e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Em 15 de novembro de 2005, Mangabeira Unger escrevia em sua coluna na Folha de São Paulo:

Pôr fim ao governo Lula

Afirmo que o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional. Corrupção tanto mais nefasta por servir à compra de congressistas, à politização da Polícia Federal e das agências reguladoras, ao achincalhamento dos partidos políticos e à tentativa de dobrar qualquer instituição do Estado capaz de se contrapor a seus desmandos.

Afirmo ser obrigação do Congresso Nacional declarar prontamente o impedimento do presidente. As provas acumuladas de seu envolvimento em crimes de responsabilidade podem ainda não bastar para assegurar sua condenação em juízo. Já são, porém, mais do que suficientes para atender ao critério constitucional do impedimento. Desde o primeiro dia de seu mandato o presidente desrespeitou as instituições republicanas. Imiscuiu-se, e deixou que seus mais próximos se imiscuíssem, em disputas e negócios privados. E comandou, com um olho fechado e outro aberto, um aparato político que trocou dinheiro por poder e poder por dinheiro e que depois tentou comprar, com a liberação de recursos orçamentários, apoio para interromper a investigação de seus abusos.Afirmo que a aproximação do fim de seu mandato não é motivo para deixar de declarar o impedimento do presidente, dados a gravidade dos crimes de responsabilidade que ele cometeu e o perigo de que a repetição desses crimes contamine a eleição vindoura. Quem diz que só aos eleitores cabe julgar não compreende as premissas do presidencialismo e não leva a Constituição a sério.

Afirmo que descumpririam seu juramento constitucional e demonstrariam deslealdade para com a República os mandatários que, em nome de lealdade ao presidente, deixassem de exigir seu impedimento. No regime republicano a lealdade às leis se sobrepõe à lealdade aos homens.Afirmo que o governo Lula fraudou a vontade dos brasileiros ao radicalizar o projeto que foi eleito para substituir, ameaçando a democracia com o veneno do cinismo. Ao transformar o Brasil no país continental em desenvolvimento que menos cresce, esse projeto impôs mediocridade aos que querem pujança.

Afirmo que o presidente, avesso ao trabalho e ao estudo, desatento aos negócios do Estado, fugidio de tudo o que lhe traga dificuldade ou dissabor e orgulhoso de sua própria ignorância, mostrou-se inapto para o cargo sagrado que o povo brasileiro lhe confiou.

Afirmo que a oposição praticada pelo PSDB é impostura. Acumpliciados nos mesmos crimes e aderentes ao mesmo projeto, o PT e o PSDB são hoje as duas cabeças do mesmo monstro que sufoca o Brasil. As duas cabeças precisam ser esmagadas juntas.

Afirmo que as bases sociais do governo Lula são os rentistas, a quem se transferem os recursos pilhados do trabalho e da produção, e os desesperados, de quem se aproveitam, cruelmente, a subjugação econômica e a desinformação política. E que seu inimigo principal são as classes médias, de cuja capacidade para esclarecer a massa popular depende, mais do que nunca, o futuro da República.

Afirmo que a repetição perseverante dessas verdades em todo o país acabará por acender, nos corações dos brasileiros, uma chama que reduzirá a cinzas um sistema que hoje se julga intocável e perpétuo.

Afirmo que, nesse 15 de novembro, o dever de todos os cidadãos é negar o direito de presidir as comemorações da proclamação da República aos que corromperam e esvaziaram as instituições republicanas.

Este artigo me parece constituir um belo epitáfio para o dia de seu passamento. Estranha, a sedução do poder. Estranha e poderosa. Que faz com que um catedrático, confortavelmente instalado na mais prestigiosa universidade americana, venha correndo e abanando o rabo para colaborar com o governo que, ontem ainda, considerava o mais corrupto da história nacional?

Como dizia Fierro,

Muchas cosas pierde el hombre
que a veces las vuelve a hallar;
pero les debo enseñar,
y es güeno que lo recuerden:
si la verguenza se pierde,
jamás se vuelve a encontrar.

domingo, abril 22, 2007
 
MEDICINA E CATOLICISMO



Discutia eu outro dia, pela Internet, a condição de jornalista. Falávamos de um jornalista católico chapa-branca, que hoje escreve na Veja, e não perde oportunidade de fazer proselitismo. A meu ver, um jornalista não pode ser católico. Não me refiro, bem entendido, àquele tipo de católico francês que comentei em crônica passada. Lá, segundo recente pesquisa, apenas um católico em cada dois crê em Deus. Tampouco me refiro ao Brasil. Segundo o Vaticano, 84% dos brasileiros são católicos. Segundo pesquisa também recente, 51% dos brasileiros sequer sabem o nome do papa.

Não, não me refiro a estes católicos de fachada. Penso naquele que conhece profundamente sua fé, que sabe o que é um dogma e que tem ciência de todos os dogmas, que conhece o magistério da Igreja e a ele obedece. São raros, mas existem. Este não pode ser jornalista. Católico sendo, ele terá de crer firmemente nos dogmas da virgindade de Maria, da ascensão de Maria aos Céus, na divindade do Cristo, na Santíssima Trindade, na transubstanciação da carne e outros menos prestigiosos. Obviamente, não podemos conferir credibilidade alguma a quem acredita em tais potocas.

Palavra puxa palavra e alguém objetou que também devo ter restrições a médicos ou engenheiros católicos. A objeção, aparentemente sem sentido, foi muito oportuna. Não vejo muito o que objetar a engenheiros católicos. Que façam seus cálculos corretamente, é o mínimo que exijo de um engenheiro. Pelo que me consta, até agora ninguém criou uma matemática católica por oposição a eventuais matemáticas atéias ou protestantes. Quanto a médicos católicos, tenho minhas restrições, sim senhor.

Quando busco um médico, é claro que não me pergunto por sua fé. Em geral, vou por recomendações. Se não as tenho, busco ao azar. Neste caso, meu primeiro critério é que seu consultório fique perto de onde moro. No entanto, quando observo que um viés católico interfere nas prescrições médicas, caio fora. Já aconteceu. Nos estertores do século passado, passei dois anos sem beber uma gota de álcool. Proibição de uma médica... católica. Tive de mudar até mesmo meus hábitos diários, a geografia que percorria em meu bairro. Abandonei meus bares e amigos, pois não suportava, estando sóbrio, participar de uma mesa em que todos bebiam. Passei a freqüentar cafés de senhoras judias, tomar chás e comer biscoitos, em suma, perdi boa parte do prazer de viver. Até o dia em que me perguntei: será mesmo que não posso beber? Busquei outra médica. Ela, que não professava religião alguma, me liberou para os antigos prazeres. E minha vida voltou a ter sentido. O pior momento da médica católica era quando dela me despedia. Me dizia: "vá com Deus". A impressão que me ficava é que a ciência nada mais podia fazer por mim.

