¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, outubro 31, 2007
 
ESTADO-CANALHA


Se há algo neste país que me causa espanto, é a inadimplência do Estado no que diz respeito ao pagamento de precatórios. Mesmo julgados em última instância, sem possibilidade nenhuma de recurso por parte da União, do Estado, ou dos munícipios, já em fase de execução, não são pagos e estamos conversados. O Estado caloteia olimpicamente seus cidadãos e ainda acha que estes são obrigados a pagar impostos. Por muito menos que isso, os Estados Unidos declararam sua independência. Nós, bugres, aceitamos passivamente o calote oficial.

Furungando na Internet, encontrei hoje na revista jurídica Última Instância (http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/44038.shtml) este excelente artigo, que resume com competência tudo que tenho escrito sobre os precatórios. Me sinto obrigado a reproduzi-lo.


PRECATÓRIOS IGNORADOS: O APOGEU DO ESTADO-CANALHA

Jarbas Andrade Machioni


A propósito de uma reportagem do Jornal Hoje denominada "À Espera de Precatórios": Três em cada dez brasileiros, que esperam receber direitos outorgados pela Justiça, irão morrer sem os receber.

Isso ocorre porque o Estado - seja federal, estadual ou municipal - não respeita a decisão judicial definitiva obrigando-o a pagar créditos, apurados no processo judiciário, em favor dos particulares; na prática, paga-os conforme, quando e se quiser. Permitam-me explicar aos leigos o sistema em linhas gerais.

No direito brasileiro, como os bens públicos (isto é, os do Estado) são impenhoráveis e não podem ser levados a leilão, quando alguém tem um crédito contra o Poder Público reconhecido por sentença judicial transitada em julgado, o juiz expede um oficio ao Estado requisitando o pagamento para que o credor receba o valor a que tenha direito.

Esse ofício é chamado de "precatório". Pela lei, o poder executivo ao receber o precatório, deveria simplesmente incluí-lo no orçamento do ano seguinte à requisição, e pagá-lo ao longo do ano.

Infelizmente o Estado demora uma década, ou várias décadas, após o litígio (que também demora uma década ou mais) para pagar. E às vezes simplesmente não os paga. Não obedece ao procedimento legal, com - infelizmente - a complacência de tribunais. Há pessoas que esperam mais de trinta anos para receber o que é seu direito, há pessoas que nunca receberam.

Existe o Estado-empresário, existe o Estado-social, o Estado-mínimo, o Estado-liberal, e algumas outras "modalidades"; todos são qualificativos sacados ao sabor da ideologia que se emprega. No Brasil, aproximamo-nos da suprema qualificação odiosa: o Estado-canalha!

O Estado brasileiro não ministra educação, não dá saúde, nem segurança, cumpre minimamente seus deveres, mas com a cínica vilania que só os canalhas têm, chega ao desplante de afirmar que está dando prioridade a outras carências sociais, e por isso não pagaria precatórios. Essa desculpa remete a uma passagem bíblica, que já condenava esse tipo de cinismo.

Mas se o Estado não paga o que deve, como ele pode ter a pretensão de cobrar tributos? Juridicamente sabemos inexistir sinalagma entre o dever de pagar tributo e o dever de o Estado pagar precatórios, mas ouso dizer, que o cidadão que não recebe seu crédito, está autorizado pelos preceitos de Direito Natural e pelos mais altos princípios constitucionais, que embasam a verdadeira cidadania, a revoltar-se e suspender o pagamento dos tributos que deva.

Como diria Robespierre: "A mesma autoridade divina que ordena aos reis serem justos, proíbe aos povos serem escravos".

Esse direito, ora postulado, é inalienável ao cidadão-credor e é direito da melhor espécie, é aquele em que se assenta as bases da união originária das colônias norte-americanas; que foi arrancado à João Sem-Terra no século XIII através da Magna Carta; direito que foi invocado pelo advogado Thuriot perante os canhões que guardavam Bastilha, ao tomá-la.

Os governantes que não acatam, sem subterfúgios, decisão judicial definitiva não mereciam permanecer no cargo. Estamos num momento decisivo da história brasileira, as condições, nacionais e internacionais, são-nos favoráveis a uma virada histórica para consolidação da democracia.

Esperamos que o Supremo Tribunal Federal, nas águas de algumas corajosas e inovadoras decisões que vem tomando, comece a exigir o cumprimento total desse dever legal básico do Estado.

 
SOBRE FICÇÕES JURÍDICAS



Em crônica intitulada "A Síndrome de Garzón", publicada em 4/2/2000, escrevi:

Quando o procurador espanhol Baltasar Garzón pediu a detenção do general Augusto Pinochet na Inglaterra, para que respondesse na Espanha por crimes cometidos no Chile, ninguém imaginaria que, naquele momento, estava sendo criado um grande quebra-cabeça para os teóricos desta ficção que se chama Direito Internacional. Ficção porque Direito Internacional não existe. O que continua existindo é o antigo e brutal direito do mais forte. Se o Paraguai, sem ir mais longe, pedisse a detenção no Brasil de Bill Clinton por crimes cometidos na Iugoslávia, uma grande gargalhada reboaria nas redações dos jornais do mundo todo.

O governo de Tony Blair, que retém há quinze meses Pinochet, acusado de violação dos direitos humanos, é o mesmo que, sob a sombra protetora dos Estados Unidos, despeja bombas a granel em cidades e aldeias do que restou da ex-Iugoslávia. Blair retém o ditador chileno a pedido do promotor espanhol, que jamais denunciou alguém na Espanha por crimes do franquismo. Exigir o julgamento de ditadores na ex-colônia é bom, digno e justo. Exigir o julgamento dos colaboradores da ditadura dentro da qual Garzón nasceu e fez carreira... melhor esquecer, pode reabrir muitas feridas.

Nos idos da Guerra Fria, a Áustria permaneceu cercada pelos países satélites da finada União Soviética. Encrave europeu que avança rumo ao Leste, já deu ao Ocidente Sissi e Schwartzenegger, Mozart e Schickelgruber. Para quem não sabe, Schickelgruber é o cabo aquele de bigodinho, que virou chanceler da Alemanha e é mais conhecido como Hitler.


Recebi não poucos emails na época, todos insistindo que Direito Internacional existia, sim senhor, que não era de forma alguma uma ficção. Todos esses emails provinham, ou de professores ou de alunos de Direito Internacional, ou de profissionais envolvidos com o ramo.

Há coisa de uma semana, recebo correspondência de um leitor que ousou citar minha visão sobre o tema... em uma prova de Direito Internacional. Levou zero. Segue a questão e a resposta do aluno. O zero decorreu da parte grifada.

- Comente sobre o direito costumeiro como fonte do Direito International Privado.

- O direito costumeiro é fonte primordial do Direito Internacional (tanto público quanto privado), justamente porque o direito internacional não é coativo : por ser limitado pelas soberanias nacionais, o próprio direito internacional é uma "ficção jurídica". Nesse sentido , o costume emerge como fundamental fonte do direito internacional, pois empresta-lhe legitimidade e serve como dirimidor de conflitos formalmente insolúveis, porque sujeitos a soberanias que podem ser ao mesmo tempo absolutas e conflitantes.

Assim, os costumes servem de luz na formação do direito, não só por emprestar-lhe legitimidade, mas também por conta da própria natureza das operações internacionais, sobretudo as mercantis, que se beneficiam da estabilidade de regras - ou dela até dependem - para prosperar. Ora, o costume implica necessariamente em estabilidade, até porque sem esta, por definição, o costume inexiste.


Ora, é claro que existem tratados internacionais que pretendem regulamentar as relações e obrigações entre as nações. Ocorre que quando uma nação poderosa e beligerante rompe com tais tratados, até pode estar sujeita a sanções. Mas quem ousará - ou poderá - aplicar uma sanção? Estado algum. Então, se não existe sanção, o tal de Direito Internacional é ficção. Só se exerce – quando se exerce – sobre Estados mais fracos. Volto à questão que aventei há sete anos: que aconteceria se o Paraguai pedisse a detenção de Clinton no Brasil por crimes cometidos na antiga Iugoslávia? Ou a prisão de Putin por crimes cometidos na Chechênia? Quem aplicará sanções aos Estados Unidos por ter invadido o Iraque, alegando uma mentira óbvia, a existência de armas de extermínio em massa?

Ninguém. Estado nenhum. Por mais eivado de boas intenções que esteja o Direito Internacional, nas relações internacionais o que vige é a lei do mais forte. E se o que vige é a lei do mais forte, Direito Internacional é conto de fadas.

Moral da história: pense duas vezes antes de afirmar a um professor de Direito Internacional que Direito Internacional é piada. Você está menosprezando o ganha-pão dele. É o mesmo que afirmar a um professor católico que direito natural não existe. Ou a um professor marxista que o marxismo morreu. Eles se ofendem.

 
Crônicas da Guerra Fria (23)


O DRAMA DAS VIÚVAS



Florianópolis - Todo homem que nada espera após a morte - e entre estes me incluo - gostaria de ver, antes do último suspiro, algo surpreendente na História. Viagem à lua não vale, isto os ficcionistas já nos haviam antecipado. Ir a Marte seria um grande feito, mas como o bicho-homem já pôs esta idéia na cabeça, chegar lá é apenas uma questão de verbas e tempo. Uma nave espacial começa a sair do sistema solar? O fato é insólito, jamais o homem conseguiu lançar um objeto tão longe. Mas parece que vai levar alguns milhões de anos antes de aproximar-se da estrela mais próxima. Minha curiosidade revela-se inútil. Fora a face atormentada de Tritão, pouco nos disse a Voyager que pudesse surpreender-nos.

"Deus morreu, Marx agoniza e eu estou com gripe. Quel siècle!", escrevi outro dia, citando um colega francês. A frase surgiu no final dos anos 70, num daqueles lacônicos editoriais assinados, na primeira página do Monde. Se Deus morreu, seu cadáver continua insepulto. Se Marx agoniza, seus devotos o mantêm entubado e vegetando. Do século, só nos resta a gripe. Mas algo de novo parece estar germinando nas nações que um dia pretenderam escorar-se nas teorias do economista alemão. O marxismo - disse alguém algum dia, talvez eu mesmo - antes do final de século não passará de um verbete numa enciclopédia.

Pois destes dias, ao que tudo indica, estamos nos aproximando mais aceleradamente do que se poderia imaginar. As economias socialistas estão se esboroando por onde quer que existam. Bastou a Hungria pôr abaixo o muro que a separava da Áustria e lá estão 40 mil alemães orientais esperando visto para o Ocidente. Na RDA, as empresas já não sabem de quantos funcionários dispõem, pois quem saiu de férias provavelmente não voltará mais. Isso que a Alemanha Oriental é considerada uma das economias mais sólidas do bloco socialista.

"Eles têm mais para comer do que os poloneses, mais dinheiro do que os húngaros, vivem incomparavelmente melhor do que os russos, os ucranianos, os usbeques" - diz Monika Maron, escritora da RDA e refugiada na Alemanha Ocidental, em artigo para a Der Spiegel. "Mesmo assim, eles despencam nas cidades do lado de cá, fugindo em balões construídos do outro lado em fundos de quintal, atravessam a nado o gelado rio Elba, arriscam a travessia da fronteira austríaca, ocupam as embaixadas da Alemanha Ocidental. O famoso senso alemão de ordem deixa de ter validade quando cidadãos da Alemanha Oriental se empurram mutuamente diante dos poucos e pequenos buracos existentes no muro".

Nas fronteiras da Hungria com a Áustria, amontoam-se os carros abandonados pelos alemães orientais. Se considerarmos que quem tem carro em país socialista pode considerar-se um privilegiado, podemos ter uma idéia de como vivem os demais, que não pertencem à Nomenklatura. Isto que, para ter acesso a um carro, um cidadão da RDA precisa esperar 18 anos. Se tiver a lembrança de candidatar-se à compra de um aos 18 anos, tudo dando certo - o que nem sempre acontece - poderá recebê-lo aos 36.

Monika Maron nos relata a perplexidade de um operário que teve permissão para visitar Colônia. Após retornar à sua casa, sentado em meio a seus familiares, perguntava-se, balançando a cabeça: "Mas o que foi que nós fizemos? Por que estamos sendo castigados desta maneira? Afinal de contas, não foram todos os alemães que perderam a guerra?"

Quando até os privilegiados decidem votar com os pés, podemos imaginar o que sofre quem está sob as botas da Nomenklatura. Poloneses e húngaros já não querem nem ouvir a palavrinha mística, comunismo. Lituânia, Letônia e Estônia denunciam o pacto secreto que as entregou ao jugo de Stalin e reivindicam sua integração ao bloco ocidental. A Moldova recupera sua língua e as repúblicas muçulmanas ameaçam rachar pelo meio o império moscovita. Gorbachov, com suas tímidas iniciativas, tem hoje diante de si uma esfinge de duas cabeças: balcanização ou uma solução à la Pequim. Por qual delas optará, isto se não for antes limogé do Kremlin? Este desfecho, creio, será dado a mim e aos de minha geração assistir. Marx morreu. Que a terra lhe seja leve. E, por favor, viúvas: não me venham falar de Trotsky. Remember Kronstadt.

Comecei este comentário baseado em informações de véspera. Os jornais de hoje me informam que os fugitivos da Alemanha Oriental já são sessenta mil. Abandonaram tudo o que haviam conseguido amealhar em vida: casa, apartamento, móveis, carro. A televisão nos mostra os rostos vibrantes do que já conseguiram atravessar a fronteira austro-húngara, portando apenas a roupa do corpo. A pergunta mais corrente, nestes dias, quando dois alemães se encontram em Berlim Oriental é: "ainda aqui?"

Gorbachov tem em mãos uma oportunidade raramente concedida a um estadista em um século: acelerar a desunião soviética, declarar a bancarrota do império, permitir que os povos respirem*. Ingleses, espanhóis e portugueses tiveram de renunciar ao colonialismo. Por que constituiriam os russos exceção? Balcanização, urgente! Antes que a Nomenklatura reaja e o mande para a Sibéria. Antes que a Europa do leste seja submetida à tétrica paz da Praça da Paz Celestial. Estamos vivendo, sem dúvida alguma, um crucial momento histórico.

A Europa testemunha hoje o estertor de suas mais desvairadas utopias. Lástima não mais estarem entre nós homens como Camus, Gide, Orwell, Koestler, Raymond Aron. Foram caluniados, julgados e condenados em vida, pelo crime então imperdoável de denunciar as tiranias travestidas de humanismo. Pena não estarem vivos Sartre, Simone, Aragón, Neruda. Para pelo menos assistirem a débâcle da ideologia que norteou suas vidas.

O problema é que muitos outros continuam vivos, particularmente na América Latina, onde mesmo na era das comunicações os epitáfios costumam chegar com pelo menos uma década de atraso. Aconteça o que acontecer no império moscovita, nossa intelligentsia precisará ainda de mais algumas décadas para descontaminar-se.

Entre os muitos livros que deveriam ser traduzidos no Brasil - mas não o foram, dada a censura onipresente dos ditos intelectuais de esquerda - está Le Dieu des Ténebres, antologia que reúne depoimentos de escritores que um dia militaram nas fileiras de Moscou, para logo abandoná-las, ao intuir a essência totalitária do marxismo. O livro foi publicado em 1950, em Paris. Entre os vários depoimentos, transcrevo estes trechos do escritor italiano Ignazio Silone:

"A verdade é que minha saída do Partido Comunista constituiu para mim uma data muito triste, um grave luto, o luto de minha juventude. E eu venho de um país onde se porta luto por mais tempo que alhures. Não nos libertamos facilmente de uma experiência assim intensa como a vivida na organização comunista. Dela sempre subsiste qualquer coisa que marca o caráter pelo resto da vida. Vejam, aliás, como são facilmente reconhecíveis os ex-comunistas. Eles constituem uma categoria à parte, como os padres apóstatas e os ex-oficiais de carreira. Hoje, o número de ex-comunistas é legião".

Silone assinava tais declarações há quatro décadas. Como estamos na América Latina, e longa é a jornada de um fanático até o entendimento, passo de novo a palavra ao italiano:

"A luta final terá lugar um dia entre os comunistas e os ex-comunistas, disse certa vez a Togliatti. Esta afirmação deu lugar a diversas interpretações. No entanto, o sentido que eu lhe atribuía era simples. Será a experiência do comunismo, pretendia eu dizer, que matará o comunismo. Assim sendo, não excluo que o golpe de misericórdia lhe venha da Rússia. Que acontecerá quando os milhões de pessoas de retorno dos campos de trabalho forçado na Sibéria possam livremente falar?"

Silone enganou-se, ao que tudo indica, quanto aos milhões que voltariam dos gulags: raros foram os que de lá voltaram. Mas milhões são os que hoje querem fugir do imenso gulag comunista ou, pelo menos, transformá-lo em um mundo habitável.

Marx morreu, caríssimos. E luto está completamente fora de moda.

* A União Soviética morreu dois anos depois, aos 26 de dezembro de 1991.


(Porto Alegre, RS, 01.10.89)

terça-feira, outubro 30, 2007
 
AIATOLÁ DE ROMA CONCLAMA
FARMACÊUTICOS À REBELIÃO CIVIL




Com a nonchalance de um aiatolá, Bento XVI pretende definir o que se pode ou não vender nas farmácias do mundo todo. Em pronunciamento feito ontem, em uma conferência internacional, o papa afirmou que os farmacêuticos deveriam ter o direito de exercer uma objeção de consciência no caso de o medicamento a ser vendido interromper a gravidez, provocar aborto ou contribuir para a eutanásia.

Ou seja, você chega em uma farmácia com uma prescrição médica e arrisca ouvir do farmacêutico: "isso eu não vendo porque não concordo com a venda disso". Ocorre que, na Itália pelo menos, os farmacêuticos são obrigados por lei a vender os remédios prescritos por um médico. Não sei se alguém alertou o Bento. Mas Sua Santidade está conclamando os farmacêuticos a uma rebelião civil.

Livia Turco, ministra da Saúde italiana, afirmou que apesar de Bento XVI ter o direito de conclamar os jovens a serem responsáveis quanto à vida sexual deles, não poderia determinar a profissionais como os farmacêuticos o que fazer. "Não acredito que esse alerta para que os farmacêuticos sejam críticos conscientes da pílula do dia seguinte deva ser levado a sério", afirmou a ministra ao jornal Corriere della Sera. "Não podemos fazer uma objeção de consciência se a lei não for alterada", afirmou Franco Caprini, chefe do grupo de farmacêuticos Federfarma.

Bento XVI é useiro e vezeiro em intrometer-se em questões de Estado. Isolado na torre de marfim do Vaticano, cercado de cardeais misóginos, parece não ter ainda percebido que o país que cerca seu território esquizofrênico é um país laico e não se rege por dogmas ou crenças religiosas. Como também laicos são todos os demais países da Europa. Do alto de sua curul, o papa tem se comportado como um aiatolá à testa de uma teocracia muçulmana. Que proíba a venda da pílula do dia seguinte nalguma farmácia do Vaticano, entende-se. Pretender proibir sua venda nas demais farmácias do mundo é paranóia.

Em sua arrogância pontifical, parece esquecer que vive no Ocidente, em uma Europa onde praticamente todos os países aceitam o aborto, a pílula do dia seguinte e os contraceptivos. Vários papas já passaram no transcurso de minha vida. Confesso jamais ter visto um só, tão ditatorial e intolerante como este. Quisesse exercer sua ditadura sobre seu rebanho, nada teríamos a ver com isso. Ocorre que Bento XVI, em seu fanatismo, sente-se autorizado a ditar regras urbi et orbi.

 
Crônicas da Guerra Fria (22)


BEIJINHO BEIJINHO TCHAU TCHAU



Meu beijinho doce
foi ele quem trouxe
de longe pra mim.
Abraço apertado
suspiro dobrado
de amor sem fim




Florianópolis - O beijo, este gesto aparentemente pagão, em verdade é bíblico. Pais e filhos beijavam-se ao se darem as boas-vindas e ao se despedirem, lemos no Gênesis, I Reis e Lucas. O mesmo faziam os parentes próximos, diz-nos o Êxodo e o livro de Rute. No I e II Samuel, o hábito já se estende aos bons amigos. O beijo, como gesto erótico, só vamos encontrá-lo no Cântico dos Cânticos, quando Sulamita, morena e formosa, pede a Salomão: "que me beije com os beijos de sua boca!" Responde o rei: "Minha amada, eu te comparo à égua atrelada ao carro de Faraó!". Nestes dias que correm, tal dito provocaria um insuportável alarido nas alas feministas mas, enfim, Salomão, além de sábio, era soberano e usava as metáforas que bem entendia. Mas não era disto que pretendia falar.

No I Reis, temos uma interessante acepção do beijo. Na conferência de cúpula em Horeb, Deus ordena a Elias ungir Hazael como rei de Hazam, Jeú como rei de Israel e Eliseu como profeta em seu lugar. "Quem escapar à espada de Hazael, Jeú o matará. Mas pouparei em Israel sete mil homens, todos os joelhos que não se dobraram diante de Baal e as bocas que não o beijaram".

Em termos contemporâneos, chamaríamos tal massacre de genocídio. Mas que fazer, se Javé não gostava que seus servos beijassem touros? Beijar, na época, nem sempre era salutar. Oséias não perdoa: "Homens beijam bezerros. Por isso serão como a nuvem da manhã, como o orvalho que cedo desaparece, como a palha que voa fora da eira e como a fumaça que sai pela janela".

Mas o beijo mais trágico da Bíblia está, não no evangelho de Mateus, como se poderia pensar, e sim no II Samuel. Joab, chefe de exército do excelso rei Davi, após ter assassinado traiçoeiramente Abner e mandado matar Absalão, tendo por isso decaído da graça de Davi, foi substituído por Amasa. Se Abner era primo de Saul, Absalão era filho de Davi. Absalão, para vingar sua irmã Tamar, assassinara seu meio-irmão Amon e, como se isto não bastasse, proclamou-se rei em Hebron. Ao entrar em Jerusalém, Absalão tomou posse do harém do pai. Não era fácil a vida em família naqueles dias.

Mas falava de beijos. Ao encontrar seu substituto em Gabaon, Joab o saúda: "Vai bem, meu irmão?' Com a mão direita, Joab segura a barba de Amasa para beijá-lo. "Amasa não percebeu a espada que Joab tinha na mão, e este lha cravou no abdômen, derramando-se-lhe as entranhas no chão". Beijar é perigoso.

Menos para o rei Davi. Muitos beijos terá trocado com Jônatas, mas sobre estes o hagiógrafo mantém discreto silêncio. Quem bota a boca no mundo é o rei Saul, que já oferece a Davi duas de suas filhas, primeiro Merob e depois Micol. Mas o ingrato Davi queria mesmo era Jônatas, coincidentemente filho de Saul. O que quase lhe valeu a vida.

Estava um dia Davi dedilhando sua cítara quando Saul, tomado por um mau espírito da parte de Javé, quase o crava contra a parede com uma lança. Não fosse lesto Davi, Cristo não teria nascido ou, pelo menos, os historiadores teriam de buscar-lhe outra ascendência. Resumamos a história. Com a morte de Jônatas no monte Gelboé, Davi, transido de dor, rasga suas roupas, decreta luto oficial e chora a morte do amado: "Tu me eras imensamente querido, a tua amizade me era cara mais cara que o amor das mulheres". Mas como não há mal que não se acabe, nem amor que sempre dure, o rei Davi toma por favorito Meribaal, filho de Jônatas. Por sorte, Saul morrera junto com seu filho, ou teria ainda a deplorar a sedução do neto. Coisas da Bíblia. Mas voltemos aos beijos.

Gorbachov, em sua última visita à Alemanha Oriental, beijou com ênfase Erich Honecker, o todo-poderoso dirigente comunista que hoje está em cárcere privado, acusado de corrupções de fazer inveja a qualquer modesto marajá de nosso Nordeste. Beijo de Judas, clamaram os comunossauros tupiniquins, com isto querendo dizer que Honecker foi traído por Gorbachov. Beijo de Judas tornou-se, para os leitores apressados da Bíblia, expressão assimilada ao beijo da Máfia, quando um capo beija aquele que deve morrer. Tudo isto porque nos acostumamos a ver em Judas um traidor, quando em verdade foi traído.

Que mais não fosse, sem seu beijo não seriam realizados os desígnios de Javé. Se Judas foi, afinal de contas, instrumento da vontade divina, não vejo porque jogá-lo na lata de lixo do cristianismo.

Judas, traidor ou traído?, de Danilo Nunes, é um desses raros e belos ensaios que uma vez por década - e olhe lá! - honram o ensaísmo nacional. Neste livro o autor acompanha os dias da Paixão. A ruptura de Judas com Cristo, iniciada quando este se retira subrepticiamente do templo, para onde fora conduzido pelo povo aos gritos de Hosana! (liberta-nos!) se consuma quando Jesus, ante a pergunta dos escribas do Sinédrio, cede: "Dai pois a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".