Quando vivia em Santa Catarina, tive outro conflito com um destes senhores. Ao saber que eu ia para Paris, recomendou-me: nada de vinho, nada de foie gras, nada de boudins, cuidado com os queijos. Coincidiu que eu viajava em dias de meu aniversário e meus amigos em Paris me receberam com tudo: muito vinho, muito foie gras, muito camembert. Eu, temeroso, apenas beliscava um pouquinho de cada coisa. Me mantive sóbrio, comedido, o tempo todo. Ao voltar, compro um Nouvel Obs como leitura de bordo. Reportagem de capa: "Le Paradoxe du Périgord".

É um paradoxo até hoje não explicado pela literatura médica. No Périgord, uma das regiões da França onde mais se bebe vinho, onde mais se consome patês e queijos, seus habitantes têm uma saúde cardiovascular invejável. Voltei a meu médico de Nouvel Obs em punho. "Conhece o paradoxo do Périgord, Dr?" Não conhecia. Alegou que não lia francês. "Tudo bem, eu traduzo". E fui traduzindo. Depoimentos médicos asseguravam não haver nada demais em meia garrafa de vinho às refeições. Ou em duas doses de uísque por dia. E recomendavam, inclusive, misturar um pouco de boudin no leite das crianças.

Meu médico teve de render-se aos depoimentos de seus pares. De fato, me disse, o álcool, em doses moderadas, é benéfico ao coração. "Mas não podemos dizer isso, sob risco de induzir pacientes ao alcoolismo". Pode ser. O fato é que ele era católico. E catolicismo significa renúncia ao que de bom a vida tem. Este tipo de médico busca exercer poder sobre seu cliente. E se você é tímido e não negocia, terá uma existência muito sem sabor pela frente.

Quando busco um médico, não é para ouvir preceitos éticos. Ética, eu tenho a minha e convivo muito bem com ela. Em um médico, busco avaliações médicas. Aos 60 anos, uma pessoa já tem uma boa experiência de médicos. Outra constatação que fiz em minhas décadas de consultórios, é que há uma diferença bastante significativa entre médicos formados nos Estados Unidos e médicos formados na Europa. Dificilmente estes últimos farão restrições rigorosas ao vinho. Eles se formaram em países em que o vinho faz parte da alimentação. Um operário francês ou espanhol, ao almoçar, em geral terá em sua mesa um meio litro - ou mesmo uma garrafa - de vinho. Faz parte da vida. Nem por isso estão caindo aos magotes de cirrose ou delirium tremens.

O paradoxo do Périgord só pode ocorrer na Europa. Já os formados nos Estados Unidos, em geral, querem proibir qualquer gota de álcool. Um gastro de Curitiba, formado nos States, é claro, me dizia: a dose permissível de cerveja é meio copo por dia. Ora, Dr - respondi - meio copo de cerveja não existe. Que ele tivesse suas restrições ao álcool, tudo bem. Que meio copo de cerveja possa prejudicar um cirrótico, entendo. Mas não venha um médico me dizer que a dose permissível de cerveja é meio copo por dia.

Claro que se eu precisar de um cirurgião, não vou me perguntar por sua fé, mas por sua competência. Mas em tratamentos continuados ou em casos extremos, o catolicismo vai interferir. Se eu optar por eutanásia - seja para mim, seja por vontade de pessoa próxima - ele, se for católico, por coerência terá de se recusar. Já aconteceu em minha família e o resultado foi desastroso, uma pessoa vivendo quatro anos como vegetal.

Há médicos que, em nome de uma ética católica, se recusam a prescrever anticoncepcionais. Se um dia o aborto for legalizado no Brasil, teremos legiões de médicos que se recusarão a praticá-lo. Será uma objeção de consciência e não podemos exigir de um profissional que faça algo que fira seus princípios. Mas isto é a religião interferindo no exercício da medicina.

Se não tiver a suprema ventura de morrer em acidente rápido, confesso que não quero esse tipo de médico perto de meu leito no hospital.

sábado, abril 21, 2007
 
EMENDA DO PAPA PIOR QUE O SONETO DA IGREJA



Há mais de ano, neste blog, alertei meus leitores para uma notícia de vital importância para o gênero humano. Em dezembro de 2005, os teólogos do Vaticano se preparavam para recomendar ao papa Bento XVI o fim da idéia de limbo, o lugar para o qual vão, segundo as crenças católicas, as almas das crianças que morreram sem serem batizadas. Conforme a proposta, essas crianças iriam direto ao paraíso graças à "infinita misericórdia de Deus".

Segundo a doutrina do pecado original - comentei então - todo ser humano nasce com folha corrida. Sem batismo, nada de paraíso. Santo Agostinho considerava que os bebês não batizados iam direto ao inferno, embora tenha ressalvado que seu sofrimento seria de alguma forma mitigado. O Concílio de Cartago, do ano 418, negou a estes bebês a felicidade eterna. A Comissão Teológica Internacional (CTI) - colegiado composto de uma trintena de teólogos católicos - recomendava então abolir a noção de limbo de todo o ensino do catecismo católico. Já em outubro de 2004, Sua Santidade o papa João Paulo II considerava o tema de máxima importância e pedira à CTI que elaborasse "uma maneira mais coerente e ilustrada" de descrever, dentro da ortodoxia católica, o destino dos bebês mortos em inocência.

Mas o problema não é assim tão simples. Para os teólogos, existe um duplo limbo. Primeiro, existe o limbus patrum, para onde vão os justos, como Abraão e Moisés, que viveram antes do Cristo. Segundo, o limbus parvulorum ou limbus infantium, onde ficam os bebês mortos sem batismo. Como carregam a culpa do pecado original mas não cometeram pecados pessoais, não podem ser premiados com o céu nem castigados com o inferno. Perguntei-me na ocasião que aconteceria se a CTI liberasse o paraíso para os ocupantes do limbus parvulorum. Que seria feito do destino dos milhões de almas do limbus patrum? Todos os justos que precederam Cristo passariam a constituir um considerável contingente de sem-paraíso?

Sexta-feira passada, a CTI oficializou a nova doutrina. O limbo é mais uma dessas firulas de teólogos, que não existe nos textos primevos do cristianismo. Você pode revirar a Bíblia do Gênesis ao Apocalipse e não vai encontrar uma só menção a limbo. Este lugar hipotético surge a partir da instituição do batismo. Depois que o João batizou o Cristo às margens do Jordão, este gesto se tornou sacramento obrigatório para todo cristão. Sem batismo, não há salvação. É pelo batismo que o ser humano é redimido do pecado original. E aqui já vai mais uma bíblica contradição: se Cristo nasceu sem o pecado original, por que precisaria de batismo?