Ora, os escribas queriam saber se era lícito pagar impostos a Roma, questão vital para uma nação que lutava para libertar-se do jugo de César. Cristo vacila e sai pela tangente, com uma resposta que muito nos lembra Lula, quando interrogado sobre a existência de Deus: "Se eu creio em Deus, só ele sabe". Mas Judas não era tão besta quanto os entrevistadores de Lula, que parecem ter engolido, sem tugir nem mugir, a saída safada. Judas, nacionalista ferrenho, vê seu companheiro de lutas aceitando passivamente a dominação romana.

Era, pois, um colaboracionista. Melhor entregá-lo à morte, para não atrasar o processo de libertação de Israel. Para Judas, Jesus não passa de um traidor que percorrera a Palestina arregimentando o povo para um levante, para depois desertar, deixando seus seguidores mergulhados na frustração.

Sob esta luz, o beijo de Gorbachov adquire novo sentido. Honecker está atrapalhando a revolução? Beijinho nele. Claro que Gorbachov deve estar pensando na revolução comunista, pois se a perestroika começa a liberar-se do entulho stalinista, que me conste Lênin e Marx continuam na condição de intocáveis, pelo menos para a cúpula moscovita. Por falar nisso, por onde andará aquele osculador compulsivo, que tanto atrapalhou os serviços de segurança tentando beijar personalidades no Brasil? Aposto que qualquer dirigente comunista bem que preferiria trançar os bigodes com aquele mitômano do que receber um terno beijinho do Gorba.

Em meio a isso, tivemos eleições livres no Chile e Pinochet está passando a seu sucessor um país com uma inflação de 12% ao ano, sem que ninguém precise beijá-lo. Nos últimos comícios, ex-exilados clamavam pelo fim da ditadura, o que é no mínimo paradoxal. Que ditadura permite - e mais, protege - a sua contestação, tanto nos comícios de rua como nas colunas de jornais? Tais liberalidades não existiam sequer nas democracias ditas populares do Leste europeu, pelo menos antes dos beijinhos trocados entre Honecker e Gorbachov.

Falar nisso, quando teremos eleições em Cuba? Lembro que Gorbachov andou por lá e, russo sendo, certamente trocou bicotas com Fidel. Sei lá se pela espessura das barbas do caudilho, ou quem sabe por uma dessas famosas vacinas cubanas, que previnem deste meningite a perestroika, o fato é que o folclórico animador da Disneylândia das esquerdas continua invicto em suas três décadas de ditadura.

A propósito, comentando as eleições do Chile, há pouco um jornal mancheteava: Cai o último ditador da América do Sul. Ou seja, melhor não falar em América Latina. Pois se assim falarmos, está faltando um.

Quando nos dará Gorba o prazer de mais um beijinho em Castro? Não precisa ser no estilo de Joab beijando Amasa, nem de Davi beijando Jônatas. Basta um beijinho doce, um abraço apertado, um suspiro dobrado e o horror terá fim.


(Joinville, A Notícia. 17.12.89. Porto Alegre, RS, 23.12.89)

segunda-feira, outubro 29, 2007
 
AINDA A GUERRA CIVIL ESPANHOLA



Confesso ter feito uma pesquisa rápida, tentando achar o texto original da notícia da France Presse sobre as vítimas da Guerra Civil. Não achei nada. Charles Pilger, pesquisador mais minucioso, achou. Cá está:

498 "MARTYRS" DE LA GUERRE CIVILE ESPAGNOLE BÉATIFIÉS

lundi 29 octobre 2007

Une messe de béatification de 498 "martyrs" des "persécutions religieuses" de la guerre civile espagnole a eu lieu dimanche place Saint-Pierre, à Rome. Un évènement qui suscite la polémique.

Par AFP

Quelque 30.000 fidèles assistaient dimanche matin au Vatican, place Saint-Pierre, à la messe de béatification de 498 "martyrs" des "persécutions religieuses" de la guerre civile espagnole célébrée en espagnol par le représentant du pape, le cardinal José Saraiva Martins.

La célébration a commencé par la lecture de la longue liste des noms des "martyrs", qui comprend deux évêques, 24 prêtres, 462 religieux, trois diacres ou séminaristes et sept laïcs.

Ces catholiques ont été tués dans diverses circonstances en 1934, 1936 ou 1937, pour la plupart au début des affrontements qui déchirèrent l'Espagne après le soulèvement des "nationalistes' du général Francisco Franco contre le gouvernement de Front populaire.

La quasi-totalité des évêques espagnols ont fait le voyage de Rome pour participer à la messe de béatification, mais l'assistance était beaucoup moins importante que celle qui avait été initialement annoncée: l'Eglise d'Espagne avait avancé début octobre le chiffre d'un million de personnes.

Cette béatification de masse, la plus importante de l'histoire de l'Eglise catholique, a provoqué une polémique dans les médias de gauche alors que le gouvernement de Madrid s'apprète à faire adopter par le parlement une loi réhabilitant la mémoire des victimes du franquisme.

Le rapporteur du projet de loi, le socialiste Jose Torres Mora, assistait à la messe de béatification et le gouvernement était représenté par le ministre des Affaires étrangères Miguel Angel Moratinos.

Plusieurs milliers de religieux et religieuses espagnols, selon les historiens, ont été tués par des sympathisants républicains, où le courant anticlérical était puissant, avant et pendant la guerre civile (1936-1939) qui fit plus de 500.000 morts dans les deux camps.

Après leur défaite, 50.000 Républicains ont été exécutés par les forces nationalistes et des dizaines de milliers d'autres ont été incarcérés. L'Eglise catholique a été un des piliers du régime franquiste jusqu'à sa disparition en 1975.

Le pontificat de Jean Paul II, décédé en avril 2005, a déjà connu onze séries de béatifications de "martyrs" de la guerre civile espagnole, pour un total de 471 victimes.


Pilger observa que "a matéria da Folha não diz que os padres assassinados foram vítimas de Franco. Pode ser que a Folha queria que quem lesse de forma rápida assim o pensasse, mas o caso é que tá lá: As presenças de Moratinos e de um dos autores da Lei de Memória Histórica na cerimônia no Vaticano foram consideradas "um gesto amistoso após fortes atritos" com a Igreja, segundo o jornal espanhol El País, e deverá servir para pôr fim a qualquer polêmica com o governo socialista. O governo de José Luis Rodríguez Zapatero apresentou uma lei para reabilitar as vítimas do regime do general Francisco Franco".

Sim, está lá. Mas a última frase, somada à omissão da responsabilidade pelas mortes, dá a entender ao leitor desavisado que todas as vítimas devem ser creditadas a Franco. A manipulação da Folha online se evidencia na omissão deste trecho fundamental do texto original da France Presse:

"Vários milhares de religiosas e religiosas espanhóis, segundo os historiadores, foram mortos por simpatizantes republicanos, onde a corrente anticlerical era poderosa, antes e durante a guerra civil (1936-1939) que fez mais de 500 mil mortos nos dois campos".

Grato, Pilger. É óbvio que houve manipulação do redator da Folha.

 
CHE, SESSÃO NOSTALGIA



Ler jornais antigos é lazer que me fascina. Na Folha de São Paulo de 19 de outubro de 1997, quando Che Guevara ainda era visto como herói, encontro artigo intitulado "O Che morto e o Che vivo", de autoria do lúcido sociólogo francês Alain Touraine, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Nenhuma alusão a seus frios assassinatos, nem à ditadura que ajudou a instalar em Cuba. Seguem alguns excertos:

Por que o elogio do herói revolucionário, se a idéia de democracia penetra, enfim, no continente latino-americano, e se as guerrilhas desapareceram em quase todos os países, salvo na Colômbia, onde Che condenara as suas formas de implantação e de luta?
(...)
Pode-se dizer, a princípio, que o herói, à medida que a sua figura se esfuma, transforma-se em mito, e que o ministro da Indústria ou o militante são recobertos pela figura do guerrilheiro assassinado, que lembra Cristo. É o Che morto, mais que o Guevara vivo, que sobe ao paraíso dos heróis sacrificados.
(...)
Assim, seria por causa da queda do Muro de Berlim, por causa da ausência de regime revolucionário, por causa do domínio avassalador das redes financeiras e econômicas capitalistas que a figura de Che surge como um protesto silencioso, diante do qual ergue-se a América Latina e o mundo inteiro, assim como Hamlet erguia-se diante do fantasma de seu pai assassinado. Essa explicação é talvez a melhor; ela corresponde aos sentimentos, à nostalgia de todos os que viveram, como a melhor parte de si mesmos, as suas idéias revolucionárias, e que muitas vezes não se orgulham do que se tornaram, dos compromissos ou das renúncias que tiveram de aceitar: são estes que reencontram, no rosto do Che assassinado, os seus próprios ideais burlados.
(...)
Nessa noite e nesse silêncio, a luz que ilumina o rosto de Che é o indício de um caminho; não daquele seguido por Che, mas ainda assim de um caminho, de uma possibilidade de ação, de uma esperança de ação contra a miséria e a injustiça.
(...)
Estamos ainda muito longe deste momento em que se recomporá um campo propriamente político, em que se enfrentarão idéias tanto inovadoras quanto realistas. Daí por que, no silêncio político atual, a imagem do Che combatente e vítima é um primeiro ponto de referência.
(...)
A figura de Che não é só um mito, não é só um ideal que se separa das formas adotadas por este ideal na história; ela é um sinal na noite - um sinal de esperança e, também, de solidão. Ninguém mais pensa que voltará o tempo das guerrilhas, e muitos gostariam de ouvir novamente as vozes que reclamam a Justiça e que denunciam as desigualdades escandalosas.
(...)
A celebração do 30º aniversário da morte de Che não é apenas um adeus ao passado há muito desaparecido; é um sinal rumo ao futuro, um desejo ainda imóvel de andar, a necessidade de um ideal capaz de transformar as sociedades tão pouco ciosas da Justiça. O guevarismo desapareceu - e com ele os regimes pós-revolucionários a que fazia referência, mas o exemplo do combatente sem esperança persiste e anima os que ainda não possuem novas esperanças, embora sofram a sua ausência.

 
A CONTA DE CHEGAR DE SÃO LANCELLOTI



Em suas primeiras declarações à imprensa, o padre Júlio Lancellotti disse ter sido extorquido em 50 mil reais por seu pupilo dileto. Dois dias depois, já falava em 80 mil. Hoje, sua defesa já admite 150 mil reais. Quem dá mais?

O defensor do pupilo dileto de São Lancellotti aventa algo entre 600 e 700 mil. Mais dia menos dia, chegaremos lá.

 
Crônicas da Guerra Fria (21)


NO OVO, A SERPENTE



Florianópolis - Mani Hayyá, ou Mani, o Vivente, nasceu no ano de 216, na Babilônia, e morreu flagelado em 277, acusado de socavar as bases da religião oficial masdeísta. Em uma vida intenso apostolado, que o levou à Índia, criou a religião que passou a levar seu nome e teve enorme influência tanto no Oriente como no Ocidente. Santo Agostinho foi um de seus adeptos mais fervorosos. Segundo Mani, no começo havia duas substâncias ou princípios: a luz, equiparada ao Bem e às vezes a Deus, e a Escuridão, equiparada ao Mal e às vezes à matéria. As duas substâncias são eternas e igualmente poderosas. Nada têm em comum e residem em distintas regiões. A Luz, ao Norte. A Escuridão, ao Sul. Cada uma das duas substâncias tem à sua cabeça um rei. A Luz, o Pai da Grandeza. A escuridão, o Reino das Trevas. Segundo alguns estudiosos, os cátaros teriam sido os últimos remanescentes do maniqueísmo no Ocidente. Tais estudiosos desconheciam, é claro, o PT e os petistas.

Mani, nós o encontramos hoje em qualquer salão paroquial, bar ou repartição pública. Em sua versão moderna, mas não muito, divide o universo em patrões e operários, ricos e pobres. Os patrões constituem o princípio do Mal, o Reino das Trevas. Os operários, por sua vez, são Luz e Salvação. O rico será sempre maldito, mesmo que sua riqueza tenha sido conquistada honestamente. E o pobre será sempre abençoado, já que a pobreza passou a ser sinônimo de virtude. No fundo, a interpretação romana dos Evangelhos que, ao considerar o lucro um pecado, dividiu o Ocidente, do ponto de vista econômico, em Norte e Sul.