O documento que oficializa a nova doutrina se intitula A Esperança de Salvação para as Crianças que Morrem sem Batismo. Foi publicado em inglês e, pelo menos por enquanto, não temos interpretação alguma disponível no Brasil do cronista tucano-católico-conservador Reinaldo de Azevedo. Segundo a CTI, o limbo representava um "problema pastoral urgente", pois há cada vez mais crianças que nascem de pais não católicos e não são batizados e "outras que não nasceram ao serem vítimas de abortos". A Igreja Católica descartou então definitivamente o conceito. Afinal, a exclusão de crianças inocentes do Céu não refletiria o amor divino e a misericórdia de Deus superaria a falta do sacramento nesse caso.

Não tive em mãos ainda o documento - nem a competente interpretação do Reinaldo - mas é de supor-se que com o limbus parvulorum vá também para as cucuias o limbus patrum. Abraão, Moisés e demais patriarcas bíblicos, penhorados, embarcam na carona e agradecem.

O limbo nunca constituiu dogma, era apenas uma posição doutrinária do catolicismo. Ocorre que os papas, a cada vez que tentam espanar a poeira dos séculos do carro da Igreja, criam mais perguntas que respostas. A emenda saiu pior do que o soneto.

Se o batismo não é necessário para a salvação eterna, para que então batismo?

sexta-feira, abril 20, 2007
 
SENHOR JESUIS QUER SUA GRANA



Por vezes, nas madrugadas, dedico alguns bons minutos aos programas dos pastores evangélicos que inundam a televisão aberta. É prática que recomendo ao leitor. Se as novelas consistem em ficções bobas para agrado de desmiolados, nos programas religiosos não há ficção alguma. É a realidade nua e crua: hábeis comunicadores extorquindo o último centavo de uma massa de crentes analfabetos ou semi-alfabetizados. Há milagres a granel. Pelo simples fato de comparecer ao culto, paralíticas passam a caminhar, ceguinhas passam a ver, cancerosos se curam de câncer, aidéticos se curam de Aids. Expulsam-se também demônios do corpo de endemoninhados. Aleluia! Louvado seja o Senhor Jesuis!

Confesso que até hoje não entendi esse “senhor Jesuis”. Talvez seja recurso fonético dos pastores da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) para diferenciar-se das vigarices milenares daqueles outros da ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana), que por sua também exploram o cadáver do Senhor Jesus. Sem o "i". O programa que mais me fascina é aquele da IURD, o Congresso Empresarial dos 318 pastores. São 318 pastores que intercedem ante o Altíssimo pela sua fortuna e prosperidade. E porque 318? Porque no Gênesis lemos:

"Ouvindo, pois, Abrão, que seu irmão estava preso, levou os seus homens treinados, nascidos em sua casa, em número de trezentos e dezoito, e perseguiu os reis até Dã. Dividiu-se contra eles de noite, ele e os seus servos, e os feriu, perseguindo-os até Hobá, que fica à esquerda de Damasco. Assim tornou a trazer todos os bens, e tornou a trazer também a Ló, seu irmão, e os bens dele, e também as mulheres e o povo".

O roteiro é divino. Público alvo, pequenos e médios empresários. De preferência, empresárias. Você tem uma dívida de três milhões de reais? Basta pedir a intercessão dos 318 pastores e dia seguinte você está fora do vermelho e cheio de grana no bolso. Você tem um carro caindo aos pedaços que não lhe dá nenhum prestígio? Freqüente as vigílias e logo o bom Deus lhe dará uma BMW. Os depoimentos se multiplicam e as benesses são sempre as mesmas: prosperidade na empresa, dinheiro na conta corrente, carro novo, casa na praia, jardim e piscina, em suma, todas essas pequenas ambições da pequena burguesia ascendente. A "reportagem" se dá ao luxo de entrevistar os abençoados por Deus no estacionamento do templo. Cada um, cada uma, sentado ao volante de um flamante carro de prestígio. Graças ao Senhor Jesuis!

Por enquanto, ainda não ouvi: "Depois que encontrei o senhor Jesuis, fiz um cruzeiro pelas ilhas gregas!" Como só vejo esporadicamente tais programas, não duvido que tal depoimento já tenha ocorrido. Se não ocorreu, ocorrerá. O Senhor Jesuis faz maravilhas.

Perplexo! É como fico. Não se vê um só assento vazio nos templos. Vazia deve ser a vida daquelas quatro ou cinco mil pessoas que lotam cada galpão. Que perdem noites de repouso ou lazer, convivência com a família, para ouvir o bíblico besteirol de um vigarista bem falante. Não por acaso evangélicos e católicos estão agora disputando acirradamente as mentes dos bugres no Brasil. Os criadores de religiões desde há muito sabem que, nos dias atuais, só podem esperar colheita se semearam entre os brutos. Nestes dias em que a Polícia Federal parece ter tomado vergonha e está colocando juízes e desembargadores na cadeia, é difícil entender como os 318 pastores ainda não estão vendo o sol quadrado. Ou será que temos de esperar que a polícia americana ponha estes senhores onde merecem estar?

Não bastasse esta exploração vil dos baixos instintos do povo, que constitue crime óbvio contra a economia popular, um destes senhores, o senador Marcelo Crivella, pastor da IURD, quer agora enfiar a mão no bolso inclusive dos não-crentes. Não bastasse esta corrupção propiciada pela lei Rouanet, que permite o financiamento do teatro, do cinema e agora da literatura pelo contribuinte, o pastor Crivella considera que as religiões estão entre os elementos culturais de uma nação. E apresentou projeto no sentido de que a lei Rouanet passe a despejar abundantes benesses sobre os templos da IURD.

A propósito, o senador e pastor começa a surgir como um dos personagens da operação Hurricane, que está desmantelando a máfia dos bingos e caça-níqueis no país. Íntimo do juiz Ernesto Dória, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, que hoje curte o xilindró, Crivella chegou a sugerir-lhe que se candidatasse a "vereador ou deputado pela nossa Igreja", a IURD. Em um dos diálogos grampeados pela Polícia Federal, o ilibado juiz comenta que se Lula vencesse a disputa no Rio, Crivella sairia fortalecido. "Tá colocando 4 milhões e meio de gente, quase 5, pra votar no Lula. Tá uma máfia humana".

Como se algum animal organizasse máfias! É claro que o Supremo Apedeuta será sensível a tal afago. O projeto do senador e pastor já foi aprovado pela Comissão de Educação do Senado. A matéria vai a plenário e ainda precisa ser votada na Câmara.

quinta-feira, abril 19, 2007
 
NADA MELHOR QUE UM BOM MASSACRE



"Vocês tiveram bilhões de chances e formas de evitar hoje. Mas vocês me acuaram e só me deram uma opção. Vocês decidiram derramar o meu sangue; vocês me encurralaram e me deram só uma opção. A decisão foi sua; agora vocês têm nas suas mãos sangue que nunca mais será lavado".