Ao Norte, os países ricos e protestantes, pois para estes, ser rico é prova de ser benquisto por Deus. Ao Sul, os países pobres e católicos, pois para estes, dos pobres é o Reino dos Céus. A equação acaba fechando: o bem-estar dos países protestantes do Norte, para os quais Deus gosta mesmo é dos ricos, é financiado pela indigência dos países católicos do sul, para os quais Deus gosta mesmo é dos pobres. Tivéssemos uma ministro da Economia com tanto carisma como Jeová, estaria resolvido o problema das greves no Brasil.

Para quem leu os romances baseados no realismo socialista, deste stalinista impenitente, Jorge Amado, nada de novo. Os ricos são podres e devassos. Os pobres são nobres e castos. Pena que a teimosia dos fatos não confirma tão lindas teorias. Pois é a luta pela sobrevivência em condições adversas o que mais corrompe as classes menos favorecidas. Para um homem sem maiores problemas materiais, não é difícil ser nobre. Já para um pobre, não é fácil fugir à condição de pobre. A Igreja Católica, apesar de seus dois milênios de manipulação do poder, não parece ter entendido este paradoxo que de paradoxal nada tem: sendo rico, posso dar-me ao luxo da generosidade. Sendo pobre, mesquinharia é meu alimento cotidiano. Em nada me espanta, pois, que os teólogos ditos da libertação apoiem o PT, última flor, inculta e feia, do maniqueísmo.

Quem me vê assim falar, já deve estar pensando: o cronista é milionário. Equívoco do leitor. Sou bilionário. Ao chegar a Florianópolis, meu patrimônio era dois bi. Ou seja, uma bicicleta e uma biblioteca. Dada a histeria estival da ilha, desfiz-me da bicicleta e hoje estou reduzido à minha biblioteca. Nem por isso acho que ser rico seja necessariamente sinônimo de ser crápula, e pobre sinônimo de ser santo. O universo é por demais caótico para ser reduzido a uma linguagem binária.

Todo empresário é um canalha, dizia-me certa noite uma dessas meninas que vivem em uma cobertura e esperam na fila para pagar três mil dólares pelo sublime direito de passar fome e treinar guerrilha na Nicarágua. Dyonelio Machado, saudoso e injustiçado escritor gaúcho, disse-me um dia: "a data é inerente ao texto". Parodiando Dyonelio, eu diria que besteiras são inerentes à idade. E falo de cátedra: quando jovem, idiota e maniqueísta, eu também pensava assim. Mas o grave em minha interlocutora é que já estava entrando em sua quarta década de vida.

Em minha adolescência, intoxiquei-me de leituras, primeiramente cristãs, depois marxistas e finalmente anarquistas. Ou seja, dose tripla de maniqueísmo. Vivia em uma pequena comunidade do interior gaúcho, não tinha de lutar pelo meu pão de cada dia e considerava todo comerciante, empresário ou fazendeiro, um criminoso. Com o tempo, abandonei Cristo, Marx, Kropotkins, Bakunins e Trotskis da vida. Como cachorro que sacode o corpo para secar-se, sacudi-me e joguei para bem longe de mim aqueles conceitos que, se em teoria são lindos, nas prática jamais funcionaram.

Para o cachorro, o problema é simples, boa parte da água vai embora e o que sobra evapora. Ideologia é bem mais grave, adere como lepra à pele e por mais que a gente se sacuda sempre permanece alguma caspa. Por muito tempo transportei comigo este preconceito em relação ao capital e, por extensão, a seus detentores. Não fosse ter um dia saído de minha pequena cidade, conhecido outras culturas e gentes, faria coro com a jovem petista: todo empresário é um canalha.

Viajei por países onde o comércio é crime e lá vi miséria, escassez de toda e qualquer coisa, corrupção, desrespeito aos direitos mínimos dos cidadãos, ausência total de liberdade de expressão e de imprensa. (Que mais não seja, estão aí os jornais para confirmar o que há muito se sabia). Como também vivi em sociedades de consumo compulsivo. Embalado desde a adolescência pelos discípulos de Mani, sempre abominei as sociedades de consumo. Após ter vivido em algumas delas, a caspa começou a cair.

Sociedades capitalistas como Suécia, Alemanha ou França dão ao trabalhador condições mil vezes melhores que as ditas - e agonizantes, espero - ditaduras do proletariado. Pois as sociedades de consumo criam necessidades, em boa parte supérfluas, é verdade. Mas o supérfluo gera mercado e o mercado gera trabalho.

Queremos construir uma sociedade de classe média, declarava o Dr. Lula no domingo passado. Sem falar que a definição de classe média só tem sentido enquanto existir uma classe alta e outra baixa - ou então não seria média - o candidato do PT lembra-me anedota que corre na Europa sobre as diferentes visões de mundo de americanos e franceses. O americano, ao ver um cidadão dirigindo um Mercedes ou BMW, logo exclama: "Que maravilha, vamos construir uma sociedade onde todos tenham acesso a um carro destes". Já o francês pensa por outros rumos: "Que canalha! Vamos construir uma sociedade onde esse filho-da-mãe ande a pé como todo mundo". A classe média brasileira tem vivido mais de susto do que de rendas e o candidato petista apresenta ao país este brilhante programa, transformar o Brasil todo numa imensa classe média.

Todo empresário é um canalha, dizia a moça petista. E logo eu, que de berço não simpatizava com estes senhores, senti-me obrigado a defendê-los. Pois nesta república papeleira, onde investir no dólar, over ou ações é lucro certo e trabalho nenhum, penso que ao empresário devia ser erguido um monumento: é homem que nestes dias de lucro fácil e desonesto tenta investir em produção, quando poderia muito bem estar enchendo os bolsos apostando nas ficções decorrentes da inflação. Se há um herói nestes tempos de paz, neste Brasil de papel já em fase de hiperinflação, este herói é quem investe seu capital tentando produzir riqueza.

Vamos estabelecer a luta entre o capital e o trabalho - declarava Lula, há poucas semanas, aos jornais. Verdade que agora já fala em debate entre capital e trabalho, afinal votos valem mais do que coerência. Mas isto é o de menos. O trágico nestas primeiras eleições presidenciais, após três décadas de jejum cívico, é que o PT alimente sua campanha com a tosca doutrina de um persa de dezessete séculos atrás. O capital é o Reino das Trevas. O trabalho, o Mundo da Luz. Não é por acaso que Dr. Lula tem formação católica e tem recebido o apoio descarado desta instituição fundamentalmente maniqueísta, a Igreja Católica.

Ganhe ou não o partido dito dos trabalhadores estas eleições, o mal já está feito. As ruas estão tomadas por uma juventude fanatizada empunhando bandeiras e conceitos obsoletos. "A revolução, nos a faremos com os jovens" - dizia o ideólogo dos terroristas em Os Sete Loucos, de Roberto Arlt - "pois os jovens são estúpidos e entusiastas". O que nos evoca, tragicamente, os primeiros jovens que um dia empunharam na Alemanha, com a fé dos crentes, a bandeira com a cruz gamada.


(Joinville, A Notícia, 10.12.89)

domingo, outubro 28, 2007
 
TRIBUTAÇÃO SEGUNDO SWIFT


Nestes dias em que se discute a CPMF e reforma tributária, sempre é bom evocar Swift e seu relato sobre a Academia de Lagado, em Balnibarbi:

Vi dois acadêmicos a discutir com calor o meio de criar impostos sem que os povos murmurassem. Um, sustentava que o melhor método seria impor uma taxa sobre os vícios e as paixões dos homens, e que cada um seria coletado segundo o juízo e a estima dos seus vizinhos. O outro acadêmico era de um sentimento inteiramente oposto e pretendia, pelo contrário, que era preciso coletar as belas qualidades de corpo e de espírito de que cada um se orgulhava, e coletá-lo mais ou menos segundo os seus graus, de maneira que seriam os seus próprios juízes e fariam a sua declaração. A maior taxa seria imposta sobre os cultores de Vênus, os favoritos do belo sexo, proporcionalmente aos favores que tivessem recebido, e devia reportar-se ainda, sobre este assunto, à sua própria declaração.

Era preciso também coletar fortemente o espírito e o valor, segundo a confissão que cada um fizesse das suas qualidades; mas com respeito à honra, probidade, saber, modéstia, isentavam-se essas qualidades de qualquer taxa, visto que, sendo muito raras, não dariam lucro algum; que não se encontraria ninguém que não quisesse confessar que as encontrava no seu próximo e que quase ninguém teria o arrojo de as atribuir a si próprio.

Do mesmo modo se deviam coletar as senhoras em proporção da sua beleza, dos seus atrativos e das suas graças, conforme ao seu próprio juízo, como o que se fazia com relação aos homens; mas pela fidelidade, sinceridade, bom senso e bondade natural das mulheres, visto que disso não se ufanam, nada deviam pagar, pois tudo o que pudesse receber-se daí não bastaria para cobrir as despesas do governo.

 
COMO MANIPULAR FATOS



João Paulo II foi o papa que mais santos fez em dois mil anos de história da Igreja. Pelos dados que disponho, até o final do século passado, canonizou nada menos que 447 beatos. Todos os outros 263 papas anteriores, somados, fizeram 302 canonizações. De uma leva só, no começo de outubro de 2000, João Paulo II canonizou 120 cristãos martirizados na China entre 1648 e 1930. Além disso, promoveu outras 1052 pessoas à condição de beatas, o penúltimo estágio antes da santidade.

Bento XVI está se revelando sério candidato a desbancar seu predecessor como fabricante de santos em série. De uma tacada só, acaba de beatificar 498 espanhóis mortos durante a guerra civil. A lista dos novos candidatos à canonização compreende dois bispos, 24 padres, 462 religiosos, três seminaristas e sete leigos. Vejamos como a France Presse noticia o fato, pelo menos segundo a transcrição da Folha Online.


PAPA BEATIFICA 498 MÁRTIRES DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA

Cerca de 30.000 pessoas assistiram neste domingo (28) na Praça São Pedro à cerimônia de beatificação de 498 "mártires" das "perseguições religiosas" da Guerra Civil espanhola (1936-1939). Ao término da cerimônia, o papa Bento 16 exortou os espanhóis a trabalharem pela "reconciliação e pela convivência pacífica".

"Com suas palavras e gestos de perdão para com seus perseguidores,(os novos beatos) nos estimulam a trabalhar incansavelmente pela misericórdia, pela reconciliação e pela convivência pacífica", disse o papa ao término do Angelus, pronunciado da janela do Palácio Apostólico no Vaticano.

Bento 16 não presidiu a cerimônia de beatificação celebrada na Praça São Pedro, embora tenha assistido ao rito do Palácio Apostólico de onde dirigiu a mensagem para os cerca de 30.000 peregrinos presentes. A cerimônia, realizada em espanhol, ficou a cargo do cardeal português José Saraiva Martins, prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, representante oficial do papa.

Nas primeiras filas estavam importantes representantes do governo, entre eles o ministro das Relações Exteriores, Miguel Angel Moratinos. As presenças de Moratinos e de um dos autores da Lei de Memória Histórica na cerimônia no Vaticano foram consideradas "um gesto amistoso após fortes atritos" com a Igreja, segundo o jornal espanhol El País, e deverá servir para pôr fim a qualquer polêmica com o governo socialista.

O governo de José Luis Rodríguez Zapatero apresentou uma lei para reabilitar as vítimas do regime do general Francisco Franco.


Que deduzir da notícia assim reproduzida? A frase final deixa claro que os 498 espanhóis foram vítimas das forças de Francisco Franco. O que está longe de ser verdade. Entre 1931, quando a República Espanhola foi proclamada, e 1939, quando a Guerra Civil terminou, cerca de sete mil religiosos católicos foram assassinados... pelos republicanos. Isto é, pelos comunistas. Segundo o historiador Ricardo de la Cierva, em Historia Total de España, "nos quatro meses que precederam a guerra civil houve 160 igrejas incendiadas. Entre os milhares de civis mortos pelos comunistas, anarquistas e socialistas, estão pelo menos 6 mil padres, freiras e monges, além de 12 bispos. Muitos foram queimados vivos e outros foram enterrados ainda com vida".

Bento XVI não está beatificando as vítimas de Francisco Franco. Está beatificando as vítimas dos comunistas espanhóis. Houve manipulação na notícia publicada na Folha Online. Manipulação da France Presse ou da Folha Online?

Conhecendo os bois com que lavro, eu diria que da France Presse não foi.

 
Crônicas da Guerra Fria (20)


CEAUCESCU TEM MEDO



Florianópolis - Perambulava eu outro dia pelo Parque Farroupilha, em Porto Alegre, quando deparei-me com um daqueles flagrantes da realidade que nos exigem alguns segundos de reflexão para serem entendidos. Era domingo. Em um bar, do lado do brique, meia dúzia de filhinhos de papai, bem nutridos e empunhando uma cerveja depois da outra, empunhavam bandeiras vermelhas com a foice e o martelo e cantavam:

Ai, quem diria? Ai, quem diria?
O proletário derrotando a burguesia.


Todos pertenciam, é claro, ao dito Partido dos Trabalhadores, mas de trabalhadores não tinham a cara. Aliás, neste primeiro turno de eleições presidenciais, o PT foi vitorioso entre os eleitores residentes em Londres, Paris e Roma. Tais votos serão oriundos, certamente, dos operários brasileiros que labutam às margens do Tâmisa, do Sena e do Tibre.

Volto a Florianópolis. No domingo seguinte, estive no bar do Arante, em Pântano do Sul, baluarte estival das esquerdas ilhoas, onde a mesa é farta e cerveja sempre gelada é o que não falta, ao contrário de Moscou, onde apesar da perestroika, segundo amiga recém-chegada de lá, cerveja não há nem pra remédio e papel higiênico, mesmo nos hotéis de luxo, só com requerimento no qual deve ser especificada a metragem necessária. Curioso cálculo. Pois não é que naquele pântano, atulhado de carros pra burguês nenhum botar defeito - quase todos com a insígnia do PT, é claro - onde não faltava nem cerveja, nem comida, nem papel higiênico, dúzias de filhinhos de papai, todos gordos e bem nutridos, balançavam-se ao som de uma canção estúpida? O cantor, que está de partida e já vai tarde, berrava:

A burguesia fede
fede
fede


É o que dá os petistas só irem de carro a Pântano do Sul. Tivessem de enfrentar um ônibus proletário superlotado de gente humilde, talvez percebessem que se há alguma classe que cheira mal cá na ilha, esta classe é o proletariado. Mas petista não gosta de ônibus, coisa de lumpenproletariat. Gostam mesmo é de xingar a classe à qual pertencem, os pais que lhes facilitam moradia, carro e cerveja. Não quero bancar o freudiano primário, mas em todos os petistas com os quais tive ocasião de cruzar, observei um sentimento de ódio ao pai e autofagia. A burguesia fede, fede, fede. Ó Arante, salta aí uma geladinha!

- O gênio da nação deve ser reeleito - disse Nico, diante dos delegados participantes do 14º Congresso do Partido Comunista Romeno, em Bucareste -. O brilhante relatório do camarada Ceauscescu faz uma análise brilhante do caminho luminoso que conduz a um futuro magnificente.

Nico é o filho de Nicolae Ceaucescu, vice-decano dos ditadores contemporâneos. (Mais antigo, só Fidel Castro). É, pelo menos, filho agradecido. Nestes dias em que começam a esboroar-se as ditaduras comunistas do Leste europeu, Nico apóia a "reeleição" por mais cinco anos de seu papá. O que me lembra áspera discussão que tive em Berlim Ocidental. Uma amiga que há muitos anos lá reside, detentora de 12% de ações de uma sólida empresa brasileira, me confidenciava seu ódio ao capitalismo e amor ao socialismo e apontava para o outro lado do Muro - antes da queda do Muro, é claro - afirmando: "Lá no Leste, a família é mais unida". É verdade.

O Muro está caindo, para perplexidade dos alemães orientais, para os quais a Berlim livre era uma realidade mais distante do que a Austrália ou Nova Zelândia. Por alvissareira que seja a notícia - sem dúvida alguma, a mais grata que os jornais me trouxeram em toda minha existência - isto não significa que os cidadãos do Leste europeu estejam libertos do tacão stalinista.

Gorbachov mas não molha, escrevia eu em crônica passada, pouco esperançoso com a lentidão da perestroika. Mas os acontecimentos tomaram um ritmo acelerado no lado de lá. Longa vida a Gorbachov. E se conseguir fazer com que os russos tirem as patas de suas colônias, Nobel da Paz ao Mikahil**.

Na Romênia, lá onde o proletariado derrotou a burguesia, cada cidadão tem direito a meio quilo de carne e dez ovos por mês. É o que dizem os jornais e me pergunto se não pecam por otimismo. Nos dias em que andei por lá, vi gente brigando à tapa mal chegou uma paleta bovina em um daqueles supermercados sinistros de longas gôndolas vazias. Cerveja, só da China, morna e de péssima qualidade, isso quando ocorria o milagre de encontrar-se um bar que tivesse cerveja, onde clientes cheios de medo falavam baixinho e se empapuçavam com aquele xarope sem graça.

Mas não sejamos injustos, há bons vinhos na Romênia. Eu os degustei, pois era estrangeiro e pagava com divisas fortes. Os romenos, que plantam a vide, colhem a uva e elaboram o vinho, estes ficam chupando o dedo. Nunca é demais repetir que nos paraísos socialistas, onde o proletariado derrotou a burguesia, existem as berioskas ou dollarbutiques, onde se pode encontrar os mais sofisticados bens de consumo que o Ocidente malvado e capitalista produz. Mas a esses requintes só tem acesso o turista provido de dólares, marcos ou francos.

Foi na Romênia, creio, que senti pela primeira vez o absurdo e a desumanidade de uma fronteira intransponível. Estava em Mangália, cidade balneária às margens do rio Negro, a sete quilômetros da fronteira com a Bulgária. Hospedei-me em hotel de luxo, onde como cardápio só havia duas opções, carne de frango onde porco. Se você pedia porco, tudo bem. Mas se pedisse frango, só vinha porco mesmo, afinal frango era apenas uma abstração do cardápio. Se em hotel de luxo, pagando em dólares, assim era tratado o turista, fiquei imaginando o que comeriam os romenos. Mas não era disto que pretendia falar.

E sim de um garçom, meu interlocutor em Mangália. Com ele eu trocava meus dólares por lei (plural de leu, a moeda lá deles). Ao saber que eu iria a Varna, na Bulgária, devolveu-me meus dólares e outros mais. Queria que eu lhe comprasse "o que fosse possível" nas berioskas búlgaras, mais baratas que as romenas. Era um homem de meia idade e ocorreu-me perguntar se não tinha alguma vez atravessado aquela fronteira, a sete quilômetros do hotel. Não, jamais a atravessara. A polícia lhe exigiria razões muito graves para ultrapassar aquela linha, sem falar que, tal pedido, já o colocaria na lista dos suspeitos de conspirar contra o Estado. O garçom teria uns quarenta anos e jamais lhe fora permitido dar uma espiadela no país ao lado.

Nas praias, observei mais um daqueles fatos que nos exigem algum tempo de reflexão para serem entendidos. Turistas estrangeiros e internos tiravam fotos ao lado de maquetes de veleiros. Veleiro mesmo, que é bom, nem pra remédio. Muito menos barcos. Fui consultar meu interlocutor.

- É simples, disse o garçom -. A Turquia fica a apenas dois dias de navegação. Seria tentador demais para quem sabe velejar ou remar.

Senti-me então como um viajante privilegiado, em rápido turismo por um gulag. Fiquei duas semanas na Romênia. Duas, porque não havia vôo de volta ao mundo livre logo após a primeira. Ofereceram-me mais uma terceira semana no país, nesta não pagaria nada por hotel ou refeições. Sei que para muitos jornalistas não constitui nenhuma falta de ética receber mordomias para fazer o elogio de ditaduras, há inclusive quem se orgulhe de prêmios literários concedidos pela ilha particular de Castro, da mesma forma que Jorge Amado orgulhou-se um dia de receber o prêmio Stalin de Literatura. Devo ser antiquado, pois recusei a hospitalidade romena. O que queria mesmo era sair, o mais rápido possível, daquele universo sufocante.

As ditaduras do proletariado, inspiradas, diga-se de passagem, no pensamento burguês, estão ruindo em ritmo vertiginoso. As estátuas de Stalin vieram abaixo após 1956, agora é Lênin e a estrela vermelha que começam a ser derrubadas. E Marx que se cuide. No Leste, a Romênia e a Albânia candidatam-se seriamente ao título de museus vivos do obscurantismo. Como também a Cuba de Castro.

Ceaucescu tem medo e alerta seus prisioneiros para não traírem os ideais do socialismo. Enquanto as nações centro-européias começam a libertar-se dolorosamente de meio século de escravidão, ainda resta no Brasil uma juventude analfabeta que empunha bandeiras com foice e martelo e prega a luta de classes. Stalin morre no Velho Mundo e ressuscita, triunfante, na sofrida América latina.

Aqui-del-rey, Gorby!

* No Natal de 1989, 13 dias após a publicação desta crônica, Nicolae Ceaucescu e sua mulher, Elena, foram julgados e executados em Târgovişte, Romênia, com mais de cem tiros.

** Dois anos depois, mais precisamente em 26 de dezembro de 1991, era decretado o fim da União Soviética.


(Porto Alegre, RS, 09.12.89)

sábado, outubro 27, 2007
 
SÓ COIMBRA NÃO VIU



Amigos me enviam artigo intitulado "As Vejas que eu vi", do jornalista David Coimbra, de Zero Hora, de Porto Alegre:

Eis aí duas capas da Revista Veja sobre o mesmo assunto: Che Guevara. Há 10 anos entre elas. A primeira, publicada em 1997, foi feita a partir de uma matéria escrita por Dorrit Harazim, talvez a repórter de maior prestígio no Brasil. Dorrit viajou à Bolívia, onde foi assassinado o Che, e voltou com um texto descritivo, sustentado por cartapácios de documentos e pelo menos uma dezena de entrevistas. O título: "O Triunfo final de Che". Dorrit não faz uma apologia do guerrilheiro. Limita-se a investigar as ocorrências de seus últimos dias e tenta explicar como ele se transformou em mito. "Che Guevara tinha tudo para se tornar imortal", escreveu. "Era bonito, destemido e morreu jovem, defendendo conceitos igualmente jovens, como a solidariedade e a justiça social".

O texto de 2007 tem como título "Che: Há 40 anos morria o homem e nascia a farsa". Não é uma reportagem; é um grande artigo. Os autores não saíram para fazer a matéria e retornaram com a convicção de que Che foi um monstro. Não. Eles partiram da convicção de que Che foi um monstro para escrever a matéria. O texto se propõe a convencer o leitor da tese da revista. A Veja de hoje descreveu o Che desta forma: "Com suas fraquezas, sua maníaca necessidade de matar pessoas, sua crença inabalável na violência política e a busca incessante da morte gloriosa, foi um ser desprezível".


O jornalista parece não entender muito de jornalismo. Ninguém sai para fazer matéria quatro décadas após um fato ter ocorrido. A matéria já foi feita e refeita centenas de vezes. Os jornalistas de Veja saíram em busca dos fatos que vieram à tona nestes últimos quarenta anos e mostraram a verdadeira face do Che - a partir inclusive de seus próprios depoimentos - a face de um assassino de gatilho fácil. Coimbra parece esquecer que a imprensa brasileira viveu décadas dominada pelo pensamento de esquerda e foi este pensamento que construiu a imagem angelical do Che. Dorrit Harazim não escreveria de outra forma: era comunista. Para os comunistas, matar sempre foi legítimo, sempre que em nome da Causa. Se a Causa dá com os burros n'água e leva Estados à miséria e à ditadura, os comunistas se escusam com um vago dar-de-ombros: "foi um desvio da doutrina. Vamos tentar de novo".

Longa é a jornada das massas até o entendimento. Quem ousaria afirmar, nos anos 40, que Stalin era um assassino frio e havia matado milhões? Só ousaram afirmar isto alguns raros gatos pingados, como Orwell, Koestler, Kravchenko, Gide, Sábato e mais alguns, que foram condenados imediatamente como agentes do imperialismo. Mesmo quando Kruschov denunciou os crimes do stalinismo, no XX Congresso do PCUS, em 56, o clima era de incredulidade. Conheci velhos comunistas de Porto Alegre que choraram indignados e diziam ser tudo intriga dos serviços de informação ianques. Hoje, só o Niemeyer e o Suassuna são capazes de louvar Stalin. Foram necessárias décadas para desmitificar o tirano. Uma vez desmitificado, as esquerdas apoiaram-se em Lênin. O stalinismo era um desvio da doutrina do santo Vladimir Illitch Ulianov. Hoje se sabe que Lênin era também um assassino e que o terror começou sob sua tirania.