O discurso de Cho Seung-hui, o estudante sul-coreano que matou 32 pessoas na Virginia, não passaria de arrazoados de um doente mental, não fosse uma sinistra coincidência: é mais ou menos o discurso corrente das esquerdas do Ocidente para justificar a violência. A culpa nunca é do criminoso. Mas de "vocês". Isto é, da sociedade. Ou melhor, é nossa. Nós, que nunca matamos, somos quem apertamos o gatilho das armas que o coitadinho encurralado empunha. A diferença no caso é que normalmente são os defensores dos tais de Direitos Humanos que assim fazem a defesa dos criminosos. Cho Seung-hui se antecipou. Antes que psicólogos, sociólogos e outros ólogos assumam os holofotes da mídia para defendê-lo, ele mesmo fez sua defesa. Deixou os ólogos sem argumentos.

O obscuro e desengonçado coreano queria ser ouvido. Desde há muito, a mídia lhe mostrava o caminho. Nada melhor que um bom massacre para sair do anonimato e fazer a capa de todos os jornais do mundo. Duas ou três horas de intenso labor et voilà: celebridade internacional. Teve uma bela performance. Num país em que este tipo de assassinato é corriqueiro, conseguiu bater de longe o número de vítimas de seus precursores. Como a competitividade é uma das regras do jogo social nos Estados Unidos, mais dia menos dia um outro campeão tentará roubar-lhe o recorde.

A culpa será, é claro, da sociedade.

quarta-feira, abril 18, 2007
 
MINISTRO PETISTA DESCONHECE NOÇÃO DE LEI



Se há um conceito que não tem abrigo no bestunto de um petista é a noção de lei. A lei proíbe invadir propriedade privada? A gente invade e depois negocia. Há uma lei que proíbe militares de fazer greve? A gente faz e depois negocia. Embalados desde o berço pela idéia da revolução bolchevique, para um petista lei é uma noção que não faz falta.

Referindo-se às últimas invasões de terra e ocupações de pedágios dos movimentos dos sem-terra neste mês de abril, disse à Folha de São Paulo o ministro do Desenvolvimento Agrário Guilherme Cassel: "A sociedade está cansando de ouvir esses discursos, que negam sistematicamente a realidade, que se escondem atrás da retórica para fazer política". Para o ministro, as ações criam resistência à reforma agrária na sociedade "na medida em que ferem o bom senso".

Nem passa pela cabeça do ministro petista que tais ações ferem, antes de mais nada, a lei.

 
MINISTRO ANUNCIA NOVA TUNGA


Durante participação no Fashion Marketing 2007, disse o ministro da Cultura, Gilberto Gil: "A moda está convocada para um novo ciclo de integração cultural". E completou: "Quero propor um rearranjo da relação do Estado com a moda. Quero reverter o equívoco ou omissão do passado, e dizer a vocês que a moda é hoje reconhecida pelo Ministério da Cultura como parte vital da cultura brasileira".

Ou seja, em breve teremos grifes internacionais promovendo desfiles patrocinados pela lei Rouanet. Não bastasse o contribuinte ser tungado pelo cinema, teatro e literatura nacionais, terá agora de financiar as futilidades da moda.

 
NOVOS TEMPOS



Jornais on line vão substituir os jornais em papel? Responde Márion Strecker, diretora de Conteúdo da UOL:

"Já substituíram. Claro, os jornais em papel ainda têm leitores, mas se um jornal de grande circulação no Brasil tira ou vende 400 mil exemplares, uma primeira página do UOL é lida por cinco milhões de pessoas todos os dias. Então as pessoas estão se informando por um portal na internet ou não estão? A geração dos meus filhos, eu tenho um filho de 16 e uma filha de oito, começa a ter contato com o jornalismo pela internet e não pelo papel. Eles lêem notícia muito mais pela internet do que pelo papel. Isto não é o futuro, isto é o presente".

No que a mim diz respeito, devo confessar que só leio jornal-papel por vício irremediável. Tenho todos os jornais do mundo em minha telinha. Mas não consigo renunciar ao inefável prazer de sentar em um bar, com um ou dois jornais à mão e um chope em punho. Pelo jeito, o futuro da imprensa em papel dependerá em boa parte de viciados irrecuperáveis como este que vos escreve.

terça-feira, abril 17, 2007
 
MAOMÉ E A VOZ DO POÇO



Desde o momento em que se sentiu seguro e seu nome tornou-se célebre na Arábia, Coreïs, um árabe poderoso e temeroso de que um homem saído do nada tivesse a audácia de abusar do povo, se declarou seu inimigo e lhe pôs todo tipo de obstáculos. Mas, por fim, a família de Coreïs se encontrava em inferioridade de condições, e Maomé foi seguido por uma multidão de povos que, julgando-o um homem divino, adotaram sua nova lei. Uma vez liberado de um inimigo tão temível, só tinha temor de seu companheiro. Com medo de que este descobrisse suas imposturas, decidiu tomar suas precauções, e para fazê-lo com maior segurança o entreteve com belas promessas e lhe jurou que não tinha a intenção de tornar-se poderoso senão para fazê-lo participar de um bem para o qual tanto havia contribuído. "Estamos chegando - lhe disse - ao feliz momento de nossa consolidação. Somos seguidos por um grande povo, ao qual conquistamos, mas temos de confirmar esta conquista por meio do artifício que você tão felizmente inventou".

Ao mesmo tempo o convenceu que se ocultasse no poço dos oráculos, de cujo fundo geralmente simulava a voz de Deus. Enganado pelas doces palavras deste impostor, o pobre homem simulou o oráculo como costumava fazê-lo, e quando escutou a voz de Maomé e o rumor da multidão que o seguia, começou a gritar como havia sido combinado: "Eu, que sou vosso Deus, declaro que designei Maomé para ser o profeta de todas as nações. Dele vocês aprenderão a verdadeira lei, porque os judeus e os cristãos mudaram as que lhes havia dado".

Desde há muito tempo esse homem fazia esse papel, mas finalmente foi pago da maneira mais ingrata, pois Maomé, ao escutar a voz que o proclamava um homem divino, se dirigiu àquele povo enganado por seu falso mérito e ordenou, em nome de Deus, que o reconhecia como seu profeta, que enchessem de pedras o poço do qual havia saído em seu favor um testemunho tão autêntico, em memória da pedra que certa vez erigiu Jacó em uma ocasião semelhante, como sinal de que Deus a ele havia aparecido.

Tal foi o funesto fim deste miserável, que tanto havia contribuído à exaltação de Maomé; foi sobre esse monte de pedras que o último dos mais célebres impostores estabeleceu sua lei. Esse fundamento é tão sólido que depois de mais de mil anos de império ainda não se vê que esteja por debilitar-se.