Pergunta-se Coimbra:

E agora? Em qual Veja devo acreditar? Sei a resposta: na de há 10 anos. Não porque a atual desmoraliza Che Guevara. Pouco me importa Che Guevara. Importa-me a Veja. Criei-me lendo essa revista, leio-a desde o tempo em que ela balizava o jornalismo brasileiro. Acontecia algo grave durante a semana, como, sei lá, a crise do Senado, e eu ia entender na Veja. Mas, por algum motivo, a Veja mudou. Não falo de Diogo Mainardi e outros colunistas. Esses estão emitindo opinião, e fazem-no com competência e graça. Posso até não concordar com o que escrevem, mas não preciso concordar com um colunista para gostar dele. Falo do jornalismo da Veja, da carne da revista.

Sim, a Veja mudou. E mudou para melhor. Apparatchiks como Dorrit Harazim nela não têm mais espaço. Mudou não só a Veja mas mudou também o mundo. Se até os anos 90 o Muro de Berlim era um bastião de defesa da "fortaleza assediada" do socialismo, hoje ninguém consegue mais sustentar esta potoca. Ocorre que estes fatos demoram a chegar a este nosso "continente puñetero", como dizia Augusto Roa Bastos. As universidades ainda estão cheias de múmias que construíram suas carreiras montadas no marxismo, e múmia não se dobra. Se esfarela. Professor algum, caquético e em fim de vida, ousaria admitir: minha vida toda foi um erro e minha obra não vale nada. Precisaremos mais duas ou três gerações para se estabeleça a convicção de que o marxismo foi a pior das pestes que infestou o século passado. De ponta a ponta.

O mundo mudou. O muro caiu. Só David Coimbra não viu.

 
O CALDO ENGROSSA PARA SÃO LANCELLOTTI



Poucas coisas me alegram tanto quanto ver esses monumentos públicos à virtude e à moral de calças na mão. Não é sadismo, não. É a satisfação de ver pelo menos alguém desmascarado neste grande baile de máscaras que a mídia nos mostra. Ontem, autoridades intocáveis, impolutas, acima do bem e do mal. De repente, o tropeço. E a máscara cai. Do dia para a noite, o monumento vira sucata. Aconteceu com o rabino Henry Sobel, aconteceu com Renan Calheiros e agora acontece com o padre Júlio Lancellotti.

Que hoje deve estar se arrancando os últimos fios de cabelo com a prisão de seus supostos extorsionistas. Hermano Freitas, da Folha Online, nos traz novas e nada surpreendentes revelações sobre a obra pia de São Lancellotti. Segundo o repórter, Nelson Bernardo da Costa, o advogado de defesa de Anderson Marcos Batista, o mentor da suposta extorsão - suposta porque ao que tudo indica não houve extorsão alguma - recebeu em 2001 seis mil reais em honorários do padre para a defesa de seu pupilo, condenado por homicídio. O que poderá ser facilmente comprovado, pois os pagamentos dos honorários foram realizados por depósito bancário, em seis parcelas de mil reais. Ou seja, São Lancellotti financiava seu "extorsionista" desde há seis anos, e não três como declarou.

O advogado negou que seu cliente tenha praticado extorsão e afirma que o dinheiro e os presentes foram dados pelo padre a título de "gratificação". Mais ainda: que o valor dos bens recebidos por seu cliente foi de "quase 700 mil reais" e que o relacionamento entre o padre e ex-detento acabou após Batista ter se casado, em outubro de 2006. Ainda de acordo com ele, o sacerdote mantinha relações sexuais com outros meninos. "Eles chegaram a ter relações sexuais dentro da igreja", disse o advogado de Batista. O caso entre o padre e o moço teria iniciado quando este foi internado na Febem por roubo, aos 16 anos. Ora, Batista hoje tem 25 anos e teve cinco carros de luxo. Nove anos e muita grana rolaram desde então.

Batista se revelou mais caro que amante argentina. Até a Mônica custou menos ao senador Renan Calheiros. O delegado André Luis Pimentel, do Setor de Investigações Gerais, pedirá a quebra do sigilo bancário do padre para apurar o valor total da extorsão.

A platéia, em suspense, espera as novas revelações.

 
Crônicas da Guerra Fria (19)


DE ONDE NASCEM AS FLORES



Florianópolis - Os animais são comoventes, não é verdade? Outro dia, a televisão nos mostrava cenas brutais de um massacre de elefantes, espécie cuja extinção preocupa organismos do mundo todo. Consta que há dez anos atrás um milhão de elefantes pastava pelas florestas africanas e destes só restam hoje 620 mil. Pululam ainda, nos países do Primeiro Mundo, entidades que lutam pela preservação de hienas e focas. O que não parecem ter percebido estes ativistas - ou talvez já comecem a percebê-lo - é que, se elefantes, focas e baleias estão ameaçados de extinção, isto se deve ao fato dos cidadãos do Primeiro Mundo adorarem defesas de marfim esculpidas, casacos de pele e cãezinhos bem nutridos. Mais que amor aos animais, parece predominar uma certa mauvaise conscience nestas manifestações ecológicas.

Já os seres humanos, estes não parecem comover tanto. Em três anos, de 75 a 78, Pol Pot reduziu a população do Camboja de sete para cinco milhões de habitantes e o Ocidente reagiu com um silêncio constrangido. Há quem fale em um milhão mais de cadáveres. Verdade que a imprensa americana e européia indignou-se, mas isto quando nada mais podia ser feito. Pol Pot, educado em Paris, seguia a doutrina de Mao, e Mao era intocável. Hoje, começa-se a suspeitar que Mao matou mais que Stalin e Hitler juntos.

Mas, enfim, é tão desagradável contar cadáveres, ainda mais quando são milhões, que melhor mesmo é não tocar no assunto. Um elefante incomoda muita gente. Quatrocentos mil incomodam muito mais. Três, quatro, cinco, vinte, cem milhões de pessoas parecem não perturbar o sono de ninguém. Eles, que são amarelos, que se entendam. Que mais não seja, o bicho-homem é desprovido daquele olhar melancólico de espécime em extinção.

Hitler à parte, estes formidáveis assassinos que marcaram o século sempre contaram com o apoio incondicional, não só das esquerdas, como também dos melhores cérebros das esquerdas. Listar os que os louvaram em suas obras exige um esforço enciclopédico. Mais fácil arrolar os que denunciaram genocídios, que para isto bastariam os dedos das mãos de três ou quatro pessoas.

A propósito, outro dia Paulo Francis se penitenciava de ter apoiado o Khmer Vermelho em sua entrada triunfal em Phnon Penh. Alvíssaras, pelo menos fez um mea culpa. Se não me falha a memória, também havia apoiado Khomeiny, medíocre condutor de povos, afinal só produziu um milhão de cadáveres. Enquanto ecologistas do mundo todo preocupam-se com elefantes, baleias e focas, Pol Pot está em vias de voltar ao Camboja, como parte de um governo de coalizão, com o aval das nações ocidentais. Se um elefante continua a incomodar muita gente, Pol Pot parece já não incomodar ninguém mais.

Enfim, quem morre descansa. Pior mesmo, só a morte em vida dos seres que vivem sob o tacão das ditaduras socialistas. Para o Janer - reclamava outro dia um leitor - o socialismo é um inferno. Jamais me ocorrera formular a frase, assim tão precisa e redonda. Mas assino embaixo. O leitor intuíra, com síntese, o que penso de tais regimes. Pois não é que leio, nas últimas reportagens internacionais, esta mesma frase, sem tirar nem pôr: “o socialismo é um inferno”? Só que desta vez era dita por um cidadão que fugia da Alemanha Oriental, o país de mais sólida economia do bloco socialista.

O homem não é apenas corpo e alma - escreveu Stefan Zweig - mas corpo, alma e passaporte. Tendo vivido em uma Europa convulsionada pela guerra, Zweig tinha uma idéia bastante precisa do valor deste terceiro elemento inerente ao ser humano. Passada a guerra, passaporte é documento que em menos de uma hora se retira na polícia. Para os europeus ocidentais, bem entendido. Para os que ficaram no brete forjado por Stalin, passaporte é milagre caído dos céus, símbolo e possibilidade de vida nova, adeus a um regime de morte em vida.

Se algum leitor mais céptico acha que o cronista está exagerando, que dê uma olhadela nos jornais e revistas das últimas semanas. Neles verá jovens chorando e rindo, exibindo um passaporte, quase sem acreditar que o tem em mãos. Verá também trens atulhados de trânsfugas do paraíso, trens diminuindo a velocidade junto às estações para que os que ficaram possam entrar pelas portas e janelas lacradas para que da utopia ninguém mais fuja.

Enquanto escrevo estas linhas, já eram 45 mil os que abandonavam apartamentos, carros, bens, parentes e passado, em busca de ares mais respiráveis. Fogem do menos pobre - ou do mais rico, se quisermos - dos países socialistas.

Várias vezes estive em Berlim Ocidental, tanto a trabalho como pelo simples prazer de visitar uma das mais vivas e agitadas capitais culturais da Europa. Todas as vezes que por lá passei, entreguei-me ao masoquístico prazer de atravessar o muro, viagem que deveria fazer todo cidadão que habita em países livres, que mais não seja para valorizar na volta o que jamais lhe fez falta, a liberdade. Sem exagero algum, a diferença é do dia para a noite, do céu para o inferno.

Se você vai de metrô, na hora de atravessar o muro um policial de má catadura olha por sessenta longos segundos a foto do passaporte e, por mais outros sessenta, o seu rosto. Você é obrigado a trocar moeda forte por moeda-lixo e, nestes trâmites burocráticos, para atravessar vinte metros, você leva meia hora. Isto se não houver tensões entre Leste e Oeste. O Muro funciona como um tambor de grande ressonância e se por acaso a Nomenklatura russa não gostou das declarações de um líder ocidental, a travessia daqueles vinte metros pode custar-lhe quatro ou mais horas. Isso se não for proibida.

Minhas incursões a Berlim Oriental foram rápidas, mas suficientes para auscultar o medo, a tristeza e a ausência de futuro estampadas nos rostos que vi. Só uma historinha, para ilustrar. Ao atravessar o muro, notei que vários turcos faziam a mesma travessia. Que jornalistas e turistas fizessem tal peregrinação, era perfeitamente compreensível, uma questão de curiosidade, necessidade de comparação. Mas que buscariam no lado de lá operários imigrantes que fugiam de seus próprios países?

Curiosidade não era. Buscavam mulheres, explicou-me um amigo berlinense. Muitas jovens de Berlim Oriental entregavam-se a quem quer que fosse, na esperança de que os visitantes com elas casassem, o que lhes daria direito a um passaporte para o Ocidente. Empenhavam corpo e alma para conseguir aquele terceiro elemento constitutivo do ser humano, do qual nos falava Zweig.

O comunismo está morrendo, clamam os jornais. Não é verdade. Morreu há muito tempo, o necrológio é que foi publicado com atraso. A pessoa alguma bem informada é lícito alegar desconhecimento do que ocorria nas ditaduras do Leste. Os gulags datam de 1918. As purgas e assassinatos, de 1936. Em 49, Kravchenko desvelava ao Ocidente a tirania stalinista. Em 56, Kruschov passa a admiti-la. No mesmo ano, foi invadida a Hungria. O muro de Berlim data de 61. De lá para cá, contam-se aos milhares os que, arriscando a própria vida - e muitas vezes perdendo a aposta - ousaram tentar a travessia rumo à liberdade. Isto, só não viu quem não quis.

Gorbachov vem sendo aclamado, tanto no bloco socialista como neste universo capitalista - tão odiado pelos que aqui vivem e adoram o socialismo e tão invejado pelos que sofrem o socialismo - como a esperança de transformação das ditaduras do Leste. Alguns sinais são promissores. Polônia e Hungria não mais querem ouvir falar de comunismo, optam por uma economia de mercado e Moscou, pelo menos por enquanto, não enviou seus soldados a fazer turismo blindado em Varsóvia ou Budapeste. Letônia, Estônia e Lituânia pedem autonomia e, pelo menos por enquanto, os tanques russos por lá ainda não exibiram suas lagartas. No quadragésimo aniversário desta república de papel, a RDA, seus cidadãos votam com os pés e fogem para o Ocidente e, pelo menos por enquanto, Honecker não conseguiu ousar uma solução à la Pequim.

Estamos em compasso de espera. Verdade que a imprensa continua amordaçada nos países socialistas e xerox é instrumento de subversão, portanto proibido. De fronteiras abertas, nem falar. Quando houver um buraco na Cortina, que dele desfrutem os mais audazes. O que me espanta em tudo isto, é que stalinistas impenitentes venham a exibir a Perestroika como fruta sadia, decorrência do socialismo. Algo assim como se um piloto, encharcado de coca, errasse de rota e virasse herói, por ter matado apenas uma dúzia de passageiros em plena floresta.

Órfãos de Deus e encharcados de ideologia, os intelectuais deste século incentivaram e defenderam uma tremenda cagada histórica. Ao contemplar a florzinha que emerge do maelström de merda, batem palminhas:

- Que linda!


(Joinville, A Notícia, 22.10.89)

sexta-feira, outubro 26, 2007
 
MELHOR NAPALM



As esquerdas são divertidas. Sempre defenderam a bandidagem, alegando que a criminalidade é decorrência da miséria. Quando o governador Sérgio Cabral Filho, do Rio de Janeiro, defende o aborto como método de redução da violência no Estado e diz que a favela da Rocinha, na zona sul, é uma "fábrica de produzir marginal", é um deus-nos-acuda. Cabral apoiou-se no livro Freakonomics, dos americanos Steven Levitt e Stephen J. Dubner, que relacionam a legalização do aborto nos Estados Unidos à queda da criminalidade em áreas pobres, embora ressaltem que essa associação suscita um debate ético.

Segundo o Estado de São Paulo, entidades não-governamentais e moradores de favelas acusaram o governador de criminalizar a miséria e de distorcer o discurso do movimento pró-aborto, que defende a interrupção da gravidez como direito da mulher de ter autonomia sobre seu corpo, não como forma de combate à violência.

"Com essas declarações o governo escancara que defende a criminalização da pobreza. Como o Estado não tem política para incorporar o pobre, melhor que nem nasça. A política é de extermínio", disse Camilla Ribeiro, da ONG Justiça Global. "Para os mais ricos, o Estado se faz protetor; para os mais pobres, predador. Para se justificar, faz uma representação do favelado como o outro, de onde emana todo o mal", afirmou o professor Rodrigo Torquato da Silva, morador da Rocinha há 36 anos.

Segundo Adriana Gragnani, do núcleo de Estudos da Mulher e Relações de Gênero da Universidade de São Paulo, Cabral baseou-se em idéias ultrapassadas, dos anos 60. "Essa tese de diminuir o número de pobres para combater a violência, seja por aborto ou contraceptivos, é antiga. Na verdade você diminui a pobreza elevando o nível de vida da população".

Ora, vamos aos fatos. Nem de longe me ocorre defender a visão das esquerdas, de que a criminalidade é fator decorrente exclusivamente da miséria. Criminosos, os temos em todas as classes sociais, da mesma forma que pessoas honestas às quais jamais ocorreu cometer crimes para levar vida melhor. Mas é óbvio que as favelas são fábricas de marginais. Fabricam marginais a tal ponto que nem a polícia consegue entrar nos morros, a não ser com muitos homens e armamento pesado. Desde há muito as favelas brasileiras são verdadeiros bantustões, onde estão confinadas populações majoritariamente negras, de modo geral a serviço do tráfico, ou pelo menos como muralha de proteção ao tráfico. Os bantustões foram pseudo-estados criados pelo regime do apartheid na África do Sul, de forma a manter os negros fora dos bairros e terras brancas, mas suficientemente perto delas para servirem de fontes de mão-de-obra barata. No Brasil, esta mão-de-obra inativa foi açambarcada pelo tráfego.

São as classes altas as maiores responsáveis pelo consumo de drogas? Sem dúvida. Mas quem as fornece é a favela. Também é óbvio que a miséria e a prolificidade desvairada favorece a criminalidade. Se uma família pode sustentar uma criança e tem no entanto sete ou oito, é óbvio que a maioria, senão todos, irão para a escola das ruas. Nesta escola não se aprende exatamente etiqueta e bons modos.

Aí surge a televisão como elemento catalisador da violência. A telinha está ao alcance de qualquer marginal e analfabeto e exibe, sem pudor algum, um mundo de sonho, maravilhas tecnológicas, ambientes luxuosos e mulheres sensuais. Que resta ao pobre diabo que perambula pelas ruas senão o ressentimento? O tráfico é uma saída ao alcance de sua mão. Paga melhor do que recebem muitos profissionais liberais e não exige maiores qualificações. É claro que a favela é uma fábrica de delinqüentes.

Desde há muito defendo a idéia de que o luxo e ostentação exibidos pela televisão constitui uma das principais causas da violência no país. A telinha promete o paraíso e o pobre diabo habita no inferno. "Eu também quero", dirá o pobre diabo. Ocorre que ele não tem como comprar. Então mata e rouba.

Que fazer? Censurar a televisão? Nada disso. O que urge - e que a meu ver jamais acontecerá no Brasil - é eliminar a miséria do país. Não digo a pobreza, mas a miséria. Não sou adepto da igualdade social. Os revolucionários de 89 não me consultaram - e nem mesmo consultaram os franceses - quando empunharam como bandeira Liberté, Egalité, Fraternité. Liberdade e fraternidade, tudo bem. Já igualdade são outros quinhentos. Pobres e ricos sempre existirão em todos os países do mundo. O que não pode existir é homens e mulheres, velhos e crianças, jogados à intempérie das ruas, morando em condições mais do que precárias e comendo mal e sem satisfazer o estômago. Gente que se refugia no sono e mesmo com o ruído do tráfego faz força para não acordar. Porque acordar é ter de enfrentar a realidade.

Há um setor da opinião pública que não gosta de ouvir verdades. Um dia antes das declarações de Sérgio Cabral, o secretário da Segurança, José Beltrame, disse que "um tiro em Copacabana é uma coisa e na favela da Coréia é outra". Foi outro deus-nos-acuda. Mas é óbvio que um tiro em Copacabana é uma coisa e na favela é outra. Da mesma forma que o massacre de dez mil pessoas em Darfur é uma coisa e a morte de um soldado em Israel é outra. Como um acidente de metrô com dois ou três feridos em Berlim ou Paris é uma coisa e uma tragédia com ônibus ou trens que mate uma centena de pessoas na Índia ou no Paquistão é outra.

Ao Ocidente, tanto faz como tanto fez que centenas ou milhares de pessoas morram na África ou no Oriente. Já a morte de um soldado em Israel ou um pequeno acidente de metrô na Europa, isto nos toca mais. Nenhum leitor tem dificuldade em admitir estas duas últimas proposições. Difícil é aceitar a primeira. Está muito próxima de nós e deixa transparecer a idéia de que não há tratamento igual para quem vive na favela e para quem vive em Copacabana.

Ora, é claro que não há. Que mais não seja, nas esquinas de Copacabana não há - pelo menos por enquanto - traficantes entrincheirados com armamento bélico de alto calibre à espreita dos policiais. No dia em que houver, e este dia talvez não esteja longe, um tiro em Copacabana será tão banal quanto um tiro na favela. As balas perdidas já estão preparando o clima para os dias futuros.

De fato, o aborto não é a solução. Aborto é meia-sola. Solução seria o planejamento familiar, a contenção da miséria. Mas também é difícil admitir que famílias de classes privilegiadas tenham acesso a aborto seguro, enquanto os pobres estão expostos à sanha de carniceiros. Os católicos são cegos e surdos à esta disparidade, preferem ver mulheres morrendo ou na cadeia em vez de terem direito a um aborto tranqüilo e obviamente se escandalizam quando surge alguém empunhando o óbvio em público.

Enquanto isto, a violência e a miséria são nosso quinhão. A diminuição da natalidade pode até diminuir o tráfico. Mas jamais acabará com o tráfico. O traficante circula no morro como peixe dentro d'água.

Se algum governador quiser acabar definitivamente com o tráfico nas favelas, a meu ver só há uma solução: napalm.

 
CHINCHÓN E CINCHONA



Um leitor quer saber o que é chinchón, bebida com a qual eu começava minhas leituras no Café de Oriente, em Madri. Vamos lá! É um aguardente elaborado a partir de grãos macerados do anis que se chama Matalahúga, uma fruta seca de forma ovalada e cor esverdeada, misturados com álcoois de origem agrícola. Lembra um pouco o ouzo de Kalamata grego (Ούζο Καλαμάτας). É produzido em Chinchón, província de Madri. Existe em quatro versões, o doce, o seco, o extra-seco e o seco especial. As duas primeiras estão lá pelos 40º e poucos. Quanto ao extra-seco ou seco especial, longe de mim estes cálices. Podem chegar aos 79º.

Falar nisso, fiz outro dia uma descoberta curiosa. Comprei um xampu à base de quinina, que descobri então ter como nome científico Cinchona pubescens. Lembrei-me do chinchón e deitei-me a pesquisar. Curiosos são os percursos das palavras.

Corria o ano de 1633 e a mulher do vice-rei do Peru, Ana de Osorio, condessa de Chinchón, sofria de uma febre tropical contra a qual os médicos espanhóis do vice-reinado confessavam não poder fazer nada. O vice-rei, desesperado ante a hipótese de perder sua amada, chamou um curandeiro indígena, que lhe aplicou a quinina. Embora o vice-rei não esperasse nenhum milagro, a mulher melhorou, a febre cedeu em poucas horas e no dia seguinte estava curada.

O milagre fora obra da quinina, medicamento que os europeus desconheciam devido ao desprezo pelo que julgavam ser superstições dos índios. O vice-rei ordenou a seu médico que levasse para a Europa a planta da qual se extraía o milagroso remédio, uma substância branca, amorfa, sem cheiro, amarga e pouco solúvel, que se emprega em forma de sais para combater principalmente a febre causada pelas várias formas de malária.

No Velho Continente, a planta da quina foi chamada Chinchona em homenagem à condessa, que não teve nenhum outro mérito a não ser o de curar-se com ela. Um século mais tarde, o botânico Carl von Linneus, por erro, batizou a planta como Cinchona, nome científico que leva até hoje.

Erudição inútil e canja de galinha não fazem mal a ninguém.

Fonte: La página del idioma español (http://www.elcastellano.org)

 
Crônicas da Guerra Fria (18)


SOBRE SENHORES E SERVOS



Florianópolis - Para observar o mundo, bastam alguns metros de altura. Como observatório, escolhi o Polly’s, restaurante que fica em um primeiro andar e cuja sacada dá para a Praça XV. O mundo, gosto de observá-lo no dia em que Deus descansa, assim sua divina presença não interfere em meus juízos. Sábado é ainda o dia preferido pelos pastores que, Bíblia sob o sovaco, vociferam contra o pecado e vícios, como também pelos mercadores que abastecem de maconha a juventude ilhoa. O que às vezes resulta em conflito. Em um sábado destes, um pastor verberava sem piedade os vícios desta Ilha de Santa Catarina e teve a infeliz lembrança de incluir, entre eles, a canabis.

Foi uma vaia geral, que reboou pela Felipe Schmidt afora e talvez tenha até acordado Deus de seu merecido repouso. Surpreendeu-me o conhecimento bíblico dos artesãos que infestam a praça. De fato, em momento algum o hagiógrafo condena um baseado. O pastor mudou de assunto.

Falar em Bíblia, seguidamente sou procurado por pais que querem saber onde situar este ou aquele milagre de Jesus. Não que estejam preocupados com o assunto. Acontece que a escola, sempre dançando sob o cetro de Roma, inculca nas crianças precisamente os episódios da Bíblia que pertencem ao território das lendas. De um livro escrito com ódio e sangue, extraem um Cristo edulcorado que nada tem a ver com o Cristo histórico. O dramático processo revolucionário vivido por Jesus e Judas, em uma Palestina ocupada pelo invasor romano, vira historieta de fadas, da qual Judas é escanteado. Em mãos de professoras analfabetas, o estudo deste livro fascinante, que embasa a cultura ocidental, vira conto de Chapeuzinho Vermelho. No que em pouco diferem dos pastores da Praça XV, que acham que Cristo veio ao mundo para condenar mascadores de alfafa.

Entrou em vigor, no mês passado, o novo regimento interno da Câmara dos Deputados, em Brasília. Entre outras novidades, o artigo 79, parágrafo 1º, exige que uma Bíblia permaneça sobre a mesa da Presidência, à disposição de quem dela quiser fazer uso. O que já nos leva a uma interrogação: qual Bíblia? A "princeps" não há de ser, já que se contam nos dedos os homens que hoje podem ler a Bíblia no original. Considerando-se que o livro mais lido do mundo só é lido em traduções, resta a pergunta: qual tradução estará á disposição dos deputados? A Vulgata? A King James? Ou a Bíblia de Jerusalém?