--------
(Do Tratado de los tres impostores - Moisés, Jesús Cristo, Mahoma, anônimo clandestino do século XVIII)

segunda-feira, abril 16, 2007
 
CONDE AFONSO CELSO NA VEJA



A última Veja, em um inexplicável surto de megalomania, colocou o real como a moeda MAIS FORTE ENTRE AS FORTES. "Quase todas as moedas do planeta estão se valorizando em relação ao dólar. A moeda americana perde força no mundo por causa do gigante déficit comercial dos Estados Unidos. Mas o real foi o que mais se fortaleceu: 58% nos últimos quatro anos". A reportagem cita a valorização de algumas moedas: real, 58%; coroa eslovaca, 54%; coroa checa, 42%; zloty polonês, 39%; leu romeno, 37 %, etc.

Muito bem! Tente então cambiar reais, coroas - sejam checas ou eslovacas - zlotys ou lei em alguma capital européia ou nos Estados Unidos. Não vai conseguir. Reais, você talvez até consiga trocar em Espanha e Portugal, com deságio de uns 30%. E aí se foi a moeda forte. Tente pagar a dívida externa desses países com essas moedas. Também não vai conseguir. Você já ouviu falar de travellers-cheques em reais? Duvido.

Quando o real foi instituído e equivalia a um dólar (ou até menos), Delfim Netto fulminou: "o real equivale ao dólar só aqui no Brasil". Que o real tenha se valorizado, internamente, em relação ao dólar, não se discute. O que não se pode afirmar é que seja moeda forte, muito menos a mais forte entre as fortes. Chamar de fortes o real e as moedas do Leste europeu é uma licença poética só permissível ao conde Afonso Celso, autor do clássico Porque me ufano de meu país.

domingo, abril 15, 2007
 
O VISIONÁRIO DE TAUBATÉ

(em homenagem aos 125 anos do nascimento de Monteiro Lobato)



Quando nos deparamos com algum evento insólito na sociedade ou na área da tecnologia, logo saímos à busca de precursores ou anunciadores. Em geral os buscamos entre os ficcionistas anglo-saxões ou germânicos, afinal toda literatura de antecipação tem suas raízes nos Estados Unidos ou Europa. No entanto, nestas terras de Pindorama, já em 1926, um visionário de Taubaté antevia nada menos que a radicalização da questão negra nos Estados Unidos, a discussão separatista no Brasil, o voto eletrônico, o teletrabalho, a Internet e suas conseqüências. Falamos de Monteiro Lobato, é claro, e de sua obra mais premonitória, O Presidente Negro ou O Choque das Raças. Como este livro hoje só pode ser encontrado em sebos ou bibliotecas, não serei mesquinho em citações.

Estamos no ano 2.228. Nos Estados Unidos, a elite governante está alarmada: as estatísticas apontam uma população de 108 milhões de negros para 206 milhões de brancos. Como o coeficiente de natalidade negra continua subindo, o instinto de preservação dos brancos se eriça em legítima defesa. Fala-se em uma "solução branca" e uma "solução negra". A solução branca é, obviamente, expatriar os negros. Quem propõe este panorama é Miss Jane, personagem de Lobato na ficção citada.

Na mesma época, o antigo Brasil está cindido em dois países, um centralizador de toda a grandeza sul-americana, filho que era do imenso foco industrial surgido às margens do rio Paraná e o outro, uma república tropical, agitando-se ainda em velhas convulsões políticas e filológicas, discutindo sistemas de voto e a colocação dos pronomes da semimorta língua portuguesa. De clima temperado, o Brasil branco fundia no mesmo bloco a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Os portugueses, aclimatados na zona quente, haviam-se mesclado com o negro, formando um povo de mentalidade incompatível com a do sul.

Miss Jane é filha de um cientista de origem americana radicado no Brasil, o professor Benson, que pode obter um corte anatômico do futuro através de uma espécie de globo cristalino chamado porviroscópio. (Esta idéia será retomada por Jorge Luís Borges, como veremos adiante). Através deste aparelho Jane perscruta o mundo do século 23. A ação do romance transcorre em 1926. O Sr. Ayrton, seu interlocutor brasileiro, manifesta tristeza ante o futuro do país. Jane, pelo contrário, considera um erro inicial a mistura de raças e acha que a divisão do país constituí uma solução ótima, a melhor possível. Pois "a muita terra não é o que faz a grandeza de um povo e sim a qualidade de seus habitantes".

Esta idéia de um fracionamento territorial do Brasil não é nova nos dias de Lobato. Em Cartas Inéditas de Fradique Mendes, escritas nos estertores do século passado, Eça de Queiroz já antecipava esta possibilidade, em texto intitulado A Revolução no Brasil. Para o escritor português, com o Império acaba também o Brasil, que ficaria fragmentado em Repúblicas independentes, em virtude da divisão histórica das províncias, das rivalidades entre elas, da diversidade do clima, do carácter e dos interesses e a força das ambições locais. Uma vez separados, os estados não poderão manter paz entre si, em função das delimitações de fronteira, questões hidrográficas e alfândegas. "Cada estado, abandonado a si, desenvolverá uma história própria, sob uma bandeira própria, segundo o seu clima, a especialidade de sua zona agrícola, os seus interesses, os seus homens, a sua educação e a sua imigração. Uns prosperarão, outros deperecerão. Haverá talvez Chiles ricos e haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum grande Império!"

Se o Brasil ainda não se dividiu - apesar de todos os anos surgirem "nações" indígenas, com pretensões de autonomia -, aí estão os Chiles ricos e os Nicaráguas grotescos, confirmando a aguda intuição de Eça. Mas voltemos a O Presidente Negro.


A inflação do pigmento - Para Miss Jane, a América seria a privilegiada zona que havia atraído os elementos mais eugênicos das melhores raças européias. O Mayflower trouxera homens de uma têmpera superior que não hesitaram um segundo "entre abjurar das convicções e emigrar para o deserto". As leis de imigração se tornam seletivas e as massas que procuravam a América, já em si boas, são peneiradas. A Europa é drenada de seus melhores elementos e no novo mundo resta a flor dos imigrantes. Ocorre então o que Miss Jane chama de "o erro inicial": entra no país, à força, o negro arrancado da África. O Sr. Ayrton observa que o mesmo erro foi cometido no Brasil, mas nossa solução foi admirável: em cem ou duzentos anos teria desaparecido o nosso negro em virtude de cruzamentos sucessivos com o branco.

Miss Jane não julga admirável tal solução, mas medíocre, pois estraga as duas raças ao fundi-las. Prefere que ambas se desenvolvam paralelas dentro do mesmo território, separadas por uma barreira de ódio, a mais profunda das profilaxias. Para ela, o ódio impede a miscigenização e mantém as raças em estado de relativa pureza.