Pois cada igreja puxa brasa para seu assado ao traduzir a Bíblia. Sem ir mais longe, na Vulgata Cristo tem primos. Já na King James, sem compromisso algum com o dogma romano da virgindade de Maria, Cristo tem irmãos. Enfim, parlamentar lendo a Bíblia já constitui milagre e o cronista ainda reclama dos tradutores. Deixemos de rabugices e imaginemos os senhores deputados buscando no Livro inspiração para definir a conduta do trabalhador brasileiro.

O Êxodo nos traz sugestões interessantes:

"Quando comprares um escravo hebreu, seis anos ele servirá; mas no sétimo sairá livre, sem nada pagar. Se veio só, sozinho sairá; se era casado, com ele sairá a esposa. Se o seu senhor lhe der mulher, e esta der à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão do senhor, e ele sairá sozinho. Mas se o escravo disser: 'eu amo a meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero ficar livre', o seu senhor falo-á aproximar-se de Deus, e o fará encostar-se à porta e às ombreiras e lhe furará a orelha com uma sovela: e ele ficará seu escravo para sempre".

O que só demonstra o caráter revolucionário da Bíblia. Enquanto os professores universitários no Brasil só agora conseguiram o direito ao ano sabático, os escravos de Israel dele já desfrutavam. A Bíblia que consulto, diga-se de passagem, é a de Jerusalém. Com imprimatur de Paulo Evaristo, cardeal Arns, pra leitor algum botar defeito. As relações entre patrão e empregado também mereceram um comentário do hagiógrafo:

"Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido. Mas, se sobreviver um ou dois, não será punido, porque é dinheiro seu".

Como as metrópoles brasileiras estão sendo invadidas por migrantes de toda a América Hispânica, seria oportuno ver como é tratada esta mão-de-obra no Levítico:

"Os servos e servas que tiverdes deverão vir das nações que vos circundam; delas podereis adquirir servos e servas. Também podeis adquiri-los dentre os filhos dos hóspedes que habitam entre vós, bem como das suas famílias que vivem conosco e que nasceram na vossa terra: serão vossa propriedade e deixá-los-eis como herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam como propriedade perpétua. Tê-los-eis como escravos; mas sobre os vossos irmãos, os filhos de Israel, pessoa alguma exercerá poder de domínio".

Caso algum petista pretenda regulamentar a condição dos bóia-frias, melhor dar antes uma olhadela no primeiro livro dos Reis:

"O rei Salomão recrutou em todo o Israel mão-de-obra para a corvéia; conseguiu reunir trinta mil operários. Mandou-os para o Líbano, dez mil cada mês, alternadamente; eles passaram um mês no Líbano e dois meses em casa. Salomão tinha ainda setenta mil carregadores e oitenta mil cortadores na montanha, sem contar os chefes dos prefeitos, em número de três mil e trezentos, que dirigiam os trabalhos e comandavam a multidão empenhada nas obras".

Para que tanta corvéia? O leitor pode estar imaginando estradas, hospitais, escolas. Nada disso. O sábio rei Salomão mandava essa gente toda cortar pedras no deserto para a construção do Templo. E não falta padre de esquerda que julgue faraônico o presentinho de Sarney aos empresários amigos, a rodovia Norte-Sul. Nestes dias em que se discute o xenófobo projeto de um pedágio para entrar na Ilha de Santa Catarina, nada melhor que buscarmos inspiração no extraordinário senso de hospitalidade vigente em Sodoma. Quando Ló recebe os dois anjos, os sodomitas (falo no gentílico, sem trocadilhos) cercaram sua casa e o intimaram:

"Onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para deles abusemos.

"Ló saiu à porta e, fechando-a atrás de si, disse-lhes: 'Suplico-vos, meus irmãos, não façais o mal! Ouvi: tenho duas filhas que ainda são virgens; eu vô-las trarei: fazei-lhes o que bem vos parecer, mas a estes homens nada façais, porque entraram sob a sombra de meu teto'".

Ló, deve estar o leitor lembrado, foi o único homem justo que Abraão encontrou para recomendar ao Senhor. Verdade que era primo de Abraão - o que nos mostra que nepotismo não é achado moderno - e mais tarde gerou, com sua filhas, Moab e Ben-Ami. Hospitalidade é isso aí.

Tal gesto, nós o vemos novamente em Juizes. Em Gabaá, o levita de Efraim é hospedado por um ancião. Traz consigo sua concubina e seu servo. Os viajantes se reanimavam, eis que surgem alguns vagabundos da cidade, fazendo tumulto ao redor da casa e, batendo na porta com golpes seguidos, diziam ao velho, dono da casa: 'faze sair o homem que está contigo, para que o conheçamos'. Então o dono da casa saiu e lhes disse: 'Não, irmãos meus, rogo-vos, não pratiqueis um crime. Uma vez que esse homem entrou em minha casa, não pratiqueis tal infâmia. Aqui está minha filha, que é virgem. Eu a entrego a vós. Abusai dela e fazei o que vos aprouver, mas não pratiqueis para com este homem uma tal infâmia'. Não quiseram ouvi-lo. Então o homem tomou sua concubina e a levou para fora. Eles a conheceram e abusaram dela toda a noite até de manhã e, ao raiar da aurora, deixaram-na".

Ao voltar para casa, o levita de Efraim pega um cutelo, corta sua concubina em doze pedaços e os remete a todo território de Israel. Mas isto já é outro assunto, fica para quando comentarmos a condição feminina na Bíblia.

Enfim, já que o Livro está agora à disposição de nossos representantes, façamos votos para que nenhum sacerdote invente de lê-lo, ou acabará solicitando sua proibição por atentado à moral e aos bons costumes. Enquanto isso, por sugestão do cineasta Luís Buñuel, releio o Livro da Sabedoria:

"Breve e triste é nossa vida, o remédio não está no fim do homem, não se conhece quem tenha voltado do Hades. Nós nascemos do acaso e logo passaremos como quem não existiu; fumo é o sopro de nosso nariz, e o pensamento, centelha do coração que bate. Extinta ela, o corpo se tornará cinza e o espírito se dispersará como o ar inconsistente. Com o tempo, nosso nome cairá no esquecimento e ninguém se lembrará de nossas obras; nossa vida passará como uma nuvem - sem traços -, se dissipará como a neblina expulsa pelos raios do sol e, por seu calor, abatida. Nossa vida é a passagem de uma sombra, e nosso fim, irreversível; o selo lhe é aposto, não há retorno. Vinde, pois, desfrutar dos bens presentes e gozar das criaturas com ânsia juvenil. Inebriemo-nos com o melhor vinho e com perfumes, não deixemos passar a flor da primavera, coroemo-nos com botões de rosas, antes que feneçam; nenhum prado ficará sem provar de nossa orgia, deixemos em toda parte sinais de alegria pois esta é nossa parte e nossa sorte".

Amém!


(Joinville, A Notícia, 15.10.89. Porto Alegre, RS, 21.10.89)

quinta-feira, outubro 25, 2007
 
CRENDICE SE ACADEMIZA



Tão jovem e já com teologia. A umbanda surgiu no Brasil em inícios do século passado e - segundo o Knaurs Grosser Religions Fürher, de Gerhard J. Bellinger - já tem mais de seis milhões de adeptos, dispersos entre cerca de 100 mil centros comunitários e ocupa o quarto lugar no ranking das religiões tupiniquins, superada apenas pelo catolicismo, o protestantismo e o espiritismo. As informações de Bellinger devem ser vistas com cautela, já que sua enciclopédia é datada de 1986 e certamente não leva em conta o crescimento acelerado, de lá para cá, das seitas evangélicas.

De qualquer forma, se compararmos os umbandistas com os gatos pingados do cristianismo em seu primeiro século de existência, a disseminação da nova religião foi extremamente rápida. A verdade é que as religiões crescem como cogumelos após a chuva no Brasil. A Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, criada há exatamente trinta anos, já tem 9.660 pastores, 4.750 templos e está disseminada em 172 países. Segundo o IBGE, já teria dois milhões de fiéis. Segundo seus pastores, oito milhões. Templo é dinheiro.

Umbanda é o seguinte: apanhe um punhado de macumba, ajunte uma generosa porção de espiritismo, mais outra de catolicismo, respingue essa massa básica com pitadas de feitiçaria e práticas mágicas, mais um pouco de crenças indígenas, tudo isso refogado em um denso molho de animismo africano. Ponha a cozinhar em fogo lento e voilà, temos a umbanda. Se você acha que coquetel de crendices é um nome pouco delicado para a nova religião, pode chamá-la de sincretismo.

Em março de 2004, escrevi:

Não bastasse esta proliferação de crendices no varejo, foi autorizada no ano passado, pelo Ministério da Educação, a Faculdade de Teologia Umbandista (FTU). Ora, direis, se os cristãos têm sua teologia, por que não teriam uma os cultos animistas africanos? A pergunta procede, mas tem seus percalços. O Deus cristão, além de ser um só, tem como biografia um livro dos mais antigos. Os africanos, além de serem muitos, precisam de biografias mais evidentes e bibliografia de apoio. Será necessário cavoucar muito texto do nada, para bem definir Ogun, Oxóssi, Iemanjá, Exu, pretos velhos, índios, caboclos, ciganos.

Na grade curricular constam Botânica Umbandista, Fundamentos de Psicologia Geral e Umbandista, Biologia Geral e Espiritual. Donde se conclui que deve também existir uma botânica católica, outra judia, outra luterana e assim por diante. As botânicas florescerão com o mesmo viço das profissões de fé. Idem no que diz respeito à psicologia. Mais um pouco e voltamos a 68, quando se falava em uma matemática burguesa e uma matemática revolucionária. Quanto à tal de biologia espiritual, será muito divertido ver biólogos mesurando, com seus instrumentos físicos, fenômenos inefáveis, que não podem ser medidos por instrumento algum. Sem falar que, com a nova faculdade, o sacrifício cruento de animais adquire dignidade acadêmica.

Que ousados executivos do Além queiram dourar seus ofícios com diploma de nível superior entende-se. Claro que em breve teremos doutores em Teologia Umbandista e, por que não, faculdades de Teologia do Candomblé. O que pasma é ver o MEC endossando tais excrescências. Verdade que a coisa começou há muitos séculos. Quando, na Idade Média, surgiram os primeiros cursos universitários de Teologia, as portas estavam abertas para toda e qualquer especulação. Teologia é a ciência do conhecimento de Deus. Isto é, do conhecimento do que não existe. Se os europeus têm uma ciência do que não existe, porque os africanos não a teriam?

O embuste passa a ter foros de conhecimento científico. Ai dos pobres de espírito, a clientela preferencial dos mercadores do Além.


Se ainda não temos doutores em Teologia Umbandista, já temos bacharéis. A Faculdade de Teologia Umbandista de São Paulo terá, no final deste ano, seus 35 primeiros graduados. É o que leio no Estado de São Paulo. Segundo o jornal, eles cursaram sociologia, psicologia, filosofia, ciências políticas, matemática, artes e lógica. Também estudaram anatomia, botânica, administração templária e sistemas filo-religiosos. O que o jornal esquece é que a botânica é umbandista, a psicologia idem, e a biologia é espiritual. É de supor-se que também a matemática e a lógica sejam umbandistas. No que à lógica diz respeito, será divertido observar como os novos teólogos conseguirão compatibilizar o velho catolicismo europeu com kardecismo, animismo africano, feitiçaria e crenças indígenas tupiniquins.

O coordenador do curso, Roger Soares, médico especializado em didática de ensino, afirma que "estudamos a teologia da umbanda com um enfoque multidisciplinar, passando pela ciência e pela religião e resgatando a cultura popular. O umbandista é o mestiço brasileiro e a faculdade é a valorização dessa cultura”. Falou muito e pouco disse. A única conclusão que se depreende deste palavreado, é que os umbandistas querem se investir de dignidade acadêmica. As conversas com espíritos migrarão do campo da doxa para o da episteme e o banho de descarrego passará a ter uma auréola de ciência.

Os pais e mães-de-santo já não serão mais pretos e pretas velhas imbuídas de malandragem, mas bacharéis. Muito em breve, teremos doutores pais-de-santo e doutoras mães-de-santo. E médium acabará sendo profissão regulamentada por lei. Quem será pai ou mãe-de-santo? Só quem tiver diploma da FTU.