- Não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas. O ódio desabrocha tantas maravilhas quanto o amor. O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano...
Os exemplares mais belos, fortes e inteligentes eram descobertos onde quer que se encontrassem e atraídos para a Canaã americana. Estando o país bastante povoado, fecha-se as portas ao fluxo europeu e a nação passa a crescer apenas vegetativamente.

É quando surge a inflação do pigmento. As elites pensantes haviam-se convencido que a restrição da natalidade se impunha, pois qualidade vale mais que quantidade. Rompe-se então o equilíbrio: "Os brancos entraram a primar em qualidade, enquanto os negros persistiam em avultar em quantidade. Mais tarde, quando a eugenia venceu em toda a linha e se criou o Ministério da Seleção Artificial, o surto negro já era imenso".

Urge desembaraçar-se dos negros. A solução branca é simples: exportar, despejar os cem milhões de negros americanos no Vale do Amazonas. O que não era fácil "não só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de face a Constituição Americana".

Monteiro Lobato escreveu seu romance - ou ensaio, como quisermos - no início deste século. Ao transportar a ação da obra para três séculos depois, fazia ficção. Mas, bom conhecedor da história dos Estados Unidos, escorava-se em projetos nada ficcionais já alimentados pelos americanos.

Um país para os negros americanos - Entre 1840 e 1860, um obscuro tenente da Marinha dos Estados Unidos, Matthew Fontaine Maury, funcionário do Departamento de Cartas e Instrumentos do Departamento da Marinha de Washington, pensou seriamente no assunto. O projeto do oficial americano era simples e pragmático: uma vez alforriados os escravos negros de seu país, estes seriam enviados para colonizar a Amazônia brasileira. A república da Libéria, na África, resultou de um destes projetos.

E por que não colonizar a região amazônica com brancos? Maury empunhava argumentos de ordem geográfica, Se o europeu e o índio haviam lutado com suas florestas por 300 anos sem imprimir-lhe a menor marca, sua vegetação só poderia ser subjugada e aproveitada, seu solo só poderia ser retomado à floresta, aos répteis e aos animais selvagens e submetido ao arado e à enxada, pela mão-de-obra do africano. "É a terra dos papagaios e macacos e só o africano está à altura da tarefa que o homem aí tem de realizar".

O projeto de Maury, em verdade, só tinha de original a insistência em colonizar a Amazônia com os negros libertos. Desde os últimos anos da década de 1830, os Estados Unidos pretendiam a abertura da navegação do rio Amazonas a todas as nações. Antes do oficial sonhador, um certo Joshua Dodge pretendia estabelecer 20 mil imigrantes norte-americanos nas margens do Amazonas. Todos se comprometendo a reconhecer a soberania brasileira, pelo menos nos primeiros anos de colonização.

No fundo, à semelhança do que foi feito com o Texas, pretendia-se anexar a região aos Estados Unidos. A estratégia era simples. Bastaria comprar alguns brasileiros em Manaus, que passariam a ser "legítimos representantes de uma República da Amazônia, que se declararia estado independente do Império do Brasil, inclusive por discordar da forma como o país era governado, com sua monarquia".

Caso o governo brasileiro enviasse navios e tropas para restabelecer sua soberania, os cidadãos do novo estado amazônico independente apelariam para a proteção norte-americana. E uma força de proto-capacetes azuis se apresentaria na foz do Amazonas para "proteger a vida e os bens ameaçados dos cidadãos americanos".

Quem nos conta este quase desconhecido projeto de expansão americana é a professora Nícia Vilela Luz, em A Amazônia para os Negros Americanos. Neste ensaio, a autora mostra que muitos americanos, bem antes da eclosão da Guerra Civil, achavam ser mais interessante libertar todos os escravos e enviá-los para fora da América. O intérprete maior desta vontade é o tenente Maury:

"Preocupava-o o problema do negro nos Estados Unidos, tendo em vista a abolição da escravidão que se aproximava inexoravelmente. Convencido da superioridade do branco, só podia admitir o negro na condição de escravo e nunca numa posição de igualdade com o branco. Que fazer então com essa população negra uma vez posta em liberdade e cuja multiplicação ainda poderia submergir a raça branca?"

Para Maury, "Deus em Sua própria e sábia providência ditará o destino a ser cumprido pelas raças preta e branca, seja ele qual for".

"E Deus preservara a Amazônia deserta e desocupada para que os problemas do Sul pudessem ser resolvidos - prossegue Vilela Luz -. Acuados ao Norte onde não encontrariam mais terras do Mississipi por desbravar nem mais campos de algodão por subjugar, os sulistas, para se livrarem do seu excesso de população negra, salvando ao mesmo tempo sua economia e sua 'peculiar' instituição, encontrariam a safety valve mais ao Sul, no vale amazônico. Era 'o único raio de esperança' a iluminá-los naquele momento dramático em que se discutia o destino do regime da escravidão nos Estados Unidos".

Estados desunidos - Voltemos à ficção de Lobato. Para Miss Jane, os negros se batiam por uma solução muito mais viável: queriam a divisão do país em dois, o sul para os negros e o norte para os brancos, já que a América surgira do esforço conjunto de ambas as raças. Se não era possível gozar juntas da obra feita em comum, o razoável seria dividir o território em dois pedaços. Temos então, já no início deste século, um escritor brasileiro antecipando as propostas de líderes negros contemporâneos como Farrakhan. É bom lembrar que nessa época Lobato ainda não havia viajado para os Estados Unidos.

Os brancos nada queriam ceder de seu status quo e o problema tornava-se ameaçador. É quando surge um candidato capaz de unir o eleitorado negro: Jim Roy, de tez levemente acobreada, parecendo um mestiço de senegalês e pele-vermelha. A cor de sua pele em nada lembrava os negros de hoje (isto é, 1926). Na época, a ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição do pigmento. Jim Roy, negro de raça puríssima e cabelo carapinha, era "horrivelmente esbranquiçado". O espírito visionário de Lobato antecipa, en passant, a tendência negra americana que gerou um Michael Jackson, por exemplo. Inaugurando, já no início do século, a atual categoria do "politicamente incorreto", diz o estupefato sr. Ayrton:

- Barata descascada, sei...

No entanto, nem os recursos da ciência faziam os negros deixarem de ser negros na América. Os brancos não lhes perdoavam aquela camouflage da despigmentação. Jim Roy, líder do partido Associação Negra, não chega a ser uma ameaça para o poder. Representa cem milhões de negros, contra 200 milhões de brancos. Ocorre que entre os brancos surge uma séria dissidência, um partido de mulheres. Os velhos partidos Democrático e Republicano haviam-se fundido num forte bloco sob a denominação de Partido Masculino, liderado por Kerlog, presidente em exercício e candidato à reeleição. Este bloco não tinha certeza da vitória, pois o partido contrário, o Feminino, dispunha de maior número de vozes, lideradas por miss Evelyn Astor. As estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões de votos; ao Feminino 51,5 milhões e à Associação Negra, 54 milhões. A eleição dependia pois da atitude de Jim Roy.

Aproximam-se as eleições. Que, no ano da graça de 2.228, ocorrem em poucos minutos, em função de avanços tecnológicos previstos por Lobato, que anunciam nosso mundo de hoje, 1998.

A vitória negra - É esta possibilidade de "radio-transportar" os dados que opera uma reviravolta nas eleições de 2.228, nos Estados Unidos. Jim Roy vai explorar com habilidade este dado novo, a velocidade. As eleições haviam sido marcadas para as 11h da manhã e durariam apenas 30 minutos. O candidato da Associação Negra avisa os agentes distritais que só às 10h anunciará o nome em que os negros devem votar. Ao anunciá-lo, a desconfortável surpresa: Jim Roy se anuncia como candidato.

Para pasmo de todos, depois de 87 presidentes brancos, surgia o primeiro presidente negro, eleito por 54 milhões de irmãos de sangue. Os partidos Masculino e Feminino haviam mais ou menos empatado, com algo em torno de 50 milhões e meio de votos. Passada a perplexidade, negros e brancos caem na realidade do dia seguinte. Para Kerlog, 87º presidente dos Estados Unidos e candidato derrotado, surge uma dor de cabeça histórica: ele vê na vitória negra a América transformada num vulcão e ameaçada de morte. Considera que se não forem mantidas presas as rédeas dos dois monstros - a ebriedade negra e o orgulho branco -, a chacina será espantosa. Seis líderes brancos reúnem-se em convenção e discutem uma solução para o impasse. A solução, mantida em sigilo, é aceita por unanimidade. Na época, John Dudley, inventor e um dos membros da convenção, descobrira os raios Omega, que tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com o tratamento, o mais rebelde pixaim se tornava não só liso, mas também fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no folículo e eliminavam o encarapinhamento, último estigma da raça negra, que já havia resolvido o problema da pigmentação. Lobato, em sua ficção, está antecipando a "escova progressiva" dos dias atuais.


A solução branca - Ainda não recuperados das emoções da vitória, cem milhões de criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria em um aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento fora destruído mas o esbranquiçamento da pele não revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega, tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea.

Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company estabeleceu Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito, como se uma força oculta empurrasse a empresa do inventor dos raios Ômega ao desencarapinhamento da América Negra no menor espaço de tempo possível.

Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada uma, ao custo de dez centavos por cabeça, faziam com que os negros acorressem aos postos como cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que chamavam de "a segunda camouflage do negro", acabaram se divertindo com o espetáculo da súbita transformação capilar de cem milhões de criaturas.

Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência particular, sonhava o maior sonho já sonhado no continente, quando seu criado lhe anuncia a visita de "um homem branco natural". Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que anuncia ao líder negro não existir moral entre raças, como não há moral entre povos. Há vitória ou derrota.

- Tua raça morreu, Jim...

Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo que alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria empossado o 88º presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente negro da América, Jim Roy aparece morto em seu gabinete de trabalho. Os negros pensaram imediatamente em crime e chegou a haver um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral superou o ódio e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se no humilde lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se novas eleições e Kerlog foi reeleito por 100 milhões de votos. A vida da América voltou à normalidade.

Estrangulada a circulação da seiva, a raça extinguiu-se num crepúsculo indolor.
Nem exportação para a Amazônia, nem divisão do país, nem esbranquiçamento com a eliminação do pigmento e da carapinha. Mas extinção pura e simples de uma raça para o pleno desabrochar da Super-Civilização Ariana...

Em sua autobiografia, Testamento para El Greco, Nikos Kazantzakis nos fala de certos lábios e pontas de dedos sensíveis que sentem um formigamento ao aproximar-se a tempestade. Monteiro Lobato, criador sensível, sentia aproximar-se a catástrofe, o mais colossal empreendimento de extermínio em massa já ousado na História. Antes de morrer, ainda viu o bisturi germânico tentando extirpar uma etnia. Só enganou-se quanto à geografia.

Nestes dias de junho de 98, a imprensa internacional nos traz uma espantosa confirmação da hipótese de Lobato. Dan Goosen, cientista responsável por um laboratório secreto durante o apartheid na África do Sul, revela que o governo daquele país tentou desenvolver uma bactéria que poderia ser mortal ou causar infertilidade somente em pessoas com pigmentação de pele escura. Em declarações à Comissão da Verdade e Reconciliação para a África do Sul (CVR), disse um outro pesquisador, o dr. Daan Jordan: "Meu trabalho era desenvolver um produto que reduzisse a taxa de natalidade da população negra". Este produto, que não chegou a ser desenvolvido, seria distribuído entre os negros, possivelmente misturado à cerveja de sorgo ou à farinha de milho (consumidos basicamente pela população negra) ou usado em uma campanha de vacinação. Por pouco, a vida não imitou a arte.

Taubateano antecipa a Internet - Além de aventar uma possível evolução da questão negra nos Estados Unidos, Lobato angustiava-se com o desperdício de energia e "os milhões de veículos atravancadores de espaço" - e isso nos primórdios do século - necessários para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Via a salvação na "fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins". O trabalho, o teatro, o concerto passam então a vir ao encontro do homem. As condições do mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais e comerciais começam a ser feitas de longe pelo que Lobato chama de "rádio-transporte".

Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e antecipava o que hoje é rotina em qualquer redação deste final de milênio. Através de miss Jane, o escritor de Taubaté começa a descrever a sociedade americana do futuro:

"Pelo sistema atual - Lobato refere-se a 1926, quando ainda escrevia no Estado de São Paulo - o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escrevê-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe, passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; este tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa não acaba mais! É uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá início à nova cadeia que desfecha no leitor - correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo".

Toda essa complicação desapareceria. Cada colaborador do Remember, jornal criado na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa - como estou fazendo agora -, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes.

Numa época em que computador, fibras óticas e satélites pertenciam ao universo mental de visionários, Lobato fala de rádio-transporte. Se substituirmos esta expressão por modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há sete décadas, um jornal que já existe. Seus correspondentes há muito enviam seus "caracteres luminosos" para suas redações. Daí ao leitor recebê-los numa tela em sua casa, basta uma decisão administrativa, já tomada por centenas de empresas no Brasil e no mundo ocidental. E quando o acervo da literatura universal estiver digitalizado, poderá consultar, de sua casa, todas as bibliotecas do mundo.

Além da era da roda - "As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego" - continua Lobato -. "Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado".

Esta previsão, melhor creditá-la ao pendor utópico do escritor, que não chegou a vislumbrar este lado provinciano do brasileiro, que se sente despido e humilhado se não tiver uma carroça sobre quatro rodas. Enfim, para sonhar não se paga imposto. Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada a revolução da roda. Segundo a moça, "o homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda".

O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. "A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância".

Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de terabytes diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito bem suas conseqüências. O teletrabalho - trabalho "radiado" para o escritório, como diria Lobato - já é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações há muito não constituem mais novidade.

Segundo o historiador francês Roger Chartier, a revolução hoje em curso é muito mais ampla que a de Gutenberg, de 1455, "pois transforma as próprias formas de transmissão do escrito. A passagem do livro, do jornal ou do periódico, como os conhecemos hoje, para a tela de computador, rompe com as estruturas materiais do texto escrito. A única comparação histórica possível é a revolução no início do cristianismo, nos séculos II e III, quando o livro da Antiguidade, em forma de rolo, deu lugar ao livro herdado por Gutenberg, o códice, com folhas e páginas reunidas em cadernos".

Habitantes deste final de milênio, somos testemunhas privilegiados da revolução intuída por Lobato. Revolução das boas, sem sangue e sem volta. Sem sequer imaginar a existência de computadores, o escritor paulista anuncia a Internet. Cabe lembrar que, em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a instituir o voto informatizado, instituição já em funcionamento nesta ficção escrita há sete décadas.


A biblioteca de Borges - Também ao sul do Equador, um vizinho nosso, situado às margens do Prata, imaginava um acervo que hoje começa a tomar corpo com a Internet. Falava de uma biblioteca em forma de esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono. Sua circunferência é inacessível. Existe ab aeterno e nela não há dois livros idênticos. É ilimitada e periódica. Assim definia o Jorge Luis Borges, em um conto datado de 1941, "A Biblioteca de Babel". Em alguma prateleira de algum hexágono existiria um livro que era a chave e o compêndio de todos os demais. "Algum bibliotecário o terá percorrido e é análogo a um deus".

Na Babel de Borges, há um grave problema de comunicação. A Biblioteca abarca todos os livros. Todo conhecimento humano está disperso pelos hexágonos. O problema é encontrar o que se busca. Milhares de funcionários lutam, se estrangulam e morrem em busca dos livros nos corredores da biblioteca, muitas vezes derrubados por homens de hexágonos remotos. Outros enlouquecem. O autor exagera, o que é direito de todo ficcionista. Mas em muitas bibliotecas contemporâneas os funcionários já usam bicicletas ou patins para buscar os livros.

Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos buscadores desta ficção de Borges bastaria digitar um endereço eletrônico e teriam em segundos os livros desejados, sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou patinar, subir escadas ou cair em poços sem fundo. Hoje, um leitor de qualquer parte do mundo, com uma placa modem em seu computador, pode acessar a Congress Library em Washington, a Bibliothèque Nationale em Paris ou a Biblioteca Nacional de Madri. Ou as bibliotecas da USP, Unesp e Unicamp em São Paulo. Por enquanto, apenas bibliografia, é bom salientar. Mas a tendência é colocar o próprio livro à disposição do usuário, o que está sendo feito pelo projeto Gutenberg e a ABU , entre outros sites. Nestes últimos, estão a seu alcance, desde Plutarco e Platão, até Descartes ou Marx, passando pela Bíblia, Voltaire ou Dostoievski. Por enquanto em francês e inglês, mas já estão sendo digitalizados acervos em português e espanhol.

Teoricamente, já se pode pensar na biblioteca total de Borges. Chegar lá é uma questão de tempo. A biblioteca faraônica iniciada por François Mitterrand - Tontonkhamon, para os inimigos íntimos - em Paris, concebida para armazenar acervos futuros, com seus quatro prédios mastodônticos em forma de livro, já nasce mais ou menos obsoleta. Seu design pertence ao passado.

A pergunta "quantos livros tem sua biblioteca?" inclusive perdeu o sentido e não mais permite uma resposta precisa. Vivemos uma época em que ninguém sabe de quantos livros dispõe em seu gabinete de trabalho. Os livros ao alcance de sua mão - ou de seu mouse - são tantos quanto os que estão digitalizados e disponíveis na grande rede, esteja você morando em qualquer aldeia do fim do mundo. Desde, é claro, que tenha uma linha telefônica por perto.

Borges plagia Lobato - Borges, sonhador irrecuperável, antecipa em suas ficções a biblioteca sonhada por todo bibliófilo, hoje em construção. Mas o autor vai mais longe em seu desejo de futuro. Em "El Aleph", conto publicado em 1949, Borges nos fala do peculiar poeta Carlos Argentino, que se propõe nada menos que "versificar toda a redondez do planeta". Carlos, que está construindo sua obra a partir de seu quarto, entra em pânico quando lhe noticiam a demolição de sua velha casa na Calle Garay. Pois nela, em algum ponto de uma escada no porão, existe um aleph, "o lugar onde estão, sem confundir-se, todos os lugares do mundo". A partir daquela pequena esfera, de dois ou três centímetros de diâmetro, Carlos Argentino perscrutava o mundo, a fonte de seu poema colossal. Vejamos a descrição do aleph, feita por Borges em 1949.

O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto rompido (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi racimos, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi um sítio em Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando criança, eu me maravilhava com o fato de que as letras de um volume fechado não se misturassem e se perdessem no transcurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-de-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em uma praia do mar Cáspio vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha, enviando cartões postais, vi em uma vitrine de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, maremotos e exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma caixa do escritório (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação da morte, vi o Aleph, desde todos os lados, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem mirou: o inconcebível universo.

Contemporaneamente, não falaríamos em aleph, mas em webcams, a rede incipiente de câmeras onde, se não podemos ver o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar cada vez mais seus pontos mais longínquos. Hoje, de minha mesa de trabalho, posso ver o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte em Liljestrom, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa na escuridão no norte da Noruega e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel em construção.

Monteiro Lobato, para consultar o futuro, cria em O Presidente Negro um aparelho semelhante, o porviroscópio, uma espécie de globo cristalino, através do qual Miss Jane perscruta o mundo do século 23. O professor Benson obtem, neste aparelho,

uma corrente contínua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixe que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem apanhados pela água tépida do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor do pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucócito a envolver um micróbio malévolo que penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota d?água que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...

A forma como o visionário de Taubaté descreve o universo vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica à descrição do Aleph, publicada 23 anos mais tarde. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se considerarmos que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da publicação de "El Aleph", é bastante pertinente supormos que o autor argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Enquanto os sedizentes modernistas de 22 papagueavam Marinetti, Marx e outros doutrinadores totalitários europeus, Lobato, o escritor excluído do universo intelectual pelos seus contemporâneos, olhava meio século adiante.


(Artigo publicado em junho de 1998)